Suplemento PO 131

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SUPLEMENTO SET. /OUT. 2011 Nº 131 Editada inicialmente nos EUA em 1999, a História da União Soviética, de Peter Kenez (Edições 70), o livro foi pu- blicado em Portugal em 2007, tendo sido reposto pela FNAC este Verão. Como é escrito a pensar no grande público, não é muito profundo nem se detém na análise política e ideológica. É principalmente uma descrição das circunstâncias que levaram à tomada do poder pelos bol- cheviques e das transformações por que passou a URSS até à sua implosão. O resultado é um trabalho que respeita os factos e não confunde relato histórico com propaganda anticomunis- ta. Lenine, Trotsky, Estaline, os bolcheviques em geral, não são tratados como criminosos, mas como revolucionários que, che- gados ao poder, se viram im- possibilitados de realizar o projecto igualitário a que se propunham (o autor refere o insucesso da revolução de 1917 como resultado da derrota da revolução alemã, do atraso económico e social de uma Rús- sia recente e escassamente in- dustrializada e com um enorme campesinato, da mortandade de centenas de milhões de so- viéticos provocada pela guerra mundial, guerra civil, epide- mias, fome generalizada, liquidação durante a guerra civil da classe operária educada pelas décadas de luta revolucionária que culminaram na revolução). E que por isso se “viram obri- gados a improvisar”. Mas a verdade é que aqui e ali o verniz estala e surgem expressões que traem a “imparcialidade” do historiador. A sua formação liberal moderada transparece nas explicações políticas e sociais que faz de alguns acontecimentos. O MELHOR… Como para o autor o modo de produção capitalista e a democracia a ele associada estão para além das ideologias, as políticas postas em marcha pelos bolchevistas, estalinistas e pós-estalinistas são ajuizados principalmente pelos resultados e eficácia na satisfação do bem-estar e das liberdades, tendo como padrão os modelos dos países ocidentais mais desenvol- vidos. Por isso nas suas descrições e análises umas vezes igno- ra, noutras dá pouca atenção, às tentativas do poder soviético para substituir o modo de produção capitalista pelo socialista, eliminar as desigualdades sociais e a exploração do homem pelo homem. Considera a revolução “um acidente de per- curso”, simpatiza com a NEP e com as relativas liberdades económica, política e cultural proporcionadas por aquela abertura ao capitalismo e à iniciativa privada nos anos 20, a Comentários à História da União Soviética de Peter Kenez que chama a era de ouro da revolução, em contraposição ao “utopismo” dos primeiros meses de revolução e ao “co- munismo de guerra”, à fossili- zação e aos métodos ditato- riais que se seguiram de Esta- line a Gorbatchov. O autor, ao estilo acadé- mico, adopta uma aparente neutralidade ideológica. O que não o impede de fazer análises e observações acertadas. Parti- cularmente interessante é o es- paço que dá à questão campo- nesa e agrícola, sempre pre- sente ao longo do livro, co- brindo todos os períodos da história da URSS. Tal atenção é plenamente justificada, dado o peso social esmagador do pequeno campesinato e dos camponeses sem terra que constituíam mais de 70% da população russa, condicionan- do assim de forma determinan- te a evolução da revolução e da União Soviética. O autor consi- dera que, face ao atraso da Rússia, foi o campesinato quem pagou a industrialização da URSS e que foi à sua custa que esta fez a acumulação primitiva de capital. Sem o seu apoio, mesmo que relutante, os comu- nistas não teriam conseguido derrotar os “brancos” nem os nazis e manter-se no poder durante décadas. Igualmente acer- tada a observação de que, a partir dos anos 30, o marxismo tenha começado a ser substituído como ideologia do partido pelo pragmatismo e uma mescla de nacionalismo com ele- mentos marxistas deturpados. Dá-se o abandono do interna- cionalismo e do incentivo às revoluções operárias, privilegiam- -se os entendimentos com as pequena e média burguesias, alimenta-se a ideia de que é possível construir o socialismo num só país, que no socialismo cresce a resistência da bur- guesia e com ela a necessidade de reforçar o Estado e a re- pressão, que a igualdade é uma ideia pequeno-burguesa (Dis- curso de Estaline em Junho de 31, “revolução cultural”, rea- valiação da história da Rússia e recuperação do heróis nacio- nais do império czarista, “grande guerra patriótica”, etc.). Evolução que é acompanhada pelo definhamento teórico e cultural, crescimento do poder dos burocratas e da polícia política, dos métodos ditatoriais e do culto de Estaline. … E O PIOR À medida que avançamos no tempo, a neutralidade do historiador vai cedendo à sua ideologia. Isso é particularmente notório no que se refere à guerra fria, diante da qual a “objectividade” branqueia o papel do Ocidente e em particular dos EUA – “os americanos não podiam ter consentido de ânimo ANTÓNIO BARATA

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SET.

/OUT.

2011

Nº 131

Editada inicialmente nosEUA em 1999, a História daUnião Soviética, de Peter Kenez(Edições 70), o livro foi pu-blicado em Portugal em 2007,tendo sido reposto pela FNACeste Verão. Como é escrito apensar no grande público, não émuito profundo nem se detémna análise política e ideológica. Éprincipalmente uma descriçãodas circunstâncias que levaram àtomada do poder pelos bol-cheviques e das transformaçõespor que passou a URSS até àsua implosão. O resultado é umtrabalho que respeita os factose não confunde relato históricocom propaganda anticomunis-ta. Lenine, Trotsky, Estaline, osbolcheviques em geral, não sãotratados como criminosos, mascomo revolucionários que, che-gados ao poder, se viram im-possibilitados de realizar oprojecto igualitário a que sepropunham (o autor refere oinsucesso da revolução de 1917como resultado da derrota darevolução alemã, do atrasoeconómico e social de uma Rús-sia recente e escassamente in-dustrializada e com um enormecampesinato, da mortandade de centenas de milhões de so-viéticos provocada pela guerra mundial, guerra civil, epide-mias, fome generalizada, liquidação durante a guerra civil daclasse operária educada pelas décadas de luta revolucionáriaque culminaram na revolução). E que por isso se “viram obri-gados a improvisar”.

Mas a verdade é que aqui e ali o verniz estala e surgemexpressões que traem a “imparcialidade” do historiador. Asua formação liberal moderada transparece nas explicaçõespolíticas e sociais que faz de alguns acontecimentos.

