Susan Okin- Genero_O Publico e o Privado

28
Estudos Feministas, Florianópolis, 16(2): 440, maio-agosto/2008 305 Gênero Gênero Gênero Gênero Gênero, o público e o privado , o público e o privado , o público e o privado , o público e o privado , o público e o privado** ** ** ** ** Copyright 2008 by Revista Estudos Feministas. * Susan Moller Okin é considerada uma das filósofas políticas mais importantes do Ocidente. Ela fale- ceu em março de 2004 em Lincoln, Massachussets. Algumas informações sobre a sua obra encontram-se no final deste número, na seção Colaboradoras/ es. A Revista Estudos Feministas publica este artigo dada a sua rele- vância para as teorias feministas e de gênero e em homenagem ao seu pensamento. ** Nota das editoras: Traduzido a partir da publicação em PHILLIPS, Anne (ed.). Feminism and Politics. NY, Oxford: Oxford University Press, 1998. p. 116-141. Col. Oxford Readings in Feminism. Foi anterior- mente publicado como capítulo 3 do livro organizado por David Held, Political Theory Today (Polity Press, 1991), p. 67-90. *** Este resumo não consta na ver- são original do artigo e foi feito pela tradutora. Susan Moller Okin * Stanford University Resumo do texto traduzido Resumo do texto traduzido Resumo do texto traduzido Resumo do texto traduzido Resumo do texto traduzido: Neste artigo, a filósofa política Susan Moller Okin discute as configurações históricas da dicotomia público/privado, analisando seus significados a partir de uma perspectiva de gênero. A ausência de reflexão sobre o gênero – especialmente sob duas formas, a negligência à realidade política das relações familiares e a linguagem ‘neutra’ – tem levado muitos teóricos, do passado e do presente, a reafirmar essa dicotomia sem levar em conta sua natureza patriarcal. Para Okin, os domínios da vida doméstica (pessoal) e da vida não-doméstica (pública) não podem ser interpretados isoladamente, o que demanda uma revisão profunda dos fundamentos de grande parte da teoria política liberal. A autora enfrenta essa tarefa, abordando problemas importantes, como o valor da privacidade. Palavras-chave Palavras-chave Palavras-chave Palavras-chave Palavras-chave: gênero; público e privado; privacidade; teoria política. *** Os conceitos de esfera pública e privada da vida têm sido centrais no pensamento político do Ocidente ao menos desde o século XVII. Em alguns aspectos, eles têm sua origem no pensamento grego clássico. 1 Em grande parte da corrente predominante da teoria política hoje (em contraste com a teoria feminista), esses conceitos continuam a ser usados como se não fossem problemáticos. Argumentos importantes nos debates contemporâneos dependem da suposição de que questões públicas podem ser facilmente diferenciadas de questões privadas, de que temos uma base sólida para separar o pessoal do político. Algumas vezes explicitamente, mas mais freqüentemente de maneira implícita, perpetua-se a idéia de que essas esferas são suficientemente separadas, e suficientemente diferentes, a ponto de o público ou o político poderem ser discutidos de maneira isolada em relação ao privado ou pessoal. Como argumento neste capítulo, afirmações como essas só podem ser sustentadas se argumentos bastante persuasivos de pesquisadoras feministas forem ignorados. Os estudos feministas em várias disciplinas colocaram na agenda uma nova categoria de análise, “gênero”, que levanta muitas novas questões sobre distinções prévias entre Artigos Artigos Artigos Artigos Artigos

Transcript of Susan Okin- Genero_O Publico e o Privado

Page 1: Susan Okin- Genero_O Publico e o Privado

Estudos Feministas, Florianópolis, 16(2): 440, maio-agosto/2008 305

GêneroGêneroGêneroGêneroGênero, o público e o privado, o público e o privado, o público e o privado, o público e o privado, o público e o privado**********

Copyright 2008 by RevistaEstudos Feministas.* Susan Moller Okin é consideradauma das filósofas políticas maisimportantes do Ocidente. Ela fale-ceu em março de 2004 emLincoln, Massachussets. Algumasinformações sobre a sua obraencontram-se no final destenúmero, na seção Colaboradoras/es. A Revista Estudos Feministaspublica este artigo dada a sua rele-vância para as teorias feministase de gênero e em homenagemao seu pensamento.** Nota das editoras: Traduzido apartir da publicação em PHILLIPS,Anne (ed.). Feminism and Politics.NY, Oxford: Oxford University Press,1998. p. 116-141. Col. OxfordReadings in Feminism. Foi anterior-mente publicado como capítulo3 do livro organizado por DavidHeld, Political Theory Today (PolityPress, 1991), p. 67-90.*** Este resumo não consta na ver-são original do artigo e foi feitopela tradutora.

Susan Moller Okin*

Stanford University

Resumo do texto traduzidoResumo do texto traduzidoResumo do texto traduzidoResumo do texto traduzidoResumo do texto traduzido: Neste artigo, a filósofa política Susan Moller Okin discute asconfigurações históricas da dicotomia público/privado, analisando seus significados a partirde uma perspectiva de gênero. A ausência de reflexão sobre o gênero – especialmente sobduas formas, a negligência à realidade política das relações familiares e a linguagem ‘neutra’– tem levado muitos teóricos, do passado e do presente, a reafirmar essa dicotomia sem levarem conta sua natureza patriarcal. Para Okin, os domínios da vida doméstica (pessoal) e da vidanão-doméstica (pública) não podem ser interpretados isoladamente, o que demanda umarevisão profunda dos fundamentos de grande parte da teoria política liberal. A autora enfrentaessa tarefa, abordando problemas importantes, como o valor da privacidade.Palavras-chavePalavras-chavePalavras-chavePalavras-chavePalavras-chave: gênero; público e privado; privacidade; teoria política.***

Os conceitos de esfera pública e privada da vidatêm sido centrais no pensamento político do Ocidente aomenos desde o século XVII. Em alguns aspectos, eles têmsua origem no pensamento grego clássico.1 Em grande parteda corrente predominante da teoria política hoje (emcontraste com a teoria feminista), esses conceitos continuama ser usados como se não fossem problemáticos. Argumentosimportantes nos debates contemporâneos dependem dasuposição de que questões públicas podem ser facilmentediferenciadas de questões privadas, de que temos umabase sólida para separar o pessoal do político. Algumasvezes explicitamente, mas mais freqüentemente de maneiraimplícita, perpetua-se a idéia de que essas esferas sãosuficientemente separadas, e suficientemente diferentes, aponto de o público ou o político poderem ser discutidos demaneira isolada em relação ao privado ou pessoal. Comoargumento neste capítulo, afirmações como essas só podemser sustentadas se argumentos bastante persuasivos depesquisadoras feministas forem ignorados.

Os estudos feministas em várias disciplinas colocaramna agenda uma nova categoria de análise, “gênero”, quelevanta muitas novas questões sobre distinções prévias entre

ArtigosArtigosArtigosArtigosArtigos

Page 2: Susan Okin- Genero_O Publico e o Privado

SUSAN MOLLER OKIN

306 Estudos Feministas, Florianópolis, 16(2): 305-332, maio-agosto/2008

as esferas pública e privada. “Gênero” refere-se àinstitucionalização social das diferenças sexuais; é umconceito usado por aqueles que entendem não apenas adesigualdade sexual, mas muitas das diferenciaçõessexuais, como socialmente construídas. Até hoje, os estudosfeministas em teoria política tendem a ser marginalizados,como ainda são, em alguma medida, na área de história,em contraste com sua centralidade atual na teoria literária.Como procuro explicar aqui, entretanto, essa marginalizaçãoserá mantida apenas à custa da contínua coerência,abrangência e capacidade de persuasão da teoria política.

Há uma certa ironia a ser assinalada aqui. O“renascimento” da teoria política normativa ocorreucontemporaneamente ao renascimento do feminismo e, nãopor coincidência, ocorreu em um momento de enormesmudanças na família e nas suas relações com o restante dasociedade. Mas a nova teoria política quase não prestouatenção à família, e continua seus debates centrais dandopouca atenção aos desafios do feminismo recente.

Definições e ambigüidadesDefinições e ambigüidadesDefinições e ambigüidadesDefinições e ambigüidadesDefinições e ambigüidades

Distinções entre público e privado têm tido um papelcentral, especialmente na teoria liberal – “o privado” sendousado para referir-se a uma esfera ou esferas da vida socialnas quais a intrusão ou interferência em relação à liberdaderequer justificativa especial, e “o público” para referir-se auma esfera ou esferas vistas como geralmente ou justificada-mente mais acessíveis. Algumas vezes é o controle dainformação sobre o que ocorre na esfera privada que édestacado, algumas vezes é a liberdade em relação a serobservado, em alguns momentos é a liberdade em relaçãoà interferência ou intrusão nas atividades, solidão oudecisões de alguém.2 Muito freqüentemente, na teoriapolítica, os termos “público” e “privado” são usados compouca preocupação em relação a sua clareza e semdefinição precisa, como se todos soubessem o que queremdizer, independentemente do contexto em que os teóricosos utilizam. Há, no entanto, como os estudos feministas têmtornado cada vez mais claro, duas ambigüidades principaisenvolvidas na maioria das discussões sobre o público e oprivado.

A primeira ambigüidade resulta do uso daterminologia para indicar ao menos duas distinçõesconceituais centrais, com variações em cada uma delas.“Público/privado” é usado tanto para referir-se à distinçãoentre Estado e sociedade (como em propriedade pública eprivada), quanto para referir-se à distinção entre vida não-doméstica e vida doméstica. Nessas duas dicotomias, o

1 Eu devo limitar minha discussãoaqui às teorias ocidentais e àsculturas das quais elas emanam.Para um interessante estudotranscultural sobre a privacidadee a dicotomia público/privado(incluindo a discussão das teoriase práticas dos gregos clássicos,hebreus, chineses antigos eesquimós contemporâneos), verBarrington MOORE Jr., 1984.Moore conclui que, embora o queé privado e o grau em que aprivacidade é valorizada sejamconsideravelmente diferentes deuma sociedade para a outra,“parece bastante provável quetodas as sociedades civilizadastenham alguma percepção doconflito entre os interessespúblicos e os privados”, e ele nãoencontra qualquer cultura quenão valorize algum tipo deprivacidade.

2 Ver Hyman GROSS, 1971; ErnestVAN DEN HAAG, 1971; e W. L.WEINSTEIN, 1971; ver tambémAnita L. ALLEN, 1988, especial-mente os capítulos 1 e 2.

