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- Sumário Ansiedade, angústia e outras emoções Prescrição de fármacos psicotrópicos em clínica geral Aplicações Clínicas do modelo dos cinco factores Úlcera gastroduodenal - Perspectivas psicossomáticas Oniomania (compras compulsivas): a propósito de 7 casos Trabalho de pesquisa de factores psicopatolágicos na infância e adolescência de doentes com os diagnósticos de psicose não orgânica (295-298 CID-9) Definições e senso clínico - Breve reflexão sobre a morte e sentimentos com ela relacionados Perturbações psíquicas na gravidez e puerpério JAN./MAR. 1998, Vol. 19 n.º 1 CADEIRA DE PSIQUIATRIA - CLÍNICA PSIQUIÁTRICA - HOSPITAIS DA UNIVERSIDADE - COIMBRA

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Sumário

Ansiedade, angústia e outras emoções

Prescrição de fármacos psicotrópicos em clínica geral

Aplicações Clínicas do modelo dos cinco factores

Úlcera gastroduodenal - Perspectivas psicossomáticas

Oniomania (compras compulsivas): a propósito de7 casos

Trabalho de pesquisa de factores psicopatolágicos na infância e adolescência dedoentes com os diagnósticos de psicose não orgânica(295-298 CID-9)

Definições e senso clínico - Breve reflexão sobre a morte e sentimentos com elarelacionados

Perturbações psíquicas na gravidez e puerpério

JAN./MAR. 1998, Vol. 19 n.º 1

CADEIRA DE PSIQUIATRIA - CLÍNICA PSIQUIÁTRICA - HOSPITAIS DA UNIVERSIDADE - COIMBRA

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Sumário

Ansiedade, angústia e outras emoções - Margarida Morais e J. L. Pio Abreu 5

Prescrição de fármacos psicotrópicosem clínica geral- Car/os Inácio e José A. Carvalho Teixeira 13

Aplicações Clínicas do modelo dos cinco factores-Margarida Pedroso de Lima e Antônio Simões 21

Úlcera gastroduodenal - Perspectivas psicossomáticas -JúlioBrandão, Paulo Horta, José Amarale Rui Coelho 31

Oniomania (compras compulsivas): a propósito de 7 casos - Francisco Allen Gomes, Maria HelenaPinto de Azevedo e Isabel Coelho 41

Trabalho de pesquisa de factores psicopatológicos na infância e adolescência de doentes com os

diagnósticos de psicose não orgânica (295-298 CID-9) - Henrique Pereira, Alda Mira Coelho

e Lucinda Neves 47

Definições e senso clínico - Breve reflexão sobre a morte e sentimentos com ela relacionados - MariaBeatri: Santos 57

Perturbações psíquicas na gravidez e puerpério - Maria Beatriz Santos 61

Prémio de Psiquiatria Clínica Elysio de Moura 71

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Psiquiatria Clínica,19, (I), pp. 5-11, 1998

Ansiedade, angústia e outras. emoções

PORMARGARIDA MORAISC) e J. L. PIO ABREU(2)

Resumo

Enquanto que, para os psiquiatras, ansiedade e angústia se parecem equivaler, as pessoas comunsdistinguem os dois termos na linguagem corrente. Com vista a apreciar esta distinção, os autores construiram8 situações hipotéticas, presumivelmente geradoras de ansiedade ou outras emoções aparentadas, pedindo a 60indivíduos de língua portuguesa para dizer como se sentiriam perante elas. As respostas consistiam em 4alternativasfechadas (inseguro, com medo. ansioso, angustiado) e uma aberta (outros sentimentos). A análiseestatística dos resultados permite demonstrar que os falantes da língua portuguesa reagem com emoçõesdiferenciadas às diversas situações apresentadas. Enquanto que a ansiedade antecipa um acontecimento incertomas com possibilidade de ser agradável. a angústia correspondeà antecipação de danos inevitáveis.

Summary

While anxiety (ansiedade) and anguish (angústia) seem to be equivalent for psychiatrists, commonPortuguese speaking people can distinguish between them. To appreciate this distinction. the authors haveconstructed8hypothetical situations, which may putatively provoke anxiety or other dose emotions, and asked60 Portuguese people to say as they wouldfeel before them. There were4 closed alternative responses (insecure,feared, anxious, anguished), and one open response (otherfeelings). The statistical analysis proved that peoplerespond to each situation with di./ferent emotions. While anxiety anticipates an unknown event with somepossibilities of being grateful, anguish corresponds to the anticipation of unavoidable losses.

INTRODUÇÃO

Sempre que um termo se toma banal pelo seu usomuito frequente, pode suspeitar-se que ele se esvazioudo seu conteúdo. Assim parece ser com o uso da palavra'ansiedade' em psiquiatria. Evocada (e tratada) portudo e por nada, servindo de explicação a múltiplasperturbações, coloca-se porém o problema de saber oque é, ela própria, a ansiedade. Pode-se então recorrera metáforas ("energia mal contida"), explicaçõesobscuras ("líbido sem rumo") ou simplistas ("reflexo

condicionado à dor"), ou ainda a descrições exaustivas

de sintomas elementares que acabam por integrar escalasnem sempre consensuais.