O MELHOR…

Como para o autor o modo de produção capitalista e ademocracia a ele associada estão para além das ideologias, aspolíticas postas em marcha pelos bolchevistas, estalinistas epós-estalinistas são ajuizados principalmente pelos resultadose eficácia na satisfação do bem-estar e das liberdades, tendocomo padrão os modelos dos países ocidentais mais desenvol-vidos. Por isso nas suas descrições e análises umas vezes igno-ra, noutras dá pouca atenção, às tentativas do poder soviéticopara substituir o modo de produção capitalista pelo socialista,eliminar as desigualdades sociais e a exploração do homempelo homem. Considera a revolução “um acidente de per-curso”, simpatiza com a NEP e com as relativas liberdadeseconómica, política e cultural proporcionadas por aquelaabertura ao capitalismo e à iniciativa privada nos anos 20, a

Comentários à História da União Soviética

de Peter Kenez

que chama a era de ouro darevolução, em contraposiçãoao “utopismo” dos primeirosmeses de revolução e ao “co-munismo de guerra”, à fossili-zação e aos métodos ditato-riais que se seguiram de Esta-line a Gorbatchov.

O autor, ao estilo acadé-mico, adopta uma aparenteneutralidade ideológica. O quenão o impede de fazer análisese observações acertadas. Parti-cularmente interessante é o es-paço que dá à questão campo-nesa e agrícola, sempre pre-sente ao longo do livro, co-brindo todos os períodos dahistória da URSS. Tal atençãoé plenamente justificada, dadoo peso social esmagador dopequeno campesinato e doscamponeses sem terra queconstituíam mais de 70% dapopulação russa, condicionan-do assim de forma determinan-te a evolução da revolução e daUnião Soviética. O autor consi-dera que, face ao atraso daRússia, foi o campesinato quempagou a industrialização daURSS e que foi à sua custa queesta fez a acumulação primitiva

de capital. Sem o seu apoio, mesmo que relutante, os comu-nistas não teriam conseguido derrotar os “brancos” nem osnazis e manter-se no poder durante décadas. Igualmente acer-tada a observação de que, a partir dos anos 30, o marxismotenha começado a ser substituído como ideologia do partidopelo pragmatismo e uma mescla de nacionalismo com ele-mentos marxistas deturpados. Dá-se o abandono do interna-cionalismo e do incentivo às revoluções operárias, privilegiam--se os entendimentos com as pequena e média burguesias,alimenta-se a ideia de que é possível construir o socialismonum só país, que no socialismo cresce a resistência da bur-guesia e com ela a necessidade de reforçar o Estado e a re-pressão, que a igualdade é uma ideia pequeno-burguesa (Dis-curso de Estaline em Junho de 31, “revolução cultural”, rea-valiação da história da Rússia e recuperação do heróis nacio-nais do império czarista, “grande guerra patriótica”, etc.).Evolução que é acompanhada pelo definhamento teórico ecultural, crescimento do poder dos burocratas e da políciapolítica, dos métodos ditatoriais e do culto de Estaline.

… E O PIOR

À medida que avançamos no tempo, a neutralidade dohistoriador vai cedendo à sua ideologia. Isso é particularmentenotório no que se refere à guerra fria, diante da qual a“objectividade” branqueia o papel do Ocidente e em particulardos EUA – “os americanos não podiam ter consentido de ânimo

ANTÓNIO BARATA

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leve o comportamento soviético na Europade Leste. Tendo em conta a natureza de umapolítica externa controlada de forma mais oumenos democrática… os políticos teriamdificuldade em explicar aos seus eleitores que,se por um lado a Rússia estalinista era umaditadura sanguinária, por outro não repre-sentava uma ameaça aos interesses vitaisamericanos”.

É ridícula esta forma aparentementeingénua e cândida de explicar o envolvimen-to norte-americano num confronto por siinspirado e comandado, no qual foi referên-cia e principal protagonista, que dividiu omundo em dois blocos durante toda a se-gunda metade do século passado e por maisde uma vez colocou o mundo à beira daguerra nuclear, espalhando a morte e a des-truição por todo o planeta com o argumentodo “escrutínio” dos eleitores. É uma formasonsa de dizer que os EUA foram empurra-dos pelas circunstâncias, que os aliados nãoestavam alarmados com a possibilidade deos comunistas – principais animadores dosmovimentos de resistência e das guerrilhasna Europa ocupada e noutras partes domundo – ocuparem o vazio deixado pelaqueda dos governos fantoches, principal-mente na França, Itália e Balcãs, onde a der-rota dos nazis abriu portas a levantamentospopulares e alimentou sonhos em largossectores populares de que a revolução socialse seguiria à libertação; de “ignorar” que foio medo desse cenário que levou Roosevelte Churchill a “impor” a Estaline, em Ialta,uma nova ordem internacional, comprome-tendo a União Soviética com uma repartiçãode zonas de influência. À URSS reconhecia--se o direito de tutelar os países de Lesteque tinha ocupado (teve de retirar da Áus-tria) e os Balcãs (à excepção da Grécia), fi-cando o resto sob influência anglo-america-na. Foi nesta conferência ditada pelo alarme

ocidental para conter a “ameaça comunista”que nasceu a guerra fria. E paralelamente acorrida aos armamentos nucleares e conven-cionais que esgotou e levou ao colapso eco-nómico da URSS em 40 anos.

Para melhor fazer passar o seu ponto devista, o autor adopta uma atitude centrista.Distancia-se tanto dos analistas “que acre-ditavam que os dirigentes soviéticos tinhamum plano para a conquista do mundo emque a incorporação da Europa de Leste eraapenas o primeiro passo”, como dos queentendem que a guerra fria foi uma “conse-quência das políticas agressivas do Ocidente,em particular dos Estados Unidos”. Chega-do aqui, a objectividade sofre nova entorse.Os críticos dos EUA são convenientementereduzidos a “uma nova geração de historia-dores (que) iniciou o revisionismo” surgidanos anos 70, nos EUA. E são acusados de“pouca atenção prestarem à União Sovié-tica”, de não “se mostrarem particularmenteinteressados na cultura política soviética”,de “não dominar completamente a opiniãoocidental”. E em jeito de absolvição, que “osarquivos americanos estavam disponíveis,mas não os arquivos soviéticos”. Conclusão,os que responsabilizam o Ocidente e os EUAsão ignorantes, não sabem do que falam.