Page 3: Susan Okin- Genero_O Publico e o Privado

Estudos Feministas, Florianópolis, 16(2): 305-332, maio-agosto/2008 307

GÊNERO, O PÚBLICO E O PRIVADO

Estado é (paradigmaticamente) público, e a família e avida íntima e doméstica são (também paradigmaticamente)privadas. A diferença crucial entre os dois é que o domíniosocioeconômico intermediário (o que Hegel chamou de“sociedade civil”) é na primeira dicotomia incluído nacategoria de “privado”, mas na segunda dicotomia éincluído na de “público”. Tem havido pouca discussão sobreessa importante ambigüidade pelos teóricos políticos dascorrentes hegemônicas. Mesmo coletâneas dedicadas àtemática do público e do privado pouco se preocupam emanalisá-la, apesar do fato de incluírem artigos sobre umadessas distinções, e outros sobre a outra. Na coletânearecente organizada por Benn e Gaus,3 por exemplo, o únicoartigo que presta atenção séria e sistemática a essaambigüidade é a crítica feminista bastante lúcida dePateman.4 Em outras coletâneas, uma ou outra dessasdefinições parece simplesmente ser pressuposta, e apenasa primeira versão da dicotomia é abordada. Na coletâneaorganizada por Hampshire, por exemplo, não há qualquermenção, nos ensaios, à esfera doméstica ou à dicotomiaque a especifica como distinta do restante da vida social.5

Uma rara exceção à desatenção geral ao fato deque a dicotomia “público/privado” tem mais de um sentidopode ser encontrada na discussão feita por Weinstein.6 Elefaz uma analogia útil entre publicidade e privacidade e ascamadas de uma cebola; assim como uma camada queestá do lado de fora de outra camada estará também dentrode uma outra, algo que é público em relação a uma esferada vida pode ser privado em relação a uma outra. SeWeinstein está correto ao apontar que a distinção tem,portanto, uma multiplicidade de significados, ao invés desimplesmente um significado dual, os significados ligadosàs dicotomias Estado/sociedade e não-doméstico/doméstico são justamente aqueles utilizados com maisfreqüência na teoria política, onde ambos têm papéiscentrais. Eu vou focar o segundo significado neste capítuloporque é a permanência dessa dicotomia que torna possívelque os teóricos ignorem a natureza política da família, arelevância da justiça na vida pessoal e, conseqüentemente,uma parte central das desigualdades de gênero. Vou mereferir a essa dicotomia como “público/doméstico”.

Em segundo lugar, mesmo no interior da dicotomiapúblico/doméstico, permanece uma ambigüidade,resultando diretamente das práticas e teorias patriarcais dopassado, que tem sérias conseqüências práticas –especialmente para as mulheres. A divisão do trabalho entreos sexos tem sido fundamental para essa dicotomia desdeseus princípios teóricos. Os homens são vistos como,sobretudo, ligados às ocupações da esfera da vida

3 Stanley I. BENN e Gerald F. GAUS,1983a.

4 Carole PATEMAN, 1983; vertambém Frances E. OLSEN, 1983.

5 Stuart HAMPSHIRE, 1978.

6 WEINSTEIN, 1971.

Page 4: Susan Okin- Genero_O Publico e o Privado

SUSAN MOLLER OKIN

308 Estudos Feministas, Florianópolis, 16(2): 305-332, maio-agosto/2008

econômica e política e responsáveis por elas, enquanto asmulheres seriam responsáveis pelas ocupações da esferaprivada da domesticidade e reprodução. As mulheres têmsido vistas como “naturalmente” inadequadas à esferapública, dependentes dos homens e subordinadas à família.Esses pressupostos, como se poderia esperar, têm efeitos degrande alcance na estruturação da dicotomia e de cadauma das esferas que a compõem. Como os estudosfeministas têm revelado, desde os princípios do liberalismono século XVII, tanto os direitos políticos quanto os direitospertencentes à concepção moderna liberal de privacidadee do privado têm sido defendidos como direitos dosindivíduos; mas esses indivíduos foram supostos, e comfreqüência explicitamente definidos, como adultos, chefesde família masculinos.7 Assim, os direitos desses indivíduosa serem livres de intrusão por parte do Estado, ou da igreja,ou da vigilância curiosa de vizinhos, eram também os direitosdesses indivíduos a não sofrerem interferência no controleque exerciam sobre os outros membros da sua esfera devida privada – aqueles que, seja pela idade, sexo oucondição de servidão, eram vistos como legitimamentecontrolados por eles e tendo sua existência limitada à suaesfera de privacidade. Não há qualquer noção de que essesmembros subordinados das famílias devessem ter seuspróprios direitos à privacidade. Algumas das conseqüênciascontemporâneas desse legado teórico e jurídico serãodiscutidas abaixo.

A negligência do gênero e aA negligência do gênero e aA negligência do gênero e aA negligência do gênero e aA negligência do gênero e aperpetuação da ausência de reflexãoperpetuação da ausência de reflexãoperpetuação da ausência de reflexãoperpetuação da ausência de reflexãoperpetuação da ausência de reflexãosobre a dicotomia público/domésticosobre a dicotomia público/domésticosobre a dicotomia público/domésticosobre a dicotomia público/domésticosobre a dicotomia público/doméstico

Muitos teóricos políticos, no passado, costumavamdiscutir ambas as esferas, pública e privada, e ser explícitosem suas afirmações de que elas eram separadas eoperavam de acordo com princípios diferenciados. Locke,por exemplo, define o poder político distinguindo-o dasrelações de poder que operam dentro dos limites da casa.8

Rousseau e Hegel claramente contrastam o altruísmoparticularista da família com a necessidade de razãoimparcial no âmbito do Estado, e citam esse contraste paralegitimar o poder masculino na esfera doméstica.9 Essesteóricos elaboram argumentos explícitos sobre a família, ealguns relacionados à natureza da mulher. Por contraste, amaioria dos teóricos políticos contemporâneos continua amesma tradição das “esferas separadas” ao ignorarem afamília, e em particular a divisão do trabalho que nela sedá, as formas de dependência econômica a ela relaciona-das e a estrutura de poder. O julgamento de que a família é

7 Boa parte da teoria políticafeminista até esse momento temtido a preocupação de formularcríticas a esses argumentos eanalisar o impacto dessas críticassobre as teorias. Ver por exemploLorenne CLARK e Lynda LANGE,1979; Jean Bethke ELSHTAIN, 1981;Susan Moller OKIN, 1979; CarolePATEMAN e Elisabeth GROSS,1987; Carole PATEMAN e Mary L.SHANLEY, 1990.

8 John LOCKE, 1960, p. 308.

9 OKIN, 1982; e PATEMAN, 1980.

Page 5: Susan Okin- Genero_O Publico e o Privado

Estudos Feministas, Florianópolis, 16(2): 305-332, maio-agosto/2008 309

GÊNERO, O PÚBLICO E O PRIVADO

“não-política” está implícito no fato mesmo de que ela nãoé discutida na maioria dos trabalhos de teoria política hoje.10

A família é claramente pressuposta, por exemplo, quandose pensa no fato de que os teóricos políticos tomam comosujeitos de suas teorias seres humanos maduros,independentes, sem explicar como chegam a ser assim;mas se fala muito pouco sobre ela. Rawls, ao construir suateoria da justiça, não discute a justiça interna da família,embora ele ao mesmo tempo inclua a família em seuscomponentes iniciais da estrutura básica (à qual osprincípios de justiça devem ser aplicados) e requeira umafamília justa para sua concepção de desenvolvimentomoral.11 Mesmo em um livro recente intitulado Justice, EqualOportunity and the Family não se pode encontrar nenhumadiscussão sobre a divisão do trabalho entre os sexos ou sobrea justiça interna das famílias.12

Entre as poucas exceções a essa regra estão asdiscussões teóricas explicitamente focadas na distinçãoentre público e privado, que ocasionalmente apontam paraa esfera da vida familiar como caso paradigmático do“privado”. Fazem parte deles os argumentos sobre a família,bastante diferenciados entre si, de Walzer e Green, que estãopreocupados com sua justiça interna, de Bloom, que afirma(seguindo Rousseau) ser ela natural e inevitavelmente injusta,e de Sandel, cujo argumento contra a primazia da justiçadepende de uma visão idealizada de famílias operandode acordo com virtudes mais nobres do que a justiça. Elessão raras exceções em trabalhos recentes de teoria política.13

Associado aos pressupostos típicos e à negligênciaem relação à vida familiar está um fenômeno que eu chamode “falsa neutralidade de gênero”. No passado, os teóricospolíticos usavam explicitamente termos masculinos dereferência, como “ele” e “homem”. Em geral, ficava claroque seus argumentos centrais eram, de fato, sobre chefesde família masculinos. Esses argumentos têm sido lidos,freqüentemente, como se eles dissessem respeito a todosnós, mas interpretações feministas dos últimos quinze anosou mais têm revelado a falsidade desse suposto “adicioneas mulheres e misture”.14 Desde meados dos anos 70, amaioria dos teóricos vem tentando evitar, de uma ou deoutra maneira, o uso genérico de termos masculinos dereferência. Ao invés disso, eles tendem a utilizar termos como“alguém”, “ele ou ela”, “homens e mulheres”, “pessoas”, ou“mesmos”, ou utilizar termos de referência masculinos efemininos alternadamente. O problema com essas respostasmeramente terminológicas aos desafios feministas é que elasfreqüentemente comprometem a credibilidade e algumasvezes levam a resultados sem sentido. Termos neutros, seusados sem atenção de fato às questões de gênero,

10 Ver por exemplo Bruce A.ACKERMAN, 1980; RonaldDWORKIN, 1977; Will iam A.GALSTON, 1980; e RobertNOZICK, 1974.

11 John RAWLS, 1971; ver DeborahKEARNS, 1983; e Susan MollerOKIN, 1987 e 1989a.

12 James S. FISHKIN, 1983.

13 Michael L. WALZER, 1983; PhilipGREEN, 1985; Allan BLOOM, 1987;e Michael J. SANDEL, 1982.

14 Ver nota 7 acima.

Page 6: Susan Okin- Genero_O Publico e o Privado

SUSAN MOLLER OKIN

310 Estudos Feministas, Florianópolis, 16(2): 305-332, maio-agosto/2008

freqüentemente obscurecem o fato de que grande parte daexperiência real das “pessoas”, enquanto elas viverem emsociedades estruturadas por relações de gênero, de fatodepende de qual é seu sexo. Dois exemplos particularmentefortes podem elucidar esse ponto.

Primeiro, em Social Justice in the Liberal State, BruceAckerman em geral emprega escrupulosamente umalinguagem neutra em relação ao gênero.15 Ele rompe comessa neutralidade apenas, ao que parece, para desafiaros papéis sexuais existentes; ele se refere ao “Comandante”,que tem o papel de liderança na sua teoria, como “ela”.Entretanto, o argumento do livro não aborda as desigual-dades existentes ou as diferenciações de papéis entre ossexos. O grande impacto do uso de linguagem neutra sematenção às questões de gênero é revelado na discussão deAckerman sobre o aborto. Uma discussão de duas páginassobre o tema, com exceção de um único “ela”, é escrita emlinguagem completamente neutra, em termos de “genitores”e fetos.16 A impressão dada pela discussão é a de que nãohá nenhum aspecto relevante em que a relação da mãecom o feto é diferente da relação do pai. Podemos, é claro,imaginar (e na visão de muitas feministas seria algodesejável de se atingir) uma sociedade na qual asdiferenças nas relações que homens e mulheres têm com osfetos seria tão pequena que teria um papel menor nadiscussão sobre o aborto. Esse poderia ser o caso em umasociedade sem gênero – na qual a diferença sexual nãotivesse qualquer significação social, na qual os sexos seriamiguais em poder e interdependência, e as responsabilidadesrelativas à criação dos filhos e ao sustento fossemcompletamente divididas. Mas esse não é certamente o casohoje. Além disso, não há qualquer discussão sobre essapossibilidade no livro de Ackerman. A vida familiar, como éfreqüente, parece ser pressuposta ao invés de discutida, e adivisão do trabalho entre os sexos não é considerada umaquestão de justiça social. Nesse contexto, especialmenteem um tema como aborto, a linguagem neutra podeconduzir a equívocos.17

Exemplos importantes da falsa neutralidade emrelação ao gênero também estão presentes nos trabalhosde Alasdair MacIntyre. Ele é cuidadoso em trabalhos recentesno sentido de evitar os velhos termos de referência masculinos“genéricos”, ainda que sua rejeição tanto ao liberalismoquanto ao marxismo o tenha levado a um retorno às “nossastradições”, especialmente a tradição aristotélica-cristã, queestá marcada por problemas se pensada a partir de umaperspectiva feminista. Quando ele dá exemplos daspersonagens nas estórias que “nós” precisamos absorverpara que “nossas” vidas tenham coerência como narrativas,

15 ACKERMAN, 1980.

16 ACKERMAN, 1980, p. 127-128.

17 Considerar, por exemplo, ahipótese de Ackerman: “Supo-nham que um casal simplesmentegoste tanto de abortos que elesconcebam embriões simples-mente para matá-los algunsmeses mais tarde?” (ACKERMAN,1980, p. 128).