Mais consensual é a inclusão da ansiedade noconjunto das emoções, tal' como o medo, ódio, inveja eculpa (Pio-Abreu, 1994). Mas aqui coloca-se o difícilproblema de definir as emoções e das polémicas que oassunto tem suscitado. Sem entrar no caminho desta'discussão, lembremos que a célebre polémica entreCannon e James (cf. Delay e Pichot, 1975) acabou porrevelar a dupla polaridade das emoções: cognitiva ou

(I) Psicóloga.(2) Psiquiatra do H.U.C.. Professor Associado de Psiquiatria da Faculdade de Medicina de Coimbra.

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6 Margarida Morais eJ. L. Pio Abreu

central e corporal ou periférica. Como diz Sartre (1965),

a consciência emocionada transforma o mundo (que se

tomou insuportável ou inacessível) num mundo mágico,

usando o corpo como instrumento de encantamento. A

medicina biológica, menos preocupada com o

significado e o polo cognitivo das emoções, acabou por

se centrar sobre as. suas manifestações corporais e

fisiológicas, genericamente consideradas como

ansiedade patológica.

Contudo, o termo ansiedade é recente, e impôs-se

sob infl uência da psiquiatria de língua inglesa(anxiety).Até aos anos 50, sob influência da psiquiatria alemã e

francesa, era mais frequente falar-se de angústia(angst,angoisse). Hoje, os termos são genericamente

equivalentes, embora alguns autores reservem a palavra

angústia para a ansiedade mais grave e corporalizada

(Vaz Serra, 1980). Esta assimilação pode porém ser, se

não confusa, pelo menos redutora. Tanto a história dos

dois vocábulos como o seu uso pelos falantes que,

como os portugueses, dispõem correntemente das duas

palavras, podem implicar significados diferentes.

A angústia foi considerada por Kurt Schneider

(1966) como um sentimento sem objecto, ao contrário,

por exemplo, do medo ou do ódio, que geralmente têm

o seu objecto. Porém, é o próprio Kurt Schneider que

nos avisa para o cuidado a ter com esta definição, já

que, enquanto que muitos estados de angústia podem

ter motivo e objecto, noutros casos é o próprio doente

que não os distingue claramente mas, no decorrer da

sua evolução, ele os pode vir a descobrir. Por outro

lado, tanto Lopez Ibor (1950) como Sartre (1943) e

Heidegger (1973) ligam a angústia a um sentimento de

vazio, de nada ou do conhecimento da morte. Sendo

assim, a angústia seria estruturante da natureza humana.

A própria corporal idade da angústia sugeriria esse

vazio, existindo como vertigem (Lopez Ibor, 1950) ou

náusea (Sartre, 1943).Por sua vez, a mais recente noção de ansiedade

pode reflectir o pragmatismo do viver americano. Daí

a sua relação com esse outro termo também ambíguo e

intraduzível que conhecemos porstress,ou ainda a

ligação à resposta de alarme e à simpaticotonia

(Guellhorn & Kiely, 1973). Do mesmo modo, a

corporalidade da ansiedade é, mais frequentemente,

referida ao coração e ao tónus muscular. No entanto, a

partir daqui, a nova conotação do complexo ansiedade-

angústia começa a resvalar para as emoções limítrofes,

como o medo e a insegurança.Para os falantes normais, não intluenciados pelas

teorias psiquiátricas, o problema parece de solução

mais simples. O melhor será então perguntar-lhes em

que condições eles usam cada uma das palavras. Foi

esse o caminho aparentemente seguido pelo brasileiro

Eunofre Marques (1984) que concluiu que a

insegurança, medo, ansiedade e angústia são

fenómenos emocionais que respondem,

respectivamente, às situações vivenciais de incerteza,

ameaça, expectativa e conflito. O presente trabalho

corresponde a uma verificação empírica destas

asserções na população portuguesa. Partimos da

hipótese geral de que ouso de cada designação seria

diferenciado perante diversas vivênc ias

paradigmáticasque se poderiam objectivar.

MATERIAL E MÉTODOS

A amostra foi constituída por 60 alunos do10ano

do Instituto Poli técnico da Guarda - Escola Superior de

Educação, tendo-se apelado para o voluntariado da

resposta. A cada pessoa pedia-se apenas que colocasse

no inquérito a sua idade, sexo e habilitações literárias,

garantindo-se por conseguinte o anonimato.

Foram construidas 8 situações paradigmáticas,

referentes a vivências comuns, mas susceptíveis de

provocar uma emoção que fosse designada porqualq uer

dos termos em causa (insegurança, medo, ansiedade,

angústia). A descrição de cada uma dessas situações foi

apresentadas à população estudada, que era convidada

a responder como se sentiria perante elas. Para a

resposta, existiam 4 alternativas indicadas (inseguro,

com medo, ansioso, angustiado) e uma alternativa

aberta (outras ou nenhuma das anteriores).

