Suplemento PO 128

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/FEV.

2011

Nº 128

Em Julho de 1932, Salazar, que era ministro das Finanças,toma a chefia do governo. A ditadura toma novo impulsocontra o movimento operário e popular: publica o “plebiscito”forjado da nova Constituição fascista, promulga o Estatuto doTrabalho Nacional (ETN), copiado da “Carta del Lavoro”italiana, e cria os “Sindicatos Nacionais”, grémios e corporações(Setembro de 33).

O ETN estabeleceu que os sindicatos livres seriam encer-rados e que os seus bens reverteriam para os SNs. Era umgolpe fortíssimo da burguesia contra as liberdades conquistadasem meio século de luta pelo movimento operário. A camadamais activa do proletariado reage, mostrando-se disposta aresistir e a defender os seus sindicatos.

Perante a hesitação e os adiamentos da direita do Partido, édecidido um apelo à greve geral, que os sectores anarco-sindi-calistas da CGT tendem a transformar numa greve insurrec-cional. O movimento, desencadeado em 18 Janeiro de 1934, érapidamente sufocado pela repressão. Há esboços de greve eatentados à bomba em Coimbra, Lisboa, Silves, Covilhã,Entroncamento, Barreiro, na Marinha Grande, operários ar-mados apossam-se facilmente da vila, elegem um soviete ehasteiam a bandeira vermelha, mas a vila é tomada de assaltopor forças do exército; destacam-se no movimento da MarinhaGrande Manuel Esteves de Carvalho (morre um ano depois,

tuberculoso), António Guerra, José Gregório e outros. São feitasmuitas prisões e deportações para Angra.

O aparelho repressivo fascista vai-se estruturando. A novapolícia política, a PVDE, dirigida pelo facínora Catela, começa adistinguir-se pelas torturas e assassinatos. O militante VieiraTomé, um ferroviário, é morto em 1934.1 Após o começo daguerra de Espanha, surgem a Legião e a Mocidade, milíciasfascistas; cria-se uma rede de bufaria nas fábricas, excita-se a histeriaanticomunista.

Em 1935, durante um comício-relâmpago em Alcântara, omilitante comunista Manuel dos Santos mata um polícia a tiro(Manuel dos Santos passou 10 anos na Penitenciária, de onde seevadiu para morrer pouco depois, tuberculoso).

Em Agosto de 1936, no ambiente de agitação causado pelocomeço da guerra de Espanha, dá-se a revolta da Armada. Osmarinheiros, orientados pelos comunistas, amotinam-se, pren-dem os oficiais e apossam-se de dois navios, mas são bombar-deados ao tentar sair a barra e rendem-se. São feitas muitas prisõese a organização revolucionária na marinha é destroçada.

O 18 de Janeiro e a luta de tendênciasno movimento operário

FRANCISCO MARTINS RODRIGUES

Completando-se este ano 77 anos sobre o levantamento do 18 de Janeiro, parece oportunofazer a divulgação destas notas rascunhadas por FMR. Este texto inédito foi transcrito

de um conjunto de 10 páginas manuscritas em papel quadriculado, com indicação na primeirapágina de “falta o começo”, escritas na Cadeia de Peniche para fins de estudo e discussão

entre os presos, provavelmente nos anos 70.O título e subtítulos são da responsabilidade da redacção da PO.

1) Durante o 18 de Janeiro, segundo parece (greve dos ferroviários).Cite-se a morte na PIDE de Ferreira Marquês, do Comité Re-gional de Lisboa.

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Presos do 18 de Janeiro no navio Carvalho Araújo, a caminho da prisão de Angra do Heroísmo

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Esta revolta fora preparada pela ORA(Organização Revolucionária da Armada),ligada ao Partido, e pelo seu jornal Marinheirovermelho, de que circulavam centenas de exem-plares. Na ORA, distinguiu-se Manuel Gue-des, militante comunista. Existia também aORE no Exército.

Ainda por reflexo desta corrente que pro-curava o caminho da luta armada contra aditadura, dá-se o atentado contra Salazar(1937)2, organizado por um grupo anarquista.

LUTA DE TENDÊNCIAS

A ilegalização dos sindicatos e o fracassodas acções armadas, quando a Espanha se de-bate numa grande guerra civil, provocam umaaguda luta de tendências no movimento ope-rário e no interior do Partido. Os elementossindicalistas agrupados na CIS e dirigidos porJosé de Sousa, membro do Secretariado doPartido, lançam-se no movimento sindical clan-destino. No período de 1934-36 dezenas desindicatos esquivam-se à ordem governamentalde dissolução e conservam-se em actividadesemilegal; mais de uma dezena de jornaissindicais (dos ferroviários, dos metalúrgicos,da construção civil, etc.) continuam a sairclandestinamente. Esta corrente estava nacontinuação das tradições sindicalistas, atacava

a linha política da direcção do Partido, que eraatacada por outro lado pelos partidários dastentativas insurreccionais contra o fascismo.

Bento Gonçalves, à frente da maioria dadirecção do Partido, lutava simultaneamentecontra os sindicalistas e contra os anarquistas:criticava o movimento sindical clandestino3,alegando que este tinha cada vez menos in-fluência de massas, e condenava os golpesarmados que acusava de desorganizarem o

movimento. (Classificou o 18 de Janeiro depre-ciativamente como “mais uma anarqueirada”),defendendo como alternativa a táctica defensivaface ao fascismo ascendente: Frente Única detodos os trabalhadores e da pequena burguesiarepublicana, aproximação das massas proletá-rias por meio da luta económica, aproveita-mento das organizações legais fascistas, no-meadamente dos SNs, a que aconselhava umaadesão massiva.4

2) Julho de 1937, feito pela Legião Vermelha – tese oficial.3) É preciso definir posição quanto ao movimento sindical clandestino, questão que continua

actual. A ideia de manter sindicatos clandestinos era errada e irrealizável, levava a perder ocontacto com as massas. Mas isso é só uma parte da questão: porque não boicotar os SNs,uma vez que as massas não estavam lá, nem queriam estar? Porque não criar comissõessindicais ilegais ou semilegais, com os seus jornais? Mostrar que nesta segunda batalha emdefesa dos sindicatos (a primeira foi o 18 de Janeiro) a direcção do Partido tomou tambémuma via errada.