Page 7: Susan Okin- Genero_O Publico e o Privado

Estudos Feministas, Florianópolis, 16(2): 305-332, maio-agosto/2008 311

GÊNERO, O PÚBLICO E O PRIVADO

nós as encontramos repletas de pressupostos sobre o gêneroe imagens explicitamente negativas da mulher.18 Além disso,quando MacIntyre se confronta com a crítica feminista aAristóteles, como um teórico cuja visão social dependecentralmente da subordinação das mulheres, sua respostaé, em resumo, indicar-nos a solução vislumbrada porPlatão.19 Mas ele não menciona o fato de que a integraçãodas mulheres-guardiãs à sociedade, efetuada por Platão,se ancora sobre a abolição da família, o que não pareceser uma solução razoável para um cristão agostiniano, comoMacIntyre agora se define. Assim, sua linguagem neutrapermanece falsa, já que ele não oferece qualquerevidência de que as tradições para as quais ele se volta,com o intuito de nos fornecer caminhos morais e políticos,possam ser adaptadas para incluir as mulheres.

As falhas por parte do pensamento político recenteno sentido de considerar a família, e o uso de linguagemneutra em relação ao gênero, resultam, em conjunto, emuma contínua negligência, por parte dos teóricos dascorrentes hegemônicas, em relação ao tema profundamentepolítico do gênero. A linguagem que eles empregam fazliteralmente pouquíssima diferença no que eles fazem, queé escrever sobre homens, e sobre aquelas mulheres queconseguem, a despeito da estrutura de gênero da sociedadeem que vivem, adotar padrões de vida que se desenvol-veram adaptados aos homens. O fato de que os sereshumanos nascem como crianças dependentes, não comoos supostos atores autônomos que povoam as teoriaspolíticas, é obscurecido pela pressuposição implícita defamílias generificadas, operando fora do âmbito das teoriaspolíticas. Em grande medida, a teoria contemporânea, comono passado (ainda que de maneira menos óbvia), é sobrehomens que têm esposas em casa.

O feminismo e a politização do pessoalO feminismo e a politização do pessoalO feminismo e a politização do pessoalO feminismo e a politização do pessoalO feminismo e a politização do pessoal

A negligência em relação ao gênero nas principaiscorrentes da teoria política persistiu apesar dos argumentospersuasivos de uma geração de pesquisadoras feministas,muitas das quais emergiram (seja como radicais, liberais ousocialistas) da Nova Esquerda dos anos 1960.20 Como JoanScott explicou, em um artigo recente e de grande influência,“gênero” é um termo usado por aquelas que defenderamque a área acadêmica de estudos sobre mulheres iria“fundamentalmente transformar os paradigmas disciplina-res”, que os estudos sobre mulheres iriam “não apenasadicionar um novo tópico temático, mas também forçar umreexame crítico das premissas e padrões dos trabalhosacadêmicos existentes”.21 Como procuro explicar aqui, as

18 MACINTYRE, 1981, p. 201.

19 MACINTYRE, 1988, p. 105.

20 As análises mais abrangentessobre a variedade de teorias epráticas do feminismo recentesão as de Alison M. JAGGAR,1983, e Rosemarie TONG, 1989.Para uma excelente análise, maissucinta, ver Linda J. NICHOLSON,1986, partes 1 e 2.

21 SCOTT, 1986, p. 1054.

Page 8: Susan Okin- Genero_O Publico e o Privado

SUSAN MOLLER OKIN

312 Estudos Feministas, Florianópolis, 16(2): 305-332, maio-agosto/2008

análises e descobertas feministas sobre gênero são deimportância crucial para a teoria política, e afetam emparticular sua contínua sustentação sobre a dicotomiapúblico/doméstico. Eu pretendo expor como, ao demonstrara legitimidade do gênero como uma categoria importanteda análise política e social, e particularmente ao focar ogênero, ele mesmo, como uma construção social queprecisa ser explicada, as estudiosas feministas apontaramnumerosas falhas na referida dicotomia e nos modos comoela continua a ser usada nas correntes hegemônicas dateoria política. Como disse Pateman, “a separação eoposição entre as esferas pública e privada na teoria e naprática liberal [...] é, em última instância, aquilo a que serefere o movimento feminista”.22

Pode-se desenhar, aqui, um paralelo entre as críticasao liberalismo feitas pelos marxistas e alguns outrossocialistas, e as críticas feitas pelas feministas. Desde queMarx escreveu A questão judaica e Crítica da Filosofia doDireito de Hegel, estudiosos de esquerda, focando acategoria de classe e defendendo a existência de umarelação estreita entre poder e práticas políticas eeconômicas, expuseram o quanto a dicotomia entre Estadoe sociedade, reificada e exagerada pela teoria liberal, servea funções ideológicas. “O econômico é político” é umaafirmação central ao desafio que a esquerda coloca aoliberalismo.23 Paralelamente, as teóricas feministas, focandoo gênero e argumentando que poder e práticas políticas eeconômicas são estreitamente relacionados às estruturas epráticas da esfera doméstica, expuseram o quanto adicotomia entre público e doméstico, também reificada eexagerada pela teoria liberal, serve igualmente a funçõesideológicas. 24 O slogan feminista correspondente é,obviamente, “o pessoal é político”.

“O pessoal é político” está na raiz das críticas feminis-tas à convencional dicotomia liberal público/doméstico.Sendo esse o caso, é importante começar pela explicaçãodas suas origens e do seu significado. A maioria dasfeministas do século XIX – e do início do XX – não questionouou desafiou o papel especial da mulher no interior da família.Na verdade, elas freqüentemente defenderam os direitos eoportunidades das mulheres, como a educação ou osufrágio, com o argumento de que fariam dessas mulheresesposas e mães melhores, ou que as capacitariam paratrazer sua sensibilidade moral especial, desenvolvida naesfera doméstica, para o mundo da política.25 Assim, aindaque elas lutassem contra a subordinação jurídica dasesposas e exigissem direitos iguais para as mulheres naesfera pública, elas aceitaram a suposição prévia de quea associação estreita com a esfera doméstica e a

22 PATEMAN, 1983, p. 281.

23 Ver GAUS, 1983, citandoGALBRAITH e LINDBLOM; PATEMAN,1983, sobre WOLIN e HABERMAS;e WALZER, 1983, especialmenteo capítulo 12.

24 OLSEN, 1983, p. 1560-1578.

25 ELSHTAIN, 1974.

Page 9: Susan Okin- Genero_O Publico e o Privado

Estudos Feministas, Florianópolis, 16(2): 305-332, maio-agosto/2008 313

GÊNERO, O PÚBLICO E O PRIVADO

responsabilidade da mulher por essa mesma esfera eramnaturais e inevitáveis. Mesmo no início da “segunda onda”do feminismo nos anos 1960, algumas feministas tentaramdefender o desmantelamento de todas as barreiras contraa mulher no mundo do trabalho e da política enquanto, aomesmo tempo, sustentaram a idéia de que a mulher tinharesponsabilidades especiais na família. As contradiçõesnessa aceitação do “duplo papel” da mulher sãoclaramente evidentes, por exemplo, no relatório de 1963 daKennedy Commission on the Status of Women.26 No outroextremo do leque de visões feministas, feministas radicaisdesde cedo argüiram que, se a família era a raiz da opressãoda mulher, ela deveria ser “esmagada”.27 Não demoroumuito, no entanto, para que a maioria das feministasdesenvolvesse posições entre esses dois extremos,recusando-se a aceitar a divisão do trabalho entre os sexoscomo natural e imutável, mas recusando-se também a abrirmão da família. Nós reconhecemos que a família não estavainevitavelmente ligada a sua estrutura de gênero, mas, atéque se tivesse sucesso na transformação dessa estrutura,não poderia haver qualquer esperança de igualdade paraas mulheres, seja na esfera doméstica, seja na pública.

Assim, não foram apenas as feministas radicais quepassaram a prestar atenção à política do que tinha sidovisto, previamente, como paradigmaticamente não-político– a esfera pessoal da sexualidade, do trabalho doméstico,da família. Ainda que nem sempre explicitado, “o pessoal épolítico” na verdade tornou-se a afirmação que sustentou oque a maioria das pensadoras feministas estava dizendo.Feministas de diferentes tendências políticas, e em umavariedade de disciplinas, revelaram e analisaram asconexões múltiplas entre os papéis domésticos das mulherese a desigualdade e segregação a que estão submetidasnos ambientes de trabalho, e a conexão entre sua socializa-ção em famílias generificadas e os aspectos psicológicosde sua subordinação. Desse modo, a família se tornou, evem se mantendo desde então, central à política dofeminismo e um foco prioritário da teoria feminista. Ofeminismo contemporâneo, portanto, coloca um desafiosignificativo à suposição que vem há muito temposustentando boa parte das teorias políticas de que a esferada família e da vida pessoal é tão separada e distinta doresto da vida social que essas teorias poderiam legitima-mente ignorá-la.

A título de informação, eu devo destacar o que muitasfeministas que criticam a dicotomia tradicional entre opúblico e o doméstico não defendem, especialmenteporque é uma defesa corretamente associada a algumasfeministas. Jaggar diz que tanto as feministas radicais quanto

26 Ver NICHOLSON, 1986, p. 20,58.

27 O argumento de Firestone,único, mas por algum tempoinfluente no movimento, foi maislonge: ao localizar a opressão àmulher em sua biologia reprodu-tiva, ela argumentou que a igual-dade entre os sexos poderiaocorrer apenas com o sucesso nodesenvolvimento e uso de técni-cas de reprodução artificial(Shulamith FIRESTONE, 1971).

