Super-homem, o Salvador da América

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Super-Homem, o salvador da América *Por Hélène Harter Na primavera de 1938, os americanos descobrem esse novo herói dos quadrinhos. Até então, a ficção científica atrai pouco o grande público, e o mercado editorial não escapa das dificuldades que fustigam um país em plena crise econômica, que se arrastava entre poucos altos e muitos baixos, desde 1929. O investimento vai se revelar, no entanto, muito rentável para a National Allied Publications, que aceita publicar as aventuras do personagem criado por Jerry Siegel e Joe Shuster, após adquirir seus direitos autorais. Retomando os princípios que fizeram o sucesso do jornalismo popular desde o fim do século XIX, a editora aposta num preço de venda baixo associado a volumes importantes para ganhar na quantidade. Ela percebe que os americanos passaram a preferir os passatempos que custam pouco aos lazeres onerosos, como os parques de diversão. Aposta igualmente no desejo de fuga. Nada como um personagem evoluindo num ambiente de ficção científica para fazer o leitor esquecer por um momento de um cotidiano difícil. O Super-Homem se vale de certas referências coletivas americanas para seduzir os leitores: o culto ao indivíduo, o gosto pela ação, a valorização do campo e de seus valores em detrimento da cidade, local de todos os perigos, a visão maniqueísta do mundo e ainda a alusão aos vigilantes, os justiceiros que encarnavam a lei nos primeiros tempos da conquista do Oeste. O super-herói faz sucesso porque reflete também as preocupações do momento, quando parecia existir a necessidade de figuras heroicas para vencer os desafios de um período de grandes dificuldades. Para compreender a obra de Jerry Siegel e Joe Shuster, é preciso mergulhar no contexto do final dos anos 1930. A América vive uma situação econômica sem precedentes. O estouro da bolha especulativa em outubro de 1929 provoca uma crise financeira e bancária que depois se alastra para o conjunto da máquina econômica. O choque é tão violento que o PIB do país cai pela metade: a nação mergulha na depressão. A quebra dos bancos leva a uma redução drástica dos empréstimos e põe fim a um crescimento que repousava em grande parte sobre o crédito. A queda do poder de compra provoca prejuízos no comércio; em razão da superprodução e excesso de estoques, os preços – e, consequentemente, os lucros – despencam um terço entre 1929 e 1932. Para limitar suas perdas, as empresas reduzem sua produção e demitem massivamente. Um quarto da população ativa se encontra desempregada em 1933. O desemprego em massa, uma novidade, conduz à precarização das condições de vida de milhões de americanos, numa época em que não existe sistema de proteção social. O consumo se encontra consideravelmente reduzido e alimenta, por sua vez, a crise industrial. A depressão parece não ter fim. É compreensível que nessas condições os americanos se pronunciem em favor da mudança na eleição presidencial de 1932. Sua confiança é outorgada a um candidato democrata que lhes devolve a esperança ao propor o New Deal (Novo Acordo). Vários eleitores o veem como um homem providencial. Franklin Delano Roosevelt assume suas funções em março de 1933, no pior momento da crise. O novo presidente não conta com o mercado para restabelecer a situação. Inspirando-se nas teorias do economista John Maynard Keynes, acredita que a

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Texto sobre a Crise de 1929 nos EUA.

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Super-Homem, o salvador da América

*Por Hélène Harter

Na primavera de 1938, os americanos descobrem esse novo herói dos quadrinhos. Até então, a ficção científica atrai pouco o grande público, e o mercado editorial não escapa das dificuldades que fustigam um país em plena crise econômica, que se arrastava entre poucos altos e muitos baixos, desde 1929. O investimento vai se revelar, no entanto, muito rentável para a National Allied Publications, que aceita publicar as aventuras do personagem criado por Jerry Siegel e Joe Shuster, após adquirir seus direitos autorais.

Retomando os princípios que fizeram o sucesso do jornalismo popular desde o fim do século XIX, a editora aposta num preço de venda baixo associado a volumes importantes para ganhar na quantidade. Ela percebe que os americanos passaram a preferir os passatempos que custam pouco aos lazeres onerosos, como os parques de diversão. Aposta igualmente no desejo de fuga. Nada como um personagem evoluindo num ambiente de ficção científica para fazer o leitor esquecer por um momento de um cotidiano difícil.