4) Bento Gonçalves aceitou a linha de boicote dos SNs; o seu informe ao 7º Congresso defendiaos sindicatos clandestinos, boicote aos SNs, não incluía a Frente Unida. Foi no próprioCongresso que o informe foi criticado por camaradas estrangeiros e redigido de novo, deacordo com a linha apresentada por Dimitrov. Não é verdade, portanto, dizer que BentoGonçalves defendia a linha da Frente Única e de entrada nos SNs. Pelo menos, não temosprovas de que o fizesse enquanto esteve em actividade, entre 1934 e 35. Quando regressa do7º Congresso é preso e não tem ocasião de defender essa linha; defende-a depois em Angrano julgamento. A classificação de “anarqueirada” ao 18 de Janeiro é feita mais tarde, noTarrafal. Fica portanto um ponto a esclarecer: que linha defendeu de facto Bento Gonçalvesem 1934-35?

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No 7º Congresso da Internacional Comu-nista (IC), onde Bento Gonçalves foi em 1935chefiando a delegação do PCP, Dimitrovapresentou um informe indicando a necessi-dade duma política de Frente Única para detero avanço das ditaduras fascistas na Europa eimpedir o isolamento e aniquilamento doscomunistas. Foi essa orientação que BentoGonçalves trouxe para Portugal e que foiadoptada pelo Partido.5

A experiênci1a posterior mostrou que estatáctica abriu o caminho às tendências oportu-nistas de direita e pacifistas dentro do Partido.Se, em vez de se travar e abandonar a vanguardaproletária, se tivesse canalizado o seu espíritode luta para acções tácticas de combate (que, aocontrário das revoltas locais, poderiam ter êxi-to), poderia ter-se conjugado a acção pacíficacom a acção armada. Ao mesmo tempo quecondenava as aventuras armadas, o Partido co-meçou a descurar a luta contra o oportunismode direita e afastou-se da perspectiva da con-quista do poder.

CRISE DO PARTIDO

Aos golpes que sofre o movimento operá-rio com o esmagamento das revoltas de 1934e 1936, juntam-se os golpes policiais sobre oPartido: ao chegar do 7º Congresso da IC, Ben-to Gonçalves é preso juntamente com os co-munistas José de Sousa e Júlio Fogaça (1 deNovembro de 1935); em Setembro de 19366

abre o campo de concentração do Tarrafal, emCabo Verde, para onde são enviados 150 mili-tantes operários, entre eles Bento Gonçalves,Militão Ribeiro*, Sérgio Vilarigues, Américode Sousa da JC, os dirigentes da CGT MárioCastelhano e Januário, assim como muitosmarinheiros.

O Partido, cuja estrutura clandestina erafrágil, pois assentava só no Secretariado e nastipografias, fica momentaneamente decapitado.Em 1936 recompõe-se o Secretariado, com Ma-nuel Guedes (que se evadira do tribunal quan-do era julgado), Pires Jorge e Álvaro Cunhal(?),estudante, dirigente da Juventude Comunis-ta). Este Secretariado é destroçado por novasprisões, outro lhe sucede que é destroçadopassado pouco tempo.7 Os métodos de traba-lho clandestino tinham-se atrasado em relaçãoà máquina aperfeiçoada da polícia.8

A organização do Partido mantinha-se,embora abalada, na região de Lisboa e Alentejo,além de se começar a estender aos estudantes.Fazia-se uma intensa agitação política em tornoda guerra de Espanha: o Avante! chega a pu-blicar 10 mil exemplares semanais, recorde quenão voltou a ser batido.9

O período de 1936-40 é aquele em que omovimento de massas atinge o seu pontomais baixo, devido à derrota das acções arma-das, à dispersão da vanguarda proletária, pelasprisões, pela deportação e pelo exílio, e tambéma uma certa estabilização do nível de vida10 dasmassas trabalhadoras, que haviam sentido du-ramente a crise de desemprego em 1930-33.

É de referir que bastantes trabalhadorescomuns e anarquistas portugueses combate-ram em Espanha contra o fascismo e alguns láderam a vida.11 Estiveram nesta época em Es-

5) Surge aqui um problema complicado: a linha adoptada pelo 7º Congresso da IC. Não hádúvida de que a sua aplicação entre nós atirou com a direcção do Partido para o oportunismode direita nos anos seguintes. Põe-se a questão: fazemos crítica à linha do 7º Congressoconsiderando que é um assunto histórico que não dá prejuízo criticar? E nesse caso, que críticafazemos? 2ª hipótese: apoiarmos como correcta a linha Dimitrov e criticarmos apenas aaplicação feita em Portugal, não citando as emendas no informe de Bento Gonçalves. 3ªhipótese: dizermos que a linha do 7º Congresso foi provavelmente correcta, que não temoselementos para a apreciar, mas que houve indiscutivelmente transposição mecânica para onosso caso, provocando graves desvios; seriam responsáveis por isso: a direcção da IC (?) queaconselhou à alteração do informe; Bento Gonçalves (e José de Sousa que ia com ele) porquenão tinham poderes para alterar um informe político do CC transformando-o num documentototalmente diferente. Parece-me melhor esta 3ª posição de pôr o problema. Sublinhar daquicomo lição que nas relações entre os partidos se deve pôr de lado toda a ingerência oupaternalismo e compreender que cabe a cada partido elaborar a sua linha dentro dos princípiosmarxistas-leninistas; citar a propósito o caso semelhante de Humbert Droz em 1924 e as másconsequências que trouxe.

