SURREALISMO E CINEMA: O CÃO ANDALUZ (1928) · do cinema vanguadista parisiense, ... apenas dois...

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LAIS HELENA TELES SURREALISMO E CINEMA: O CÃO ANDALUZ (1928) Monografia apresentada para obtenção de graduação no curso de História, do Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná. Orientador: Prof. Marcos Napolitano

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LAIS HELENA TELES

SURREALISMO E CINEMA:

O CÃO ANDALUZ

(1928)

Monografia apresentada para obtenção de graduação no curso de História, do Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná. Orientador: Prof. Marcos Napolitano

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CURITIBA

2003

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ......................................................................................................................3

1 SÉCULO XIX: O MODERNO, O MODERNISMO ........................................................6 2 O SURREALISMO E A IMAGEM FÍLMICA.................................................................17

3 O CÃO ANDALUZ ............................................................................................................23

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................41

REFERÊNCIAS....................................................................................................................43

3

INTRODUÇÃO

A exemplo do francês Georges Sadoul1, a crítica costuma localizar o fenômeno do

cinema de vanguarda em um período que vai de 1920 até os primeiros anos da década de 30 do

século passado. Durante este período de aproximadamente 10 anos, vários projetos de cinema

foram colocados em prática, cada um visando legitimar esta ou aquela concepção da arte. Na

grande maioria dos casos, tal concepção era essencialmente anti-realista, e se tinha formado em

oposição à estética européia tradicional.

Estas várias visões estéticas que se agrupa sob o nome de avant-garde são herdeiras,

como mostrarei no primeiro capítulo deste trabalho, de uma recusa da mímesis que se dá, num

primeiro momento – mais especificamente o século XIX - na literatura.

Assim, a crítica à narrativa fílmica realista, que na década de 20 já se achava

consolidada com base nos modelos russo e americano, é um pressuposto mínimo daquilo que se

pode chamar “cinema de vanguarda”.

Para o crítico brasileiro Francisco Luiz de Almeida Salles, o cinema experimental que

marca a década de 20 já germinava logo após a Primeira Guerra, através da pregação de cineastas

1 SADOUL, Georges.Le cinéma français (1890-1962). Paris: Flammarion, 1962, p.35.

4

como Delluc, Canudo e Epstein. Todos eles foram críticos do modelo realista que aos poucos se

vinha consolidando, que consideravam mero teatro filmado. É com estes cineastas que se

inaugura toda uma corrente de experimentalismos que visava encontrar aquilo que se acreditava

ser a “ especificidade cinematográfica”, necessariamente distante da arte teatral.

É nesse sentido que esta corrente se distancia de Griffith, por exemplo, ele também um

experimentalista, porém ancorado em concepções de narrativa cinematográfia tradicionais. Assim

também esteve Mélies, que no entanto pode ser visto como referencial da vanguarda no sentido

de Ter inserido em seus filmes o cômico, o absurdo e o impossível, traços essenciais da proposta

do cinema vanguadista parisiense, em que se insere o filme O Cão Andaluz, tema deste trabalho.

Uma das primeiras tendências vanguardistas no cinema aparece com as experiências de

dois pintores. Trata-se de Vikking Eggeling, escandinavo, e Hans Richter, alemão, ambos tendo

seus trabalhos mais célebres realizados em 1921. Trata-se de filmes com preocupações

essencialmente plásticas, sem elementos narrativos, que acabaram ficando conhecidos como

exemplares do cinema puro, ou abstrato.

O impacto destas obras foi bastante grande, e dois anos, em Paris, o fotógrafo americano

Man Ray realizava – apenas dois anos antes de sua entrada para o grupo surrealista de André

Breton, formado em 1924 – aquele que é para Sadoul “o primeiro filme de vanguarda parisiense.2

Quanto à forma, este filme constituiu uma tentativa por parte do fotógrafo em conferir

movimento às fotografias abstratas que ele até então publicava em revistas dadaístas. Trata-se

portanto de um exemplar do cinema abstrato inaugurado por Richter e Eggeling, porém não auto-

referente, ou seja, não restrito a preocupações plásticas. Seu título é, ironica e “dadaisticamente”,

“O retorno à razão”.

Entretanto as experiências isoladas de Man Ray jamais constituíram um projeto

coerente de cinema, até porque o “cinema puro” só teve real impacto na Alemanha, e não em

Paris.

A partir de 24, começa a delinear-se uma tendência francesa dominante, referente à

adoção de um cinema quase-narrativo, ou seja, portador de elementos narrativos, misturados a

elementos abstratos visando a crítica de costumes e de concepções estéticas caducas. Um

exemplo disso é o primeiro filme de René Clair, chamado Paris que dorme, assim como sua

Segunda obra, Entr’acte, realizada com base num roteiro de Francis Picabia. Este poeta, por sua

2 Id.Ibid.

5

vez, já era bastante conhecido nos cafés parisienses por seu estilo subversivo e inclinado ao

dadaísmo – o que explica o roteiro e o escândalo provocado pela exibição do filme.

Recorro novamente à Sadoul:

O filme recorre sistematicamente à incoerência, ao desejo de escandalizar (...) Seria errado tentar conferir ao roteiro uma explicação coerente, derivada da lógica tradicional, já que Clair e Picabia referem-se a uma concepção dadaísta da poesia que visa, sobretudo, aos efeitos de surpresa barroca. O tutu de uma bailarina se abre e se fecha em câmera lenta (...) Sua dança é alternada com chaminés, telhados, jatos d’água. Pouco a pouco revela-se o rosto da bailarina, que carrega uma espessa barba negra (...).3

É muito interessante trazer à tona a experiência já submersa da qual Entr’acte é apenas

um, dentre tantos outros testemunhos esquecidos pelo tempo. Pois trata-se de um dos caminhos

que, após desvelados, apontam para aquilo que O Cão Andaluz veio a ser, como mostrarei mais

detalhadamente a seguir, em sua estética do absurdo herdada dos primeiros cômicos – Mack

Sennett, Chaplin – e calcada nas premissas do projeto cinematográfico surrealista.

Mas houve realmente algo como um projeto desta ordem? Acredito que sim, já que além

de este ter-se constituído no seio de um movimento, foi explicitado em uma série de textos

surrealistas, em sua maioria produzidos anteriormente à realização do filme O Cão Andaluz.

Não foi este o único exemplar daquele projeto. Têm-se outros filmes, todos datados da

década de 20, baseados na proposta surrealista. Entretanto O Cão Andaluz recebeu, desde seu

lançamento em 1929, atenção especial, e figura entre um seleto grupo que a crítica até hoje

coloca sob a etiqueta de “cinema surrealista”.

Por quê?

Surge daí a idéia deste trabalho: em que medida este filme, realizado pelos espanhóis

Salvador Dali e Luís Buñuel quando ainda não faziam parte do grupo surrealista, correspondeu às

prerrogativas teóricas divulgadas por aquele movimento?

Trata-se de um trabalho que visa também reconhecer, por trás da vontade fácil de chocar

característica das vanguardas, a sincera brutalidade que O Cão Andaluz preserva até hoje, depois

de tudo o que o cinema experimental já pôde ousar nestes mais de 70 anos.

Para tratar tais questões, realizo a seguinte trajetória: no primeiro capítulo procuro

encontrar o significado de termos que viriam a marcar fortemente o discurso surrealista. Trata-se

3 Id, p. 36.

6

num primeiro momento da noção de novo na arte, que no vocabulário vanguardista atingiria um

sentido diferente daquele inaugurado pelos primeiros modernos, seus antecessores.

Num segundo momento me refiro aos escritos surrealistas realizados antes de 29,

principalmente aquele que seria a base do movimento: o Primeiro Manifesto Surrealista de 24. É

a partir de tais textos – e da visão de arte e de cinema que neles figura – que pretendo analisar

minha fonte primária, o filme, objeto do terceiro e último capítulo. É também neste ponto que

trato da contribuição específica da trajetória dos dois autores para a feitura do roteiro, e seu

impacto na realização da obra.

1 SÉCULO XIX: O MODERNO, O MODERNISMO

“a crença nos extremos e a desaparição do durável são as características deste tempo”

Paul Valéry4

Pode-se dizer que a técnica cinematográfica e as vanguardas estéticas européias nascem

juntas; seus caminhos cruzam-se por volta da Primeira Guerra Mundial. Era de se esperar que tal

encontro acontecesse: o cinema nascente anunciava um novo sopro de vitalidade à exausta

cultura européia, cujas formas tradicionais a vanguarda se tinha decidido a demolir por meio de

manifestos que brotavam, simultaneamente, nos cafés de diversas capitais européias no inicio do

século XX. Tentando fugir de uma cronologia detalhada de tais manifestações coletivas – que

entraram para a história sob títulos como dadaísmo, cubismo, futurismo e surrealismo –

cronologia a meu ver fastidiosa e sem muito sentido, proponho-me a interpretar as conjunturas

que teriam dado origem às tensões que são, no fim das contas, a matéria-prima de todo o

questionamento vanguardista.5

4 TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda européia e modernismo brasileiro. Petrópolis: Vozes, 1983; p.30. 5 Leio novamente a última frase; confesso que o faço com o constrangimento que nos atinge a todos, cientistas do humano, quando pisamos o lamacento porém incontornável terreno da inexatidão. É difícil aceitar o caráter vago e

7

Tendo dito isto posso afirmar que para compreender as novas tendências estéticas do

século XX não é preciso ir mais longe do que o século anterior; tempo que viu atingir seu auge

uma sensibilidade dita “moderna”6, manifesta em legados artísticos e intelectuais.

Marshall Berman7 divide a modernidade em três fases: a primeira vai do século XVI até

o XVIII e marca os primórdios dos avanços técnicos que trariam uma nova ordem social cujo

símbolo maior seria 1789. Para Berman este é o inicio da segunda e mais importante fase da modernidade, que

se esgotaria com a chegada do século XX, ultimo suspiro moderno.

Mas porque o século XIX merece tanto destaque em Berman? Porque nele viveram

Marx, Baudelaire, Nietzsche, Dostoievski e outros cujas obras são verdadeiros testemunhos de

contemporaneidade; perspicazes olhares sobre dramas e questões totalmente novos.

Primeiramente podemos tentar perceber quais transformações vai sofrendo a posição

social do artista oitocentista; transformações que segundo HABERMAS devem muito ao

desenvolvimento da esfera pública.8 Trata-se de um novo espaço social que se vai consolidando

ao longo do século XVIII, com o aparecimento dos primeiros jornais e periódicos, e atinge seu

ápice após a Revolução Francesa. Ao longo deste processo, o vocabulário político sai dos

gabinetes para adentrar a sociedade civil, generaliza-se, povoa jornais diários, clubes literários,

cafés e ruas.

Ao mesmo tempo, ainda que se estivesse adentrando um período de crescimento

econômico e industrial nunca vistos, agudizam-se as mazelas sociais. Nas grandes capitais

oitocentistas, principalmente Londres e Paris, o esplendor das obras arquitetônicas contrasta com

a miséria de um tal “proletariado”, obscuro e diluído grupo social ao qual os escritos de Marx

dariam forma definida. Para ele o proletariado é a vanguarda por excelência, composta pela

jovem e bastarda prole da contemporaneidade. Ela multiplica-se à vista de todos, ou pelo menos

de certa forma arbitrário que assumem respostas a perguntas do tipo: “Até que ponto retroceder para esclarecer a “origem” das vanguardas históricas?” Partindo-se do pressuposto de que tudo no mundo que conhecemos está em constante transformação, a única forma de se “fazer justiça” a um determinado passado seria estabelecer um “começo de tudo”, um ponto fixo a partir do qual seria traçada a linha reta do “o quê”, “porquê” e “como”. O que é, pela própria constituição dos seres e das coisas, impossível. Acrescente-se a isso o fato de ser este um texto cujas modestas pretensões monográficas acabam por descartar tais remorsos acadêmicos. 6 Para aqueles que estiverem interessados numa abordagem detalhada da genealogia e da trajetória do termo moderno, ver JAUSS, Hans R. Tradição literária e consciência atual da modernidade. In: OLINTO, Heidrun K. Histórias de Literatura. São Paulo: Ática, 1996. 7 BERMAN, Marshall. Tudo que é solido desmancha no ar. A aventura da modernidade. São Paulo: Cia das Letras, 1992. Vale frisar que a “modernidade” de que trata Berman tem um sentido político-cultural e não somente estético, no que ela difere do modernismo. Este por sua vez é um termo referente a rupturas com a estética tradicional iniciadas no seculo XIX, e desenvolvidas mais tarde pelas vanguardas do entre-guerras. Ver: BRADBURY, Malcolm; MACFARLANE, James (org). Guia do Modernismo. São Paulo: Cia das Letras, 1998.