“A eclosão da guerra fria estava predesti-nada”. Ou seja, foi uma fatalidade porqueos governantes dos EUA não conseguiremexplicar aos seus governados que a URSSnão constituía uma ameaça aos interessesamericanos, e “os dirigentes comunistas per-ceberam, correctamente, que mais contactoscom o Ocidente capitalista eram inerente-mente subversivos… Era considerado fun-damental isolar os povos soviéticos do restodo mundo… Os estalinistas descreviam oseu país como estando rodeado de inimigosimplacáveis. A guerra fria servia os seus in-tentos: tornou-se um instrumento de mobi-

lização que justificava as medidas mais se-veras”.

É verdade que estes pontos de vista mol-davam a política e a ideologia da URSS. Oproblema é que eles são o resultado da guerrafria e não a sua causa. Argumentar desta ma-neira é colocar as coisas de pernas para o ar.Porque se sentia ameaçada e, como diz oautor “desconfiada” – e tinha boas razõespara isso, dada a hostilidade das democraciaspara com a URSS: pacto de Munique, aber-tura da segunda frente só quando se tornouevidente que os soviéticos iam vencer os ale-mães e libertar a Europa) a União Soviéticaprocurava os compromissos e não o con-fronto, ordenava aos partidos comunistascontenção, entendimento com as suas bur-guesias e nada de revoluções. Para o Ociden-te, pelo contrário, a perspectiva era outra,nada de compromissos e varrer das cabeçasdas pessoas qualquer ideia de revoluçãosocial. Por isso criou o Plano Marshal e acei-tou que os trabalhadores tivessem melhoressalários e condições de vida, segurança so-cial, férias pagas, direitos sindicais e políticos,combinando e Estado providência com adiabolização do comunismo e a perseguiçãoaos comunistas. A criação da NATO, a ins-talação de bases militares americanas e demísseis nucleares e gigantescos meios deguerra por toda a Europa central cercandoo bloco soviético não foram uma invenção.Tal como o não foram o maccarthismo, ainstauração de ditaduras sanguinárias naAmérica Central e do Sul, África, Ásia, Gré-cia e Turquia, o apoio a Salazar e Franco, aoapartheid. Nem o afogamento em sangue dasrevoluções no Congo, Nicarágua, El Salva-dor, Vietname e Camboja, Angola, Etiópia,ou golpes preventivos e genocídas na Indo-nésia, Filipinas, Chile e Argentina, entreoutros de uma extensa lista.

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Durante muitas décadasa nova economia soviéticaapresentou-se como vanta-josa, a ponto de a URSS seter transformado na segundapotência mundial, ter enfren-tado com os seus própriosmeios materiais a agressãonazi, ter elevado o nível devida das massas, ter criadouma indústria pesada (agorahá quem venha dizer que issonão era a prioridade, mas senão o fizessem tinham sidoesmagados), se ter tornadoauto-suficiente e concorren-cial em relação ao imperia-lismo ocidental. Houve umperíodo inclusive em que osindicadores socioeconó-micos quase se aproxima-vam dos dos EUA.

Quando se fala da vanta-gem objectiva do motor ca-pitalista em relação a essenovo processo económico,esquece-se de a equacionarno tempo: o capitalismo játinha nascido havia cento etal anos, já estava na sua fasemadura, imperialista, quan-do as primeiras tentativas danova economia dita socialistaainda não conseguiam sair dafase titubeante. É verdadeque não houve grandes avan-ços nas relações de produ-ção, mas de qualquer maneiraforam ensaiadas novas for-mas que coexistiram durante muito tempoumas com as outras e, apesar de todo o terrore as calamidades que lhes foram acontecen-do, as massas não trocariam esse novo siste-ma por nenhum outro. O estalinismo foi oque foi, sabemos nós hoje, mas durante muitotempo a URSS foi olhada por muitos mi-lhões de trabalhadores em todo o mundocomo a grande esperança da humanidade,justamente por causa das conquistas sociaise económicas.

Já se sabe qual o preço e pode-se e deve--se questionar o processo em si, desde o pe-ríodo declinante, quando o edifício ameaçoudesabar e as fendas começaram a abrir-se.Ora ainda há 30 anos ou 40 anos, já muitoincapaz de se suster de pé, o regime podiaainda gabar-se de ter proporcionado aos ci-dadãos uma série de benefícios que em ne-nhum outro país seriam possíveis. Faltarammuitas coisas, essencialmente no plano políti-co, por razões internas e externas. Acima detudo, o sonho dos produtores livres associa-

Uma nova economia?

ANA BARRADAS

dos ficou por cumprir. Mas foi uma experiên-cia riquíssima, cujas ondas de choque aindahoje se propagam.

A ilusão sobre a superioridade do capita-lismo de Estado (ainda de certo modo vi-gente em Cuba e Venezuela) tinha algumarazão de ser: é que o inegável desenvolvimentodas forças produtivas no período áureo daURSS (basta ver os indicadores estatísticos)parecia projectar uma sociedade de tipo novoque já não admitiria recuo para o capitalismoclássico. Estavam todos enganados, mas averdade é que essa ilusão surgiu da força eenergia daquela coisa fantástica que estava aacontecer e que nunca se vira na história.

TRANSIÇÃO PARA UM NOVOMODO DE PRODUÇÃO

O capitalismo contém em si os germesdo socialismo, mas este só se pode impor secombater – pelo tempo que for preciso –todos os vestígios do sistema antigo, que não

cai de podre: tem de serdesalojado à força, pela luta epela violência. E depois dederrotado, procura refazer-se,combater o novo, ir à luta.

Duas ideias (do Anti--Dühring) mostram comotemos mesmo de obrigato-riamente lidar com a violên-cia, queiramos ou não, e co-mo ela é desejável para se al-cançarem certos fins:

“Sabemos que a violênciadesempenha também, na história,um papel muito diferente, umpapel revolucionário; sabemosque ela é, também, para usar umaexpressão de Marx, a parteirade toda a sociedade antiga, quetraz nas suas entranhas outranova: que é ela um instrumentopor meio do qual se torna efectivaa dinâmica social, fazendo saltarem pedaços as formas políticasfossilizadas e mortas.

(...) [Dühring] Reconheceunicamente, entre suspiros e ge-midos, que, para derrubar o regi-me de exploração, não há outroremédio senão usar a violência:desgraçadamente, acrescenta, poiso emprego da violência desmora-liza sempre a quem a utiliza. Ediz-nos essas palavras, esquecen-do-se do elevado impulso moral eespiritual que emana de qualquerrevolução triunfante!”