6)Era a data citada no Avante! mas parece-me duvidoso, dado que os marinheiros só sãojulgados em Outubro. Terão ido os principais para o Tarrafal antes do julgamento? Nessetempo era vulgar.

* Militão Ribeiro era operário têxtil, trabalhou no Brasil, onde estava integrado na direcção (?)do PC, é enviado para Portugal e integrado na direcção do Partido.

7) Secretariados até 1939: sei que passaram por lá Francisco Miguel, (Francisco Ferreira), AlbertoAraújo, Ludgero Pinto Basto. Cinco secretariados em 4 anos: 1936-39.

8) Este é um aspecto classicamente mencionado por Cunhal; nós devemos pôr em destaqueque, por detrás da fraqueza conspirativa, havia a perda da ligação entre o Partido e o proletariadodepois de 1934-36, a infiltração de elementos burgueses na direcção, e sobretudo a queda dadirecção para a direita. Quanto aos métodos conspirativos, citar os encontros nos bancos daAvenida, os cafés da Baixa, a aceitação como normal do mau porte na PIDE, os encontros derua enfiados uns nos outros. Parece necessário citar o porte firme de Francisco Miguel e oimpulso positivo que trouxe.

9) Mencionar a criação de O Militante em 1935. Parece que foi de início um órgão político eteórico do CC, passando depois a mero “boletim de organização” onde praticamente não sedebatiam problemas políticos nem ideológicos. Porquê esta mudança? Suas consequências?

10) Isto é uma ideia no ar, tem que ser verificada, pode não ser verdade.11) Seria de citar algum nome mais destacado, mas de eliminar os de Cunhal, Pires Jorge e

Guedes que foram apenas a contactos com o PCE.12) O provocador Loureiro entregou a tipografia; Carolina Loff amantizou-se com um pide.13) É preciso basear, citando a linha política da imprensa partidária da época, dirigida só para a

unidade com a burguesia. Acentuar que o Partido (a sua direcção) volta periodicamente àinvencível atracção dos oportunistas pequeno-burgueses infiltrados no movimento operário.Sonha com um acordo com a burguesia liberal para que esta tome a cabeça da luta contra ofascismo: por meio de eleições, por golpes militares, seja como for. Frisar que é esta tendênciapara sujeitar o proletariado à burguesia liberal que é a chave que esclarece toda a luta detendências no Partido ao longo de 50 anos: Rates, os dirigentes dos anos seguintes, asdirecções de 1936-40; Cunhal em 44-49; os ultra-direitas em 1953-59; Cunhal em 60-63 até àliquidação total do Partido.

panha Manuel Guedes, Pires Jorge (preso pe-los franquistas e entregue ao governo portug-uês, cumpriu três anos em Angra do Heroís-mo) e Álvaro Cunhal.

Os sucessivos golpes no Secretariado (fo-ram presos Francisco Miguel, no regresso daURSS, Alberto Araújo e outros) acabaram pordesorganizar a direcção do Partido. Em 1939esta era composta por elementos que nãotinham a confiança do proletariado, muitosdeles intelectuais sem experiência nem capa-cidade política; deram-se casos graves de infil-tração de provocadores e aventureiros no apa-relho clandestino do Partido.12 O aparelhodirigente não orienta a luta prática, envolve-seem questões e intrigas pessoais. O nível polí-tico da imprensa baixa. O Partido tende a trans-formar-se num agrupamento radical pequeno-burguês, sem verdadeiro cunho proletário re-volucionário.13 Por fim, a Internacional Comu-nista corta relações com o PCP, cuja direcçãonão lhe merece confiança. 1939 é um dos pon-tos mais baixos do movimento operário por-tuguês.Bento Gonçalves

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14) A partir de 1935-36, por efeito da políticade Frente Única adoptada no 7º Congresso daIC, do governo de “Frente Popular” em França,etc., é quando nos meios estudantis eintelectuais se começa a activo movimentoantifascista (Liga Anti-Fascista, UniversidadesPopulares, Diabo e Sol Nascente, etc.). Isto épositivo. Mas é negativo que elementos saídosdesta corrente subam rapidamente a postosresponsáveis no Partido: Cândida Ventura,Ludgero, etc.

DUAS LINHAS, DUAS IDEOLOGIAS

O movimento operário é surpreendidopela reacção fascista da burguesia no momentoem que a corrente anarquista estava em declínioe quando a corrente comunista ainda não ga-nhara raízes nem amadurecera ideologicamen-te. A resistência ao fascismo trava-se sob agudaluta de tendências no interior do proletariado.Sob a repressão cada vez mais apertada da po-lícia, a vanguarda do proletariado desgasta asenergias em acções desencontradas, sem umalinha comum, oscilando do aventureirismoao oportunismo de direita e quebrando oslaços com as largas massas.

Depois de, sob o impulso de Bento Gon-çalves, ter formado um bom núcleo de militan-tes (José Gregório, Guedes, Pires Jorge, Foga-ça, Cunhal), o Partido mergulha numa gravecrise.

Cerca de 1930, o destino do anarquismoestá traçado. Os comunistas orientam já umsector operário significativo e, apoiados nossindicatos sob sua influência (CIS), conquis-tam aos anarquistas as suas cidadelas tradicio-nais na região de Lisboa. Esta passagem doproletariado de vanguarda para as fileiras co-munistas não reflecte contudo a assimilaçãodo marxismo-leninismo e a superação dasideias anarquistas, como se tem dito. Isto sóem parte é verdade. Foi sobretudo um reagru-pamento imposto pelas condições novas deilegalidade. A corrente anarquista é desarticu-lada pelo facto de o movimento operário ser

atirado para a clandestinidade e ser privado dasua única base orgânica – os sindicatos. O anar-quismo não podia viver fora deles. Ao defron-tar o assalto fascista, o anarquismo tenta deses-peradamente entrincheirar-se nos sindicatosclandestinos. Quando estes são destruídos, acorrente anarquista tende a desarticular-se porfalta de base orgânica. Os comunistas tinhamcompreendido que a base de toda a actividadeé o Partido, que sem Partido não pode havermovimento operário coerente, e dedicaram-seà tarefa de o construir.