8

daqueles que se dispusessem a ver, colocando em questão os resultados da implantação

definitiva, porem recente, de uma ordem social burguesa e capitalista.

Nasce então uma feroz crítica social, presente não só em Marx mas em uma série de

outros discursos menores. Em todos eles estaria manifesta, de uma forma ou de outra, a crença

de que não se atingia realização individual sem a realização da coletividade; de que havia um

sério descompasso entre avanço material e moral, entre técnica e qualidade de vida para a

maioria.

Enfim, das idéias que circulam muitas pertencem a artistas e literatos cuja consciência

do lugar que ocupam, ou querem ocupar na nova ordem social vai-se reforçando, cada vez mais,

em oposição a. Estes homens empunham idéias como quem empunha armas, e estão dispostos a

usá-las, se preciso for, contra os mais altos postos da pirâmide social.9

Tal situação de perigo para as classes dirigentes está prevista no sentido que Marx

confere à modernidade; ele alerta para o fato de que o dinamismo que a burguesia quer

continuamente imprimir aos meios de produção acaba, inevitavelmente, estendendo-se às

relações sociais. “Assim, o impulso dialético da modernidade se volta ironicamente contra seus

primitivos agentes, a burguesia.”10

De tal “impulso dialético” deriva a imagem que assume o “burguês” no discurso de

inúmeros artistas e literatos ao longo do século XIX: ele aparece como o maior inimigo das artes

e da sociedade. Dolph OEHLER mostra-nos como tal ingênua demonização do burguês acabava

por mascarar os conflitos reais, contidos na realidade mais cotidiana entre o artista e os

detentores do poder econômico – maior legitimador da nova ordem social.11 O estereótipo do

burguês acabaria servindo, naquele contexto, como disfarce muito conveniente aos “opressores”

que se queria criticar. De qualquer maneira, a idéia da rivalidade entre artistas e burguesia

arraiga-se com tal intensidade nos discursos da época que chegaria intacta à virada do século,

mais precisamente ao discurso vanguardista do entre-guerras12.

8 Para uma abordagem detalhada deste conceito, ver HABERMAS, Jurgen. Mudanca estrutural na esfera publica. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1984. 9 Qual não foi o escândalo causado na França por um único artigo de protesto político escrito pelo romancista Émile Zola, sobre o affaire Dreyfuss? Neste célebre episódio o funcionário do governo francês Dreyfuss foi acusado de corrupção, ao que Zola respondeu com um artigo no qual condenava a conduta governamental, que ele julgava estar sendo motivada pela descendência judia do acusado. O nome deste artigo é J’Accuse (do francês, “Eu acuso”). 10 BERMAN, M. op.cit, p.20. 11 OEHLER, Dolph. Quadros parisienses. estética anti-burguesa 1830 – 1848. São Paulo: Cia das Letras, 1997. 12 Richard Huelsenbeck escreve sobre a atividade dadaista inicial, da qual ele fez parte: “Não compreendíamos obastante nossa época para nos libertarmos das opiniões tradicionais e formar um conceito de arte como um

9

Enfim, os conflitos políticos e sociais mencionados só aumentariam de intensidade com

a virada do século. Ficaria então mais e mais evidente que projetos de um homem só não dariam

conta de uma luta em cujo engajamento estava implícita a escolha de uma frente de batalha – e

elas eram muitas, naqueles tempos. Vai-se então consolidando aquela que seria a forma de

acirrados debates transcorridos ao longo da primeira metade do século XX. Falo do binômio

arte-revolução, associação entre vanguarda política e estética.13 É o que consta em afirmação de

Antoine Compagnon sobre os neo-impressionistas, artistas de esquerda: “Os neo-impressionistas,

com Seurat e Signac, consideram-se a vanguarda do impressionismo; querem ser, na realidade,

revolucionários em política como em pintura.”14

Quanto a isso é preciso lembrar que o próprio termo avant-garde, como mostra Hans

ENZENSBERGER, deriva do vocabulário militar. Sua transfiguração em sentido estético se teria

dado em meados do século XIX. Antes disso, valia o verbete de dicionário: “Vanguarda, parte de

um exército em marcha que vai adiante do corpo principal...”15

Mas antes de chegar às vanguardas á preciso tratar da modernidade em seu sentido

estético; o que implica retroceder bastante, até aquilo que nas artes ficou conhecido como

romantismo.16 Pois é mais ou menos ali, durante os primeiros nos do século XIX – e os últimos

anos do XVIII, vale dizer – que a experiência estética começa a passar por um processo de

crescente subjetivação. Tem-se a impressão, comparando-se a literatura de então com a

imediatamente anterior – sempre com algumas exceções, é claro – que aqueles artistas são aos

poucos dotados de uma estranha consciência em relação à arte, e em maior medida à sua própria

arte – que passam a enxergar como um acréscimo seu à sua época17.

fenômeno moral e social. A arte apenas existia – havia os artistas e os burgueses. Era preciso amar uns e odiar os outros...” Ver: Chipp, H.B. (Org). Teorias da arte moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1999; p.384. 13 Para mais informações acerca de tal relação, mais especificamente em relação ao comunismo, ver NAPOLITANO, Marcos. Arte e revolução: entre o artesanato dos sonhos e a engenharia das almas. Revista de Sociologia e Política da UFPR: Dossiê Esquerda, Curitiba, n. 8, p.23, 1999. 14COMPAGNON, op.cit, p.41. 15 ENZENSBERGER, Hans Magnus. As aporias da vanguarda. Revista Trimestral de Cultura Tempo Brasileiro: Vanguarda e Modernidade, Rio de Janeiro, n.26-27, p.92, jan/mar, 1971. 16 Este é acima de tudo um conceito instrumental. Pois nem todo artista contemporâneo ao romantismo é romântico, o que implica dizer que este novo sentimento em relação à arte é mais matéria de contemporaneidade que de filiação estética. 17 Além disso, o “novo artista” é estilística e tematicamente autônomo na medida em que livrou-se das amarras do mecenato. Quanto a isso vale lembrar que durante toda a Idade Média e Moderna a filiação a uma determinada estética foi quase sempre imposta pelas circunstâncias, moldada pelo caráter individual e endossada pela coletividade. Entretanto, refiro-me a um quadro que admite, sim, dissidências e idiossincrasias. De qualquer forma,

10

A obra estética torna-se a partir de então o lugar do inédito, do individual, do

contemporâneo. É o que mostra esta frase do romancista Stendhal: “A partir de minha memória

de historiador, afirmo que nunca um povo sofreu, em seus costumes e em seus prazeres,

mudança mais rápida e total do que a de 1780 a 1823; e querem dar-nos sempre a mesma

literatura.” 18

Ao afirmar em seus escritos que cada época merece uma literatura que lhe seja digna, e

ao associar tal idéia de “literatura contemporânea” a romantismo, Stendhal acaba por esboçar

uma teoria estética segundo a qual toda arte válida – atual – envelhece. O romântico converte-se,

continuamente, em clássico19. Se retomarmos aquilo que Antoine Compagnon afirma em relação

à trajetória do que chama de “tradição moderna”, tenderemos a assumir Stendhal como um de

seus precursores. Pois inerente a tal tradição está o imperativo do contemporâneo, que é por

conseqüência o imperativo do novo, presente como nunca naquele que conferiu à modernidade

estética seu sentido definitivo: Charles Baudelaire.20

Em sua flânerie pela metrópole parisiense ele foi solitária e amargamente moderno,

observador implacável de conflitos cotidianos que exprimiu tão bem em seus poemas em prosa.

A tradição moderna está impressa em sua obra enquanto contradição irremediável: destrói aquilo

que funda ao admitir que o novo é inevitável, porque contemporâneo, mas que também é

inevitável sua superação pelo novo de amanhã. Assim, em Baudelaire a história da arte ocidental

é uma sucessão de presentes; o moderno só pode se contrapor a si mesmo, quando já tornados

“clássico”21.

Entregue à fatalidade, a modernidade inaugurada por Baudelaire, porém já presente em

Stendhal (entre vários outros, certamente) encara a si mesma com melancolia e ironia, mediante

um sim e um não ditos simultaneamente à arte e à vida modernas. Ela “foi ambivalente, desde a

a moderna liberdade na escolha de temas e estilo passaria a ser cerceada por um novo mecenas: o mercado. Tal novo conflito está tambem expresso na obra de Baudelaire. 18 Este trecho é apenas um exemplo de como tal sensibilidade crítica se manifesta, primeira e progressivamente na literatura. Ver JAUSS, op.cit, p.77. 19 Esta é uma ruptura fundamental, aquele que tira do clássico o mérito de “atemporal, relegando-o à posição de “belo de ontem”. COMPAGNON, Antoine. Os cinco paradoxos da modernidade. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1999; p.35. 20 Ao lado de Baudelaire, Édouard Manet teria levado às artes plásticas aquilo que Compagnon chama de negação

da tradição. Sua obra Déjeuner sur l’Herbe seria uma profunda “aceitação do presente”, e por isso obra tanto mais chocante e nova. 21 Tal é o caráter dualista da idéia de Belo contida na modernidade baudelairiana: ele é metade temporal, metade atemporal; esta seria a idéia do Belo, aquela o rico material fornecido por cada época ao realizador da obra de arte.

11

origem, nas suas relações com a modernização e em particular com a história, na sua

desconfiança em relação ao progresso...”22

Nisto ela difere fundamentalmente das vanguardas, tidas por Compagnon como

“religiões do futuro”, portadoras, assim como o historiador oitocentista a crença na linearidade

do tempo, no progresso. Assim, relação de continuidade que poder-se-ia estabelecer entre

modernidade e vanguarda se limita ao imperativo da originalidade.

De outra perspectiva Marcel Raymond tenta, em obra clássica publicada na década de

40, mapear a trajetória das manifestações poéticas modernas a partir de Baudelaire. O que ele

enfatiza enquanto elemento “moderno” é um tipo de sensibilidade essencialmente romântica,

estabelecida em oposição às normas vigentes na sociedade européia, que

...se estabeleceu, com uma força cada vez maior, desde então, numa concepção racional e positiva do universo e da vida (...) Por ter separado o homem do universo e de uma parte de si mesmo, desta parte em que se situam os poderes não submetidos à razão (e isso exatamente no momento em que o cristianismo, perdendo seu império sobre as almas, cessava de oferecer-lhes o caminho de uma salvação pessoal) ela exagerou, ate o limite do tolerável, a discordância natural entre as exigências totais do espirito e a existência limitada atribuída ao homem.23 Assim, a poesia moderna carregaria sempre consigo o fantasma da crise do sentimento

religioso, vazio existencial só redimido pela experiência estética. Através da qual poder-se-ia

chegar a um sentido misterioso, esquecido no tempo, unidade fundadora entre todas as coisas.

Segundo Raymond, a linha a ser traçada deveria abarcar poetas influenciados pelo exótico e o

onírico - Baudelaire, Mallarmé e Rimbaud, entre outros – culminando na “aventura surrealista”

sobre a qual falaremos em outro momento. Acrescente-se porém a tais influências nomes como

Poe, Whitman e Lautréamont.

Entretanto é complicado tratar do espírito moderno em literatura por este ser um

fenômeno que se manifesta, de maneira difusa, em cada corrente, cada gênero, cada obra. Se de

um lado a poesia é um gênero que possui características próprias e tende à subjetivação e a

irracionalidade – no sentido de que o poeta pode ser visto como alquimista da linguagem,

mágico das palavras – a prosa serve a uma série de propósitos diferentes, muitas vezes ligados à

Este elemento atemporal acabaria por desaparecer do vocabulário da crítica estética. Segundo COMPAGNON, op.cit, a ruptura se dá com os impressionistas. 22 COMPAGNON, op.cit; p.122. Para uma abordagem clássica da modernidade baudelariana ver BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1997. 13RAYMOND, Marcel. De Baudelaire ao Surrealismo. São Paulo: Edusp, 1997, p.12. Vale lembrar o significado do apego romântico à paisagem, que segundo JAUSS seria fruto do “sentimento da harmonia perdida com o conjunto do Universo.” Op.cit; p. 74.