Page 10: Susan Okin- Genero_O Publico e o Privado

SUSAN MOLLER OKIN

314 Estudos Feministas, Florianópolis, 16(2): 305-332, maio-agosto/2008

as socialistas defendem a total abolição da distinção entrepúblico e privado,28 enquanto as feministas liberaisdefendem uma definição mais estreita da esfera privada.Eu não acredito que essa correlação possa ser estabelecidatão claramente. Muitas feministas de várias posiçõespolíticas não negam nem a utilidade de um conceito deprivacidade nem o valor da privacidade na vida humana.Nem mesmo negamos que há algumas distinções sensatasa serem feitas entre as esferas pública e doméstica. Patemane Nicholson, por exemplo, se distanciam da interpretaçãoliteral do “pessoal é político”, feita por algumas feministasradicais,29 e eu concordo com elas em não interpretar essaafirmação como uma identificação simples e total entre asduas esferas. Allen defende que muitas reivindicaçõesimportantes para as feministas – dos direitos reprodutivos àproteção contra o assédio sexual – são efetivamentebaseadas no direito das mulheres a vários tipos deprivacidade.30 E eu argumentei em outro trabalho queapenas se um alto grau de igualdade for mantido na esferadoméstica da vida familiar esta estará sendo concebidacomo uma esfera privada consistente com a privacidade ea segurança socioeconômica de mulheres e crianças.31

Como Nicholson destaca, a questão “o quanto o pessoal épolítico?” é uma importante fonte de tensão no interior tantodo feminismo liberal quanto do socialista.32

O que, então, outras feministas, assim como as maisradicais, querem dizer com “o pessoal é político”? Nósqueremos dizer, primeiramente, que o que acontece na vidapessoal, particularmente nas relações entre os sexos, não éimune em relação à dinâmica de poder, que temtipicamente sido vista como a face distintiva do político. Enós também queremos dizer que nem o domínio da vidadoméstica, pessoal, nem aquele da vida não-doméstica,econômica e política, podem ser interpretados isolados umdo outro. Olsen tem defendido de maneira lúcida e bastanteconvincente que a noção de que o Estado pode escolherentre intervir ou não na vida familiar não faz qualquer sentido;a única questão compreensível é como o Estado ao mesmotempo define e influencia a vida familiar.33 Outros têmmostrado que, uma vez que a relevância do gênero tenhasido compreendida, nem o domínio doméstico nem opúblico, em termos de suas estruturas e práticas, suposiçõese expectativas, divisão do trabalho e distribuição de poder,podem ser discutidos de forma compreensível sem umareferência constante ao outro. Nós demonstramos como asdesigualdades dos homens e das mulheres no mundo dotrabalho e da política são inextricavelmente relacionadas,em um ciclo causal de mão dupla, às desigualdades nointerior da família.34 Por estarem muito conscientes de que a

28 JAGGAR, 1983, p. 145, 254.

29 PATEMAN, 1983; e NICHOLSON,1986.

30 ALLEN, 1988.

31 OKIN, 1989b.

32 NICHOLSON, 1986, p. 19.

33 OLSEN, 1985.

34 Barbara R. BERGMANN, 1986;Kathleen GERSON, 1985; OKIN,1989b.

Page 11: Susan Okin- Genero_O Publico e o Privado

Estudos Feministas, Florianópolis, 16(2): 305-332, maio-agosto/2008 315

GÊNERO, O PÚBLICO E O PRIVADO

organização atual da sociedade contemporânea éprofundamente afetada pela percepção predominante davida social como sendo dividida em duas esferas separadase distintas, as feministas têm argumentado de maneira muitoconvincente que boa parte desse pensamento conduz aequívocos – e que ele opera no sentido de reificar e, assim,legitimar a estrutura de gênero da sociedade, e de protegeruma esfera significante da vida humana (e especialmenteda vida das mulheres) do exame atento ao qual o político ésubmetido.

Portanto, as feministas afirmam que a distinção liberalexistente entre público e doméstico é ideológica no sentidode que apresenta a sociedade a partir de uma perspectivamasculina tradicional baseada em pressupostos sobrediferentes naturezas e diferentes papéis naturais de homense mulheres, e de que, como concebida atualmente, nãopode servir como um conceito central a uma teoria políticaque irá, pela primeira vez, incluir todas nós. Desafiando aabordagem daqueles teóricos que ainda parecem assumirsilenciosamente que a criação dos filhos e a domesticidadeligadas à mulher são “naturais” e, portanto, situam-se forado escopo da crítica política, as pesquisadoras feministastêm argumentado que a divisão doméstica do trabalho, eespecialmente a prevalência da mulher à frente da criaçãodos filhos, são socialmente construídas, e portanto questõesde relevância política. Além de serem fatores centrais naestrutura de gênero da sociedade de maneira mais ampla,sua manutenção não pode ser explicada sem a referênciaa elementos da esfera não-doméstica, como a segregaçãoe a discriminação sexuais correntes na força de trabalho, aescassez de mulheres nas altas rodas da política e apressuposição estrutural de que trabalhadores e ocupantesde cargos políticos não são responsáveis por cuidar dascrianças.

Estudos feministas de gênero: daEstudos feministas de gênero: daEstudos feministas de gênero: daEstudos feministas de gênero: daEstudos feministas de gênero: daexplicação à desconstruçãoexplicação à desconstruçãoexplicação à desconstruçãoexplicação à desconstruçãoexplicação à desconstrução

As teorias sobre gênero correntes resultam de duasdécadas de intensa reflexão, pesquisa, análise, crítica eargumentação, novas reflexões, mais pesquisa, análisesrefeitas. As acadêmicas feministas em muitas disciplinas ecom pontos de vista muitas vezes radicalmente diferentestêm contribuído para essa empreitada. A maioria dasexplicações feministas radicais sobre a assimetria entre ossexos vem enfocando principalmente as diferenças sexuaise reprodutivas entre os corpos.35 Enfatizando as basesbiológicas da diferenciação social dos sexos e dadominação das mulheres pelos homens, suas soluções vão

35 FIRESTONE, 1971; SusanBROWNMILLER, 1975; Catharine A.MACKINNON, 1982; Mary DALY,1978, e algumas feministaslacanianas francesas e inglesas;entretanto, comparar MACKINNON,1987, e Adrienne RICH, 1980.

Page 12: Susan Okin- Genero_O Publico e o Privado

SUSAN MOLLER OKIN

316 Estudos Feministas, Florianópolis, 16(2): 305-332, maio-agosto/2008

de tecnológicas a separatistas. A tendência das explicaçõesmarxistas tem sido a de ver as raízes da desigualdade sexualno âmbito da produção, reforçando a conexão entrepatriarcado e capitalismo.36 As feministas socialistas têmpartido dos insights do feminismo radical e do marxismo,criticando o primeiro por a-historicismo e determinismobiológico, e o último por atenção insuficiente à dimensãoreprodutiva da vida humana.37 A combinação crítica devárias ênfases feministas levou a tentativas de se entender ogênero como uma construção social e política, relacionadaa, mas não determinada pela diferença sexual biológica.Como Scott destaca, “No seu uso mais recente, ‘gênero’parece ter primeiramente aparecido entre as feministas norte-americanas que desejavam insistir na qualidade fundamen-talmente social das distinções baseadas no sexo. A palavradenotava uma rejeição ao determinismo biológico implícitono uso de termos como ‘sexo’ ou ‘diferença sexual’”.38 Doisfocos principais das teorias de gênero desenvolvidas pelasfeministas são a psicologia e a história. Vou explicar cadaum deles brevemente porque considero que são poten-cialmente os elementos mais significantes da nova pesquisafeminista para a teoria política.

As teorias complexas de gêneroAs teorias complexas de gêneroAs teorias complexas de gêneroAs teorias complexas de gêneroAs teorias complexas de gêneropsicologicamente focadaspsicologicamente focadaspsicologicamente focadaspsicologicamente focadaspsicologicamente focadas

As teorias de gênero fundadas na psicanálise e napsicologia vêm completar o insight de Simone de Beauvoir,fundamental para o conceito feminista de gênero, de que“não se nasce mulher, torna-se mulher”.39 Elas têm propiciadoteorias complexas e de percepção acurada em resposta auma questão crucial que não tinha sido feita previamente,já que a resposta era considerada auto-evidente: “Por queas mulheres se tornam mães?” Uma das primeiras, mas aindabastante influente, dessas explicações se encontra notrabalho de Nancy Chodorow, baseado na psicanálise.40

Chodorow dedicou atenção especial aos efeitos sobre odesenvolvimento psicológico de ambos os sexos do fato deque, em uma sociedade estruturada pelo gênero como anossa, as crianças de ambos os sexos são criadasprincipalmente por mulheres. Ela afirmou, baseada na teoriadas relações objetais, que a experiência de individuação –de separação de alguém em relação à pessoa que delacuidou e com quem está em princípio psicologicamentefundido – é uma experiência muito diferente para aquelesque são do mesmo sexo da nutriz, comparada à experiênciadaqueles do sexo oposto. Junto com isso, a tarefa, para odesenvolvimento da criança, de identificar-se com o genitordo mesmo sexo é muito diferente para as meninas, para

36 Frederic ENGELS, 1955; e HeidiHARTMANN, 1979.

37 JAGGAR, 1983.

38 SCOTT, 1986, p. 1054.

39 BEAUVOIR, 1974, p. 301.

40 CHODOROW, 1974 e 1978.

Page 13: Susan Okin- Genero_O Publico e o Privado

Estudos Feministas, Florianópolis, 16(2): 305-332, maio-agosto/2008 317

GÊNERO, O PÚBLICO E O PRIVADO

quem esse genitor está geralmente presente, e para osmeninos, para quem o genitor com quem devem identificar-se está freqüentemente ausente por longos períodos do dia.Portanto, ela argumenta, as características de personali-dade nas mulheres, que as levam a ser psicologicamentemais conectadas às outras pessoas, a ter mais probabili-dade de escolher o papel de nutrizes e a ser vistas comoespecialmente moldadas para isso, e aquelas caracterís-ticas nos homens, que os levam a uma maior necessidade ecapacidade de individuação e de orientar-se para aconquista de status “público”, podem ser explicadas comooriginadas no arranjo dos genitores, nos primeiros anos devida da criança, no interior da própria estrutura de gênero.

Além disso, como Chodorow deixa claro, a respostacompleta a por que são as mulheres que desempenhamesse papel de “cuidadoras” nos primeiros anos de vida dacriança não surge apenas da observação da esferadoméstica ou da psicologia dos sexos.41 Parte dessa respostasó pode ser encontrada na segregação sexual nos ambien-tes de trabalho, onde as mulheres, apesar de algumastransformações recentes e muito comentadas que ocorreramentre as elites, estão ainda concentradas nas ocupaçõesque são mais mal pagas e desprivilegiadas. Esse fato tornaeconomicamente “racional”, em muitas famílias, que asmulheres sejam responsáveis pela criação das crianças, oque mantém todo o ciclo de gênero em curso.

Tem-se argumentado, também, que as experiênciasde ser responsável pelo cuidado das crianças e de crescercom a antecipação desse papel podem afetar a psicologiadas mulheres.42 As psicólogas feministas têm indicado, alémdisso, o quanto é significativa, para as mulheres, aexperiência de crescer em uma sociedade em que osmembros de um sexo são de muitas maneiras menosvalorizados e subordinados aos do outro sexo.43 A partir domomento em que admitimos a idéia de que diferençassignificantes entre mulheres e homens são criadas peladivisão do trabalho existente na família, nós começamos aperceber a profundidade e a amplitude da construçãosocial do gênero. Explicações como essas para asdiferenças entre os sexos em termos de aspectos centrais daprópria estrutura social revelam a impossibilidade dedesenvolver uma teoria política humana, em oposição auma teoria patriarcal ou masculina, sem incluir a discussãosobre gênero e seu eixo principal, a família.

Explicações de gênero com foco históricoExplicações de gênero com foco históricoExplicações de gênero com foco históricoExplicações de gênero com foco históricoExplicações de gênero com foco históricoe antropológicoe antropológicoe antropológicoe antropológicoe antropológico

Recentemente, um grande número de teóricasfeministas, enquanto constatam que o gênero parece ter

41 Aqui a minha leitura deChodorow difere da leitura deScott, que diz que a interpretaçãode Chodorow “limita o conceitode gênero à experiência familiare doméstica e, para o historiador,não deixa qualquer caminhopara que se conecte o conceito(ou o indivíduo) a outros sistemassociais de economia, política oupoder” (SCOTT, 1986, p. 1063. Cf.CHODOROW, 1978, p. 214-215;e também NICHOLSON, 1986, p.84-88).

43 Jean Baker MILLER, 1976; eJAGGAR, 1983.

42 Sara RUDDICK, 1980; e JaneFLAX, 1978.

Page 14: Susan Okin- Genero_O Publico e o Privado

SUSAN MOLLER OKIN

318 Estudos Feministas, Florianópolis, 16(2): 305-332, maio-agosto/2008

sido um traço de todas as culturas e períodos históricosconhecidos, têm reforçado a necessidade de se resistir aexplicações monocausais, universalistas e a-históricas parao gênero.44 Essas teóricas analisam o gênero como umaconstrução social que tem sido universalmente presente nassociedades humanas, mas que é sujeita a mudanças, como passar do tempo, porque resulta de um número de fatorescomplexos.