Em 1936 o Partido é parcialmente desman-telado pela polícia e é só a partir de 1941 que osmétodos de organização clandestina são efec-tivamente adoptados, que passa a existir deforma permanente um partido operário capazde sobreviver na ilegalidade. O Partido Comu-nista veio trazer ao movimento operário umaactividade séria na condução da luta diária, co-meçou a aplicar métodos adequados de activi-dade clandestina, formou um núcleo de firmesmilitantes antifascistas. Mas esta eficácia no pla-no orgânico foi acompanhada por um sérioenfraquecimento no plano político e ideoló-gico. A necessidade de um destacamento só-lido, disciplinado, centralizado, gerou a ten-dência para colocar em segundo lugar as ques-tões de orientação e para afrouxar a vigilânciade classe. Ao mesmo tempo, o Partido, sendoa única organização antifascista actuante, tor-nava-se um centro de atracção para todos osque pretendiam lutar contra a ditadura. Umamassa especial de elementos radicais da pe-

quena burguesia (estudantes, sobretudo) en-tram para o Partido e nele entram com a suaideologia própria.14

O desejo de salvaguardar a todo o custo onúcleo clandestino que assegurava a continui-dade da luta antifascista veio a enraizar o estilotípico do movimento operário português des-tes 30 anos, em que as questões de organizaçãocomandam e se sobrepõem às questões polí-ticas e ideológicas. Foi à sombra deste estiloerrado que penetraram profundamente noPartido duas correntes antimarxistas: por umlado, as ideias anarquistas e anarquizantes, quevieram a ser durante anos ainda a ideologiaefectiva da base operária do Partido, e por outrolado, as ideias radicais da pequena burguesiaque, cobertas com uma fraseologia marxista,

PAULA GODINHO | MIGUEL CARDINA | LUÍS FARINHA |JOÃO MARQUES LOPES | INÊS FONSECA | ANTÓNIO BARATA

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Familiares dos presos do 18 de Janeiro pedindo a sua libertação no Governo Cívil de Leiria, em 1935

cristalizaram nos sectores intelectuais e em breveascendiam à direita do Partido.15

Assim, o Partido começa a ser disputadoentre duas correntes não marxistas. E, no am-biente de aguda luta política contra o grupoanarquista, a direita do Partido veio a decairpara o oportunismo de direita que se infiltraralentamente através de uma série de posiçõeserradas:

1) O anarquismo agitava ruidosamente abandeira vermelha e a revolução, favorecia oemprego indiscriminado da greve e do bom-bismo, sem ser capaz de elaborar um plano de

batalha sério nem de pôr de pé o exército prole-tário; mas a direita do Partido, ao reagir contraeste “esquerdismo” superficial e ao defender anecessidade de uma acção tenaz, minuciosa,diária, passou a banir como supérflua e preju-dicial a propaganda da revolução e da ditadurado proletariado; a insurreição e a conquista dopoder passam a ser consideradas de tal modolongínquas que não se lhes vê qualquer ligaçãocom as tarefas tácticas. Daí que a direita doPartido não se preocupe em estudar e definiro carácter da revolução, elabore a linha tácticasegundo a inspiração do momento e caia nopraticismo acanhado que abriu a porta a toda aespécie de desvios.

2) O anarquismo conduzia o proletariadoa uma política de desprezo e mesmo por vezesde hostilidade para com as massas camponesase a burguesia pobre das cidades, sobretudo osemiproletariado e a semiburguesia, levandoo proletariado a bater-se isolado dos seus alia-dos potenciais, enquanto dava a sua confiançaa aventureiros burgueses; mas a direita do Par-tido, ao combater este falso esquerdismo, caiuem muitos erros semelhantes, pois que,proclamando uma política de larga aliança

antifascista, continuou na prática a desprezar aligação com as grandes massas trabalhadorasdo campo e voltou as suas atenções para ospequenos grupos da burguesia liberal; em bre-ve, a sobrestimação da influência destes gru-pos, a ânsia de os atrair a uma frente única,começavam a provocar a perda de iniciativapolítica do proletariado, dominado por ten-dências seguidistas.

3) O anarquismo estimulara o empregoda violência, não com vistas ao agrupamentodo exército proletário, mas ao serviço de explo-sões momentâneas e de curto alcance, desgas-tando assim inutilmente as forças do proleta-riado; mas a direita do Partido, ao opor-se aoaventureirismo dos anarquistas, veio a cair naposição de só considerar admissível a violênciaquando chegasse o momento da insurreição,após um larguíssimo período de acção pacífica;daí até considerar a violência como o opostoda acção de massas e cair no pacifismo ia umapequena distância que em breve foi percorridapela direita do Partido. Além disso, a indefini-ção duma linha para a aliança com os povosdas colónias, linha que era essencial para educaro proletariado e ajudá-lo a romper com a men-

15) De novo: a infiltração de ideias radicaisburguesas sob fraseologia marxista nos secto-res intelectuais do Partido é normal e não cons-titui perigo desde que se reeduquem essesmembros e sobretudo se feche a torneira quan-to à sua subida à direcção do Partido. O malnão foi haver um sector intelectual e estudantilno Partido; o mal foi a direcção não estar vigi-lante e lhe ter aberto as portas. É preciso vincarmais as responsabilidades do CC, se não acoisa toma ar de fatalidade.