12

noção de arte enquanto mímesis da realidade. Falemos daquele que é o gênero literário burguês

por excelência, o romance. Quando aparece em seu formato original, em meados do século

XVIII, traz para o domínio da ficção a vida real e cotidiana de pessoas comuns24. Num contexto

em que o comércio de livros crescia espantosamente – deixando de restringir-se a publicações

religiosas – assim como o número de leitores, era de se esperar que seu realismo e sua

“intimidade para com a vida” cativasse toda a Europa. Assim, o romance seguiu como forma

literária hegemônica, ao longo de todo o século XIX.

O romancista Thomas Mann25 em ensaio intitulado “A Arte do Romance” expõe sua

fascinação pelo épico: “talvez seja o espírito da narrativa, o eternamente homérico, conhecedor

do mundo, propagador da criação do passado (...) Os Vedas narradores dos hindus chamavam-se

também Hinos de Itihasa, segundo o termo It há asa, ‘assim era’. Talvez seja ‘assim era’, uma

atitude poética mais solene do que o ‘eis aqui’ do drama.”

Poder-se-ia dizer que a escrita que visa um conhecimento oculto – quase sempre poética

– dirige-se ao “assim era”. Entretanto, tal tipo de ficção só é possível em sociedades tradicionais,

rigidamente organizadas em torno de verdades comuns, aceitas pela grande maioria. O que não

corresponde à sociedade burguesa e industrial de que falamos, fragmentada em indivíduos, em

“verdades”. O que remete ao processo de subjetivação já tratado, acerca do romantismo.

Porém ao mesmo tempo, estranhamente, esta é uma sociedade que crê no que vê, no que

comprova. A ciência é sua nova tutora no entendimento da vida. É muito curioso perceber como

o paradigma científico passaria a permear até mesmo domínios reservados à ficção! É que queria

Émile Zola, ao dizer que “A imaginação já não é a qualidade mestra do romancista. (...) ninguém

ousou associar a imaginação a Balzac e a Stendhal (...) eles são grandes porque retrataram sua

época, e não porque inventaram contos. Foram eles que conduziram essa evolução (...) a

imaginação deixou de contar no romance.”26

Zola critica Stendhal por produzir tratados psicológicos em que o meio natural e a

realidade exterior, de um modo geral, são ignorados. A sutileza com que este último criava as

mentes de suas personagens o estaria desviando do “homem de carne e osso”.

24 Ver WATT, Ian A Ascensão do romance. São Paulo: Cia das Letras, 1996. 25 MANN, Thomas. Ensaios. São Paulo: Editora Perspectiva, 1988, p.14. 26 ZOLA, Émile. Do Romance. São Paulo: Editora Perspectiva, 1995; p. 40.

13

Para Adorno27 tal apologia por um relato objetivo é a busca por um tipo de literatura que

já se mostrava intangível durante o século XIX, o que se tornaria evidente depois da mudança de

regras da arte européia, provocada pelo movimento modernista. Segundo este autor: “Quem hoje

mergulhasse na objetividade das coisas (...) Ficaria culpado pela mentira de se entregar ao

mundo com um amor que pressupõe que o mundo tem sentido (...).”28

Assim, a sociedade secularizada poderia deixar a “objetividade das coisas” a cargo de

outras linguagens, como a jornalística e em menor medida a fotográfica – esta por sua vez

infiltra-se em domínios da representação “desde sempre” pertencentes à pintura. Portanto o

otimismo dos naturalistas que acreditavam estar rumando para uma época de mais verdade e

mais felicidade passa a coexistir com discursos de homens que percebem, já no fim do século,

que a tarefa da literatura havia mudado, que o reflexo da experiência do homem moderno não

estava na harmonia que o discurso científico ou a arte tradicional pretendiam forjar, mas nas

idéias de homens “modernos”, como Freud e Niezstche. Este aparece no final do século XIX

com teorias apocalípticas29, que declaravam a falência dos valores sobre os quais se assentava –

ainda!- a Europa. Aquele, por sua vez, desconcerta seus companheiros mais pragmáticos e

conservadores ao transformar o subjetivo em matéria da ciência. 30

Enfim, trata-se de um quadro em que insinua-se com mais e mais força a noção de que o

conhecimento da realidade é passível de relativização, sujeito à distorção necessária de cada

consciência. A partir de então a constatação de que “só conhecemos os outros dentro de nós

mesmos”, torna o herói de Em busca do tempo perdido autêntico não apenas aos olhos de seu

criador, Marcel Proust, mas perante toda uma geração.

Entretanto o realismo sobrevive à morte do naturalismo enquanto estética socialmente

predominante. Mas teve de passar a conviver com outras estéticas, que organizadas em

movimentos ou não, ficaram conhecidas como modernistas.

BRADBURY e MCFARLANE afirmam que o modernismo é um gigantesco

movimento que acontece mais ou menos ao mesmo tempo, em todas as grandes capitais

27 ADORNO, Theodor W. Posição do Narrador no Romance Contemporâneo. In: OS PENSADORES: Benjamin, Adorno, Horkheimer e Habermas. São Paulo: Abril Cultural, 1980. 28 Ibid, p. 56. 29 Nas palavras do filósofo: “Acreditamos saber algo das coisas mesmas, se falamos de árvores, cores, neve e flores, e no entanto não possuímos nada mais do que metáforas das coisas, que de nenhum modo correspondem à identidade de origem.” OS PENSADORES: Nietzsche. São Paulo: Abril Cultural, 1978; p. 46. 30 Tomo Nietzsche e Freud apenas como exemplos de uma sensibilidade difusa, que se viu refletida em várias manifestações individuais e isoladas. Não quero dizer que estes autores as tenham provocado, mas apenas refletido em suas obras – que só seriam lidas na Europa do entre-guerras.

14

européias – assim como em Nova Iorque. A sua marca maior é para eles o predomínio do estilo.

As grandes obras seriam notáveis por “seu elevadíssimo grau de marca pessoal...”31 Assim,

pode-se dizer que os esforços formais levados a cabo por aqueles artistas foram intensos como

nunca: experimentava-se; buscava-se traduções inéditas de paisagens interiores recém-

descobertas. Era-se livre, e a realidade objetiva oferecia material suficiente para os mais

profundos mergulhos naquela outra realidade, cujo canto convidava os jovens artistas a perder-

se, julgando encontrar-se. 32

É então que se realizam subversões lingüísticas mais intensas, principalmente na poesia

francesa ligada à tradição dita posteriormente “simbolista”33. Falo de Verlaine, que rejeita

abertamente o naturalismo com o poema Art Poétique, de 1882, assim como Mallarmé e

Rimbaud. O que culminaria na singela ambição, partilhada por um número cada vez maior de

literatos, de “exprimir o fluxo da consciência”. Tal é o caráter do verso livre de Apollinaire e da

escrita automática dos surrealistas, que lhe é imediatamente posterior.

Até agora nos detivemos em problemas literários. Isto porque é na literatura, por aquele

que é seu próprio estatuto, que primeiro se falou de e por uma nova arte. Só mais tarde o

experimentalismo estendeu-de com mais força à pintura – excetuando-se, entre outros, Manet,

como já foi dito - e à escultura, à fotografia e ao cinema.

Agora já podemos tratar de um momento fundamental e bastante visível na trajetória de

mudanças que constitui a história recente da pintura européia; momento cujo significado não se

pode ignorar se o assunto é cinema de vanguarda, mais especificamente surrealista. O pintor

Gauguin, em toda sua inocência de contemporâneo, fornece-nos uma frase que pode naquele

tempo ter passado despercebida, e que no entanto vem hoje restituir-nos, distraída e

parcimoniosamente, aquele quinhão de passado que, assim julgamos, é devido a cada um que

interessar-se em obtê-lo.

31 BRADBURY; MCFARLANE, op.cit, p.21. 32 Mas deve-se frisar que o modernismo não foi um “movimento” deliberadamente deflagrado por um grupo de artistas, mas constituiu-se enquanto fenômeno tão diverso em suas manifestações que acabou dando nome a obras que de semelhantes só têm o imperativo do novo. Isso explica porque são colocados no mesmo saco Thomas Mann e o Dada, Proust e o futurismo...Nas palavras de Bradbury e McFarlane: “Em suma, o modernismo em inúmeros países foi uma extraordinária mescla futurista e niilista, de revolucionário e conservador, de naturalista e simbolista, de romântico e clássico. Foi um louvor e uma denúncia de uma era tecnológica; uma alegre adesão à crença de que os antigos regimes da cultura haviam acabado, e um profundo desespero com o receio por um tal fim; uma mistura das convicções de que eram exatamente as expressões vivas dessas mesmas coisas.” BRABURY; MCFARLANE, op.cit, p.35. Tal título deriva da crença baudelairiana de que as coisas reais só se podiam manifestar na arte em forma de símbolo, como numa realidade paralela essencialmente abstraída do concreto, magia do verbo.

15

Gauguin disse uma vez que “...a pintura e um meio de expressão”34. Sim, isso é

obvio, diria atualmente uma grande maioria. Pois trata-se de uma idéia cuja aderência aos

costumes se deu com tal intensidade, que assumiu no imaginário ocidental relacionado à arte a

forma de característica atemporal. Porém o que nos interessa aqui é o sentido histórico de tal

afirmação. Ao classificar seu métier como abstração da realidade, e não reprodução, Gauguin

explicita a aliança irremediavelmente consumada entre a pintura e a poesia.35 No mesmo sentido

caminha Maurice Denis, pintor colega de Gauguin, que vê nas novas tendências a reparação do

erro academicista que havia ensinado a tantos jovens artistas, e durante tanto tempo, um

paradoxo entre estilo e natureza.36 Para esta nova geração, o estilo passaria a ser a distorção

necessária, aquilo que transforma todo pintor - e todo artista – em poeta

Tal equação é primeiro explicitamente estabelecida com aquele que foi um dos únicos

reais movimentos estéticos oitocentistas, chamado simbolismo. Associados a Gauguin na defesa

da abstração em relação à natureza como condição do valor artístico da obra37, e vários outros

pintores – entre eles Gustave Moreau e Odilon Redon – os simbolistas queriam “...objetivar o

subjetivo”.38

Segundo Gilberto Mendonça TELES, “...as várias tendências literárias do fim do século

podem perfeitamente agrupar-se em torno de duas estéticas fundamentais: a do simbolismo (...) e

a do naturismo...”39 Assim, as vanguardas históricas tenderiam a organizar-se mediante a

predileção por natureza ou sobrenatureza, observação ou imaginação, oposição essencial entre

tendências simbolistas e naturistas.

Data de 1886 o primeiro texto escrito em defesa da estética simbolista, por Jean Moréas.

Logo no início do texto ele afirma que

...toda manifestação de arte chega fatalmente a se empobrecer, a se esgotar; então, de cópia em cópia, de imitação em imitação, o que foi pleno de seiva e de frescura se desseca e se

34 CHIPP, op. cit, p. 31.Van Gogh endossa tal idéia ao dizer, em carta a seu irmão Theo, que usa cores puras, não semelhantes à realidade, “...para expressar-se com força...” Ibid, p.24. 35 Mas tal ligação não se deu de repente. Trata-se do cume de um processo que se inicia pelo menos um século antes, a medida que “....a pintura é privada de suas funções religiosa, histórica, filosófica, para restringir-se à experiência visual ou formal do meio, tendo o mercado como única sanção.” COMPAGNON, op.cit, p.94. 36 TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda européia e modernismo brasileiro. Apresentação e crítica dos principais manifestos vanguardistas. Rio de Janeiro: Vozes, 1983; p.49. 37 Mas Gauguin não pode ser chamado de simbolista, nunca aderiu formalmente ao movimento, com o qual estabeleceu contatos baseados nas afinidades essenciais que possuía com o grupo. Para alguns Gauguin poderia, junto com Van Gogh, ser chamado de “sintetista”. Mas isto é só “para constar nos autos” – pois o que nos interessa aqui é tomar tais artistas pelo que quiseram ser, e não pelo que a crítica quis que fossem. 38 CHIPP, op.cit, p.47. 39 TELES, op.cit, p.40.