Algumas das primeiras tentativas de explicar asdiferenças entre os sexos em termos de práticas sociais deramênfase, em particular, à dicotomia público/privado. Aantropóloga Rosaldo, por exemplo, argumentou, com baseem pesquisas que comparam diferentes culturas, que o graude sujeição das mulheres à autoridade (poder legitimadoculturalmente) dos homens, em uma dada sociedade, écorrelato ao grau em que a dicotomia público/doméstico édestacada.45 E Ortner argumentou que havia umaassociação mais ou menos universal nas sociedadeshumanas entre as dicotomias masculino/feminino, cultura/natureza e público/privado.46

Como Rosaldo destacou alguns anos mais tarde, noentanto, essas explicações tendem, elas mesmas, paravisões universalistas e a-históricas do gênero. Elas tambémtendem a reificar a dicotomia público/doméstico, ao invésde entenderem que essa dicotomia, tanto quanto o gênero,difere de um tempo e lugar para outro. Ela escreveu: “ummodelo baseado na oposição entre duas esferas presume –enquanto ele deveria, diferentemente, ajudar a iluminar eexplicar – coisas demais sobre como o gênero realmentefunciona”, e definiu o gênero, ao invés disso, como “o produtocomplexo de uma variedade de forças sociais”.47 Rosaldo,e mais recentemente a historiadora das idéias LindaNicholson e a historiadora Joan Scott, têm sido grandesinfluências na historicização da oposição público/doméstico, oferecendo visões complexas e multifacetadasdo gênero. Como disse Nicholson, ao considerar categoriasde análise como público, doméstico e família, “nósprecisamos descobrir aquilo que é específico da nossacultura, diferenciando-o daquilo que pode serverdadeiramente trasncultural”.48

Essas feministas rejeitam a procura por origens ou asexplicações unicausais para a desigualdade entre os sexos.Elas a vêem como um fenômeno universal em um certosentido, já que parece ter estado presente em todas associedades e períodos históricos conhecidos, mas enfatizamque essa desigualdade tem tido formas diferentes e temsido afetada por vários fatores causais em momentos econtextos sociais diversos. Nicholson destaca a importânciada história para a compreensão da distinção entre público

44 Ver especialmente Michelle Z.ROSALDO, 1980; NICHOLSON,1986; e SCOTT, 1986.

45 ROSALDO, 1974.

46 Sherry B. ORTNER, 1974.

47 ROSALDO, 1980, p. 399, 401.

48 NICHOLSON, 1986, p. 83.

Page 15: Susan Okin- Genero_O Publico e o Privado

Estudos Feministas, Florianópolis, 16(2): 305-332, maio-agosto/2008 319

GÊNERO, O PÚBLICO E O PRIVADO

e doméstico e para a compreensão do gênero. Elaargumenta contra a tendência poderosa, particularmentepresente na teoria política, de reificar essa distinção,percebendo-a como rígida e atemporal.49 É precisoreconhecer, ao contrário, que conceitos como os de públicoe doméstico têm sido usados não apenas para organizar avida social, de maneiras muito diferentes, em diferentesperíodos (por exemplo, a produção se moveu quaseinteiramente da esfera doméstica para a pública nos últimos300 anos), mas têm também recebido conotações diferentes(a intimidade, por exemplo, não foi vista como caracteris-ticamente doméstica antes do final do século XVII). Nicholsoné convincente ao argumentar que a estrutura de gênero deum tempo e um espaço particulares é afetada causalmentenão apenas por outras estruturas contemporâneas(econômicas, políticas e outras), mas também pela históriaprévia de gênero, e que, conseqüentemente, sem umaaproximação histórica das questões de gênero, não se podeesperar compreendê-las inteiramente.

Scott elabora uma posição que também reforça acentralidade da história. Analisa aspectos históricos,políticos, socioeconômicos e psicológicos da perpetuaçãodo gênero, que ela também vê como um fenômeno universaltomando formas diversas. Observa, primeiramente, mitos esímbolos culturais (muitas vezes contraditórios) da mulher,como Eva e Maria na tradição cristã ocidental; em segundolugar, observa as interpretações normativas desses símbolos,expressas em doutrinas religiosas, educacionais, científicas,legais e políticas que categoricamente fixam a “oposiçãobinária” de macho e fêmea, masculino e feminino; emterceiro lugar, observa as instituições sociais – não apenasa família e o ambiente doméstico, mas também mercadosde trabalho marcados pela segregação sexual, váriasinstituições educacionais e uma política dominada peloshomens – que são, todas, partes da construção do gênero;e, em quarto lugar, a reprodução psicológica do gênero naformação da identidade subjetiva dos indivíduos.50 Todosesses aspectos, Scott enfatiza, devem ser entendidos comointer-relacionados e, claro, sujeitos a mudanças com opassar do tempo. O desafio é expor a construção social dogênero por meio de sua desconstrução. Isso envolve “umarecusa da qualidade fixa e permanente da oposiçãobinária, uma genuína historicização e desconstrução dostermos da diferença entre os sexos... [Nós precisamos] revertere deslocar sua construção hierárquica, ao invés de aceitá-la como real ou auto-evidente ou parte da natureza dascoisas”. E ela complementa: “em um certo sentido, claro, asfeministas vêm fazendo isso há anos”.51

49 NICHOLSON, 1986; tambémOLSEN, 1983, especialmente p.1566.

50 SCOTT, 1986, p. 1067-1069.

51 SCOTT, 1986, p. 1065-1066.

Page 16: Susan Okin- Genero_O Publico e o Privado

SUSAN MOLLER OKIN

320 Estudos Feministas, Florianópolis, 16(2): 305-332, maio-agosto/2008

Na medida em que tudo isso é convincente – e euacredito que uma boa parte da pesquisa feminista temseguido o que Chorodow, Rosaldo, Nicholson e Scottdefendem –, seu impacto sobre a teoria política poderia serprofundo, pois, no esforço feminista para compreender ogênero, nós encontramos o pessoal e o político misturadosde uma maneira que confunde as categorias separadasdo público e do doméstico, e destaca a necessáriaincompletude das teorias políticas que continuam serestringindo ao estudo daquilo que foi definido, em uma erapré-feminista, como legitimamente político. Nós nãopodemos entender as esferas “públicas” – o estado domundo do trabalho ou do mercado – sem levar em conta ofato de que são generificadas, o fato de que foramconstruídas sob a afirmação da superioridade e dadominação masculinas e de que elas pressupõem aresponsabilidade feminina pela esfera doméstica. É precisoperguntar: as práticas nos locais de trabalho, no mercadoou no parlamento seriam as mesmas se elas tivessem sedesenvolvido pressupondo que seus participantes teriamde acomodar-se às necessidades de dar à luz, educar umfilho, e às responsabilidades da vida doméstica? As políticase seus resultados seriam os mesmos se aqueles que nelasestão engajados fossem pessoas que também tivessemresponsabilidades cotidianas significativas voltadas paraos cuidados dos outros, ao invés de serem aqueles quemenos probabilidade têm, em toda a sociedade, de teressa experiência? Apesar do extremo interesse dessasquestões, e de muitas outras similares a elas, a maior parteda teoria política hoje, ao manter-se distante da reflexãosobre a velha dicotomia público/doméstico, é incapaz deconsiderá-las.

Privacidade – para quem? em relação aPrivacidade – para quem? em relação aPrivacidade – para quem? em relação aPrivacidade – para quem? em relação aPrivacidade – para quem? em relação aquem?quem?quem?quem?quem?

Uma das razões pelas quais a exclusão das mulheresdo escopo dos argumentos ostensivamente universais passadespercebida é que “a separação entre público e privadoé apresentada na teoria liberal como se ela se aplicasse atodos os indivíduos da mesma maneira”.52 Claramente, issoainda se aplica a grande parte da teoria contemporânea.A idéia liberal da não-intervenção do Estado no âmbitodoméstico, ao invés de manter a neutralidade, na verdadereforça as desigualdades existentes nesse âmbito. É uminsight que não se restringe ao feminismo o de que aprivacidade de grupos e a privacidade de seus membrosindividuais podem estar em conflito, que, “enquanto aprivacidade do indivíduo pode significar o máximo de

52 PATEMAN, 1983, p. 283.

Page 17: Susan Okin- Genero_O Publico e o Privado

Estudos Feministas, Florianópolis, 16(2): 305-332, maio-agosto/2008 321

GÊNERO, O PÚBLICO E O PRIVADO

liberdade para ele, a privacidade do grupo pode implicarprecisamente o oposto para o indivíduo”.53 Mas foramprimeiramente as feministas e as defensoras dos direitos dascrianças que destacaram nos últimos anos o quanto anatureza do direito à privacidade na esfera doméstica temsido fortemente influenciada pela natureza patriarcal doliberalismo. Eu pretendo explorar essa questão aquiprimeiramente observando algumas defesas liberaisclássicas da privacidade doméstica, e então indicandoalguns problemas novos que têm sido colocados a essasconcepções pelos desenvolvimentos recentes no sentido daigualdade jurídica das mulheres e da defesa dos direitosdas crianças.

Enquanto as distinções mais famosas de Locke entreo poder político e outras formas de poder foram feitas noSegundo Tratado de Governo, seus argumentos mais fortesem defesa da proteção da esfera privada em relação àintrusão ou regulação governamentais estão na Carta sobrea tolerância. Aqui, nesse argumento clássico a favor doliberalismo laissez-faire, a defesa que Locke faz da tolerânciareligiosa se baseia em parte em um apelo ao que eleclaramente considera ser um direito já amplamentereconhecido à privacidade. Ao apelar para um âmbito dos“negócios privados domésticos” no qual ninguémconsideraria interferir, ele especifica como uma dessasquestões obviamente privadas a decisão de um homemsobre o casamento de sua filha.54 Que a filha possa, elamesma, ter um interesse nessa escolha, e possa, assim, terum direito à privacidade para escolher seu próprio marido,não parece ter passado pela sua cabeça. Nem o fato deque os homens tivessem, naquele tempo e por muito tempodepois, o direito legal de bater em suas esposas e crianças,e de forçar a relação sexual com suas esposas, parece terprovocado nele qualquer hesitação ao especificar que“toda a força [...] pertence somente ao magistrado”, demaneira que associações privadas não devem usar a forçacontra seus membros.55 Não há qualquer dúvida de que osdireitos à privacidade em Locke dizem respeito aos chefesde família masculinos em suas relações uns com os outros, enão a suas relações com aqueles que lhes sãosubordinados. Esse fato, no entanto, é freqüentementeignorado pelos liberais contemporâneos que apelam paraesses direitos.56

O mesmo pressuposto é imediatamente perceptívelem um outro, e mais recente, argumento clássico pelo direitoliberal à privacidade, presente em “The Right to Privacy”, deWarren e Brandei.57 O argumento começa com a afirmação:“Que o indivíduo deva ter proteção total a sua pessoa e asuas propriedades é um princípio tão velho quanto a

53 Arnold SIMMEL, 1971, p. 86.

54 LOCKE, 1950, p. 28-29.

55 LOCKE, 1950, p. 23-24.56 Tanto Pateman quantoNicholson fornecem excelentescomentários sobre essa contradi-ção do individualismo liberal, suabase nos direitos individuais e suanegação desses direitos à mulher(PATEMAN, 1983; NICHOLSON,1986, especialmente os capítulos5 e 7). O fato e o desafio feministaa ele colocado são, ambos,discutidos brevemente por BENNe GAUS, 1983a, p. 38), mas essadiscussão tem pouco efeito emsuas discussões subseqüentes,nas quais eles agem como se osdireitos liberais ou a privacidadeaderissem a todos da mesmamaneira.57 Samuel D. WARREN e Louis D.BRANDEIS, 1890.