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16) O Partido toma o carácter de uma orga-nização progressista pairando acima das classes,idealistas servidores do povo. Não me recordoexactamente [FMR escreve este texto na Cadeiade Peniche, sem acesso a documentação], masé esta a impressão geral. A preocupação deleem acentuar que os comunistas são os conti-nuadores dos homens de 1640, da revoluçãoliberal e do 5 de Outubro. Qual é o sentidodisto? Acenar à burguesia republicana, atraí-la.17) Deverá referir-se a tenebrosa história dodocumento assinado e entregue à direcção docampo para o enviar ao governo? E a históriada colaboração no busto ou baixo-relevo doCarmona? A pergunta justifica-se pelo seguinte:na medida em que estes actos não tiveram re-percussão política e ficaram quase ignorados,será correcto desenterrá-los agora, demolindototalmente o nome não só de Bento Gonçalves,mas praticamente de todos os comunistas doTarrafal?4) Tenho uma informação de que a IC teriasuspendido os contactos com o Partido em1936 e considerado este dissolvido em 1939.Julgo que Cunhal não apresenta assim as coi-sas. Não me recordo de se falar da interrupçãode contactos em 1936.18) Cuidado! Verificar melhor. Em 1935 hágrande crise de sobreprodução na agricultura.Em 1936 Salazar fala num discurso na “misériadas populações” devido à crise do trabalho(no campo). Qual a situação na indústria?19) A revolta dos marinheiros é directamenterelacionada com o início da guerra de Espanha.20) A questão está posta de maneira que apagaas responsabilidades da direcção. Não é aomovimento operário que temos que pedircontas, mas à direcção do Partido, órgãoinvestido na tarefa de estado-maior supremode toda a classe.

talidade imperialista.O Partido desarmou-se para resistir aos

assaltos da ideologia burguesa, menos especta-culares que as ofensivas policiais, mas maisperigosos ainda. O praticismo, o seguidismopolítico, o pacifismo, formam um pólo emtorno do qual cristaliza lentamente uma ten-dência oportunista de direita. E, pelo seu lado,como reacção contra as tendências direitistasdos seus dirigentes, de que se apercebe confu-samente, a base operária do Partido alimentaas tendências anarquizantes em que julga ver aperpetuação do espírito revolucionário declasse.

Assim, no momento da prisão de BentoGonçalves e José de Sousa (1935), começa atornar-se sensível a existência de duas linhas eduas ideologias no Partido. A base operáriaexprime os seus pontos de vista através datentativa insurreccional de 1934 na MarinhaGrande, da revolta dos marinheiros da Armadaem 1936, do movimento sindical clandestino,acções que representam nítida continuidade doespírito de revolta misturado de improvisaçãocaracterístico dos anarquistas. Quanto à direita,ela exprime os seus pontos de vista na linha“oficial” que dá ao Partido (contra o putchismoe o terrorismo, pela conquista dos SNs, poruma Frente Única que englobe todas as corren-tes anti-salazaristas), linha que só muito par-cialmente é seguida. Da luta entre os gruposanarquista e comunista para ganharem a direc-ção do proletariado, passara-se à luta de tendên-cias no interior do Partido, opondo o oportu-nismo de “esquerda” ao oportunismo de direi-ta. O movimento radical da burguesia ameaça-va controlar o movimento operário que, comodefesa, se refugiara no “esquerdismo” anarqui-zante. O proletariado não era ainda guiado pelacorrente marxista-leninista.

BENTO GONÇALVES

Dirigiu o Partido de 1929 a 1936. Impri-miu-lhe pela primeira vez uma actividadecoerente e criou uma tradição de trabalho orga-nizado dentro do melhor estilo político prole-tário. Pode dizer-se que o Partido em Portugalcomeça a ter expressão como partido operáriode vanguarda em 1929. Mas Bento Gonçalvese o núcleo dirigente são também responsáveispor o Partido ter sido lançado em sérios desviosoportunistas. Bento Gonçalves não esboçouum plano estratégico em que assentasse a acçãoproletária para a conquista do poder. Nos seusescritos do Tarrafal encontra-se uma análiselúcida da actividade clandestina do Partido noimpulso à luta económica, mas nada há sobrea mobilização do proletariado para a luta po-lítica superior. Fazendo uma apreciação total-mente negativa do movimento insurreccionaldo 18 de Janeiro (que classificou como “puraanarqueirada”), Bento Gonçalves lançou asbases para o florescimento do pacifismo queveio a verificar-se mais tarde. Na sua defesa emtribunal, Bento apaga notavelmente o carácterde classe do Partido e não faz qualquer referênciaao objectivo final do proletariado – a ditadurasobre as classes exploradoras.16

Nesse documento exprime-se pela primeiravez entre nós, ainda em esboço, a concepção

de uma luta antifascista que “supera” a luta declasses, concepção que mais tarde viria a serplenamente desenvolvida por Álvaro Cunhal.O clamoroso desvio de direita contudo na “po-lítica nova” proposta no Tarrafal por BentoGonçalves cerca de 1940 (ele admite aí o carácterpatriótico da burguesia nacional e defende oapoio táctico do Partido à ditadura salazaristana hipótese de invasão alemã!) não é mais doque o fruto podre das suas incompreensõesanteriores; da tendência para reduzir os interes-ses do proletariado ao campo económico, eleveio a cair na defesa duma acção política comumproletariado-burguesia; da noção utópica du-ma frente antifascista conseguida pela concor-dância dos comunistas, anarquistas, socialistas,republicanos, católicos, ele passara para o so-nho reaccionário duma frente nacional única.17

As posições políticas de Bento Gonçalvesforam marcadas pelo facto de ele nunca ter su-perado inteiramente a mentalidade sindicalista“economista” do primeiro período da sua acti-vidade. Tendo compreendido os prejuízos doanarquismo e tendo lutado energicamente con-tra eles, Bento Gonçalves veio contudo a cairno campo oposto ao apoiar-se em elementosburgueses como Júlio Fogaça, que em brevederam um impulso ao oportunismo de direitadentro do Partido.