16

encarquilha; o que foi novo e espontâneo se torna o vulgar e o lugar comum. (...) Uma nova manifestação da arte era portanto esperada, necessária, inevitável. Esta manifestação, preparada durante muito tempo, acaba de aparecer. E todos os anódinos gracejos dos jornalistas confiantes da imprensa, todas as inquietações dos críticos graves, todo o mau humor do público surpreendido na sua indolência imitadora, não fazem senão afirmar cada dia mais a vitalidade da evolução atual nas letras francesas...40

Discorrendo sobre as prerogativas da “mais nova última arte” Moréas aponta a forma

sensível – o quadro, o poema – como mais um meio de se atingir “A Idéia”. Assim, condensando

tensões que desde o romantismo já se vinham fortalecendo os simbolistas, num misticismo

neoplatônico, colocaram-se fortemente contra o científicismo, o “sensualismo” e o utilitarismo

de sua época “decadente”. Extremamente saudosistas, voltaram seus olhares para sabe lá qual

idílico passado ancestral da humanidade.

Tais elementos apareceriam muito claramente anos depois, em outro manifesto: o

Primeiro Manifesto Surrealista, escrito por André BRETON em 1924.

40 MORÉAS apud TELES, Ibid; p. 62-63.

17

2 O SURREALISMO E A IMAGEM FÍLMICA “Lindo como o encontro entre um guarda-chuva e uma máquina de costura sobre uma mesa de dissecção.”

Lautréamont

Ainda que antes da Primeira Guerra Mundial Marinetti (líder dos futuristas) já tivesse

exigido “a supressão da sintaxe e a liberação das palavras”41, para Guillermo de Torre42 é durante

41 RAYMOND, M. Op.cit, p.208. 42 TORRE, G. Op.cit, p.59.

18

a Primeira Guerra que se difunde o termo littérature d’avant-garde.43 Tratava-se de um termo só,

que no entanto acabava servindo para comunicar inúmeros projetos cujo caráter às vezes bastante

discrepante convergia em relação à busca generalizada por um novo redentor, aquele que

finalmente faria juz ao novo tempo de que se originava.

Ora, mas isto já aparece um capítulo antes, ou melhor, um século antes, em cujas últimas

décadas têm-se direito até mesmo a manifestos, como testemunha aquele de Jean Moréas. Assim,

o que me interessa a partir deste ponto é a análise da espécie de novo que o surrealismo vem

fundar, este, por sua vez, apoiado na mais extrema valorização dos elementos da obra de arte.

Pois ao apresentar questões estéticas segundo um modelo teórico coerente, o surrealismo

muito se distanciou daquele que pode ser visto como seu parente próximo, o movimento dadaísta

de 1916. Digo parente próximo porque os dadaístas, reunidos primeiramente em Zurique em

1916, colocaram questões que um de seus membros parisienses, chamado André Breton,

retomaria ao fundar o grupo surrealista. Em linhas gerais, são elas: o ódio à cultura européia em

seus aspectos “burgueses”, dentre eles o respeito à pátria, à família e à religião, assim como a

racionalidade e o utilitarismo. Para fugir à reprodução de tal modelo cultural na arte, propunham-

se a adotar métodos não naturalistas de composição artística, como o poema livre. Queriam

ressaltar o absurdo da condição humana – tida como “piada de mau gosto” – e a invalidez de uma

sociedade que se havia construído sobre princípios totalmente arbitrários, e por isso passíveis de

dessacralização. Tal cinismo também se dirigia ao espetáculo lamentável da Primeira Guerra, ao

qual os dadaístas, residentes na neutra Zurique, dirigiram duras críticas e ácidas piadas.

É a partir de sua ruptura cm os dadaístas que Breton funda a revista “La Révolution

Surréaliste” em 1924. A partir dela, chegariam ao público os primeiros escritos ditos

"surrealistas".

As questões mais freqüentemente colocadas nestes textos tocam o domínio da linguagem.

Não é de espantar, afinal é esta a marca maior de nosso conhecimento do mundo, da mediação

que se exerce entre sujeito (interior) e objeto (exterior). Retirar a linguagem de seu papel de

escrava da utilidade, restituindo-lhe seu potencial mágico e transformador – essencialmente

poético – era uma das premissas de base do programa surrealista.

Tal potencial poético se revelaria através de um tipo específico de escrita, a escrita

automática, que seria uma espécie de “tradução simultânea” do fluxo do pensamento. E como

este movimento constituiu-se como uma utopia que visava toda a humanidade, tal saber mágico

43 TORRE, Guillermo de. Op.cit, p.40.

19

seria acessível a todos. Os surrealistas levaram a sério a afirmação de Lautréamont segundo a

qual, um dia, “todos seriam poetas”.

Ora, a linguagem transformadora é aquela que é colocada a serviço da imaginação, e

ainda que esta se tenha atrofiado após séculos de racionalidade prática e utilitarismo, continua

sendo sempre patrimônio de todos os homens.

Referindo-se ao título dado ao grupo que fundou, diz Breton: “Creio na revolução futura

destes dois estados, aparentemente tão contraditórios, tais sejam o sonho e a realidade, em uma

espécie de realidade absoluta, de super-realidade se assim se pode chamar.”44

Só em tal “súper-realidade”, acessada através da linguagem, estaria uma possível

emancipação do homem, uma saída para a mediocridade generalizada dos usos e costumes que

fundamentam aquilo que estes mesmos usos chamaram de “realidade”.

A preocupação onírica é uma constante nos escritos do grupo. Ela aparece nas alusões

surrealistas a Freud, com quem, na opinião de Breton, a imaginação “recupera seus direitos”.45 A

importância dada ao pesquisador vienense também se refere ao fato de que ele provocou uma

verdadeira revolução no aparato intelectual europeu ao mostrar que o conteúdo do sonho não se

refere a um mais além sobrenatural, mas à vigília.

Em tal súper-realidade manifesta-se sem entraves o princípio de prazer, a liberdade

máxima da imaginação. A este respeito, vale recorrer ao nostálgico relato de um Buñuel já idoso,

sobre os princípios que aprendeu com os surrealistas, cujo maior mérito era para ele o fato de

serem portadores de “uma moral coerente e estrita”46: “...ao lado do acaso o mistério, seu irmão.

O ateísmo – em todo o caso o meu – conduz necessariamente à aceitação do inexplicável. Todo o

nosso Universo é mistério.(...) E em alguma parte entre o acaso e o mistério desliza a

imaginação, liberdade total do homem. Esta liberdade, assim como as outras, tentaram reduzir,

apagar. A esse respeito, o cristianismo inventou o pecado de intenção.”47

Outro elemento que aparece freqüentemente em escritos surrealista é a prática da magia,

característica das sociedades arcaicas. Meio de conhecimento privilegiado, elemento unificador

de arte, filosofia e ciência, ela é elogiada como meio de acesso a um mistério fundador e

primordial. Este estado primitivo da humanidade também é aludido no apelo surrealista ao

44 Id.Ibid. 45 BRETON, André. Manifesto do Surrealismo. In: TELES, op. cit, p.179. 46 BUNUEL, p.214 47 “...à côté du hasard son frère le mystère. L´athéïsme – em tout cas le mien – conduit nécessairement à accepter l´inexplicable. Tout notre Univers est mystère (...) Quelque part entre le hasard et le mystère se glisse l´imagination,

20

inconsciente, onde estaria um tipo de sinceridade normalmente inacessível, bloqueado pela

hipocrisia inerente à consciência. O inconsciente representa, para eles, a mente humana em

estado bruto.

O intelectual Jacques Rivière, muito admirado pelo grupo de Breton, coloca a questão

anterior sob uma luz bastante enriquecedora: “...é preciso captar o ser em sua incoerência, ou

melhor, em sua coerência primitiva (...) substituir sua unidade lógica, forçosamente adquirida,

pela sua unidade absurda, única original.”48

Através do que foi dito até aqui pode-se perceber que os surrealistas dirigiam suas

questões à vida, e não somente à arte. Nesse sentido, o experimentalismo formal não constituía

um fim em si mesmo, mas o caminho para a revelação de alguma verdade mística e universal

esquecida no tempo, desprezada por séculos de racionalismo.

No Primeiro Manifesto Breton critica duramente o naturalismo, referindo-se

principalmente ao romance. Sobre aqueles que escrevem obras do gênero, diz o autor : “O

caráter circunstancial, inutilmente particular, de cada uma de suas anotações faz-me pensar que

eles se divertem às minhas custas (...)”49

À falsa objetividade de tais textos, que segundo Breton nada dizem que seja de interesse

real, ele contrapõe a sinceridade da escrita automática, retirada da matéria-prima produzida pelo

inconsciente.

A partir daí, ele conta-nos como se deu a descoberta da escrita automática: numa noite

insone, ele se viu acometido pela visão (mental) da seguinte imagem: “há um homem partido ao

meio pela janela”.

De acordo com Breton, a partir deste dia ele passou a procurar cada vez mais a estranha

profundidade deste tipo de associação, transformando o trabalho com a linguagem num tipo de

“transe” obtido às custas de sua própria passividade perante o fluxo espontâneo das palavras.

O sonho é visto no manifesto como dado objetivo. Assim, o discurso estético que nele se

apóia – mais especificamente a escrita automática – atingirá, também, objetividade. É o que

aponta o texto de Louis Aragon, contido em seu “Traité du style”: “Pode-se dizer que um texto

surrealista, em função de seu autor, atinge objetividade análoga à do sonho, que ultrapassa muito

o grau de objetividade relativa dos textos comuns.”

liberté totale de l´homme. Cette liberté, comme les autres, on a essayé de réduire, de l´effacer. À cet effet, le christianisme a inventé le péché d´intention.” P.216. (T. da A) 48 RAYMOND, op.cit, p.238. 49 BRETON, Apud TELES, Op.cit, p. 177.

21

O sonho representa também a vitória do desejo sobre a morte: “O espírito do homem que

sonha se satisfaz plenamente com o que lhe acontece. A angustiante questão da possibilidade não

se lhe apresenta mais. Mate, roube, ame tanto quanto puder, afinal não tem você a certeza de

despertar dentre os mortos?”50

A leitura dos textos do intelectual francês Pierre Reverdy foi muito útil a Breton para a

formulação de sua teoria da magem – como ele revela no próprio manifesto – já que aquele

literato realizava já a algum tempo o mesmo tipo de experiência lingüística. Com a ajuda dele, o

pai do surrealismo pôde formular seu princípio do uso da imagem:

O valor da imagem depende da beleza da centelha obtida; ele é por conseguinte, função da diferença de potencial entre os dois condutores. (...) Para mim, a imagem mais forte é aquela que apresenta o grau de arbitrariedade mais elevado, não o escondo, a que se leva mais tempo a traduzir em linguagem prática, seja porque ela encerra uma dose enorme de contradição aparente (...) seja porque ela implica na negação de alguma propriedade física elementar, seja porque ela desencadeia o riso.51

Ora, para aqueles familiarizados com o aparato técnico do cinema salta os olhos a

semelhança entre o princípio bretoniano da imagem e a teoria da montagem formulada por

Eisenstein, por exemplo. Pois à medida que o cinema vai sendo pensado em termos específicos,

como nova técnica, diferente do teatro – diferença esta fundamentada sobre o advento da

montagem – torna-se inegável sua finalidade eminentemente estética.

Sílvia Fernandes e J. Guinsburg nos mostram como Eisenstein explora tal

especificidade cinematográfica referente à montagem: “Para o diretor russo os vários planos

cinematográficos não devem ser articulados linearmente, segundo uma intriga, mas combinados

a partir de um princípio organizador. E este princípio é a contradição, o conflito entre dois

elementos opostos de onde surge um novo conceito.”52

Entretanto, no caso de um cinema que se queira “surrealista” este “princípio

organizador” está essencialmente ligado ao funcionamento inconsciente da mente, ou seja, ao

terreno do onírico – o que diferencia tal projeto daquele pregado pelo cineasta russo. Além disso,

50 Id, p.178. 51 BRETON, André. Primeiro manifesto do surrealismo. In: ....p. 180 É interessante estabelecer contato também com Marcel RAYMOND, op.cit,p. 224, quando este se refere à poesia moderna, mais especificamente aquela produzida durante o entre-guerras por Max Jacob, Apollinaire, Pierre Reverdy: “Ora, este mistério (o da nova poesia) não reside precisamente em estados de alma. Revela-se em conjunturas insólitas, relação oculta entre acontecimentos sem afinidade aparente, encadeamento de circunstâncias inconfessáveis, associação de imagens suscitada por algum demônio da analogia, em detrimento de toda razão.” 52 FERNANDES, Sílvia; GUINSBURG, J. Op.cit,p.16

22

para estes adeptos da vanguarda a imagem é sempre muito mais verdadeira do que a explicação

que a ela possa referir-se. Não se trata, portanto, de um tipo de montagem a serviço de conceitos.