Page 18: Susan Okin- Genero_O Publico e o Privado

SUSAN MOLLER OKIN

322 Estudos Feministas, Florianópolis, 16(2): 305-332, maio-agosto/2008

common law”. No parágrafo seguinte a este, no entanto, osentido limitado de “indivíduo” é revelado quando nos édito que “as relações familiares do homem se tornaram umaparte da concepção legal de sua vida, e a alienação dasafeições da esposa deve ser remediada”. Claramente, nabase da lei que permitiu aos maridos, mas não às esposas,processar terceiros pela “alienação de afeições” estava anoção de que a esposa fazia parte da privacidade dohomem, assim como suas propriedades.

É particularmente notável que as discussõescontemporâneas sobre a privacidade, ao fazerem referênciaa essas fontes clássicas, não mencionem esse aspecto delas,uma vez que se pode perceber que alguns desses traços dopatriarcado duraram até muito recentemente, e alguns delesestão ainda entre nós. Enquanto a maioria dos aspectos dacoverture* foram abolidos no século XIX, relações sexuaisforçadas no casamento só foram reconhecidas como estuprona lei inglesa nos anos 1990; elas foram reconhecidas comotal em menos da metade dos estados dos Estados Unidos,e, neles, somente desde o final dos anos 1970. Estudosrecentes têm mostrado que 10% a 14% das mulherescasadas nos Estados Unidos já sofreram ataques sexuaispor parte de seus maridos que seriam qualificados sob asdefinições legais de estupro ou tentativa de estupro, casotivessem sido cometidos por alguém que não fosse seusmaridos.58 Bater na esposa foi claramente tornada umaprática ilegal na Inglaterra somente em 1962, e, ainda queseja hoje ilegal, a prevalência dessa prática, por muitotempo negada e escondida, foi “redescoberta” tanto naInglaterra quanto nos Estados Unidos nos anos 1970. Umestudo recente sobre violência no casamento, feito pelogoverno dos Estados Unidos no estado de Kentucky, revelouque 9% das esposas tinham sido chutadas ou tinhamapanhado, esmurradas com o punho ou objetos,espancadas, ameaçadas ou atacadas com uma faca ouarma de fogo pelo parceiro masculino com quem viviam, ealgumas estimativas dessas incidências são ainda maisaltas.59 A “proteção total [ao indivíduo], a sua pessoa epropriedade”, ainda não é oferecida pela lei a muitasmulheres, para quem o lar, com toda sua privacidade, podeser o mais perigoso dos lugares.

A natureza patriarcal das noções liberais deprivacidade doméstica tem sido significativamentedesafiada pela defesa crescente, feita por feministas edefensoras dos direitos das crianças, no sentido de que osindivíduos, no interior das famílias, tenham direitos àprivacidade que muitas vezes precisam ser protegidos daprópria unidade familiar. Em algumas importantes decisõesrecentes sobre privacidade, a Suprema Corte dos Estados

* Nota da tradutora: “coverture”remete ao conceito legal quedefinia que a mulher casada nãotinha direitos separados daquelesde seu marido (por exemplo, osdireitos de assinar contratos,adquirir propriedade etc.). Doponto de vista jurídico, marido emulher seriam uma só pessoa.

58 David FINKELHOR e Kersti YLLO,1985, capítulo 1.

59 A Survey of Spousal ViolenceAgainst Women in Kentucky(Washington, DC: Law Enforce-ment Assistance Administration,1979); ver também R. EmersonDOBASH e Russel DOBASH, 1979,sobre violência no casamento naEscócia.

Page 19: Susan Okin- Genero_O Publico e o Privado

Estudos Feministas, Florianópolis, 16(2): 305-332, maio-agosto/2008 323

GÊNERO, O PÚBLICO E O PRIVADO

Unidos tem enfrentado essa questão. Até duas décadas atrás,decisões da Corte que se basearam no direito constitucionalpresumido à privacidade seguiram, de modo geral, o velhomodelo, e algumas ainda o fazem; elas confirmaram o direitodas famílias (na prática, portanto, o direito de seus membrosmais poderosos) a tomarem decisões a respeito de seusmembros.

A atitude da maioria da Corte sobre os papéis sexuaistradicionais transformou-se de maneira marcante duranteos anos 1970. Da mesma maneira, para a maioria, mudaramtambém as decisões relativas a questões de privacidade. Amaioria das normas anteriores que tinham sustentado osdireitos das famílias – por exemplo, a educar seus filhos naescola que escolhessem, a oferecer educação bilíngüe aseus filhos, ou mesmo a serem liberadas, com base emquestões religiosas, de um estatuto de educaçãocompulsório do Estado – tinha geralmente seguido a noçãode que a privacidade doméstica incluía a proteção àliberdade da família de fazer opções que dissessem respeitoa cada um de seus membros.60 Na prática, essa noção dafamília como uma entidade singular que tem direitos contrao Estado, no que se refere à regulação de seus membros,reforçava a autoridade dos maridos sobre as esposas e dospais sobre os filhos.61 Mais recentemente, em algumas (aindaque não em todas) decisões, a Corte tem se movido emdireção à compreensão dos direitos à privacidade comodireitos individuais, ao invés de direitos das famílias. Essanoção do que deve mais apropriadamente ser chamadode privacidade no interior da família, ao invés deprivacidade da família, fornece proteção constitucional aosdireitos dos membros das famílias, individualmente, mesmocontra as preferências de seus membros mais poderosos, oucontra a decisão coletiva da família como um todo. Assim,por exemplo, direitos a tomar decisões em relação àcontracepção e ao aborto, que foram antes sustentadospela Corte sob a rubrica da privacidade familiar ou marital,logo evoluíram no sentido de serem entendidos como direitosdos indivíduos, sejam eles casados ou não, e em algunscasos constituem direitos em oposição às famílias, vistascomo entidades coletivas.

A velocidade desse desenvolvimento pode serpercebida ao compararmos uma série de casos envolvendocontracepção e aborto. Em 1965, a Corte sustentou que odireito de parceiros casados ao uso de contraceptivos eraparte de “um direito à privacidade mais velho do que a Billof Rights”,* que “protegia os preceitos sagrados dos quartosdos casais”. Por volta de 1972, ao citar esse precedente, aCorte declarou: “Se o direito à privacidade significa algumacoisa, significa o direito do indivíduo, casado ou solteiro, de

60 Pierce vs. Society of Sisters, 268US (1925); Meyers vs. Nebraska,262 US (1923); Wisconsin vs.Yoder, 406 US (1972). Uma exce-ção foi Prince vs. Massachusetts,321 US (1944), em que uma Leido Trabalho Infantil foi sustentadacontra a alegação da reclamantede que sua proibição à permissãopor ela dada à sobrinha de noveanos para distribuir literaturareligiosa era uma violação à liber-dade religiosa da sobrinha e aosdireitos dos pais ao controle daformação religiosa de seus filhos.61 OLSEN, 1983, p. 1504-1513, p.1521-1522; e Nikolas ROSE, 1987.

* Nota da tradutora: “Bill of Rights”tem sido o nome dado àsprimeiras dez emendas daConstituição dos Estados Unidosda América, que dizem respeitoaos direitos individuais doscidadãos e se tornaram parte daConstituição, como tal, em 1791.

Page 20: Susan Okin- Genero_O Publico e o Privado

SUSAN MOLLER OKIN

324 Estudos Feministas, Florianópolis, 16(2): 305-332, maio-agosto/2008

ser livre de intrusão governamental indesejada em questõesque afetam tão fundamentalmente a pessoa, como adecisão de dar à luz ou tornar-se pai de uma criança”. Noano seguinte, o direito individual da mulher à privacidadefoi a base sobre a qual as leis que proibiam o aborto foramdeclaradas inconstitucionais, o que foi confirmado pordecisões subseqüentes que derrubaram leis que exigiam oconsentimento do esposo ou dos pais para a realização deum aborto.62 O que rapidamente se desenvolveu, a partirdas noções de privacidade no casamento correspondentesàs concepções patriarcais de Locke ou de Warren e Brandeis,foram direitos individuais de mulheres e menores que essesprimeiros liberais teriam achado incompreensíveis. ComoMinow conclui, “Proteções legais às famílias têm freqüente-mente reforçado as relações familiares patriarcais, aindaque a retórica dos direitos legais tenha também fornecidouma base para a proteção dos indivíduos em oposição àfamília patriarcal”.63 Esses casos, muitos deles envolvendoquestões difíceis e controversas, finalmente trouxeram à luzdo dia um problema fundamental por muito tempoobscurecido pela retórica do público/doméstico que tornoupossível que um liberalismo altamente patriarcal parecesseindividualista desde seus princípios.

Conclusões: gênero e o valor da privacidadeConclusões: gênero e o valor da privacidadeConclusões: gênero e o valor da privacidadeConclusões: gênero e o valor da privacidadeConclusões: gênero e o valor da privacidade

Ao mesmo tempo em que as feministas desafiam muitodo que na teoria política tem dependido da dicotomiatradicional público/doméstico, poucas de nós negariam ovalor da privacidade pessoal. Ao analisarmos os argumentosdos teóricos liberais das correntes hegemônicas sobrealgumas das razões e o valor de se ter uma esfera privada,entretanto, parece que, sem atenção à relevância dogênero, eles inconscientemente assumem a perspectivadaqueles que não são os principais responsáveis pelotrabalho e organização da vida doméstica. Uma vez queparece provável que as mulheres precisam de privacidadepor muitas das mesmas razões pelas quais os homensprecisam, a questão final que eu pretendo abordar aqui ése, e em que medida, elas têm a possibilidade de encontraressa privacidade na esfera doméstica, em uma sociedadeestruturada pelo gênero. Três razões freqüentemente dadasem defesa do valor da privacidade são que ela é necessáriapara o desenvolvimento de relações pessoais íntimas, queé uma esfera essencial na qual nós podemos temporaria-mente deixar de lado nossos “papéis” públicos e que elanos dá liberdade para desenvolver nossas capacidadesmentais e criativas. Vamos observar cada uma dessas razões,agora com as questões de gênero em mente.

62 Os casos aos quais me referisão: Griswold vs. Connecticut, 381US (1965); Eisenstadt vs. Baird, 405US (1972); Roe vs. Wade, 410 US(1973); Planned Parenthood vs.Danforth, 428 US (1976); Careyvs. Population Services Interna-tional, 431 US (1976); e Bellotti vs.Baird, 443 US (1976).63 Martha MINOW, 1978. ComoMinow nota, Parham vs. J.R., 442US (1979), ainda que recente, éum exemplo da situação anterior;nesse caso, a Corte sustentou odireito dos pais a internar seusfilhos em hospitais psiquiátricossem as garantias legais que seaplicam no caso da internaçãode adultos.