Uma saída “doce”, umatransição pacífica, uma pas-

sagem do sólido ao gasoso, uma evoluçãonatural…nada disso existe na revolução pro-letária. Nem existiu em nenhuma passagemde modo de produção. O feudalismo conti-nha os germes da formação da burguesia eda sua superiorização, mas foram precisosmais de duzentos anos de conflitos, insurrei-ções e guerras para a nova classe se impor.

 No caso da transição para o socialismo,uma suposta “naturalização” da nova socie-dade a partir do capitalismo é contraditóriada noção de ditadura do proletariado, esseexercício de poder que precisa de se materia-lizar justamente por causa da oposição queas outras classes lhe moverão. Espera-se quenovos ensaios históricos de insurreição so-cialista tomarão a devida lição da história,no sentido em que essa ditadura não poderáser de um só partido, uma clique, uma novaburguesia ou qualquer outra tara do género.Terá de ser a ditadura democrática dos tra-balhadores, exercida a partir de baixo e empleno controlo do poder. E também não po-

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derá acontecer num só país, terá de ter pelomenos uma expressão regional alargada e so-çobrará se não alastrar rapidamente a todaa parte. Em 1847, Engels afirmou que “...arevolução comunista não será uma revolução pura-mente nacional (...). Será uma revolução mundial,e deverá, por consequência, ter um terreno mun-dial” e Marx disse que uma revolução numpaís atrasado pode ser a chave para a revolu-ção nos mais avançados.

LEI DO VALOR

A questão do funcionamento da lei dovalor na URSS dos anos 30 está discutidapor Richard Wolff e Stephen Resnick em Teo-ria de Classes e História: Capitalismo e Comunismona URSS, editada em português pela editoraCampo da Comunicação em 2004. Pese em-bora toda a aturada e reveladora investiga-ção em que se baseou, tem contudo um gran-de defeito. O olhar dos autores sobre o fenó-meno é exageradamente economicista, abor-da menos do que devia o lado político e nãoo estudaram numa perspectiva marxista. Ossoviéticos sabiam perfeitamente como fun-cionava a lei do valor. A grande descoberta queestes professores americanos fazem (em 2002)de que não se construiu um verdadeiro sistemacomunista e que a grande contradição político-ideológica do século XX foi entre o capitalismode Estado e o capitalismo privado já tinhasido enunciada mil vezes desde os anos 60 (emesmo antes) por muitos autores e, desdeessa data longínqua, adoptada pelos críticos àesquerda do regime soviético, a vários níveis eem muitos diapasões. O mérito da obra é quedemonstra, apoiada em dados recentementepostos à disposição do público, que a lei dovalor nunca foi abandonada na Rússia e que,portanto, nunca houve socialismo de verdade.

O que não está tão bem debatido é o factode o fracasso retumbante do Grande Salto sera antecâmara da contra-revolução de Deng XiaoPing. E aqui passamos para outro país e outrarevolução dita socialista, em que tambémnunca foi abolida a extracção de mais-valia.Foi assim que, passados 30 e tal anos, os revi-

sionistas chineses tiveram a ideia peregrinade inventar a nova doutrina da “etapa primá-ria do socialismo”, que é a economia de mer-cado que estão a praticar. E não lhe marca-ram um fim previsível: “Ela perdurará pormais de uma centena de anos”, dizem. Assimdão azo a que se formem e fortaleçam classesobjectivamente hostis ao socialismo. Estasvão criando paulatinamente uma sociedadeque, pelo seu grau de exploração e o respecti-vo cortejo de misérias, faz corar de inveja ocapitalismo ocidental.

Convém aqui recordar que  Bukharine, naaltura um dos dirigentes destacados da IC,considerava, como Estaline, que na China arevolução tinha de ser burguesa e não proletá-ria: “O quarto traço da revolução chinesa, noseu estado actual, é que ainda é uma revoluçãoburguesa, o que não significa que a sua força motrizseja a burguesia. A revolução chinesa, na sua faseactual, é uma revolução burguesa democrática, no sen-tido de que, no interior do país, está dirigida contra assobrevivências do feudalismo, contra os entraves daIdade Média que dificultavam e dificultam o progressoeconómico da China. Está dirigida contra os restosdo feudalismo, na pessoa dos grandes governantes mili-tares, que formam um bloco com o imperialismo,forma superior e ao mesmo tempo forma da decadênciado capitalismo.” Por conseguinte, como envia-do da IC, recomendou ao Partido Comunistachinês que se subordinasse ao Kuomin-tang. Chiang Kai-shek chegou a ser designado“membro de honra da Internacional”. Estaaliança saldou-se, como se sabe, numa san-grenta derrota com milhares de vítimas.

Quando Bukharine esteve por um breveperíodo na China como emissário da IC, tra-varam-se grandes discussões entre os comu-nistas chineses e ele e acabaram quase incom-patibilizados. O enviado que se lhe seguiunão se saiu melhor. Depois do massacre deXangai, no Outono de 1927, o PC Chinêscortou com a Internacional e resolveu seguiro seu caminho autonomamente. Se tivessemseguido os conselhos dos russos, nem porum segundo se teriam mantido no poder eo capitalismo à Kuomintang teria dominadotoda a China.

TRANSIÇÃO PARA ONDE?

Todo o processo de “transição” estevelonge de ser linear: foi extremamente com-plexo, tortuoso e disputado. Todas as perso-nagens de topo, a começar por Trotsky, Stali-ne e Bukharine, aliaram-se e inimizaram-seentre si em geometrias variáveis ao longodos anos de fogo que se seguiram à doençafinal de Lenine e até ao início dos processosde Moscovo. Hoje as manobras e reviravol-tas de cada um deles seriam apelidadas deoportunismo descarado, mas eram normaisnaquelas condições de exacerbamento da lutaentre facções porque o que estava em jogoera, nada mais, nada menos, a condução ideo-lógica e prática da revolução, o poder e alinha geral.

O discurso antifascista de Bukharine emParis em 1936 – quando a França e a Inglater-ra se preparavam para não apoiar os republi-canos em Espanha e boicotar o auxílio sovié-tico – foi emblemático da ideia da políticade unidade antifascista que, como sabemos,abriu após o 7º Congresso uma longa faseainda hoje prevalecente de abandono dasconsignas do bolchevismo mais agrestes aosolhos dos aliados da pequena-burguesia euma “dulcificação” da táctica e política dealianças dos comunistas, sempre no engodode conquistar à direita, sem se darem contaque assim perdem a hegemonia (ou não seimportando com perdê-la) e o rumo de es-querda.