Não é de espantar que o grupo de Breton se tenha sempre referido ao cinema com

empolgação. Pois em sua acepção o sonho era, ou melhor, podia ser visto como a projeção de

imagens na mente; e eis que nascia uma máquina que podia, com recursos próprios, operar um

milagre semelhante!

Entretanto o reconhecimento da potencialidade onírica do filme ou ainda da

potencialidade fílmica do sonho não foi reconhecido apenas pelo grupo de Breton.

Talvez a mais antiga associação aberta entre cinema e sonho veio de Jules Romains, em

1911:

O sonho grupal agora começa. Eles dormem (...) Eles não mais se dão conta de que estão numa grande câmara quadrada, imóveis, em filas paralelas (...) Uma bruma de visões que se assemelham à vida paira por sobre eles. As coisas assumem um aspecto diferente daquele que têm lá fora. (...) As criaturas parecem gigantescas e se movem, como que apressadas. O que controla seu ritmo não é o tempo comum, que ocupa a maior parte das pessoas quando não estão sonhando. Suas ações (destas criaturas) não têm ordem lógica. As causas produzem estranhos efeitos, como ovos de ouro.53

Há também referências fílmicas pertinentes ao surrealismo nos clássicos textos de Béla

Balázs escritos no entre-guerras, reunidos sob o título “Evolução e essência de uma arte nova”.54

Neste trabalho ele faz um elogio do resgate, só possível através do cinema, da

irracionalidade inerente ao humano, presente principalmente na expressão corporal e facial, e não

na palavra. Diz ele que com o advento do filme, “não era uma língua de surdo-mudos que

substituía a palavra por um idioma de signos, senão a correspondência visual direta da alma feita

forma. (...) O gesto expressivo é a linguagem ancestral da humanidade.”55

Ora, os surrealistas também encontraram no cinema um atalho para tal “linguagem

ancestral” pré-racional, apesar de a terem pensado principalmente em termos psíquicos.

Entretanto é flagrante a proximidade de pontos de vista entre Balázs e os autores de O Cão

53 “The group dream now begins. They sleep (...) They no longer realize they are in a large suqare chamber, immobile, in parallel rolls(...) A haze of visions which resemble life hovers before them. Things have a different appearance than they do outside. (...) Creatures seem gigantic and move as if in a hurry. What controls their rythm is not ordinary time, which occupies most people when they are not dreaming. Their actions have no logical order. Causes produce strange effects like golden eggs.” ROMAINS, J. Apud KUENZLI, Robert. (org.) Dada and Surrealist film. London: The MIT Press, 1996, p.67. (T. da A) 54 BALÁZS, Bela. Apud XAVIER, Ismail (org) A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Graal, 1983, p.40. 55 Id, p.34.

23

Andaluz, no qual, como mostrarei a seguir, a falta da palavra falada determina um forte conteúdo

gestual, que por sua vez fortalece o conteúdo imagético e gestual inerente ao filme.

3 3 3 3 O CÃO ANDALUZ

“A surpresa é o grande mecanismo moderno.” Guillaume Apollinaire

Ao longo de 1927-28 Buñuel já escrevia ensaios literários e de crítica cinematográfica

para La Gaceta Literaria de Madri, assim como o companheiro Dali. Os dois conheceram-se

24

poucos anos antes, na Residência Universitária de Madri, onde desenvolveram a afinidade

intelectual que daria ao filme O Cão Andaluz, escrito e realizado em 1928.

É o que mostra Haim Finkelstein em estudo intitulado “Dali e O Cão Andaluz: a

natureza de uma colaboração”56. Neste estudo o autor procura fazer justiça à normalmente

subestimada colaboração de Dali, assim como mapear, através de textos publicados entre 27 e 29

pelo jovem pintor e Buñuel, em que medida convergiam seu estilo e seu pensamento estético.

Finkelstein verifica que há na produção literária de ambos uma tendência geral,

referente mais à forma que ao conteúdo, tendência que nos diz muito a respeito do roteiro de seu

filme. Opera-se em tais escritos a “...subversão da continuidade causal e da forma narrativa

convencional; traição de expectativas formada pela utilização de contextos da narrativa

convencional através do conteúdo irracional encontrado em seções individuais da narrativa;

paródia das formas de arte populares.”57

Quanto a escritos referentes a cinema, o olhar de Dali aparece mais claramente em

artigo intitulado Film-arte, film-antiartistico (1927), no qual o jovem pintor defende um cinema

documentário, rejeitando a metáfora poética. De acordo com ele a maior especificidade do

cinema, e portanto sua função primordial estaria no resgate da poesia e do estranhamento

inerentes à representação das coisas em si mesmas, e não na reprodução tecnicamente

diferenciada de dramas teatrais. Para o pintor espanhol são estranhos ao cinema quaisquer

elementos “anedóticos”. Referindo-se principalmente ao cinema comercial americano, ele julga

prejudiciais a “complexidade psicológica e reviravoltas inesperadas na trama, fatores que associa

a emoções primárias e estandardizadas.”58

56 FINKELSTEIN, H. Dali and Un Chien Andalou: the nature of a collaboration. In: KUENZLI, R. Op.cit,p.128-142. 57 “...disruption of causal continuity and coherent narative form; betrayal of expectations formed by the utilization of conventional narrative contexts through the irrational content found in the individual sections of the narrative; parody of popular art forms.” KUENZLI, op.cit, p.135. (T. do A.) Neste ponto vale estabelecer um diálogo com Carlos Rebolledo, autor que enxerga na estética irracionalista que marca o conjunto da obra cinematográfica de Buñuel uma

reação de caráter nacional e geracional, dirigida ao naturalismo que imperou nas letras espanholas durante todo o século XIX. Tal intenção teria sido partilhada não só com Dali mas com outros companheiros da Residência Universitária de Madri, dentre eles García Lorca, influenciados mais diretamente em suas predileções estéticas pelo romance picaresco do século XVII. Esta seria uma literatura marcada, em seus temas, pela crueldade, pelo fantástico e pelo patético da condição humana; e em sua forma pela não-linearidade. O primeiro e mais célebre pícaro – o anti-herói dos romances espanhóis – é Lazarillo de Tormes, um dos autores preferidos do cineasta (como ele revela em sua autobiografia). REBOLLEDO, Carlos. Buñuel e o romance picaresco. In: BUÑUEL, Luís. Viridiana. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. 58 “Psychologic complexity and unexpected turns in the plot; he counters those with primary and standardized emotions...”Id, p.129. (T. da A.) 58 Id.ibid.

25

Buñuel, mais atento às reais possibilidades da realização cinematográfica, admitia

alguns elementos dramáticos como necessários, negando apenas o chamado “melodrama” – do

qual O Cão Andaluz é, como mostrarei adiante, paródia assumida. Ele detestava os exageros na

interpretação de atores da escola inaugurada por Emile Jannings, por exemplo.59

Assim, ambos detestaram Metropólis, de Fritz Lang. Buñuel pela trivialidade da intriga e

dos personagens, bastante estereotipados, Dali pela excessiva teatralidade do roteiro e da

representação. Eles preferiam “a primitiva sinceridade e a autêntica intuição cinematográfica do

cinema popular americano, as comédias em particular.”60 Admiravam especialmente os trabalhos

de Mack Sennett, Buster Keaton e Charlie Chaplin, cuja atuação quase “orgânica” e instintiva

parecia derivar do fato de que não lhes pesava sobre os ombros uma tradição estética tão

consolidada quanto a européia61.

Quanto a referências ao surrealismo, é certo que tanto o pintor quanto o futuro cineasta

Buñuel tiveram contato com o Manifesto Surrealista de 1924, pois já em 28 Dali discute a

surrealidade no artigo Realidad y Sobrerrealidad. Entretanto defende que para se chegar à

segunda era preciso acessar dados concretos da realidade exterior, associando-os segundo um

método crítico.62 Os meios privilegiados para isso seriam justamente a fotografia e o cinema.63

Dali planejava realizar, como relata a um jornal parisiense encarregado de cobrir a

repercussão do Cão Andaluz, um filme documentário sobre a costa de Cadaquès, o qual seria

constituído por dados referentes desde “a unha do pé do pescador até the crests das rochas do

cabo Creus, passando pelo quivering da grama e os diferentes tipos de algas marinhas.”64

Assim, ainda que referindo-se todo tempo à subversão da lógica e à surrealidade, Dali

apontava em seus textos um caminho cinematográfico diferente, para atingir tais metas, daquele

tomado por ele e Buñuel em O Cão Andaluz.

Referindo-se a tal aparente contradição, Finkelstein tenta entender porque este projeto

foi realizado da forma como foi, e quando o foi.

5 “The primitive directness and the authentically cinematic intuition of popular American cinema, the film comedies in particular”. Id.ibid, p.129. (T.do A) 61 O que pode ser reiterado se pensarmos que os americanos foram os primeiros a ampliar as possibilidades técnicas do cinema. 62 Dali não gostava de trabalhos abstratos como o de Léger e Man Ray, por exemplo. 63 Id, p.131. Por tais pretensões cinematográficas realistas e ditas “não-artísticas” Dali não gostava do cinema “puro” de Léger e Man Ray. 64 “from the toenail of the fisherman to the crests of the rocks of Cape Creus, passing through the quivering of the grass and the different kinds of underwater algae.” Id.ibid. (T da A)

26

O autor sugere que pode ter contribuído para isso o fato de que os dois jovens espanhóis

provavelmente leram o roteiro de A Concha e o Clérigo, escrito por Antonin Artaud e publicado

na Nouvelle Révue Française em novembro de 1927; assim como é possível que lhes tenha caído

nas mãos o polêmico artigo de Artaud, Cinéma et Réalité (1927) escrito em resposta à cineasta

Germaine Dulac, que lhe teria adulterado o roteiro citado ao adaptá-lo, naquele mesmo ano.

Sobre este artigo vale dizer que se ele não explica O Cão Andaluz, pelo menos aponta

vários caminhos para o desvendar de seu imediato “apadrinhamento” por parte do exigente grupo

surrealista. Em um trecho mostra-se claramente a concepção de cinema de Artaud:

Nos filmes de peripécia toda emoção e humor repousam unicamente sobre o texto, excluindo-se as imagens; com raras exceções, todo o pensamento de um filme está nos letreiros, mesmo nos filmes sem letreiro; a emoção é verbal, exige esclarecimento ou apoio de palavras (...) Estamos procurando um filme com situações puramente visuais, cujo drama decorreria de um choque infligido aos olhos, tirado, se ousarmos dizê-lo, da própria substância do olhar, não proveniente de circunstâncias psicológicas de essência discursiva, que não passam de texto traduzido visualmente.”65

Dito em outras palavras, circunstâncias psicológicas que não passam de tramas teatrais –

opinião semelhante à de Dali.

Mais adiante, Artaud complementa a idéia anterior: “Não que o cinema deva renunciar a

toda psicologia: muito pelo contrário; seu princípio é dar uma forma mais viva e ativa, sem estes

vínculos que tentam mostrar as motivações de nossos atos sob uma luz totalmente estúpida, ao

invés de exibí-los em sua barbárie original e profunda.”66

Assim, ele faz a apologia caracteristicamente surrealista de um “realismo psíquico”, se é

que assim posso chamá-lo, revelador das profundezas da mente, ou seja, do subconsciente onde

se manifesta tal “barbárie original e profunda”. Refere-se principalmente ao sonho. Entretanto,

quando Germaine Dulac decide filmar A Concha e o Clérigo longe de sua supervisão, e apresenta

o filme como Sonho de Antonin Artaud, ele responde de pronto: “Este roteiro não é a reprodução

de um sonho e não deve ser considerado como tal. Não procurarei desculpar sua aparente

incoerência pela escapatória fácil dos sonhos.”67

O que este trecho revela acerca do projeto de Artaud, também acrescenta à interpretação

do filme que é objeto deste estudo: no cinema dito surrealista o que existe é a alusão ao sonho,

65 ARTAUD, Antonin. Linguagem e Vida. São Paulo: Editora Perspectiva, 1995, p.159. 66 Id, p.160.

27

visando recriar no espectador, acordado e “consciente”, os estados psíquicos que só o sono – o

subconsciente – pode proporcionar. Trata-se portanto de filmes cujas ambições estrapolam a

intenção de inofensivo “entretenimento”.