O lugar de Bento Gonçalves no movimen-to operário português como organizador doPartido e como combatente antifascista abne-gado é incontestável, mas isto não significaque os comunistas devam venerar as suas ideiassem espírito crítico e ocultar os seus erros, comose faz há 20 anos. Dessa veneração serviram-seos oportunistas para conseguir novas posiçõesdentro do Partido. Não é por acaso que osrevisionistas saíram furiosamente em defesadele nos últimos anos.

Ao contrário do que sucede em Espanha,onde se trava uma grande batalha de classes,em Portugal o movimento operário está emestagnação quase total no princípio da guerra.Explicação dessa estagnação:

1) Crise ideológica no interior do Partido e domovimento operário; o insucesso das acções ar-madas de 1934 e 1936 origina a agonia do opor-tunismo de direita voltado para a acção eco-nómica e para o seguidismo político, encobertosob consignas democráticas sem conteúdo declasse bem definido (corrente saída do sin-dicalismo e marcada por taras reformistas). Éesta corrente que ganha o controle do Partido(Bento Gonçalves, Manuel Rodrigues da Silva,José de Sousa). É uma fase de grande confusãoe instabilidade em que qualquer das correntesé oportunista, visto que ambas descuram osinteresses a longo prazo do proletariado e sub-metem as tarefas estratégicas aos interesses mo-mentâneos.

2) Crise de organização – O aparelho estatal(policial?) da ditadura torna-se mais eficaz.Assiste-se ao desmantelamento do Partido edo movimento operário. Em 1936, 150 diri-gentes e activistas vão para o Tarrafal e há umcorte na continuidade do movimento, prólogode uma crise prolongada. Novas exigências dotrabalho clandestino. Perda de controle da situa-ção e desarticulação do aparelho clandestino.No princípio da guerra mundial, a Internacio-

nal suspende os contactos com o PCP,4 dada asituação extremamente confusa na sua direcção.

3) Estabilização do nível de vida da classe operáriaa partir de 1934 – Durante cerca de 20 anos, asmassas tinham suportado sucessivamente aespeculação, a carestia e a fome na PrimeiraGuerra, depois a inflação, a desvalorização ver-tical da moeda, a vaga de desemprego de 1930/33, resultante da crise mundial do capitalismo.À extrema agitação e combatividade da maiorparte deste período começa a suceder a acalmiagradual e uma certa tendência de expectativadas massas.18 Verifica-se um certo isolamentodos sectores mais avançados, a sua neutraliza-ção e uma prolongada crise de reagrupamentointerno. A agitação provocada pela guerra deEspanha não se materializa em nenhuma acçãoimportante.19 A inércia e a desmoralização alas-tram com a vitória do franquismo. O Partidoevolui para uma posição democrática pequeno--burguesa. As condições de anarquia criadaspela ofensiva policial tendem a transformá-lonum grupo radical burguês sem influência sérianas massas. A direita do Partido cai em 1939--40 nas mãos de elementos suspeitos – culmi-nância do período de crise ideológica sobretu-do. A crise do movimento operário repercute-se na correspondente crise na direcção.20

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Sem candidato pró-prio e não se revendoem nenhum dos que seapresentaram às elei-ções, parte da esquerdaextraparlamentar apare-ceu a poucos dias daseleições presidenciais adefender que se deviavotar contra Cavaco,porque – diziam – elenão é igual aos outroscandidatos, existem di-ferenças substanciaisentre eles e não pode-mos ser indiferentes auma vitória da direita.No essencial, uma for-ma encapotada e indi-recta de carrear votospara Alegre ou Fran-cisco Lopes, quando setornou claro que nãohaveria segunda volta.

Este é um raciocino viciado, assente numpressuposto falso – o de que na sociedade por-tuguesa há uma clivagem política entre os par-tidos da esquerda e da direita governativa eparlamentar ao nível das propostas e saídaspara a crise (de um ponto de vista anticapitalistae anti-sistema) e que essa clivagem constituiuo cerne das plataformas e das discussões elei-torais. Entra pelos olhos dentro que tal não éverdade – nenhum candidato apresentou umprograma popular de combate à crise, opon-do-se a que ela seja paga pelos trabalhadores,nem se pronunciou contra o alinhamento po-lítico e militar de Portugal com as aventurasimperiais dos EUA e a UE, nem contra a per-manência na NATO. A única diferença comalguma substância foi entre os que defendemque a crise tem de ser paga pelos trabalhadores,como advogam o PS, PSD e CDS, e o achamque ela deve ser paga a meias, com ricos e po-bres unidos num esforço patriótico e de es-querda (PCP e BE). Ou seja: uma discussãoque não põe em causa nem acarreta qualquerruptura com a ordem institucional e social vi-gente nem com o sistema político e económicoburguês existente. Todos os candidatos disse-ram que eram pela estabilidade e não queriamabrir qualquer crise política, chegando a criticarCavaco por, com a sua caturrice, indiciar tal von-tade ao afirmar que iria ser um presidente maisinterventivo. Nenhum deles disse o que fariarelativamente à continuidade de Sócrates à fren-te da governação nem que iria derrubar o gover-no do PS e trabalhar para a formação de umoutro que pusesse fim à ofensiva contra ospobres e os trabalhadores, declarando-se dis-posto a afrontar a burguesia portuguesa e osseus patrões do Banco Central Europeu e doEcofim e a impedir a entrada do FMI no país.

Nenhum deles afirmou que só daria posse aum governo que elaborasse outro orçamentode Estado, favorável aos que menos têm evirado contra os ricos e o grande capital.