Independentemente do inquérito, pediu-se a 5

psiquiatras com experiência clínica que classificassem

cada uma das situações paradigmáticas como vivência

de ameaça, insegurança, expectativa ou conflito. Os

resultados desta classificação, que não eram conhecidos

dos inquiridos, são apresentados junto das descrições.Para comodidade de leitura, as situações paradigmáticas

são apresentadas nos quadros 2 a 9, juntamente com os

resultados.

A significância dos resultados foi analisada através

do Qui quadrado, primeiro para a global idade dos

dados (28 e 4 graus de liberdade), depois para cada uma

das maiores frequências contra todas as outras(I grau

de liberdade).

RESULTADOS

O quadro I mostra os valores numencos das

frequências das respostas alternativas a cada uma das

descrições vivenciais, idcntificadas como situações

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Ansiedade, angústia e outras emoções 7

Quadro I : TABELA GERAL DE FREQUÊNCIAS

Situações 1 2 3 4 5 6 7 8Respostas: Soma

I (insegurança) 15 10 12 28 7 7 11 3 93

2 (medo) 3 23 32 4 O 22 2 49 135

3 (ansiedade) 7 17 I 20 51 I 21 4 122

4 (angústia) 18 8 2 2 I 20 8 I 60

5 (nulas/outra) 17 2. 13 6 I 10 18 3 7

Soma 60 60 60 60 60 60 60 60 480

x2 = 382.60 (28 g.l.), p< 0.001

numeradas de I a 8. A análise estatística mostra que, noseu conjunto, as respostas se diferenciam claramenteem função das situações apresentadas. Este quadro

. mostra também que o medo e a ansiedade foram asrespostas mais frequentes, correspondendo, somadas,a mais de metade do conjunto das respostas.

Os quadros 2 a 9 mostram a descrição

correspondente a cada situação, bem como aclassificação definida pelos psiquiatras, sendo indicadoentre parêntesiso número daqueles que optaram porcada uma das classificações. Para além disso, estãoindicados os valores percentuais das respostas à situaçãoapresentada, comparados com a percentagem dasrespostas ao conjunto da outras situações.

Quadro 2: Situação 1 e percentagem comparativa das respostas emocionais

Classificação independente: Vivência de conflito (4/5)

Imagine que discutiu com o seu (sua) namorado(a). Nesta discussão a razão está do seu lado, no entanto,o seu namorado(a) muito zangado(a) diz-lhe: "Dou-te dois dias para pensares no que me disseste e mepedires desculpa, se não o fizeres nunca mais te quero ver". Você tem quase a certeza de que ele(a) é capazde cumprir aquilo que disse.É um problema que não sabe bem que solução vai ter.

Situação I Outras situaçõesI) Insegurança 25% 19%2) Medo 5% 31%3) Ansiedade 12% 27%4) Angústia 30% * 10%5) Outras/Nulas 28% 13%

x2 = 44.95 (4 g.l.), p<0.001; *X2 = 62.61 (l g.l.), p<O.OOI.

Quadro 3: Situação 2 e percentagem comparativa das respostas emocionais

Classificação independente: Vivência de expectativa (4/5)

Estudou bastante para uma frequência que se aproxima. Os seu colegas de outra turma que já fizeramfrequência a essa cadeira dizem-lhe que esta foi extremamente difícil. Nesta situação você terá tendênciaa sentir-se:

I) Insegurança2) Medo3) Ansiedade4) Angústia5) Outras/Nulas

Situação 2 Outras situações17% 20%38% 27%28% 25%13% 12%3% 16%

x2 = 9.02 (4 g.l.), p > 0.05.

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8 Margarida Morais eJ. L. Pio Abreu

Quadro 4: Situação 3 e percentagem comparativa das respostas emocionais

Classificação independente: Vivência de ameaça (4/5)

Você vai na rua e aproxima-se de si um desconhecido mal encarado. Começa a andar mais depressaprocurando afastar-se dele. No entanto e apesar dos seus esforços, ele continua atrás de si parecendopersegui-lo/a). Nesta situação você terá tendência a sentir-se:

Situação 3 Outras situações1) Insegurança 20% 19%2) Medo 53%* 25%3) Ansiedade 2% 29%4) Angústia 3% 14%5) Outras/Nulas 22% 14%

x2 = 37.69 (4g.l.), P < 0.001; X*2 = 111.33 (1g.l.), P < 0.001.

Quadro 5: Situação 4 e percentagem comparativa das respostas emocionais

Classificação independente: Vivência de incerteza (4/5)

Você concorreu a um emprego para o qual as suas qualificações são bastante boas. Antes da entrevista,trava conhecimento com os restantes candidatos e apercebe-se de que todos eles são bastante bemqualificados parao cargo a desempenhar, o que tomará aentrevistade certo modo decisiva. Nesta situaçãovocê tenderá a sentir-se:

Situação 4 Outras situações1) Insegurança 47%* 15%2) Medo 7% 24%3) Ansiedade 33% 24%4) Angústia 3% 14%5) Outras/Nulas 10% 15%

x2 = 44.88 (4g.l.), P < 0.=1; X*2 = 185.49 (1g.l.), P < 0.001.