Bukharine foi reabilitado em 1988, notempo de Gorbatchov, que se inspirou nelepara a perestroika. Já antes o XXº Congressodo PCUS foi um regresso envergonhado aobukharinismo e às ideias da NEP. O con-gresso não assumiu isto claramente por causada sua natureza centrista. Mas os resultadosdesastrosos da política do tempo de Crut-chov dão-nos boas pistas sobre o que teriaacontecido 30 e tal anos antes se se aplicas-sem as ideias bukharinistas.

Reveste um grande interesse a actividadedo PCP após o 1º Congresso, sob a direcçãopolítica e intelectual de José Carlos Rates esofrendo o impulso da “bolchevização” tra-zida por Jules Humbert-Droz, secretário daInternacional Comunista encarregado dospaíses latinos da Europa ocidental e Américado Sul1. As proposições elementares do ma-terialismo histórico começam a ser assimila-das e usadas efectivamente, na análise dosassuntos políticos correntes. Pode dizer-seque as concepções dominantes eram esque-máticas, mecanicistas, ou mesmo de pendoreconomicista, mas isso não era de forma al-guma incomum entre dirigentes comunistasdeste tempo. Por outro lado, nãofalta elegância e arrojo nos escritosda época deste pensador operário.A sua estatura intelectual não saidiminuída no confronto comqualquer dos dirigentes comunis-tas portugueses que se lhe segui-ram.

A 22 de Fevereiro de 1924houve uma grande manifestaçãooperária e popular em Lisboa, es-timada em 100.000 pessoas, que seconcentraram na Praça do Co-mércio e se dirigiram a S. Bento,sitiando o parlamento. Com gran-de agitação e por entre apupos tu-multuosos, chegou a pôr-se a hipó-tese de uma tomada violenta e in-surreccional do edifício. O PCPsaudou entusiasticamente esta jor-nada, considerando-a um marcono caminho da revolução, que es-perava ver rebentar em toda a pe-nínsula Ibérica, antes ou logo apóso golpe das direitas, consumadojá em Espanha (directório de Pri-mo de Rivera) e que se adivinhavapara Portugal. Alguns sectores dopartido propugnavam antes umadefensiva cerrada das instituiçõesda democracia burguesa, em ampla aliançacom toda a esquerda republicana. A linhatáctica oficial do partido, com subtileza dia-léctica e alguma ambiguidade, não afastavatambém essa mesma defesa.

No Verão de 1924, José Carlos Rates vaia Moscovo participar no V Congresso daInternacional Comunista, como secretário--geral do PCP. Todavia, a representação ofi-cial do partido é assegurada na ocasião porHumbert-Droz, sem que seja claro que issoassinale já então alguma reserva em relaçãoao sindicalista setubalense. No regresso aPortugal, Rates escreve e publica a sua obramais interessante e aquela pela qual assegu-rou, de forma destacada, um lugar inauguralna história do marxismo português: A Rússiados Sovietes2. Quaisquer que possam ter sido

os defeitos de carácter do seu autor e as ra-zões que o levaram, posteriormente, a rene-gar as ideias aqui expressas, o que não há dú-vida é que este livro é obra de um marxistaacabado (se os há...), profundamente empe-nhado na construção de uma sociedade so-cialista na via aberta pela revolução soviéticade Outubro. Nada justifica que se remeta esteperíodo da história do comunismo portu-guês a um estatuto de menoridade ou inci-piência.

A Rússia dos Sovietes interessa-nos hoje emdia sobretudo pela sua “Introdução” e pelosseus dois capítulos iniciais: “Marxismo” e“Leninismo”. De seguida, o livro cumpre

aquela que deve ter sido a sua função pri-mordial, oferecendo um relato das circuns-tâncias históricas que levaram ao triunfo darevolução soviética, pequenas fichas biográ-ficas de alguns dos seus principais dirigentes,e um retrato sumário dos desafios colocadosao seu projecto de transição para o comunis-mo (período NEP), nos planos político, eco-nómico e social, descendo até à minúcia eao detalhe estatístico sobre a divisão admi-nistrativa e os resultados mais recentes dapolítica orçamental, monetária, de comércioexterno, equipamentos, indústria, agricultura,nível de consumo da massas, saúde pública,justiça, instrução, arte, etc. O último capítuloé um registo de impressões pessoais de via-gem. Para um livro escrito já em 1925, é des-concertante a maneira como Rates ignora

por completo (ou tenta passar por alto, pe-rante o público português?) a existência dedisputas e dissensões no interior do partidobolchevique, citando com extremo à-von-tade (por vezes extensamente) Trotsky aolado de Estaline, Bukharine ao lado deKamenev, Sokolnikov ao lado de Kalinine,Zinoviev ao lado de Rykov, Smirnov ao ladode Rakovsky, entre outros, considerando-ostodos leais herdeiros de Lenine e congraça-dos num mesmo esforço revolucionário uni-tário.

Na ‘Introdução’, Rates tenta situar a re-volução soviética na história geral das ideiassocialistas, da qual é feito um abreviado

conspecto literário que, entre osautores e movimentos mais habi-tualmente citados, inclui tambémJonathan Swift e François Fénelon.Chamando depois em seu apoioPlekhanov, e rebatendo os anar-quistas de todas as escolas, concluique o socialismo não pode triunfarpor apelo abstracto e intemporal auma “natureza humana”, mas ape-nas com base na iniciativa revolu-cionária de uma classe social: o pro-letariado moderno.

No capítulo inicial do livro –“Marxismo” –, Rates dá uma muitorazoável conta daquilo que fora jácapaz de assimilar nos seus estudosmarxistas, iniciados provavelmenteno início da década, seguramentedesde o Verão de 1923 (servindo-nos aqui de referência a publicaçãodo seu artigo ‘Sejamos marxistas!’no quinzenário O Comunista de 15de Julho de 1923). Começa por ex-por em traços largos a concepçãomaterialista da história, seguindo deperto o famoso e inevitável prefá-cio de Marx à Contribuição à Críticada Economia Política. Com esta base,é quase certa a rendição ao econo-

micismo, senão mesmo ao tecnologismo.Todavia, na sequência da exposição, Ratesnão deixa de admitir expressamente umaacção de retorno (“interdependência”) dainstância política sobre a económca. De se-guida, expõe a teoria da mais-valia, da acu-mulação e da centralização de capitais, deuma forma vivaz e expedita, que não merecereparos de maior, salvo uma confusão entreos conceitos de lucro e mais-valia. Aparente-mente, para Rates, há uma parte do lucroque não provém da mais-valia, sendo remu-neração do esforço de direcção do capitalistae que ele destina ao seu consumo pessoal.Só seria mais-valia a parte do lucro destinadaà acumulação capitalista. Este erro um tantoanedótico não prejudica, porém, a sequênciada exposição, que dá bem conta do processo