Excluindo o candidato do PCP – que, nãoalinhando no coro geral a favor do orçamento,ficou-se, como o seu partido, por uma espéciede meia esquerda sempre de mão estendida aqualquer compromisso favorável aos interessesda “economia nacional”, do pequeno capital ede uma mitificada burguesia patriótica –, nãotem qualquer relação com a realidade afirmarque havia diferenças políticas substanciais en-tre os candidatos. Os factos mostram o con-trário – desde a adesão à União Europeia, to-dos os governos sem excepção aplicaram polí-ticas de direita; sempre houve continuidadenessas políticas, fosse qual fosse a cor políticado governo; as decisões fundamentais da polí-tica nacional são decididas em Bruxelas e nãopelos governos portugueses, que já não sãomais que meras comissões executivas. Por issofalar em governos de esquerda ou de direitano nosso país é desde então mero eufemismo.Não é por acaso que há muito não se conseguesaber o que distingue o PS do PSD e se fala deum bloco central de interesses, entidade nãoformal transversal a estes partidos e que gere opaís de acordo com as imposições comunitá-rias. Também por isso a campanha foi aquelevazio de soluções e ideias face à crise e à gover-nação do país.

Sendo assim, então por que não apelar aovoto no candidato do PCP, como um votoútil contra Cavaco e a direita? Pela simples razãode que a solução para os problemas dos traba-lhadores não está no entendimento destes como grande capital sobre a repartição dos custosda crise, nem é do seu interesse dar-lhe suges-

tões e conselhos sobre co-mo deve gerir os seus ne-gócios. Poderá ser de umaelite operária e sindicalprofundamente funciona-lizada e burocratizada, masnão da esmagadora maio-ria dos proletários portu-gueses.

A lógica do mal menorestá profundamente enrai-zada na esquerda portu-guesa que, em nome daderrota da direita, da uni-dade (por cima), e do “nãonos deixarmos isolar dasmassas”, tem sistematica-mente abdicado de intervirpoliticamente e sindical-mente com um programaque isole e diferencie os in-teresses próprios, de classe,dos proletários. Ao pontode actualmente a esquerda

já não pensar nisso e ser consensual apelidarde sectários e ultrapassados os que não se ver-gam ao oportunismo ou ao reformismo e per-sistem neste tipo de preocupações. O dramado proletariado português não está na falta deunidade contra a direita nem na falta de derrotasda direita. Todas as “vitórias” eleitorais da es-querda (isto é, do PS) resultaram em governose políticas de direita. Delas não veio qualquerbenefício para os trabalhadores que, desde o25 de Novembro, têm vindo a ter os seus direi-tos, salários e condições de vida continuamentereduzidos e a ver crescer a flexibilização, os des-pedimentos, a precariedade, as limitações àsliberdades sindicais, etc. Por isso o que há afazer é não continuar a alimentar sonhos –que nunca se concretizam – de que um dia oPS, os liberais e os social-democratas tenhamum abalo de consciência e comecem a fazerseus os interesses das classes trabalhadoras.

Enquanto não existir no nosso país umacorrente revolucionária política e ideologi-camente independente, não será possível apro-veitar uma campanha reformista para intervirnuma campanha eleitoral e jogar no terrenodo adversário com a táctica do voto crítico. Semforças para tal, qualquer veleidade nesse sentidoé inócua e serve apenas para instilar o reformis-mo e a descrença entre os deserdados destepaís. Como ficou demonstrado no períodoque decorreu entre o 25 de Abril e o 25 deNovembro, a burguesia portuguesa só faráconcessões se a isso for obrigada por um movi-mento operário e popular autónomo que aafronte.

Por isso, votar contra Cavaco não era votarnum dos outros candidatos. Era não votar,engrossar a abstenção, amesquinhar e apoucaro vencedor.

A abstenção e os dilemas da esquerda

ANTÓNIO BARATA

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RELENDO... ROSA

Está a surgir, pela mão de estudiosos deMarx, um novo ângulo de visão dos seustrabalhos. Sendo como são um corpo vivo,é mais que evidente que não podem subtrair--se à passagem do tempo, ao devir da história,que cria situações novas e coloca novas inter-rogações. O debate entre economistas e inte-lectuais de esquerda está a girar em Espanhaem redor de um extenso trabalho de CarlosFernández Liria e Luis Alegre Zahonero que,depois de uma elaboração que durou maisde dez anos, saiu à luz com o título El ordende El Capital (Edições Akal), livro de 650páginas. A web “Rebelión” já publicou di-versas críticas e comentários, alguns dos quaisforam respondidos pelos autores.

Tratando-se de uma obra tão extensa, daqual apenas li 120 páginas, não posso aindaestabelecer conclusões globais sobre o valorintrínseco desta obra; por outras palavras, senos impele para diante, leva-nos (ou tentafazê-lo) para atrás, ou deixa-nos onde está-vamos.

Em princípio, as teses iniciais desperta-ram-me grande interesse. Fizeram-me recor-dar a época em que, há 45 anos, me entregueiintensamente à leitura de Marx e despertouo meu interesse pelos mais relevantes filóso-fos, desde Aristóteles a Hegel. Fizeram-merecordar, principalmente porque já naqueletempo me atraía muito o desenvolvimentodo processo de conhecimento, desde a sim-ples percepção de algo através dos nossossentidos até à formação de um conceito aca-bado, aquilo que Hegel desenvolve extensa-mente em Fenomenologia do Espírito, zurzindosem piedade o empirismo considerado pormuitos filósofos como o meio ideal para“descobrir” o que nos rodeia.