Quadro6: Situação5 e percentagem comparativa das respostas emocionais

Classificação independente: Vivência de expectativa (3/5);Vivência de incerteza (2/5).

Você está apaixonado(a) por alguém a quem decidiu escrever explicando o que sente e pedindo-lheque aceite namorar consigo. Enquanto espera a resposta pensa que poderia sentir-se

Situação 5 Outras situaçõesI) Insegurança 12% 20%2) Medo 0% 32%3) Ansiedade 85%* 17%4) Angústia 2% 14%5) Outras/Nulas 2% 16%

x2 = 131.45 (4g.l.), p < 0.001; X*2 = 647.08 (1 g.l.), P < 0.001

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Quadro 7: Situação 6 e percentagem comparativa das respostas emocionais

Classificação independente: Vivência de ameaça (3/5)

Você está ao volante de um carro, de repente um cão muito grande atravessa à sua frente e é-lhe impossíveldesviar-se sem pôr em risco os outros ocupantes do carro. Nesta situação você tenderia a sentir-se:

Situação 6 Outros situaçõessI) Insegurança 12% 20%2) Medo 37% 27%3) Ansiedade 2% 29%4) Angústia 33%* 10%5) Outras/Nulas 17% 14%

x2-= 43.11 (4g.l.), p < 0.001; X*2 = 165.93 (1g.l.), p < 0.001.

Quadro 8: Situação 7 e percentagem comparativa das respostas emocionais

Classificação independente: vivência de expectativa (4/5)

Imagineque está num autocarro em que entra um revisor. Subitamente você apercebe-se de que perdeuo seu bilhete. Na impossibilidade de abandonar o autocarro, lembra-se que o condutor o(a) viu entrar evalidar o bilhete. Só lhe resta explicar a situação ao revisor e esperar que ele compreenda. Nesta situaçãovocê tenderia a sentir-se:

Situação 7 Outras situações1) Insegurança 18% 20%2) Medo 3% 32%3) Ansiedade 35% 24%4) Angústia . 13% 12%5) OutraslNulas 30%* 12%

x2 = 28.71 (4g.l.), p < 0.001; X*2 = 78.71 (1 g.l.), p < 0.001.

Quadro 9: Situação 8 e percentagem comparativa das respostas emocionais

Classificação independente: Vivência de ameaça (4/5)

Imagine que seencontra num Caixa Automática a levantar dinheiro.É noite, está relativamente escuroe a zona encontra-se deserta. Repentinamente surge um indivíduo que lhe ordena que levante dinheiro paralhes dar. Nesta situação pensa que se sentiria:

Situação 8 Outras situaçõesI) Insegurança 5% 21%2) Medo 82%* 20%3) Ansiedade 7% 28%4) Angústia 2% 14%5) Outras/Nulas. 5% 16~

x2 = 97.45 (4g.l.), p < 0.001; X*2 = 485.22 (1g.l.), p< 0.001.

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lO Margarida Morais eJ. L. Pio Abreu

Como mostram estes quadros, apenas a situação 2(Quadro 3), identificada maioritariamente comovivência de expectativa, não revelou uma diferenciaçãosignificativa dasemoções com que os entrevistadosresponderiam plausivelmente. Em relação às outrassituações, a resposta significativamente mais frequenteseria de medo em relação às vivências de ameaça(Quadros 4 e 9), de insegurança em relação àvivênciade incerteza (Quadro 5), e de ansiedade em relação àvivência de expectativa e incerteza (Quadro 6). Aangústia seria uma resposta às situações 1 e 6 (Quadros2 e 7), respectivamente classificadas como vivênciasde conflito e de ameaça, muito embora estasclassificações não fossem unânimes. Finalmente, nasituação 7(Quadro 8), classificada como expectativa,e apesar da resposta de ansiedade sermaioritária,

apenas a altemativa 5 (outras emoções ou respostasnulas) se diferenciou significativamente do conjuntodas outras.

DISCUSSÃO

Apesardo pequeno número da amostra, este estudovem demonstrar que os falantes normais, pelo menosos de línguaportuguesa, sabem diferenciar as suasemoções e, bem melhor do que os psiquiatras, separamclaramente a ansiedade da angústia ou de outras emoçõesaparentadas. Na sua generalidade, estes resultadosconfirmam também as constatações de Eunofre Marques(1984) com uma população que, embora no Brasil, falatambém a língua portuguesa: a insegurança é a emoçãocorrespondente à situação vivencial de incerteza, omedo à de ameaça, a ansiedade à de expectativa, e aangústia à de conflito. Contudo, estas conclusões sãoapenas tendenciais, já porque nem sempre elas seconfirmam, ou porque a classificação das situações nãoé unânime e poderiam existir outros termos para asdesignar. Melhor do que esta classificação, fala aanálise das situações específicas que foram apresentadasneste estudo preliminar.