José Carlos Rates e A Rússia dos Sovietes

ÂNGELO NOVO

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de socialização do trabalho, das crises desobreprodução e do afrontamento inevitávelentre as duas grandes classes antagónicas. Porfim, com recurso a extensas citações, Ratesexpõe de forma correcta a concepção mar-xista do Estado e da ditadura do proletaria-do, sempre em polémica com o anarquismo.Para escrever as vinte páginas este capítulo(edição original), Rates cita, de Marx e deEngels: Manifesto do Partido Comunista; Marx,Contribuition a la critique de l’économie politique;Engels, Socialisme utopique et socialisme scientifi-que; Engels, De l’autorité; Marx, O Capital (re-sumo do livro I por Gabriel Deville); Marx,Misère de la philosophie; Marx, Guerre civile enFrance; Marx, Le XVIII de Brumaire de LouisBonaparte.

O segundo capítulo de A Rússia dos So-vietes, sensivelmente mais extenso, intitula-se“Leninismo” e é assumidamente decalcadode Le leninisme, théorique et pratique de Estaline.Aborda-se, naturalmente, a teoria do impe-rialismo, a luta contra a traição da II Interna-cional, a ditadura do proletariado, a aliançaoperário-camponesa, a questão das naciona-lidades, a concepção leninista do partido eas tácticas na revolução democrática e na so-cialista. Curiosamente, para uma exposiçãode inspiração estaliniana, pode-se aqui ler oseguinte trecho (p. 46 na 2ª edição):

“Pode atingir-se o fim, pode obter-se o triunfodefinitivo do socialismo num país, sem os esforçoscombinados dos proletários dos vários países maisavançados? Não, certamente. Para destruir a bur-guesia nacional bastam os esforços do proletariadonum só país, mas para edificar a economia socialistao caso diverge inteiramente. Por isso, a revoluçãovitoriosa num país deve ter por tarefa essencial desen-volver e sustentar a revolução nos outros países, porisso ela não deve considerar-se como uma potênciaindependente mas tão-só como um auxiliar, comoum meio de acelerar a vitória do proletariado nosoutros países.”

Esta formulação, se feita conscientemen-te, faria sem dúvida alinhar Rates no campo“trotskista”, tal como ele se começava a for-mar nessa mesma altura na União Soviética.Todavia, é impossível saber ao certo quantosaberia Rates sobre essas divisões que, nessaaltura, após a “controvérsia literária” susci-tada pela publicação das Lições de Outubro deTrotsky, já eram públicas, embora encaradascom natural reserva pelos internacionalistas.Em particular, a oposição “Revolução per-manente / Socialismo num só país”, dese-nhava-se então ainda de uma forma embrio-nária. Até que ponto Rates se pôde inteirare tomar partido nessas questões na sua brevefrequência do célebre Hotel Lux de Mosco-vo? Ou por intermédio do seu convívio comos agentes cominternianos Humbert-Droze Dupuys? Precisamente a estes dois homensé dedicado A Rússia dos Sovietes, nos seguintestermos:

“Aos meus camaradas Jules Humbert-Droz eDupuis, soldados infatigáveis da InternacionalComunista e fiéis defensores do leninismo, que, envia-dos a Portugal, ilustraram com o seu saber, a suaexperiência e a sua dedicação os trabalhos da SecçãoPortuguesa.

Lisboa, Fevereiro de 1925”

Humbert Droz era de facto um homemmuito versado, tendo sido confidente íntimoe frequente de Lenine. Bastante mais tarde,em 1931, seria demitido por Estaline dassuas funções na IC, acusado de “bukhari-nismo”.

A influência de Rates no partido começaa declinar subitamente a partir de Maio dessemesmo ano de 1925. Por coincidência ounão, isso ocorre simultaneamente com a visi-ta a Lisboa do novo controleiro do Comin-tern, o italo-argentino Victorio Codovilla.Na verdade, no nº 34 de O Comunista, de 23de Maio de 1925, estão insertas três peque-nas notícias na primeira página, numa curio-sa e intrigante sequência: a primeira anunciaque “por motivo de doença do nosso camarada J.Carlos Rates, que se encontra hospitalizado emSanta Maria, onde foi operado, assumiu interina-mente a direcção de O Comunista o camaradaManuel Ferreira Quartel”; a segunda notícia dáconta da visita de Codovilla, que “com a CC[Comissão Central] estudou os problemas quemais interessam à Secção Portuguesa”; a terceiranotícia anuncia que “por indicação da IC foiadiado o congresso partidário para depois das eleiçõesgerais”.

Alguns testemunhos, reproduzidos porBento Gonçalves, dão conta de Rates ter en-veredado pelo jornalismo, ingressando nosquadros de O Século. Certo é que, sem qual-quer nova explicação, no cabeçalho de O Co-munista, o nome de Quartel substituiu o dosecretário-geral como “redactor principal”,mas só a partir do seu nº 37, de 1 de Agostode 1925. E a partir desse número não maisse encontra colaboração assinada por Ratesno quinzenário do PCP, embora este conti-nuasse a anunciar para venda A Rússia dosSovietes. O nº 44 de O Comunista, de 22 deNovembro de 1925, publica um “Relatórioda Comissão Central ao II Congresso parti-dário” (ainda a realizar) onde se lê, sob osubtítulo “Acção disciplinar”:

“(...) Por último, José Carlos Rates tendo vol-tado à sua antiga profissão de redactor de jornaisburgueses, foi convidado pelo Executivo da IC aoptar entre aquela profissão e a sua filiação parti-dária, visto uma ser incompatível com a outra.Como, porém, Rates tivesse optado pela dita profis-são, teve esta CC, em obediência à disciplina daIC, de o excluir das fileiras do PCP.”