Page 21: Susan Okin- Genero_O Publico e o Privado

Estudos Feministas, Florianópolis, 16(2): 305-332, maio-agosto/2008 325

GÊNERO, O PÚBLICO E O PRIVADO

Muitos teóricos argumentam que o espaço privado énecessário como um pré-requisito para a intimidade.64 Afamília, com seu ambiente doméstico privado, éfreqüentemente especificada como o espaço em que essaintimidade pessoal pode ser encontrada. Claramente, nãohá qualquer razão para duvidar de que as mulheresprecisem de privacidade por essa razão, tanto quanto oshomens precisam; a questão que é levantada quando setem em mente o gênero é até que ponto é possível que elasencontrem essa privacidade na esfera doméstica. Algumasfeministas têm defendido que uma intimidade real ou o amorentre os sexos é incompatível com a condição dedesigualdade sexual.65 No mesmo sentido, essa afirmaçãoé reforçada por um dos pontos levantados por aqueles queargumentam que a privacidade é essencial para aintimidade. Pennock, por exemplo, especifica que os tiposde grupos pequenos necessários para que exista intimidadedevem ser aqueles nos quais “o recurso último à força (oelemento distintivo do político) está inteiramente ausente”.66

Mas essa condição, é claro, não é encontrada por todos naesfera doméstica, e não é possível, em especial, para muitasmulheres e crianças que convivem com a experiênciacotidiana do abuso físico, e para aquelas, em número aindamaior, que vivem sob a ameaça constante desse abuso.Para elas, a esfera doméstica não oferece o tipo deprivacidade no qual a intimidade pode florescer.

Um outro argumento recorrente a favor da importânciade uma esfera privada é que ela é necessária como umescape da tensão que está implicada na manutenção dosvários papéis públicos em que a maior parte da vida de“alguém” presumidamente consiste. Uma vez que, afirma-se, há uma distância entre o que é natural em alguém e ospapéis que ele (sic) assume, somente em um ambienteprivado em que ele possa sair desses papéis haverá espaçopara o desenvolvimento da personalidade.67 A privacidadeseria uma espécie de “bastidor”, onde o ator social poderiacolocar e tirar suas máscaras. Caso se leve o gênero emconsideração, é imediatamente perceptível que essaafirmação envolve problemas para aqueles que vêem aesfera doméstica como paradigma da privacidade.68 Sehá uma necessidade desse tipo de privacidade, se nósprecisamos, para o desenvolvimento da personalidade, debastidores onde nós possamos temporariamente deixar delado nossos papéis sociais, então a maioria das mulheresdificilmente encontrará essa privacidade na esferadoméstica. Tenham ou não papéis não-domésticos, espera-se muito mais delas, em geral, em seus papéis de mães e deresponsáveis pela família, do que se espera dos homensem seus papéis familiares. Isso é evidenciado pelo fato de

64 Charles FRIED, 1969; Stanley I.BENN, 1971; Ruth GAVISON,1983, e Alan RYAN, 1983.

65 FIRESTONE, 1971; e ElizabethRAPAPORT, 1980.

66 J. Roland PENNOCK, 1971, p.xv.

67 BENN, 1971; GAVISON, 1983; eRYAN, 1983.

68 OLSEN, 1983, p. 1565.

Page 22: Susan Okin- Genero_O Publico e o Privado

SUSAN MOLLER OKIN

326 Estudos Feministas, Florianópolis, 16(2): 305-332, maio-agosto/2008

que homens que têm sucesso na vida pública sãofreqüentemente desculpados por negligenciar suas famílias,enquanto as mulheres, na mesma situação, não o são. Defato, uma referência completamente diferente do queconstitui “negligência em relação à família” é geralmenteaplicada à mulher, assim como “ser mãe” significa algointeiramente diferente de “ser pai”.

É interessante que alguns dos autores que escreveramrecentemente sobre a privacidade como uma esfera emque as máscaras poderiam ser retiradas tenhamquestionado se essa privacidade pode mesmo serencontrada no ambiente privado doméstico, ou se poderiaser mais bem encontrada em outros locais.69 Talvez essaquestão esteja sendo levantada porque, com a entrada demais mulheres no mercado de trabalho, alguns homens nãoestão mais tão “protegidos” das necessidades de seus filhoscomo o eram antes. Assim, as demandas do papel de paiestão interferindo mais no ambiente privado que antestinham em casa. Ryan parece sugerir isso, quando, em umargumento a favor da privacidade doméstica, elerepentinamente se permite assumir que a casa, em algunsaspectos, não é o mais privado dos lugares. Ele diz: “Muitoshomens sentem que sua privacidade está mais protegidaem um escritório cuja porta não será aberta por qualquerTom, Dick e Harry do que em suas casas, onde a jovemSamantha pode entrar correndo pela porta do quarto ou dobanheiro a qualquer momento”.70 Vale a pena perguntarpor que Ryan atribui esse sentimento de que a privacidadetem maior probabilidade de ser violada em casa do que noescritório a “muitos homens” uma vez que, considerada adivisão corrente do trabalho na maioria das casas, é muitomais provável que a jovem Samantha invada a privacidadede sua mãe do que a de seu pai. Talvez, de maneira realista,ele queira aludir ao fato de que um homem tem maisprobabilidade do que uma mulher de ter um escritório noqual ele possa impedir a entrada de Tom, Dick e Harry (assimcomo a de Samantha, é claro). Esse exemplo vai no sentidode mostrar que os argumentos sobre a privacidadefreqüentemente não soam da mesma maneira quando nóspensamos sobre eles com alguma consciência de gênero.“Muitos homens” e “muitas mulheres” não têm a mesmaprobabilidade, nas condições sociais correntes, deencontrar o mesmo grau de privacidade para retirar asmáscaras, ou de encontrá-la nos mesmos lugares.

Relacionado a esse argumento que percebe aprivacidade como bastidores está o argumento que definea privacidade como espaço para o autodesenvolvimentomental. A solidão e a oportunidade de se concentrar sãocentrais a essa defesa de uma esfera privada. Mas, como

69 RYAN, 1983; e BENN e GAUS,1983b.

70 RYAN, 1983, p. 241.

Page 23: Susan Okin- Genero_O Publico e o Privado

Estudos Feministas, Florianópolis, 16(2): 305-332, maio-agosto/2008 327

GÊNERO, O PÚBLICO E O PRIVADO

as feministas perceberam há muito tempo, esse aspecto daprivacidade está também muito menos disponível àsmulheres do que aos homens na estrutura de gênero atual.71

Mesmo presumindo a presença de serviçais domésticos, J.S. Mill falou das expectativas de que as mulheres “tenhamseu tempo e suas faculdades sempre à disposição de todos”como parte da explicação para suas menores realizaçõesnas artes e nas ciências.72 Um raciocínio similar levou VirginiaWoolf à conclusão de que para ser uma escritora uma mulherdeve começar por um modo de vida independente e “umquarto só seu”. Permanece a situação de que, para oshomens, ter uma família entra muito menos em conflito comrealizações artísticas ou outras realizações criativas do quepara as mulheres, e muitas mulheres sentem que é precisoescolher entre essas duas opções. Como testemunhamaquelas que se recusaram a fazer essa escolha, é muitodifícil para uma mulher, nas condições atuais, fazer comque seu trabalho, seus filhos e seu relacionamento com umparceiro masculino funcionem ao mesmo tempo.

A afirmação de que uma distinção clara e simplespode ser estabelecida entre o político e o pessoal, o públicoe o doméstico, tem sido básica para a teoria liberal ao menosdesde Locke, e permanece como fundamento de boa parteda teoria política até os dias atuais. Como as teóricasfeministas têm demonstrado, essa divisão fundamental sebaseou nas práticas sociais e culturais do patriarcado, enão pode ser mantida caso se vislumbre o fim da longa erado patriarcado. Enquanto algumas feministas argumenta-ram que não é necessário manter uma esfera privada, muitas,incluindo eu mesma, concordariam com os teóricos liberaisdas correntes hegemônicas quanto à necessidade de umaesfera de privacidade e, de maneira geral, quanto às razõesdessa necessidade.73 Sugeri aqui que as mulheres, tantoquanto os homens, precisam de privacidade para odesenvolvimento de relações íntimas com outras pessoas,para que tenham espaço para se afastarem de seus papéistemporariamente e para que tenham tempo de ficaremsozinhas, o que contribui para o desenvolvimento da mentee da criatividade. E concluo que as instituições e práticasde gênero terão de ser muito alteradas para que as mulherestenham oportunidades iguais às dos homens, seja paraparticiparem das esferas não-domésticas do trabalho, domercado e da política, seja para se beneficiarem dasvantagens que a privacidade tem a oferecer.74 Nós devemoster como objetivo uma sociedade em que homens e mulheresdividirão, como iguais, a criação dos filhos e outras tarefasdomésticas que o pensamento político hegemônicopresumiu explicitamente, e continua implicitamente apresumir, por meio de seu silêncio sobre as questões de

71 Ver ALLEN, 1988, capítulos 2 e3, para um argumento cuidadosoe abrangente sobre essa questão.A classe, assim como o gênero,pode afetar consideravelmente aschances de uma pessoa desfrutarda privacidade que é necessáriaà intimidade, à retirada dasmáscaras e ao desenvolvimentomental. Assim, mulheres de elitepodem desfrutar mais dessesaspectos da privacidade do queum homem da classe trabalha-dora, e mulheres trabalhadoras oude classe inferior têm menorprobabilidade de deles desfrutar.72 John Stuart MILL, 1988, p. 80.

74 Ver também OKIN, 1989b,especialmente os capítulos 6, 7 e8.

73 Ver também ALLEN, 1988.

Page 24: Susan Okin- Genero_O Publico e o Privado

SUSAN MOLLER OKIN

328 Estudos Feministas, Florianópolis, 16(2): 305-332, maio-agosto/2008

gênero e sobre a família, serem “naturalmente” pertencentesà mulher. Como já aconteceu em algum grau no que serefere à preparação dos alimentos, ao cuidado com ascrianças e com a saúde, atividades que antes selocalizavam na esfera doméstica passarão a ser realizadasfora dela. A ligação entre as duas esferas, nunca tão distintasde fato quanto na teoria, continuará a flutuar. Se nósprecisamos manter alguma proteção à vida privada epessoal em relação à intromissão e ao controle, a dicotomiaentre o público e o doméstico, por outro lado, não será,provavelmente, na teoria ou nas práticas de um mundo livredas amarras do gênero, algo tão distinto como o que temprevalecido na teoria política hegemônica do século XVIIaté o presente.

Referências bibliográficasReferências bibliográficasReferências bibliográficasReferências bibliográficasReferências bibliográficas

ACKERMAN Bruce A. Social Justice in the Liberal State. NewHaven: Yale University Press, 1980.

ALLEN, Anita L. Uneasy Access: Privacy for Women in a FreeSociety. Totowa, NJ: Rowman and Littlefield, 1988.

BEAUVOIR, Simone de. The Second Sex. Trad. H. M. Parshley.New York: Vintage Books, 1974. [O segundo sexo. 10. ed.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. 2 v.].

BENN, Stanley I. “Privacy, Freedom, and Respect for Persons.”In: PENNOCK, J. Roland, and CHAPMAN, John W. (eds.).Privacy: Nomos XIII. New York: Atherton, 1971. p. 223-244.

BENN, Stanley I., and GAUS, Gerald F. (eds.). Public and Privatein Social Life. London: Croom Helm, 1983a.

BENN, Stanley I., and GAUS, Gerald F. “The Public and thePrivate: Concepts and Action.” In: BENN, Stanley I., andGAUS, Gerald F. (eds.). Public and Private in Social Life.London: Croom Helm, 1983b.

BERGMANN, Barbara R. The Economic Emergence of Women.New York: Basic Books, 1986.

BLOOM, Allan. The Closing of the American Mind. New York:Simon and Schuster, 1987.

BROWNMILLER Susan. Against Our Will: Men, Women andRape. New York: Bantam, 1975.

CHODOROW, Nancy. “Family Structure and FemininePersonality.” In: ROSALDO, Michelle Z., and LAMPHERE,Louise (eds.). Woman, Culture, and Society. Stanford,Calif.: Stanford University press, 1974. p. 43-66.

______. The Reproduction of Mothering. Berkeley: Universityof California Press, 1978.

CLARK, Lorenne, and LANGE, Lynda. The Sexism of Social andSolitical Thought. Toronto: University of Toronto Press, 1979.