O medo é a emoção menos polémica. Ela surgiriaem 80% dos casos na situação 8, em que o inquiridoseria ostensivamente ameaçado por um ladrão, comgrandes probabilidades de não poder escapar ao seudomínio. Na situação 2, emquea maioria dos inquiridos(53%) indicou o medo, a possibilidade de fuga existiaainda, e a ameaça não era tão ostensiva. Daí que osrestantes inquiridos respondessem pela insegurança ououtras emoções.

A resposta pela insegurança é significativamentemaioritária na situação 4, claramente competitiva, mas

onde o objectivo desejado depende apenas do bomdesempenho do sujeito na entrevista que ele antecipa.Ao contrário das situações que implicam medo, não setrata aqui de escapar de um perigo mas de obter umdesiderato bem pensado. O factor sorte pode ajudar,mas a sua ponderabilidade será avaliada em função dasexperiências prévias do s~jeito. E essa ponderabilidade(ou a imponderabilidade da sorte e a insegurança quedaí resulta) pode ajudar ao desempenho. Não se deveesquecer que os inquiridos fazem parte de umapopulação escolar que diariamente se defronta comeste problema.

Em todas as outras situações, a insegurança é osentimento mais difusamente respondido (desde12%nas situações5 e 6, até25% na situação 1). Ele podeassim depender mais do sujeito do que da situação.Erickson (1963) coloca-o de facto como um sentimentobásico e decisivo, que depende da adequação doscuidados matemais durante a primeira fase da vidainfantil. Ao contrário das outras emoções, ainsegurança nasce da relação do indivíduo consigopróprio, tal como o orgulho ou a humildade (Pio-Abreu, 1994). Daí que, mais do que uma emoção, elapossa ser um afecto que relaciona o indivíduo consigopróprio, e por isso um afecto básico na formação dapersonalidade.

A situação 5 é aquela que mais claramentediferencia a resposta ansiosa, aqui indicada por85%dos inquiridos. Apesar de tudo, a classificação destasituação é ambígua, oscilando entre a expectativa e aincerteza. Trata-se da possibilidade, embora incerta, deuma relação amorosa intensamente desejada. Aocontrário do medo, o desfecho da situação é gratificante,embora também se possa prever uma perda dolorosa.Contudo, a decisão não está nas mãos do sujeito, peloque não lhe resta senão esperar o dia ansiado. De facto,no português corrente, a ânsia está ligadaà espera eantecipação de um momento específico em que ovivido se tome mais agradável.

Pelo contrário, aangústia diferencia-se claramenteda ansiedade nas situações paradigmáticas 1 e 6, emque, por muito que se faça, há apenas que escolher entredois danos, qualquer deles desagradável. Assim, maisdo que uma vivência de conflito ou ameaça, trata-se daantecipação de danos ou perdas inevitáveis. Daí a sualigação ao vazio ou à consciência da morte (Lopez lbor,1950, Heidegger, 1973). Daí também, mas ao contráriodo que as mais recentes nosografias psiquiátricas nospropõem, a ligação da angústia à depressão. Sequestionarem alguém que saiba da sua própria morte ouda morte de um ente querido a curto prazo (por doença

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Ansiedade, angústia e outras emoções

maligna ou outra razão ), ele certamente não se declararáansioso, mas sim angustiado.

A situação 7, classificada como expectativa, nãorevelou qualquer diferenciação, embora predominassea resposta de medo. Esta resposta é surpreendente, jáque a situação se assemelha à situação 4, a qualdiscriminou a resposta de insegurança. Contudo, devenotar-se mais uma vez que a amostra pertence a umapopulação escolar, e que esta situação, inquirida pelaprópria professora, se refere a um exame. Este possívelenviezamento não exclui a validade das outras respostas,dado que os valores estatísticos são, nestas últimas,claramente significativos.

De facto, esteestudo é preliminar e, mais do quechegar a conclusões definitivas, ele procura testar a

11

validade de um método que se afigura útil para umamelhor afinação dos termos que nós usamos. Assuntoeste que reveste maior importância no capítulo aindanebuloso dos sentimentos e emoções. Há pois quereplicar este estudo, construindo novas situaçõesparadigmáticas porventura mais adequadas a esta ou aoutras emoções. A alternativa aberta que diferenciou asituação 5 é ilustrativa a este respeito. Trata-se de umcaso em que o sujeito terá de explicar o facto de estarem situação ilegal e sujeitar-se à autoridade, que podeconhecer as razões do cliente, mas que também poderáusar o seu poder discricionário. A complexidade dasituação pode pois desencadear emoções maiscomplexas (embaraço, vergonha), que não asconsideradas nas alternativas fechadas.

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Psiquiatria Clínica,19, (I), pp. 13-19, 1998

Prescrição de fármacos psicotrópicos em clínica geral

PORCARLOS INÁCIOC) eJOSÉ A. CARVALHO TEIXEIRAe)

Resumo

Os autores estudaram a prescrição de fármacos psicotrópicos em 944 utentes que, durante 1 mês,frequentaram uma consulta de Clínica Geral. Verificaram que cerca de 1/4 dos utentes receberam prescriçãode psicofármacos, maisfrequentemente ansiolíticos (Alprazolam) ou hipnóticos (Loprazolam), particularmenteem sujeitos com idade igualou superior a 60 anos .