A exclusão de Rates das fileiras do PCPfora já anunciada numa nota oficiosa da suaComissão Central, que dá essa decisão comotendo sido tomada a 15 de Outubro de 1925.Não se percebe muito bem como alguémque tenha acabado de escrever e publicar ARússia dos Sovietes possa ter optado por umaprofissão de jornalista em detrimento da suafiliação no PCP, onde era aliás secretário--geral. Salvo algum súbito desequilíbriomental de Rates, tudo isso só se entenderápor interposição de graves desinteligênciaspolíticas, no interior ou com o exterior, so-bre as quais, porém, nada chegou até nós.Sabe-se que, a 8 de Novembro de 1925, Ra-tes concorreu, aliás sem sucesso, às eleiçõespara deputado pelas listas da Esquerda De-mocrática, de José Domingues dos Santos.A sua evolução posterior foi muito mais

infeliz.José Carlos Rates, fadista amador, algum

tempo mação, grande agitador e organiza-dor operário, deixou variada obra teórica.São livros e opúsculos como O problema por-tuguês: os partidos e o operariado (1919); A dita-dura do proletariado (1920); O papel das comunase a questão agrária (1924); O serão dos camponeses(s/d); A questão sindical (s/d); além de váriosensaios muito significativos espalhados pelaimprensa operária. Depois da sua expulsãodo PCP, publicou Democracias e ditaduras(1927) e acabaria por aderir à União Nacio-nal salazarista em 1931, onde aliás não fezcarreira visível. Aparentemente, o seu cepti-cismo sobre as instituições e os princípiosdemocráticos fê-lo transitar sem esforçonem drama de uma concepção muito pessoalda ditadura do proletariado para um apoioefectivo à ditadura fascista, mantendo até aofinal que se norteou sempre pelos mesmosobjectivos essenciais. Interessou-se por ques-tões coloniais (ele que tinha advogado emtempos a venda das colónias africanas à In-glaterra) publicando Angola, Moçambique, SãoTomé (1929). Escreveu e publicou, por fim,um romance: A colmeia (1932).

Trata-se de uma das duas ou três perso-nalidades mais marcantes da história do mo-vimento operário da I República3. Na his-tória do comunismo português teve tambémum lugar e um percurso de destaque, o quelhe tem sido negado. Infelizmente, não pare-ce já possível reconstituir hoje por inteiro,de forma credível, algumas partes desse per-curso, sobretudo no que diz respeito às suasligações internacionais e à sua expulsão doPCP.

1 Sobre este congresso, incluindo alguns dos seusdocumentos preparatórios, leia-se César Oliveira,O primeiro congresso do Partido Comu-nista Português, Seara Nova, Lisboa, 1975.Aí se pode ler também o relatório 2e memóriasde Jules Humbert-Droz sobre a sua missão emPortugal em 1923. A confrontar cuidadosamentecom o que diz Bento Gonçalves em Palavras ne-cessárias. Bento presumivelmente terá ouvido ahistória contada por José de Sousa, que à alturafoi adversário de Rates e, como tal, se viu visadopelas acções disciplinares impostas no partido porDroz.

2 J. Carlos Rates, A Russia dos Sovietes, Li-vraria Editora Guimarães & C.ª, Lisboa,1925. Há uma 2ª edição, promovida e prefaciadapor César Oliveira, que é mais acessível e comortografia actualizada: Carlos Rates, A Rússiados Sovietes, Seara Nova, Lisboa, 1976.

3 Uma pequena biografia de José Carlos Rates podeser encontrada em linha em http://arepubli-cano.blogspot.com/search/label/Carlos%20Rates (Almanaque Republicano). Paraandanças e alguns textos do jovem sindicalistarevolucionário de sangue na guelra, leia-se AntónioVentura, O sindicalismo no Alentejo – atourné de propaganda de 1912, Seara Nova,Lisboa, 1977.

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No contexto do início da divulgação domarxismo em Portugal, assunto abordadopor Ângelo Novo em Política Operária deNov/Dez de 2010, proponho-me indicaralgumas pistas suplementares a que BentoGonçalves poderia eventualmente ter recor-rido, sendo as informações que adiante expli-cito largamente tributárias de Alfredo Mar-garido1. É certo que nos finais do séc. XIXpoucos textos existiam referentes ao marxis-mo, nomeadamente em Portugal, apesar doempenho de Marx e de Engels na divulgaçãodos seus trabalhos que iam surgindo ao longodos anos, até ao aparecimento das obrascompletas e, mais tardiamente, das respecti-vas traduções. Estas obras eram porém dedifícil leitura, o que levou o próprio Marx aencorajar e a pedir expressamente que fos-sem elaborados resumos mais acessíveis e

de mais fácil compreensão para o grandepúblico.

Assim, em 1872, aparecem as primeirastraduções portuguesas de artigos de Paul La-fargue, entre as quais a do Manifesto do PartidoComunista, que teve sucessivas edições em vá-rios órgãos nacionais de cariz operário.

Em 1874 aparece a primeira referênciapública do marxismo em Portugal, na confe-rência “A origem do Socialismo”, de JoséFrederico Laranjo, no Instituto de Coimbra.

Em 1878 Carlo Cafiero, activista libertá-rio italiano, encontrava-se preso quando to-mou conhecimento do primeiro volume deO Capital, o único à época existente. Tendo--se apercebido da importância e do alcancedesta poderosa arma ao serviço dos traba-lhadores, ultrapassa animosidades pessoaise dissidências ideológicas e propôs -se fazer

um resumo acessível à compreensão da obrae de aquisição fácil, resumo esse que subme-teu à apreciação de Marx, que aprovou e en-corajou a sua publicação.

Em 1883, o francês Gabriel Déville, a pe-dido de Marx, traduziu e publicou tambémum resumo de O Capital, uma edição à qualse seguiram, ao longo de vários anos, outrasedições, traduzidas e divulgadas em paíseseuropeus, nomeadamente Espanha e Itália,bem como nos Estados Unidos e Rússia.Houve também uma edição em português“exemplarmente infiel ao texto” que data de1912. Ainda no século XIX, outros resumosapareceram assinados por Kautsky e Lafar-gue, para citar os mais conhecidos.

Em 1910, outro anarquista, de nacionali-dade suíça, James Guillaume, opositor deMarx ao tempo da I Internacional, após pré-

Marx esquecido?