Disto tratam os primeiros capítulos dolivro de Liria e Zahonero. Acusam Marx deinventar a lei do valor, porque, para dizê-lode maneira tosca, os produtos que se trocamno mercado não têm inscrito o tempo gastono seu fabrico. Não se quer entender que aciência não pode guiar-se pela aparência deuma coisa, antes tem que partir de um esforçopor elevar-se em graus de abstracção (nãodeterminados por nós, mas como exigênciada própria coisa) para chegar ao concreto.Reactivada a memória, recordei que já Marx,não recordo onde, afirma que a economianão tem aparelhos de ensaio (como a física, aquímica ou a matemática) com os quais possacorroborar em qualquer momento a verdadede uma afirmação ou um teorema e que só aespeculação (no seu sentido original, comoobservação atenta) é que pode levar-nos adescobrir a verdade da coisa. A dimensão eprofundidade dos seus estudos e descobri-mentos levam estes autores a estabelecer umparalelismo entre os seus contributos para aciência com Galileo Galilei.

Creio que a intenção dos autores é tirar aobra de Marx dessa espécie de cárcere (con-ceptual e epistemológico) em que o meteu aburocracia soviética por meio da Academiade Ciências de Moscovo, enlatada e distribuí-da por todo o mundo pela Internacional Co-munista: os anos de ferro que vivi devem sermuito semelhantes aos que viveu Galileo,quando qualquer desvio da doutrina oficialpartilhada pela IC era de imediato consideradacomo revisionismo, o que te condenava aoostracismo dentro do mundo dos comunis-tas. Do que se trata hoje é de abrir as janelaspara ventilar a casa.

Para os autores, Marx parte do republica-nismo e do projecto político do Iluminismo,a Democracia com maiúsculas, precocementeabortado na Revolução Francesa com o julga-mento de Robespierre e o golpe de Estadodo Thermidor.

O advento do capitalismo altera de ime-diato o carácter original do conceito “demo-cracia” ou, dito de outro modo, aplica essapalavra a um certo estado de coisas. O primei-ro parágrafo de O Capital reza assim: “A rique-za das sociedades em que impera o regimecapitalista de produção surge-nos como um“imenso arsenal de mercadorias” e a merca-doria como sua forma elementar. Por isso anossa investigação parte da análise da merca-doria.”

Para o capitalismo, essa é a essência dademocracia, do Estado de direito, a esfera domercado, onde os homens se movem livre-mente para intercambiar os seus produtos.A existência ou não dessa liberdade na esferada produção não conta para nada. E assimfoi entendido nos últimos dois séculos atéhoje. O capitalismo não quer reconhecer-seno espelho que Marx lhe põe diante porquese considera como a única sociedade possível,com o mercado como fundamento da liber-dade individual e do Estado de direito. Inclu-sive não lhe importa nada se esse “mercado”perdeu os seus valores iniciais e foi adquirin-do esse carácter selvático que hoje o caracteriza.Nada tem de estranho nem de aberrante (senão partirmos de outros princípios que nãoos seus) que tenha amparado e protegido einclusive imposto a sangue e fogo regimescomo os de Pinochet, Suharto, Mubarak, So-moza, Lobo, os sátrapas da Arábia Saudita etantos outros em que o sacrossanto mercadonão foi posto em questão. Só demoniza osque tentam escapar da ditadura do mercado,recuperando os valores iniciais da democracia,e, para maior escárnio, em nome do seupróprio e aberrante conceito da mesma.

Recuperar essa democracia original acabapor ser o que defendem os autores do livro.

Tempos de barbárie

ANTÓNIO DOCTOR

Na inflamada atmosfera da revolução,as pessoas e as coisas amadurecem comincrível rapidez. Há apenas três curtassemanas atrás, quando a conferênciados conselhos dos trabalhadores e dossoldados terminou, parecia que Ebert eScheidemann estavam no auge do seupoder. Os representantes das massasdos trabalhadores e soldados revolucio-nários por toda a Alemanha renderam--se cegamente a seus líderes. A convo-cação da Assembléia Nacional, da qualas “pessoas nas ruas” foram barradas, adegradação do Conselho Executivo, ecom os conselhos, a figuras cómicas —que triunfo para a contra-revolução detodas as maneiras! Os frutos do dia 9 deNovembro pareciam ter sido desperdiça-dos e jogados fora, a burguesia mais umavez suspirou de alívio, e as massas fo-ram deixadas perplexas, desarmadas,amarguradas e, certamente, em dúvida.Ebert e Scheidemann imaginavam-se noauge do poder.

Que tolos cegos! Nem mesmo vinte diasse passaram desde então, e seu poderilusório, de um dia para o outro come-çou a oscilar. As massas são o autênticopoder, o verdadeiro poder, em virtudeda coação de ferro da história. (...)

Qualquer um que testemunhou a mani-festação da massa de ontem na Siege-sallee, que sentiu esta dura convicçãorevolucionária, este ânimo magnífico,esta energia que as massas transpiraram,deve concluir que, politicamente, osproletários cresceram enormementeatravés de sua experiência das semanasrecentes, nos últimos acontecimentos.Eles tornaram-se conscientes do seupoder, e tudo o que resta é eles benefi-ciarem-se deste poder.

Ebert-Scheidemann e seus clientes, aburguesia, que incessantemente clamamgolpe, estão neste momento experimen-tando a mesma desilusão sentida peloúltimo Bourbon quando seu ministrorespondeu a seu indignado clamor so-bre a “rebelião” do povo de Paris comas palavras, “Senhor, isto não é uma re-belião, é uma revolução!”

Sim, é uma revolução com todo seu de-senvolvimento externo caótico, comsua alternada decadência e fluidez, comsurtos momentâneos rumo à captura dopoder e também momentâneas reces-sões dos transgressores revolucioná-rios. E a revolução está traçando o seucaminho passo a passo através de todoeste aparente movimento em zigue-zague e está marchando à frente de ma-neira invencível.

Rosa Luxemburgo, O Que os Líderes

Estão Fazendo?, 7 de Janeiro de 1919