. Summary

The authors studied a sample of944 patients of'both sexes, during I month, ali treated in afamily doctoroutpatient programo The aim of the study \Vas assessment of psychotropic drug usage.

1. INTRODUÇÃO antidepressivos. Tem sido referido que esse aumentodo uso de fármacos psicotrópicos incide maisfrequentemente entre as pessoas idosas eo sexo feminino(REYNAUD e COUDERT, 1987), e que parte muitosignificativa da prescrição de fármacos psicotrópicosocorre em consultas de Clínica Geral.

Alguns estudos realizados.ern Portugal sobre aprescrição de fármacos psicotrópicos em ClínicaGeral (AZEVEDO e col., 1984a, 1984b) evidenciaramque uma percentagem elevada (32%) das pessoas que

consultaram num determinado período receberam uma

Os fármacos psicotrópicos são o conjunto desubstâncias químicas (de origem natural ou artificial)que, por acção directa ao nível do Sistema NervosoCentral, são susceptíveis de modificarocomportamento.Incluem-se dentro deste grupo de fármacos ostranquilizantes, hipnóticos, antidepressivos,neurolépticos, reguladores do humor, estimulantes davigilidade e outros.

No decurso dos últimos vinte anos vários trabalhospuseram em evidência uma banalização do seu uso, ou mais prescrições de psicotrópicos, com maiornomeadamente por prescrição médica (TRETHO- frequência de prescrição a mulheres e a pessoas deWAN, 1975; LADER, 1978, 1981;REYNAUD e meia idade (40 a 59 anos), particularmente deCOUDERT, 1987), particularmente no que se refere a tranquilizantes/hipnóticos ede antidepressivosemboratranquilizantes/hipnóticos (benzodiazepinas) e a com algumas diferenças entre meio urbano e rural.

(1) Médico de Clínica Geral Centro de Saúde de Peniche.(2) Médico Psiquiatra Assistente no ISPA - Instituto Superior de Psicologia Aplicada (Lisboa) Coordenador da

Unidade de Saúde Mental do ICIL - Instituto Clínico e Imunológico de Lisboa (Dir.: Prof. Dr. MachadoCaetano).Toda a correspondência respeitante a este artigo deverá ser enviada para:CARLOS INÁCIO: Centro de Saúdede Peniche, Av. Gen. Humberto Delgado, 2520 PENICHE; ouJOSÉA. CARVALHO TEIXEIRA: ISPA - InstitutoSuperior de Psicologia Aplicada, Rua Jardim do Tabaco, 44, 1100 LISBOA, Tel: (01) 8863184/5/6.

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14 Cartas lnácio e José A. Carvalho Teixeira

Assim, é plausível pensar-se que a prescnçao depsicotrópicos em Clínica Geral varie consoante a idadee o sexo.

O problema investigado neste estudo exploratóriofoi enunciado da seguinte forma:

Será que, numa consulta de Clínica Geral,a prescrição de fármacos psicotrópicos é maisfrequente no sexo feminino e entre pessoas demeia idade?

Assim, este estudo teve por finalidade investigaras características da prescrição de fármacospsicotrópicos numa consulta de Clínica Geral e,especificamente, saber se existem ou não diferenças naprescrição desses fármacos em relação ao sexo e àidade dos sujeitos a quem são prescritos.

Neste trabalho aparecem subdivididos emansiolíticosl Ihipnóticos, antidepressivos,neurolépticos e outros.

Por pessoas de meia idade entendem-se nestetrabalho todos os sujeitos com idades compreendidasentre os 40 e os 59 anos.

Sendo esse o objectivo principal do trabalho,identificaram-se como questões a investigar:

- No período considerado, saber qual a proporçãode sujeitos que recebeu uma ou mais prescriçõesde fármacos psicotrópicos

- Saber qual a proporção de sujeitos que recebeuapenas prescrição de fármacos psicotrópicos emrelação àqueles em que a prescrição depsicotrópicos foi simultânea à prescrição de outrosfármacos para tratamento de situações médicasdiversas

- Investigar qual a frequência da prescrição defármacos psicotrópicos em relação ao sexo, àidade e ao estado civil, em particular saber se háou não maior frequência de prescrição no sexofeminino e entre pessoas de meia idade

- Saberse os ansiolíticos/hipnóticos correspondemou não ao maior número de prescrições, quandocomparados com os antidepressivos e osneurolépticos

- Entre os sujeitos a quem foram prescri tos fármacospsicotrópicos, saber qual a proporção derepeti dores da prescrição, isto é, se se tratou deuma primeira prescrição ou, pelo contrário, dacontinuação dum tratamento anterior

- Saber de quem foi a iniciativa da prescrição defármacos psicotrópicos (Clínico Geral ouEspecialista?).

2: PSICOTRÓPICOS EM CLÍNICA GERAL

É reconhecido que há uma banalização do uso defármacos psicotrópicos (REYNAUD e COUDERT,1987),quer seja por prescrição médica(particularmentede benzodiazepinas e de antidepressivos) quer seja porautomedicação (particularmente com benzodia-zepinas).