Dulac decepciona o autor do roteiro de seu filme ao apresentar este filme como mera

“ilusão”, truque de mágico que deixa a realidade conhecida intacta, já que para Artaud era o filme

que deveria mostrar esta mesma realidade como mera ilusão.

Ora, foi precisamente esta a motivação dos criadores de O Cão Andaluz quando foi

pensado este roteiro, cuja incoerência flagrante é também proposital. Como conta Buñuel em sua

autobiografia, a regra para a composição do texto era “...não aceitar qualquer idéia que pudesse

dar lugar a uma explicação racional, psicológica ou cultural.”68

Assim, pode-se supor que dois fatores: o conhecimento do projeto estético surrealista,

assim como do projeto específico de Artaud – aliados à bagagem de leituras que os dois

espanhóis já possuíam – tenham tornado possível a fluidez e casualidade com que surgiu a idéia

de um tal roteiro. Passando a palavra novamente a Buñuel:

Este filme nasceu de dois sonhos. Chegando à casa de Dali, em Figueiras, contei-lhe que tinha sonhado, pouco tempo antes, com uma forma estreita perpassando a lua e com uma lâmina de barbear cortando um olho. Dali por sua vez contou-me que tinha acabado de sonhar, na noite anterior, com uma mão cheia de formigas. Ele acrescentou: e se nós fizéssemos um filme, partindo disso?69

A partir daí, a história vira “causo”: depois do filme terminado, graças ao generoso

auxílio financeiro do Conde de Noailles – mecenas à moda antiga – Buñuel conhece Man Ray,

fotógrafo americano que já integrava o grupo de Breton. Para discutir o conteúdo do filme os dois

marcam um encontro, ao qual Man Ray comparece na companhia do também surrealista Aragon.

Ambos concluem, após a conversa com o jovem cineasta, de que o Chien Andalou era, sem

dúvida, um filme merecedor do título “surrealista”.

A “consagração final” acontece após a première, quando, dado o aval de Breton, os dois

jovens espanhóis são formalmente admitidos pelo grupo surrealista.

67Id, p.177. Artaud e alguns surrealistas compareceram à primeira apresentação do filme de Dulac ao público em geral, que teve lugar no dia 9 de fevereiro de 1928, no Estúdio das Ursulinas. Eles interromperam a projeção com insultos à cineasta e tiveram de retirar-se. 68 Id.ibid. 69 BUÑUEL, Luís. Mon dernier soupir. Paris: Éditions Robert Laffont, 1982, p.126.

28

3.1 Sinopse

Prólogo70

(Fundo musical: tango argentino)

Sobre a tela negra, o primeiro letreiro: Era uma vez...

Um homem afia uma navalha. Ele o faz corriqueiramente, com um cigarro no canto dos lábios.

Vai para uma sacada, anoitece. O homem observa a lua com ar sonhador. Um fio de nuvem parte

ao meio a branca esfera. Alguém - provavelmente este mesmo personagem – corta ao meio, com

uma navalha, o olho de uma mulher que mira inexpressivamente o espectador. A mulher é

Simonne Mareuil, o homem é Buñuel.

(Novo fundo musical: trecho de Tristão e Isolda, de Wagner)

Segundo letreiro: Oito anos depois...

Um homem (Pierre Batcheff) anda passeia de bicicleta pelas ruas de Paris.71 Não segura o guidão,

usa por cima de um terno escuro, e adornando a cabeça, estranhos acessórios de linho branco,

semelhantes a uma roupa de noviça. Leva pendurada no pescoço uma caixinha de madeira que é

em seguida colocada em primeiro plano.

Dentro de um cômodo amplo a mesma mulher da seqüência inicial lê um livro. Levanta a cabeça,

parece pressentir a chegada do ciclista, que se aproxima do prédio. Sobressaltada, ela abandona

sobre um sofá o livro, que cai aberto em uma reprodução do quadro de Vermeer, A Rendilheira.

Ela vai rapidamente até a janela, recua, olha de novo, o homem não parece bem-vindo.

Um plano da rua mostra que ele cai – ou melhor, deixa-se cair – exatamente em frente ao

apartamento onde a mulher se encontra, olhando pela janela do terceiro andar. Fica inerte, a

cabeça colada ao meio-fio.

70 Esta é a forma como a sequência inicial, do corte do olho, é inserida no roteiro original do filme.

Disponível em: http://www.geocities.com/emruf1/andalou.html. 71 Consta no roteiro que “chove”, porém não se pode perceber na fita sinais de chuva.

29

A mulher aparece saindo do prédio, ajoelha-se junto ao homem segurando-lhe o rosto. Beija-lhe

apaixonadamente o nariz, os olhos, a boca.

A pequena caixa retangular aparece novamente em primeiro plano.

A mulher está agora num quarto. Abre a caixa, de onde tira uma gravata (que estava

cuidadosamente embrulhada)

As roupas que o ciclista usava estão cuidadosamente colocadas sobre a cama, como se um corpo

de homem as vestisse. A gravata é depositada pela mulher encima das calças.

A caixa também está colocada sobre a cama.

A mulher senta-se à beira da cama, olhando fixamente para o figurino. Parece concentrar-se,

esperando que algo aconteça.

A gravata muda de lugar, aparecendo um pouco mais acima, e de novo um pouco mais acima, já

perto do colarinho.

Ela olha para trás e vê o ciclista vestindo a roupa que usava por baixo dos acessórios em linho

branco – é um terno escuro, sóbrio. Ele olha com interesse para a própria mão esquerda.

Ela se aproxima, os dois observam atônitos para a palma da mão, cheia de formigas.

Primeiro plano dos pêlos de uma axila de mulher.

Um ouriço do mar.

Tomada de cima, vê-se uma silhueta no meio de uma rua asfaltada.

É uma jovem andrógina, cabelos bem curtos, roupas masculinas. Ela cutuca, com uma vareta, uma mão cortada, masculina, que jaz no chão72.

O plano se afasta, vê-se que há vários transeuntes á volta dela, formando um círculo de curiosos

que se acotovelam, tentando ver o que há no chão.

Vê-se mais de perto o rosto de alguns deles, reagem com horror.

Em meio ao tumulto, a jovem permanece pensativa, olhando fixamente para a mão cortada.

Primeiro plano de alguns espectadores da cena; vê-se dois homens e uma mulher entre eles.

Enquanto a expressão dos dois é de asco/espanto, ela parece observar com uma postura

triunfante, esboçando um sorriso maliciosos no canto dos lábios.

72 No roteiro original consta que as unhas estão pintadas, mas trata-se de um detalhe de difícil verificação, dada a qualidade da fita.

30

O casal do apartamento (Mareuil e Batcheff) observam a cena da janela, interessados.

Um dos policiais que tentam conter a pequena multidão que já se forma à volta da moça dirige-se

a ela, censurando-a. Muito sério no serviço do dever, faz um gesto de contingência.

Plano de cima. O policial cata a mão do chão e a coloca dentro daquela que era a caixinha

pendurada no pescoço do ciclista. para a moça agradece o oficial timidamente, com um leve

movimento de cabeça, quando ele lhe entrega a caixa nas mãos. Ela a segura firmemente contra o

peito, emocionada.

Ao ver a cena da janela, o ciclista parece bastante perturbado, atraído. Olha para o infinito, como

que num transe, a mulher faz o mesmo.

Plano de cima, os curiosos são rapidamente dispersados pela polícia.

A moça continua no mesmo lugar, segurando a caixinha. Está também num tipo de transe,

congelada entre os carros que passam com bastante velocidade.

O ciclista parece não poder avisá-la do perigo que corre, fica muito nervoso.

A moça é atropelada, logo alguns passantes se aproximam daquilo que já é, provavelmente, um

cadáver.

(Mudança de fundo musical: tango argentino)

O ciclista mexe a cabeça, perturbado, como se perguntasse à mulher: “Você viu?”, ou ainda: “Eu

não disse?” Ao que ela parece responder, seriamente: “Sim.”

Mudando bruscamente de expressão, o homem parece agora olhá-la com luxuriosas más

intenções.

Num movimento rápido agarra-lhe os seios, ao que ela resiste, dando passos para trás,

amedrontada.

Ele avança em sua direção, até que ela se vê encurralada contra a parede. Hesita, parece render-se

um pouco às mãos que lhe apalpam insistentemente.

Vê-se as mãos dele em primeiro plano, por sobre o vestido da mulher; logo em seguida o vestido

se transforma em uma superfície inanimada em formato de busto de mulher, talvez uma estátua.

31

E agora quem a apalpa é o mesmo homem, porém cego, um filete de sangue escorrendo-lhe pela

boca.

Novamente ela consegue desvencilhar-se, vai para outro canto da parede, de onde tira um

crucifixo. Aponta-o em direção ao homem, como que para afastá-lo.

Ele lhe olha fundo nos olhos, mas o ódio dá lugar a um pouco da dúvida. Entretanto a “besta

feroz” do início ressurge, e agora vê-se que ele carrega, com uma corda em cada uma das mãos,

dois pianos. Sobre cada um, uma carcaça sangrenta de jumento. Amarrados entre o homem e os

pianos há dois apavorados padres jesuítas (Dali e Miraville).

A mulher assiste à cena, horrorizada. Num impulso, foge pela porta à sua esquerda, sendo

seguida de perto pelo homem enraivecido. A tentar deixá-lo do lado de fora do outro quarto ela

prende-lhe a mão no vão da porta. Ele se contorce de dor. Sua palma da mão está novamente

cheia de formigas.

A mulher entra no mesmo cômodo de onde havia saído. Olha séria para a cama onde estavam

anteriormente as roupas do homem. Mas o que vê é o próprio, usando aquelas mesmas roupas.

Lê-se no rosto dele uma expressão do tipo: “Algo está para acontecer...”

Terceiro letreiro: Por volta das três da madrugada Um homem visto de costas chega à porta do apartamento, toca a campainha. Ele veste um terno

cinza claro.

Um corte mostra-nos aquilo que seria a campainha: dois braços, como que saindo da parede,

agitam um cocktail shaker73.

O homem ditado olha para a porta, assustado, mas não levanta da cama. A mulher abre a porta,

sumindo de cena assim que há o corte para o momento em que o homem do lado de fora entra no

quarto.

Percebe-se que o homem deitado e aquele que acaba de entrar são ambos representados por Pierre

Batcheff.

Pierre 2 grita com Pierre 1, gesticulando. Este se recusa inicialmente a levantar da cama, ao que

aquele ersponde agarrando-lhe pelo colarinho. Tira brutalmente os estranhos acessórios de linho

branco de Pierre 1; vai jogando tudo pela janela. Pierre 1 tenta salvar dentro do bolso o colarinho,

mas o outro o surpreende e também esta peça é jogada pela janela.

73 Consta no roteiro original que as mãos preparam um “martini”.

32

Como uma criança, Pierre é colocado de castigo pelo opressor, cabeça encostada à parede. Está

de pé, o outro manda que abra um pouco os braços e que ali permaneça. O opressor tira o chapéu.

Quarto letreiro: 16 anos antes

(Fundo musical: Wagner. Velocidade reduzida, mas não propriamente uma câmera lenta)

A expressão de Pierre 2 parece ter mudado totalmente; agora ele olha para o outro, emocionado.

Afasta-se dele em direção à câmera, as mãos juntas sobre o peito.

Sobre uma carteira escolar estão cuidadosamente arrumados uma caneta-tinteiro e dois livros. A

impressão que se tem é que alguém acabou de usá-los. Pierre 2 coloca as mãos do outro em forma

de crucifixo, entregando-lhe os livros cuidadosamente. Aquele parece arrependido, manso,

enquanto que este assume uma expressão raivosa, vingativa.

Pierre dirige-se para a porta de saída, mas recua após um chamado do outro, que está agora

virado para ele, um livro em cada mão. Um corte transforma os dois livros em pistolas.

Agora Pierre 1 é o agressor, armas em punho. O outro levanta as mãos, parece sofrer mas não

reage. O agressor atira várias vezes.

A vítima cai lenta e dramaticamente, porém um corte a faz cair não no cômodo onde estava, mas

num parque, à luz do dia. À medida que se aproxima do chão, o homem agarra-se a um dorso nu

de mulher. Uma das mãos está virada para ele, e treme, num último espasmo antes da morte.