DALY, Mary. Gyn/Ecology: The Metaethics of Radical Feminism.Boston: Beacon Press, 1978.

Page 25: Susan Okin- Genero_O Publico e o Privado

Estudos Feministas, Florianópolis, 16(2): 305-332, maio-agosto/2008 329

GÊNERO, O PÚBLICO E O PRIVADO

DOBASH, R. Emerson, and DOBASH, Russel. Violence AgainstWives. New York: Free Press, 1979.

DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambridge, Mass.:Harvard University Press, 1977.

ELSHTAIN, Jean Bethke. “Moral Woman/Immoral Man: ThePublic/Private Distinction and its Political Ramifications.”Politics and Society, v. 4, n. 4, 1974. p. 453-473.

______. Public Man, Private Woman: Women in Social andPolitical Thought. Princeton: Princeton University Press,1981.

ENGELS, Frederic. “The Origin of the Family, Private Propertyand the State.” In: MARX, Karl, and ENGELS, Frederick.Selected Works, ii. Moscow: Foreign Language PublishingHouse, 1955. [A origem da família, da propriedadeprivada e do Estado. 14. ed. Rio de Janeiro: BertrandBrasil, 1997].

FINKELHOR, David, and YLLO, Kersti. License to Rape: SexualAbuse of Wives. New York: Free Press, 1985.

FIRESTONE, Shulamith. The Dialect of Sex. New York: WilliamMorrow, 1971.

FISHKIN, James S. Justice, Equal Opportunity, and the Family.New Haven: Yale University Press, 1983.

FLAX, Jane. “The Conflict Between Nurturance and Autonomyin Mother-Daughter Relationships and Within Feminism.”Feminist Studies, v. 4, n. 2, 1978. p. 171-189.

FRIED, Charles. “Privacy.” In: HUGHES, Graham (ed.). Law,Reason, and Justice. New York: New York University Press,1969. p. 145-69.

GALSTON, William A. Justice and the Human Good. Chicago:University of Chicago Press, 1980.

GAUS, Gerald F. “Public and Private Interests in Liberal PoliticalEconomy, Old and New.” In: BENN, Stanley I., and GAUS,Gerald F. (eds.). Public and Private in Social Life. London:Croom Helm, 1983. p. 183-221.

GAVISON, Ruth. “Information Control: Availability andExclusion.” In: BENN, Stanley I., and GAUS, Gerald F. (eds.).Public and Private in Social Life. London: Croom Helm,1983. p. 145-213.

GERSON, Kathleen. Hard Choices: How Women Decide aboutWork, Career, and Motherhood. Berkeley: University ofCalifornia Press, 1985.

GREEN, Philip. Retrieving Democracy: In Search of CivicEquality. Totowa, NJ: Rowman and Allanheld, 1985.

GROSS, Hyman. “Privacy and Autonomy.” In: PENNOCK, J.Roland, and CHAPMAN, John W. (eds.). Privacy: NomosXIII. New York: Atherton, 1971. p.168-189.

HAMPSHIRE, Stuart (ed.). Public and Private Morality.Cambridge: Cambridge University Press, 1978.

Page 26: Susan Okin- Genero_O Publico e o Privado

SUSAN MOLLER OKIN

330 Estudos Feministas, Florianópolis, 16(2): 305-332, maio-agosto/2008

HARTMANN, Heidi. “Capitalism, Patriarchy and JobSegregation by Sex.” In: EISENSTEIN, Zillah (ed.). CapitalistPatriarchy and the Case for Socialist Feminism. New York:Monthly Review Press, 1979. p. 137-169.

JAGGAR, Alison M. Feminist Politics and Human Nature.Totowa, NJ: Rowman and Allanheld, 1983.

KEARNS, Deborah. “A Theory of Justice – and Love: Rawls onthe Family.” Politics (Journal of the Australian politicalStudies Association), v. 18, n. 2, 1983. p. 36-42.

LOCKE, John. A Letter Concerning Toleration. Indianapolis:Bobbs-Merrill, 1950. [“Carta sobre a tolerância”. In:Clássicos do pensamento político. Segundo tratadosobre o governo civil e outros escritos. Petrópolis, RJ: Vozes,2001].

______. Two Treatises of Government. Edited by Peter Laslett.Cambridge: Cambridge University Press, 1960. [Doistratados sobre o governo. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes,2005].

MACINTYRE, Alasdair. After Virtue. Notre Dame: University ofNotre Dame Press, 1981.

______. Whose Justice? Which Rationality? Notre Dame:University of Notre Dame Press, 1988.

MACKINNON, Catharine A. “Feminism, Marxism, Method, andthe State: An Agenda for Theory”. Signs, v. 7, n. 3, 1982. p.515-544.

______. Feminism Unmodified. Cambridge, Mass.; HarvardUniversity Press, 1987.

MILL, John Stuart. The Subjection of Women. Indianapolis:Hackett, 1988. [A sujeição das mulheres. São Paulo:Escala, 2006].

MILLER, Jean Baker. Toward a New Psychology of Women.Boston: Beacon Press, 1976.

MINOW, Martha. “We, the Family: Constitutional Right andAmerican Families.” The American Journal of History, v.74, n. 3, 1978. p. 304-305.

MOORE Jr., Barrington. Privacy: Studies in Social and CulturalHistory. Armonk, NY: Sharpe, 1984.

NICHOLSON, Linda J. Gender and History. New York: ColumbiaUniversity Press, 1986.

NOZICK, Robert. Anarchy, State and Utopia. New York: BasicBooks, 1974.

OKIN, Susan Moller. Women in Western Political Thought.Princeton: Princeton University Press, 1979.

______. “Women and the Making of the Sentimental Family.”Philosophy and Public Affairs, v. 11, n. 1, 1982. p. 65-68.

______. “Justice and Gender.” Philosophy and Public Affairs,v. 16, n. 1, 1987, p. 42-72.

______. “Reason and Feeling in Thinking about Justice”.Ethics, v. 99, n., 2, 1989a. p. 229-249.

Page 27: Susan Okin- Genero_O Publico e o Privado

Estudos Feministas, Florianópolis, 16(2): 305-332, maio-agosto/2008 331

GÊNERO, O PÚBLICO E O PRIVADO

______. Justice, Gender and the Family. New York: Basic Books,1989b.

OLSEN, Frances E. “The Family and the Market: a Study ofIdeology and Legal Reform.” Harvard Law Review, v. 96,n.7, 1983. p. 1497-1578.

______. “The Myth of State Intervention in the Family.” Universityof Michigan Journal of Law Reform, v. 18, n. 1, 1985. p.835-864

ORTNER, Sherry B. “Is Female to Male as Nature to Culture?” In:ROSALDO, Michelle, and LAMPHERE, Louise (eds.). Women,Culture and Society. Stanford, Calif.: Stanford UniversityPress, 1974. p. 67-87.

PATEMAN Carole. “‘The Disorder of Women’: Women, Love, andthe Sense of Justice.” Ethics, v. 91, n. 1, 1980. p. 20-34.

______. “Feminist Critiques of the Public/Private Dichotomy.”In: BENN, Stanley I., and GAUS, Gerald F. (eds.). Public andPrivate in Social Life. London: Croom Helm, 1983. p. 304-305.

PATEMAN, Carole, and GROSS, Elisabeth (eds.). FeministChallenges: Social and Political Theory. Boston:Northeastern University Press, 1987.

PATEMAN Carole, and SHANLEY, Mary L. Feminist Critiques ofPolitical Theory. Cambridge: Policy, 1990.

PENNOCK, J. Roland. “Introduction.” In: PENNOCK, J. Roland,and CHAPMAN, John W. (eds.). Privacy: Nomos XIII. NewYork: Atherton, 1971.

RAPAPORT, Elizabeth. “On the Future of Love: Rousseau andthe Radical Feminists.” In: Carol C. GOULD, and Marx W.WARTOFSKY (eds.). Women and Philosophy. New York:Putnam, 1980. p. 186-205.

RAWLS John. A Theory of Justice. Cambridge, Mass.: HarvardUniversity Press, 1971. [Uma teoria da justiça. 4.ed. SãoPaulo: Martins Fontes. 2002].

RICH, Adrienne. “Compulsory Heterossexuality and Lesbianexistence.” Signs, v. 5, n. 4, 1980. p. 199-225.

ROSALDO, Michelle Z. “Women, Culture and Society: ATheoretical Overview.” In: ROSALDO, Michelle, andLAMPHERE, Louise (eds.). Women, Culture and Society.Stanford, Calif.: Stanford University Press, 1974. p. 17-42.

______. “The Use and Abuse of Anthropology.” Signs, v. 5, n. 3,1980. p. 389-417.

ROSE, Nikolas. “Beyond the Public/Private Division: Law, Powerand the Family.” Journal of Law and Society, v. 14, n. 1,1987. p. 61-76.

RUDDICK, Sara. “Maternal Thinking.” Feminist Studies, v. 6, n.,2, 1980. p. 342-367.

RYAN, Alan. “Public and Private Property”. In: BENN, Stanley I.,and GAUS, Gerald F. (eds.). Public and Private in SocialLife. London: Croom Helm, 1983. p. 223-245.

Page 28: Susan Okin- Genero_O Publico e o Privado

SUSAN MOLLER OKIN

332 Estudos Feministas, Florianópolis, 16(2): 305-332, maio-agosto/2008

SANDEL, Michael J. Liberalism and the Limits of Justice.Cambridge: Cambridge University Press, 1982.

SIMMEL, Arnold “Privacy is Not an Isolated Freedom.” In:PENNOCK, J. Roland, and CHAPMAN, John W. (eds.).Privacy: Nomos XIII. New York: Atherton, 1971. p. 71-87.

SCOTT, Joan W. “Gender: A Useful Category of HistoricalAnalysis.” American Historical Review, v. 91, n. 5, 1986. p.1053-1075.

TONG, Rosemarie. Feminist Thought: A ComprehensiveIntroduction. Boulder, CO: Westview, 1989.

VAN DEN HAAG, Ernest. “On Privacy.” In: PENNOCK, J. Roland,and CHAPMAN, John W. (eds.). Privacy: Nomos XIII. NewYork: Atherton, 1971.

WALZER, Michael L. Spheres of Justice. New York: Basic Books,1983. [Esferas da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2003].

WARREN, Samuel D., and BRANDEIS, Louis D. “The Right toPrivacy.” Harvard Law Review, v. 4, n. 5, 1890. p. 193-220.

WEINSTEIN, W. L. “The Private and the Free: A ConceptualInquiry.” In: PENNOCK, J. Roland, and CHAPMAN, John W.(eds.). Privacy: Nomos XIII. New York: Atherton, 1971. p.32-35.

[Recebido em agosto de 2007e aceito para publicação em setembro de 2007]

GenderGenderGenderGenderGender, the P, the P, the P, the P, the Public and the Public and the Public and the Public and the Public and the PrivaterivaterivaterivaterivateAbstractAbstractAbstractAbstractAbstract: In this article, the political philosopher Susan Moller Okin discusses the dichotomypublic-private from a gendered perspective. Overlooking gender – especially as it assumes theform of overlooking the political reality of the family and gender ‘neutral’ language – has become,in many past and present authors, a reinforcement of that dichotomy, silencing about its patriarchalnature. As Okin understands it, domestic (personal) sphere and non-domestic (public) sphere cannot be interpreted isolatedly, what demands a deep revision of the base of most liberal politicaltheory. The author faces this demand, discussing important problems such as the value of privacy.Key WKey WKey WKey WKey Wordsordsordsordsords: Gender; Public and Private; Privacy; Political Theory.

Tradução: Flávia Biroli