Já na década de 70 vários trabalhos indicaram quese verificavam aumentos significativos da prescriçãode fármacos psicotrópicos e do seu consumo(TRETHOWAN, 1975; LADER, 1978, 1981). Esteautor referi uque com a prescrição excessiva de fármacospsicotrópicos se está muitas vezes a medicalizardificuldades com origem primariamente pessoal,interpessoal ou ambiental, que necessitariam antes deoutro tipo de intervenção, nomeadamente psicológicaou social (LADER, 1978) que aquele modelo biológiconão pode fornecer. Entre os vários factores queconcorrem para o aumento da prescrição de fármacospsicotrópicos, um alvo de críticas tem sido o ClínicoGeral (AZEVEDO e col., 1984a).

Nalguns países, como em França, existem dadossobre os produtos farmacêuticos que são prescritosanualmente. Assim, no que se refere a esse país,verificou-se que, em 1985, entre os 22 primeirosmedicamentos mais prescritos figuravam 9benzodiazepi nas, sendo 6 tranquilizantes (LorazepamI rng, Clorazepato 5 mg, Bromazepam 1,5 mg,Lorazepam 2,5 mg, Oxazepam 50 mg e Clobazam 10rng) e 3 hipnóticos (Triazolam 0,5 mg, Flunitrazepam2 mg, e Estazolam), enquanto três anos antes, entre osvinte primeiros produtos mais prescritos apenas existiam3 benzodiazepinas (C.N.A.M., 1985), sendo referidoque 83,4% das prescrições das benzodiazepinas eramfeitas pelos Clínicos Gerais, em situações de estadosneuróticos e ansiosos, crises de natureza diversa(conjugais, familiares, profissionais), síndromes"funcionais" com fundo de ansiedade e patologiapsicossomática (REYNAUD e COUDERT, 1987).

Não foi possível ter uma ideia em relação ao que sepassa entre nós, mas é importante ter em conta que a.França é o país que consome mais tranquilizantes porhabitante: tem um consumo anual de tranquilizantessemelhante ao dos Estados Unidos da América, quetem uma população cinco vezes superior.

Ainda no que se refere a França, comparando 1984com o que se passava em 1975, verificou-se que oconsumo de antidepressivos triplicou, não só por

alargamento das suas indicações mas também porbanalização da prescrição por parte do Clínico Geral

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Prescrição defármacos psicotrópicos em clínica geral

(REYNAUD e COUDERT, 1987). Finalmente, a

prescrição de neurolépticos manteve-se estável, com

utilização predominantemente psiquiátrica.

Em síntese, a tendência verificada para um

aumento significativo da prescrição de fármacos

psicotrópicos foi feita principalmente à custa da

prescrição de benzodiazepinas e em parte menos

importantepela prescrição de fármacos antidepressivos.

Não podemos extra polar os dados verificados

em França para o nosso país; contudo, é plausível

supor-se a existência dum fenómeno semelhante,

dado o aumento verificado na demografia médica em

Portugal e, sobretudo, a banalização facilmente

constatável da prescrição de fármacos psicotrópicos.

Acresce a tendência geral para medicalizar tensões

interpessoais, dificuldades sociais e profissionais que

causando eventualmente mal-estar e sofrimento, não

são propriamente doenças, nem abordáveis

adequadamente por modelos de intervenção biológica.

Refira-se, por exemplo. um inquérito realizado em

França que mostrou que 95% das consultas de Clínica

Geral terminavam com uma prescrição medicamentosa

embora paradoxalmente, os médicos envolvidos

referissem que em mais de 50% dos casos, os motivos

de consulta eram queixas psicossomáticas ou

dificuldades sociais (RA YNAUD e COUDERT, 1987).

Vários autores referem que pelo menos metade

dos doentes que recorrem aos serviços de Cuidados de

Saúde Primários têm um factor psicossocial como

desencadeador da consulta (ROBERTS, 1952 e

STOECKEL, 1964 citados por BORRELL CARRIÓ e

col.. 1991) e que a maior parte das perturbações

emocionais são atendidas no primeiro nível de cuidados

de saúde, pois apresentam-se frequentemente por

queixas corporais.Estes factos permitem compreender mais

facilmente, a banalização da prescrição de fármacos

psicotrópicos nos Cuidados de Saúde Primários e, mais

particularmente, a prescrição de tranquilizantes,

hipnóticos e antidepressivos (BORRELL CARRIÓ e

col.,1991).