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RELENDO... MARXDo que aqui se trata não é duma sociedade co-munista tal como se desenvolveu sobre as suaspróprias bases, mas tal como acaba de sair dasociedade capitalista e que, portanto, apresentaem todos os seus aspectos, económico, moral eintelectual, o selo da velha sociedade de cujasentranhas procede. Em conformidade com isto, oprodutor recebe individualmente da sociedade —depois de feitas as deduções necessárias — o equi-valente exacto do que lhe deu. O que o produtordeu à sociedade foi a sua quota-parte individualdo trabalho. Assim, por exemplo, a jornada socialde trabalho compõe-se da soma das horas de tra-balho individual; o tempo individual de trabalhode cada produtor é a parte da jornada social detrabalho que ele forneceu, a sua participaçãonela. A sociedade entrega-lhe um título consignan-do que ele recebeu tal ou tal quantidade de traba-lho (depois de descontar o que trabalhou para ofundo comum) e, com esse título de crédito, sacados depósitos sociais de objectos de consumo aparte equivalente à quantidade de trabalho querealizou…Vale aqui, evidentemente, o mesmo princípio queregula a troca de mercadorias, porquanto esta éuma troca de equivalentes. Variam a forma e oconteúdo, porque, nas novas condições, ninguémpode fornecer senão o seu trabalho e porque, poroutro lado, nada pode agora passar a ser proprie-dade do indivíduo para além dos objectos de con-sumo individual. Mas, no que se refere à distribui-ção destes pelos diversos produtores, vigora omesmo princípio que na troca de mercadorias equi-valentes: troca-se uma quantidade de trabalho,sob uma forma, por outra quantidade de trabalhoigual, sob outra forma distinta.Por isso, o direito igual continua a ser aqui … odireito burguês, ainda que agora o princípio e aprática já não entrem em conflito, ao passo quehoje, no regime de troca de mercadorias, a trocade equivalentes apenas se faz atendendo a umtermo médio, e não a casos individualmente consi-derados…A repartição dos objectos de consumo não foi, emtodas as épocas, mais do que um corolário da dis-tribuição das próprias condições de produção. Eesta é uma característica do próprio modo de pro-dução. Por exemplo, o modo de produção capita-lista assenta no facto de que as condições mate-riais de produção são adjudicadas aos que nãotrabalham sob a forma de propriedade capitalistae propriedade fundiária, enquanto as massas sópossuem as condições pessoais de produção: forçade trabalho. Distribuídos deste modo os elementosde produção, a actual distribuição dos objectosde consumo é uma consequência natural. Se as con-dições materiais de produção fossem propriedadecolectiva dos próprios trabalhadores, isto deter-minaria, por si só, uma distribuição dos objectosde consumo diferente da actual. O socialismo vul-gar (e, por seu intermédio, uma parte da democra-cia) aprendeu com os economistas burgueses aconsiderar e tratar a repartição como alguma coi-sa independente do modo de produção, e, por-tanto, a expor o socialismo como uma doutrinaque gira em torno, principalmente, da repartição.

(Karl Marx, Comentários marginais ao Programado Partido Operário Alemão, 1875)

vio acordo da filha do autor, publicouuma versão francesa deste resumo ita-liano de Cafiero.

A partir de 1919, com o adventoda revolução de Outubro de 1917, eatravés de O Século e da Federação Ma-ximalista Portuguesa, generaliza-se adivulgação de textos sobre Marx.

Voltemos à tradução francesa doresumo de Cafiero: não sabemos queínvios caminhos terá ela percorrido.Tomei no entanto conhecimento, atra-vés de um jornal francês, que esse re-sumo surgiu em França, em 2008, nu-ma edição de Le Chien Rouge2. E foina posse dessainformação queme dirigi à li-vraria do Insti-tut Franco-Por-tugais da Av.Luís Bivar, emLisboa, que re-gularmente visi-tava como cli-ente. E requisi-tei a obra. Cu-r i o s a m e n t e ,após insistênciaem saber a res-posta, a livrariainfor mou-meenfim da suaimpossibilidadede contactar asedições LeChien Rouge.Terá isso a vercom opções co-merciais da li-vraria? Haverárelação entre essa impossibilidade e asopções culturais da Embaixada Fran-cesa em Lisboa a que a livraria do Ins-tituto está associada? Bem conhece-mos as formas insidiosas de censura,não poucas vezes de difícil percepção,tanto mais que estamos em plenagovernação Sarkozy.

É minha convicção que seria im-portante uma versão portuguesa desseresumo francês de Cafiero. Trata-se deum livro de pequeno formato de cercade 160 pp., contendo em anexo a cor-respondência trocada entre Cafiero eMarx, o que reforça a seriedade e origor do texto. A análise marxista con-tinua na ordem do dia e a divulgaçãodessa obra não é anacrónica, antes ne-cessária, ontem como hoje, dada acomplexidade do mundo actual e asconvulsões planetárias a que assisti-mos, explosivas umas, outras larvares.Tanto mais necessária quanto a actualcomunicação social portuguesa, parti-cularmente televisiva mas não só, mu-tila a curiosidade intelectual, o debatee o espírito crítico do grande público,deturpa informação e molda a per-cepção em vista de inconfessados fins.Uma informação que é cada vez mais

“infotainment”, esse curioso mas nãoinocente matrimónio entre informa-ção e divertimento.

A divulgação da obra acima referi-da, acessível e popular, parece-me poisnecessária num contexto da ciência po-lítica e facilmente assimilável.

Ora, dadas as dificuldades finan-ceiras de Política Operária, aqui deixopois a sugestão a que me refiro em epí-grafe, isto é, uma subscrição para queessa publicação se torne realidade.

Uma ultima reflexão sobre AlfredoMargarido, um dos mais fecundospensadores portugueses contemporâ-

neos, uma dasmais destaca-das figuras dopens amen tocrítico, aquéme além frontei-ras, em cam-pos tão diver-sificados comoa Sociologia(Ecole desHautes Etudesen Sciences So-ciales de Paris),a História dasmentalidades, aAntropologiacultural, as Li-teraturas afri-canas de ex-pressão portu-guesa. Foi,além do mais,um resistenteantifascista eanticolonialis-

ta, preso por diversas vezes (Aljube,prisões do Porto, etc.) e que nos dei-xou em Outubro de 2010. Ao crema-tório do Alto de S. João se deslocaram,para a cerimónia, umas escassas deze-nas de pessoas, o que revela a anemiae a acomodação de grande parte daintelligentsia portuguesa, comodamenteinstalada nas ideias consagradas, paranão dizer no servilismo do sistema. Oque nos faz pensar que os Cães de guardade Paul Nizan continuam actuais, talcomo Os Novos Cães de guarda de SergeHalimi. Alfredo Margarido, o desco-dificador, foi marginalizado na vida,tal como na morte. Mas continua pre-sente. Tarde ou cedo ocupará o lugarque lhe é devido na história da culturaportuguesa.

1 Alfredo Margarido, A introdução domarxismo em Portugal: 1850 -1930,Guimarães Editora, 1975.

2 Carlo Cafiero, Abrégé de ‘Le Capital‘, de Karl Marx, Ed. Le chien rouge ,Marseille, 2008.

Carlo Cafiero