Funcionários do parque encontram o corpo, tentam sentir sinais vitais. Um deles vai procurar

ajuda; fala com dois homens, um alto e outro baixo. O homem alto vai confiantemente junto com

ele até o local onde jaz o corpo. Com as mãos no bolso, ele ordena, impassível, que o corpo seja

tirado dali.

Como num cortejo, o corpo é levado. O homem pequeno vai à frente, o mais alto por último.

(Fundo musical: tango argentino do início)

a mulher entra em casa preocupada. Olha fixamente para a parede onde estava Pierre 2, ao ser

baleado. Há agora ali uma mariposa.

O plano se fecha um pouco na parte posterior do corpo da mariposa, onde se vê uma imagem em

forma de caveira. Fecha-se mais uma vez, até que fica muito nítida a forma de caveira.

A mulher olha para Pierre 1, que tapa subitamente a boca com uma mão. Ao retirará-la, sua boca

desapareceu.

33

Ela fica indignada, retoca energicamente o batom sobre os lábios.

Sobre a boca dele, aparecem pelos.

Ela levanta a axila, vê que seus pêlos foram parar na boca do homem.

Furiosa, ela coloca uma écharpe sobre os ombros, mostra a língua para Pierre1 e abre a porta da

saída. Ao sair, mostra a língua mais duas vezes para o homem que ficou do lado de dentro.

Ela sai numa praia. Há um homem em pé, olhando para o mar. Ela acena para ele, feliz, vai

correndo em sua direção. Diz ao homem algumas palavras, em pleno excitamento pelo encontro,

mas ele permanece frio. Vira o rosto para longe dela, mostra-lhe o relógio. Ao ver o relógio, ela

parece compreender; acalma-se.

Vira o rosto dele para si, sedutoramente, beija-o, ele acaba retribuindo as carícias.

Os dois vão andando lado a lado pela praia pedregosa; caminham rente à agua. Topam com

alguns detritos trazidos pelas ondas, vê-se que trata-se dos restos da roupa do ciclista (Pierre 1),

assim como da caixinha de madeira e da bicicleta.

Ela cata alguns farrapos do chão, parece mostrá-los ao homem com curiosidade desinteressada.

Ele os deixa de lado, com descaso.

Os dois continuam andando pela praia, afastando-se da câmera.

Quinto letreiro: Na primavera...

Os dois namorados aparecem enterrados na areia até a metade do corpo, num deserto sem fim. E

como consta no roteiro, “o casal está cegado, roupas em farrapos, devorados pelo sol e pelos

insetos”.

3.2 Análise temático-formal

Aproximadamente dois anos antes da realização deste filme, Pudovkin já havia

codificado as conquistas – principalmente russas e americanas – referentes à técnica

cinematográfica. No clássico “O roteiro e sua teoria”, ele ensina como se escreve um bom roteiro,

34

partindo do pressuposto de que o específico do cinema é a montagem, e que portanto o bom

cineasta é aquele que consegue organizar as várias seqüências de forma a dar coerência à

narrativa. Segundo ele

...a montagem significa, de fato, a direção deliberada e compulsória dos pensamentos e associações do espectador. Se a montagem for uma mera combinação descontrolada das várias partes, o espectador não entenderá (apreenderá) nada; ao passo que se ela for coordenada de acordo com o fluxo de eventos definitivamente selecionados, ou com uma linha conceitual, seja ele movimentado ou tranqüilo, a montagem conseguirá excitar ou tranqüilizar o espectador.74

Vale acrescentar que um dos capítulos desta mesma obra intitula-se “A montagem como

um instrumento para impressionar”.75

Ora, supondo para fins comparativos que o jovem cineasta Buñuel – responsável pela

realização técnica do filme – tivesse lido o manual de Pudovkin; ele não o segue, de certa forma

inverte-o.

Primeiro porque é praticamente impossível delimitar algo semelhante a “seqüências”

neste emaranhado de imagens coladas umas às outras que constitui o roteiro. As próprias elipses,

usualmente servindo como elo de ligação entre seqüências de tempo e espaço separadas, nada

vêm atestar senão sua própria arbitrariedade. Em segundo lugar, porque a noção surrealista de

montagem tem como artifício primordial a suprema, e não “mera combinação descontrolada das

várias partes”.

Poder-se-ia dizer que ao invés de montagem, no sentido clássico da palavra, tem-se a

aglutinação das imagens, que semelhante à mecânica freudiana do sonho, não obedece uma

ordem racionalmente determinada. Tal categoria, por sua vez, não está ali para orientar o

espectador, atrofiando-lhe a imaginação (diria o surrealista); ou para impressioná-lo,

aproveitando-se descaradamente de sua passiva posição de espectador em “transe” (ele diria

novamente).

Ou seja, a aglutinação jamais é empregada em O Cão Andaluz para fins dramáticos – os

quais eram vistos por Dali e Buñuel com maus olhos, como dito anteriormente. Na verdade ela

quebra qualquer dramaticidade sugerida na trama ao decepcionar as expectativas do espectador

(tomando como exemplo o caso das elipses), e também ao frustrar seu apetite de identificação

(dada a descontinuidade da ação).

74 PUDOVKIN, V. A técnica do cinema. In: XAVIER, op. Cit, p.62. 75 Id.ibid.

35

Se quisermos compreender a serviço de quê trabalha a aglutinação neste filme, podemos

recorrer novamente a um texto de Antonin Artaud, desta vez “O Cinema e a Abstração”. Ainda

tentando explicar o significado profundo de A Concha e o Clérigo, ele afirma que o tal filme

“...não conta uma história, mas desenvolve uma seqüência de estados de espírito que derivam uns

dos outros, como o pensamento deriva do pensamento (...) 76

Sugiro que é possível pensar as cenas aglutinadas não como unidades narrativas

organizadas em seqüências acabadas de ação (a “unidade coerente de espaço e tempo” à qual se

refere Béla Balázs77), mas como as inacabadas “seqüências de estado de espírito” de Artaud.

Há também outro aspecto do roteiro a ser comentado, qual seja a forma “anti-artística”

(lembrar os escritos de Dali) como são construídos os personagens. Não há complexidade

psicológica coerentemente construída, e as ações dos indivíduos não são moduladas por

causalidade. Não existe o normalmente inelutável “ele fez isto, logo, aconteceu aquilo”. Ou

ainda: “isso aconteceu, porque ele fez aquilo”.

À complexidade psicológica os autores do roteiro optam por personagens bastante ocos;

fazem referência a um lugar comum do melodrama mudo, satirizando–o. Ao mesmo tempo,

pregam uma boa peça no espectador, que após ser levado pela mão para dentro da trama, por

rostos familiares, descobre-se sozinho em um labirinto de surpresas desconcertantes.

Assim, ainda que se esteja olhando para o mesmo canalha mal-intencionado de todo

melodrama, e para a donzela indefesa que foge dele, eles apresentam-se sob uma luz

fantasmagórica, tipicamente onírica, proveniente desta outra dimensão onde não há tal coisa

como limitações de tempo e de espaço.

Se um personagem aparece ou desaparece, aquele que presencia a cena age

normalmente. E não há qualquer contradição no fato de que a mulher fuja de um cômodo e vá

parar no mesmo lugar de onde saiu. No mundo onde vivem, isso é normal; e a porta do quarto dá

mesmo, para a praia.

Tal potencial subversivo é surpreendente, já que não apóia seus métodos de

expressão sobre a ilusão ou a fantasia; ou sobre “a fácil escapatória dos sonhos”. Pois este outro

reproduz, e não representa a mecânica do sonho.

Em linhas gerais, estas são as particularidades da forma como é composto o roteiro.

Cabe agora analisar-lhe o conteúdo, perpassado por uma série de metáforas, símbolos e alegorias.

21 ARTAUD, op.cit, p. 112. 77 XAVIER, op.cit, p.44.

36

Comecemos, redundantemente, pelo início. A bem delimitada seqüência do início

é chamada de “prólogo”. Mas o que diabos é um prólogo? Procuro um dicionário qualquer; diz

ali que trata-se da “parte de um drama, representada por uma só personagem, antes da cena

propriamente dita (Do gr. prologos)”.78

Já o saudoso Microdicionário Aurélio da Língua Portuguesa chama o prólogo de

“prefácio”, e o prefácio de “discurso ou advertência que antecede obra escrita (...)”.

Descubrimos num primeiro momento que o prólogo pode ser visto como cena de um

personagem só. Se fosse este o caso do prólogo de O Cão Andaluz, este personagem seria...bem,

acredito que seria não Buñuel ou a mulher, mas o olho. Sim, o olho cortado ao qual muitas vezes

até os mais ignorantes em cinema tiveram o desprazer de serem apresentados. De minha parte,

confesso que O Cão Andaluz foi para mim, antes de qualquer coisa, “o filme do olho cortado”.

Assim, mostra-se para nós sob outra luz a segunda versão de prólogo que encontramos:

pois não se pode negar que se trata, sim, de uma advertência. Mas não no sentido de “Perigo:

cenas fortes a seguir.” – já que é justamente esta a cena mais forte. A advertência – que Buñuel

faz questão de apresentar, ele mesmo – vem comunicar que este filme não veio para distrair, mas

para provocar.

De outro lado, podemos enxergar esta referência ao vocabulário teatral clássico como

uma zombaria da narrativa coerentemente dividida, como no caso das elipses que aparecem ao

longo de todo o filme.

A trilha sonora que acompanha o prólogo é um trecho bastante leve e

despreocupado de um tango argentino, o que contrasta de forma bastante irônica com a

“barbárie” perpetrada na tela pela cisão do olho.79

A seguir tem-se o breve passeio de bicicleta pelas ruas de Paris, com o

protagonista masculino. Ele veste estranhos acessórios de linho branco, de aspecto feminino, que

lhe conferem um ar bastante bizarro. Logo após passear tranqüilamente, “cai de cabeça” no meio

fio – fato que atrai novamente a atenção do espectador.

Um corte mostra a protagonista feminina lendo – será? – um livro. Quando ela

misteriosamente percebe a presença do ciclista sem vê-lo, larga o livro aberto, talvez não por

acaso, aberto numa gravura de Vermeer intitulada A Rendilheira. Esta obra se encaixa na

78 FERNANDES, Francisco; LUFT, Celso Pedro; GUIMARÃES, E. Marques. Dicionário Brasileiro Globo. São Paulo: Globo, 1996; p.501.

37

produção do pintor como parte de uma série de quadros com intenção moralizante, tipicamente

seiscentistas. Vê-se na tela uma criada que entrega-se, compenetradamente, ao trabalho têxtil;

assim como deve ser, ela cumpre docilmente o seu papel social, e é este o exemplo que Vermeer

quer transmitir. Entretanto desconfio da sugestão que acabo de fazer, segundo a qual A

Rendilheira assumiria no filme um papel metafórico, no sentido de ser contraposta à protagonista,

mulher contemporânea.

Parece haver numa associação como esta um ranço de protesto barato e óbvio, um

engajamento político de cunho feminista que dificilmente passaria como produto da relação

Buñuel – Dali. Nesse sentido, não é absurdo pensar que pode tratar-se de uma arbitrariedade, ou

de uma private joke à qual não temos acesso.

Logo após, a personagem feminina aparece amparando o ciclista caído. Beija-lhe

apaixonadamente as faces, a boca, enfim, este clima passional é um exemplo da sátira do

melodrama à qual já me referi.

O ciclista leva uma caixinha de madeira pendurada no pescoço. Sua finalidade é

misteriosa, e alude ao gosto especificamente buñueliano pela inserção, na narrativa, de mistérios

nunca solucionados – e podemos apostar que ninguém, nem ele, tem um sentido pronto para dar à

tal caixinha. À medida que a trama avança, a caixinha aparece de novo, em situações de tempo e

espaço diferentes. Tal recorrência constitui outra “traquinagem” dos autores: a reaparição deste

objeto está sempre ali para sugerir ao espectador, invariavelmente condicionado a racionalizar,

que talvez, apenas talvez, haja uma “explicação” possível para os acontecimentos. Mas nós

sabemos que tal explicação não deve, pela própria vontade dos autores mencionada no início

deste capítulo, ser formulada. Eles parecem querer ensinar-nos – e Buñuel partiularmente, como

mostra o desenvolvimento de sua carreira - a ser sempre dignamente derrotados pelo mistério

inerente a todas as coisas.