O Super-Homem se vale de certas referências coletivas americanas para seduzir os leitores: o culto ao indivíduo, o gosto pela ação, a valorização do campo e de seus valores em detrimento da cidade, local de todos os perigos, a visão maniqueísta do mundo e ainda a alusão aos vigilantes, os justiceiros que encarnavam a lei nos primeiros tempos da conquista do Oeste. O super-herói faz sucesso porque reflete também as preocupações do momento, quando parecia existir a necessidade de figuras heroicas para vencer os desafios de um período de grandes dificuldades. Para compreender a obra de Jerry Siegel e Joe Shuster, é preciso mergulhar no contexto do final dos anos 1930.

A América vive uma situação econômica sem precedentes. O estouro da bolha especulativa em outubro de 1929 provoca uma crise financeira e bancária que depois se alastra para o conjunto da máquina econômica. O choque é tão violento que o PIB do país cai pela metade: a nação mergulha na depressão. A quebra dos bancos leva a uma redução drástica dos empréstimos e põe fim a um crescimento que repousava em grande parte sobre o crédito. A queda do poder de compra provoca prejuízos no comércio; em razão da superprodução e excesso de estoques, os preços – e, consequentemente, os lucros – despencam um terço entre 1929 e 1932. Para limitar suas perdas, as empresas reduzem sua produção e demitem massivamente. Um quarto da população ativa se encontra desempregada em 1933.

O desemprego em massa, uma novidade, conduz à precarização das condições de vida de milhões de americanos, numa época em que não existe sistema de proteção social. O consumo se encontra consideravelmente reduzido e alimenta, por sua vez, a crise industrial. A depressão parece não ter fim.

É compreensível que nessas condições os americanos se pronunciem em favor da mudança na eleição presidencial de 1932. Sua confiança é outorgada a um candidato democrata que lhes devolve a esperança ao propor o New Deal (Novo Acordo). Vários eleitores o veem como um homem providencial. Franklin Delano Roosevelt assume suas funções em março de 1933, no pior momento da crise. O novo presidente não conta com o mercado para restabelecer a situação. Inspirando-se nas teorias do economista John Maynard Keynes, acredita que a solução deve vir de uma intervenção do Estado na economia. É preciso uma retomada do consumo, primeiro passo, segundo ele, para a recuperação da indústria.

Nos cem dias seguintes à sua chegada à Casa Branca, faz-se necessária a adoção de medidas para estabilizar o sistema bancário e financeiro, dar suporte aos setores agrícola e industrial, bem como às empresas. Para ajudar os trabalhadores, que chama de “os americanos esquecidos”, ele aumenta o salário-hora mínimo e cria empregos federais por meio de grandes programas de obras públicas. Um segundo New Deal, mais social, é adotado em 1935. Ele reforça o papel dos sindicatos e implementa um início de Estado provedor, com a criação de um regime de proteção social que incluía seguro-desemprego e aposentadoria. Todas essas medidas têm um custo.

Em quatro anos, os gastos federais estão a ponto de dobrar. Roosevelt não desconsidera esse fator. Como seus contemporâneos, ele é muito marcado pelas regras da ortodoxia orçamentária. Até a Segunda Guerra Mundial, privilegia o aumento da base monetária a fim de reduzir as taxas de juros e favorecer os investimentos. Essas medidas contribuem para melhorar a situação econômica. O PIB melhora em 1933. No ano seguinte, 4 milhões de empregos são criados enquanto o poder de compra dos operários aumenta em um quarto.

Os eleitores atribuem tais progressos ao presidente, reeleito em 1936 com uma parcela do voto popular mais significativa do que a de 1932 (61%, contra 57,4%). Não são mais apenas os conservadores do sul que votam democratas, mas também os assalariados, os operários, as minorias, as mulheres, os habitantes dos centros urbanos da costa leste. Roosevelt conseguiu pôr de pé uma coligação de setores que serão fiéis aos democratas até os anos 1960. Ele é, para muitos, a maior esperança da América. Entretanto, a retomada econômica é frágil e se faz a solavancos. A estreia de Superman nas bancas ocorre num período de incertezas econômicas.

*Hélène Harter, professora da Universidade de Rennes II, é especialista em história dos Estados Unidos.

FONTE: HARTER, Hélène. Super-Homem, o salvador da América. História Viva. Disponível em < http://www2.uol.com.br/historiaviva/reportagens/especial_super-herois_super-homem_o_salvador_da_america.html>. Acesso em 08 ago. 2015.