Enfim, depois de ter encontrado o amante na rua, a mulher aparece no quarto,

arrumando suas roupas sobre a cama. Olha fixamente para o arranjo final, com força, como que

recorrendo a fins mágicos para realizar um desejo, tema constituiu sempre uma obssessão para os

surrealistas.

Neste ponto aparece pela primeira vez um recurso ilusionista: através do corte, a

gravata sobre a cama muda de lugar, duas vezes. Misteriosamente.

79 É bastante anedótica a história da produção da trilha sonora de O Cão Andaluz: ela foi realizada simultaneamente à primeira exibição do filme, Buñuel alternando em gramofone trechos do tango argentino e de Tristão e Isolda, de Wagner.

38

Logo após há outra cena fundamental; trata-se da mão com formigas do sonho de

Dali. Para compreender seu significado profundo poderíamos recorrer a um psicanalista, mas

como nosso objetivo se restringe à análise da narrativa, vale relembrar que trata-se tão somente

de uma alusão àquele sonho.

Neste ponto são inseridas duas cenas rápidas, uma da axila, a outra do ouriço do

mar. Pode-se recorrer à óbvia associação destes dois elementos por sua própria semelhança

visual. A meu ver, tais imagens parecem lembrar-nos que trata-se de um trabalho de amadores.

Elas não servem à intenção da narrativa, carecem de valor conotativo, enfim, dá vontade de

excluí-las levianamente do roteiro.

O que não pode ser dito a respeito destas próximas cenas, referentes à mão caída

ao chão. A força poética de tais imagens permanece para sempre intocada; trata-se de um dos

momentos mais inspirados do roteiro.

A jovem protagonista – cuja identidade é obscura – é bastante andrógina; usa

cabelos curtíssimos, não de acordo com o padrão feminino da época, e um longo sobretudo.

Apenas estes dados já sugerem isolamento e marginalidade, um tipo de heroísmo solitário que é

reforçado a partir do momento em que uma pequena multidão contrapõe-se à sua misteriosamente

íntima relação com a mão cortada – visivelmente uma mão masculina – à qual ela parece

emocionalmente apegada. Ela parece não notar a comoção dos numerosos transeuntes, em sua

maioria homens e vestidos formal e uniformemente, que param o curso normal de seus afazeres

para entregar-se ao morbidamente excitante choque da cena.

Tal imagem encerra um potencial de comoção do espectador que alude ao tema milenar

do amor abortado por uma coletividade que lhe é insensível; dá-se nesta cena a luta entre a paixão

de um indivíduo só –manifesto na figura da jovem – contra a cruel racionalidade do todo que lhe

é, necessariamente, hostil.

Hostilidade esta que se condensa na figura do oficial, representante de uma ordem social

que é estabelecida às custas da violência contra o indivíduo, e se vê perturbada e contestada pela

existência do insólito, do diferente.

Cumprindo formalmente seu dever, o oficial de polícia interrompe bruscamente o transe

da jovem e coloca seu objeto de afeto dentro da dita caixinha, que a moça segura contra o peito,

emocionada. À serviço da dramaticidade da cena está o fundo musical wagneriano.

A pequena multidão, tomada de cima, é dispersada rapidamente; dali a pouco será para

os passantes como se nada tivesse acontecido, embriagados pelo utilitário inerente a seu dia-a-

39

dia. Tal qual um pequeno grupo de formiguinhas dissidentes, porém cientes do dever, vão

tomando novamente o seu lugar no gigantesco formigueiro da cidade.

Mas a garota permanece ali, no meio da rua; esqueceu-se da realidade mortífera dos

carros que lhe passam ao lado de raspão, em alta velocidade.

Assistindo a cena da janela do apartamento do início, a mulher e o ciclista parecem

solidários ao drama da jovem; pressentem a tragédia iminente, agoniados.

A pequena e grotesca história de amor finda tragicamente – mais uma aberração

eliminada do calendário da normalidade. A moça é atropelada e vê-se de cima um pequeno novo,

e temporário, formigueiro à sua volta. Cena bastante amarga, marcada pelo emblema do

fracasso.

A narrativa toma então outro rumo, anunciado pela entrada de um trecho bastante

sensual do tango argentino.

O homem e a mulher, ainda chocados com a cena que acabam de presenciar,

permanecem à janela. Mas ele parece assumir, de repente, um estado de ânimo feroz e

ameaçador. Transforma-se no típico vilão do melodrama. Persegue a mulher apavorada pelo

quarto, quer agarrar-lhe os seios. Num instante em que ela cede, o homem aparece como cego,

apalpando algo com formato de busto de mulher. Novamente é mostrado um desejo que reside no

grotesco, de baixo de sua condição digna de pena, o cego almeja a beleza, a felicidade. O busto

de mulher pode ser visto aí como uma beleza ideal, contraposta à patética condição humana;

também podemos pensar que há nesta imagem uma submissão ao feminino que seria inerente ao

tateante elemento masculino.

A seguir há duas referências à religião; numa delas a mulher tenta inutilmente

proteger-se do agressor empunhando um crucifixo, logo após ele aparece puxando duas cordas

que trazem uma estranha procissão de dois pianos, duas carcaças de jumento e dois padres.

Sobre os burros podres, Buñuel conta que a idéia teve origem de passeios que fazia com

Dali, Lorca, Vicens e outros amigos da universidade. Eles gostavam de caminhar a pé pelas

serras rochosas e muito pobres que cercavam Madrid. Um dia passaram pelos ossários onde os

camponeses deixavam apodrecer seus animais mortos por doença ou acidente: “Estas carcaças,

cuja visão era surpreendente, provocaram no pequeno grupo toda uma série de piadas e

brincadeiras. Estas private jokes passaram em seguida para o filme e para a pintura...”80

80 BUNUEL, L. Viridiana, p.21.

40

A mulher desaparece de cena; tem-se agora o conflito entre dois homens diferentes,

inetrpretados pelo mesmo ator (procedimento atingido com um dublê). A campainha em forma de

cocktail shaker que é tocada quando o segundo homem chega é uma sátira do filme mudo em sua

fórmula tradicional, que mostrava sempre a campainha em sua concritude, devido à falta de som.

Uma imagem curiosa desta seqüência é aquela em que o recém-chegado coloca o outro

de castigo, com dois livros nas mãos. Estes viram pistolas com as quais este homem mata o

repressor. A cena da morte assume mais intensidade dramática com Wagner; outro recurso usado

para isso é a câmera lenta. Tão lenta que o homem começa a cair no quarto, e chega ao chão

numa locação totalmente diferente, um parque. No momento da morte, ele agarra-se àquele que

foi seu maior desejo – desejo de todos os homens. Trata-se da beleza ideal, representada pelo

dorso nu de uma mulher que desaparece, a seu toque. A morte é mostrada aí em sua tragicidade

profunda, o derradeiro não ao desejo humano de felicidade, de fuga à decrepitude.

A mulher reaparece, no apartamento. A mariposa na parede – outra referência bastante

solta da intenção da narrativa – tem nas costas um desenho que imita um crânio humano.

Agora o ciclista reaparece e o conflito homem mulher se dá mediante o conflito de

símbolos fundadores. Uma discussão sem palavras, instintiva. Por exemplo, ele tapa a boca e esta

desaparece; a mulher reage ao “insulto” retocando seu batom. Depois os pêlos da axila dela vão

parar onde estava a boca dele. Furiosa, ela mostra primitivamente a língua, três vezes, e abre a

porta do quarto, que dá para uma praia.

Outro homem a espera, os dois parecem muito apaixonados. A praia é bastante rochosa,

eles caminham pelas pedras até toparem com os restos da roupa do ciclista – a caixinha inclusive

– misteriosamente trazidos pelo mar. Os dois não dão muita importância, seguem caminhando.

O que poderia ser um final feliz, para a tranqüilidade do espectador médio – os dois

afastando-se da câmera lentamente, abraçados – dá lugar a outra elipse, extremamente sarcástica:

“Na primavera...”

Mais uma vez a paixão é frustrada pela morte: estão enterrados na areia até a metade do

corpo, e como se não bastasse consta no roteiro que estão “secos pelo sol e devorados pelos

insetos.”

Poucos filmes da atualidade podem vangloriar-se de um tal poder de choque.

Como conclusão deste capítulo, ressalto a forma como os escritos de Bretn, assim como

de Dali e Buñuel, encontram-se "ilustrados" pela obra fílmica. A correspondência entre filme e

textos teóricos, nesse sentido, é baseada numa relação de legitimação mútua, refernte ao uso de

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procedimentos tais como a trangressão das leis de espaço/tempo – alusao fundamental ã mecânica

do sonho; assim como procedimentos inerentes ao conteúdo, mais referentes à crítica à moral

burguesa e o naturalismo estético que ajuda a reproduzir esta mesma moral.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Cão Andaluz representa um marco na carreira de Luís Buñuel como cineasta e

propagador de idéias; é sua obra inaugural e um de seus trabalhos mais cultuados por público e

crítica.

Mas o que este trabalho procurou destacar é o significado mais amplo deste filme, no

contexto do cinema de vanguarda e do surrealismo, neste caso instrumento de luta a favor de um

grupo de homens que se colocou sobre um edifício de idéias formuladas pela vida, como

acreditavam, e contra a sociedade.

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O Cão Andaluz é portanto parte de um projeto que constituiu-se assim, ancorado sobre

uma utopia de libertação para toda a humanidade, cuja megalomania de propósitos, no entanto,

não lhe ofusca a pertinência quando inserida em seu tempo.

Naquele contexto o cinema lhes pareceu um bom meio para a divulgação de tal utopia;

tratava-se de uma arte popular por excelência – como bem lembrara Guillaume Apollinaire – uma

via privilegiada para aquilo que desejavam os surrealistas: a interpenetração da arte com a vida.

Encaixavam-se nisto perfeitamente as pretensões de Buñuel e Dali, que recusaram em

seus textos um cinema “de arte” hermético e inútil, que acreditavam ser obra de esnobes, ou

como preferiam chamá-los, burgueses.

O Cão Andaluz não fez escola.

Já em 27, uma parte do grupo de Breton filia-se ao grupo comunista, o que provocaria

uma série de cisões – como foi o caso da saída de Antonin Artaud, por exemplo.

Fruto de tais discordâncias fundamentais, já que de ordem ideológica, o movimento foi-

se concentrando em torno de um homem só, André Breton.

Quanto a Buñuel, ele deixaria o grupo logo após a realização de L’ Âge D´Or,

insatisfeito com o fato de que as afinidades do grupo com o marxismo se fortaleciam cada vez

mais.

Junte-se a isso o fato de que em meio à tentativa isolada de libertação do espectador,

levada a cabo pelo Cão Andaluz, descortina-se um projeto de muito maior amplitude , e também

mais bem-sucedido porque baseado na obviedade e no entorpecimento dos sentidos: trata-se do

cinema comercial, etiqueta de subprodutos de uma técnica que ousou querer-se arte, mas teve de

contentar-se com o posto de entretenimento banal.

Tal cruel cretinização do espectador seria muito lamentada por aqueles que em 20

acreditavam na construção de um cinema outro, edificante mais do que degradante, ao contrário

do que se diria.

Assim, muitos anos depois dos idílicos tempos do surrealismo, Buñuel lamentaria o

panorama do cinema de então – que é ainda o modelo vigente em nossos dias:

O mistério, elemento essencial de qualquer obra de arte, está em geral ausente dos filmes. Autores, diretores e produtores, com sacrifício, conservam nossa paz, deixando hermeticamente fechada a janela que leva ao mundo libertador da poesia. Preferem (...) repetir mil vezes o mesmo drama ou fazer-nos esquecer as duas horas diárias de trabalho. E tudo isto naturalmente sancionado pela moralidade habitual (...)

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Entretanto a história que quis contar neste trabalho não termina em lamento: pois se é

verdade que a fugacidade é o preço do brilho da centelha, o breve encontro entre Buñuel, Dali e

os surrealistas conserva seu encanto, descansa à espera daqueles que o souberem colher. Este é o

caso de filmes como Quero ser John Malkovich, de Spike Jonze, e das obras de David Lynch, em

especial Estrada Perdida e Cidade dos Sonhos, bastante recente.

Em todos estes filmes a existência se insinua como coisa sempre misteriosa e inacabada,

povoada de rumos surpreendentes cujo vislumbre nos é dado pelo contínuo e revelador poder da

imagem, colocada em altar sagrado pelos surrealistas.

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