Entre nós, não tivemos acesso a estudos que

fornecessem o perfil da utilização de fármacos

psicotrópicos pela população portuguesa. No entanto,

dois estudos publicados em 1984 permitem ter algumaideia sobre a prescrição de fármacos psicotrópicos

em Clínica Geral (AZEVEDO e col. 1984a, 1984b)

e que tiveram por finalidade analisar os hábitos deprescrição do Clínico Geral, comparando uma área

urbana com outra rural. Foi estudada uma população

constituida pelos doentes que, durante um mês,

15

frequentaram as consultas de Clínica Geral duma

Unidade de Cuidados de Saúde Primários, num total

de 475 sujeitos de ambos os sexos (30,9% de homens

e 69, I% de mulheres), com idades superiores a 16

anos. Verificou-se que 152 sujeitos (32% do total)

receberam uma ou mais prescrições de

psicotrópicos, entre os quais 83,6% receberam

simultaneamente prescrições de outros fármacos, para

tratamento de situações médicas. Entre os princi pais

resultados referem-se:

- Maior frequência de prescrição a mulheres e a

pessoas de meia idade, embora o aumento com

a idade só tenha sido evidente no sexo feminino

até aos 50 anos

- Considerando toda a população estudada apurou-

se que um maior número recebeu prescrições de

ansiolíticos/hipnóticos (30,5%), sendo todos

derivados benzodiazepínicos; depois aparecem

os antidepressivos (5,I%) e, em último lugar, os

neurolépticos (0,4%)

- Os sujeitos com fármacos psicotrópicos 95,3%

receberam prescrições de ansiolíticos/hi pnóticos,

15,8% de antidepressivos e 1,3% de neurolépticos

- Entre os sujeitos com ansiolíticos/hipnóticos

28,3% destacavam-se pelo facto de constituirem

um grupo de repetidores de prescrições ao

longo do período de tempo considerado no estudo

- As prescrições de antidepressivos foram feitas

principalmente para o sexo feminino e osneurolépticos só foram prescritos para o sexo

masculino e em sujeitos com 60 anos ou mais

anos de idade.- Segundo o estado civil, a maioria das prescrições

de psicofármacos é feita a pessoas divorciadas

(50%), mas diferentemente conforme os sexos:

no masculinoé mais frequente nos sujeitos viúvose divorciados (33,3%), enquanto no feminino são

as divorciadas que recebem a maioria das

prescrições de fármacos psicotrópicos (66,7%)

- A benzodiazepina mais frequentemente prescrita

foi o Bromazepam, seguida pelo Lorazepam

- As prescrições de fármacos psicotrópicos

, atingiram percentagens mais elevadas entre os

40-49 anos.

A comparação que foi feita dos resultados obtidospara a área urbana e rural (AZEVEDO e col., 1984b)

mostrou que na área rural é mais elevada a proporção

de sujeitos com uma ou mais prescrições (43,I%), nãoétão marcada a diferença entre os sexos,é ainda maior

a tendência para a prescrição associada a outros fármacos

(90,6%) para o tratamento de situações médicas

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16 Carlos Inácio e José A. Carvalho Teixeira

diversas, e que as prescrições de ansiolíticos/hipnóticose de antidepressivos atingem percentagens maiselevadas na década dos 50-59 anos. Foi concluido, apósanálise comparativa, haver concordância no padrãogeral de prescrições e que algumas di ferenças poderiamcorresponder a características diferentes das populaçõesestudadas e a factores relacionados com o médico e,também, ao menor número de doentes estudados naárea rural. Finalmente, refira-se que os trabalhosmencionados não esclarecem de quem foi a iniciativada prescrição, se o Clínico Geral ou dum Especialista,aspecto que nos parece importante porque, naturalmenteé esperável que parte das prescrições feitas na consultade Clínica Geral possam ser feitas por indicação de umEspecialista, nomeadamente de Psiquiatria.

3. MATERIAL E MÉTODOS

A população estudada consistiu nos 944 utentesque - durante um mês - frequentaram uma consulta deClínica Geral.

A amostra que recebeu prescrição de psicotrópicosficou constituida por 228 sujeitos de ambos os sexos,sendo 160 (70,2%) do feminino e68 (29,8%) domasculino.

Alguns desses sujeitos acorreram mais de uma vezàconsulta no período considerado, mas apenas se fez oregisto de uma vez para efeitos de análise de dados.

Os 228 sujeitos correspondem a 24,1% do total deutentes que acorreram à consulta no períodoconsiderado. A distribuição dos 228 sujeitos é a seguintepor sexo, idade, estado civil e profissão:

Homens 68 29,8%

Mulheres 16O· 70,2%

Total 228(

100,0%

Quadro I - Distribuição por sexo

<ou = 19 8 3,5%

20-29 16 7,0%

30-39 16 7,0%

40-49 47 20,6%

50-59 48 21,1%

> ou = 60 93 40,8%

Total 228 100,0%

Quadro II - Distribuição por grupos etários

Estado Civil H M TOTAL %

Casado 52 124 176 77,2

Solteiro 6 15 21 9,2

Viúvo 3 28 31 13,6

Total 61 167 228 100,0

Quadro III - Distribuição por estado civil

Reformado 79 34,8%

Doméstica 84 37,0%

Rural 6 2,6%

Marítimo 17 7,5%

Estudante 6 2,6%

Comerciante I 0,4%

Operários Especializados 12 5,3%

Operários não-Especializados 5 2,2%

Técnicos de Serviços 17 7,5%

Total 228 100,0%

Quadro IV - Distribuição por profissões

Assim, a amostra dos 228 sujeitos aos quais foifeita prescrição de fármacos psicotrópicos é constituidapredominantemente por mulheres (70,2%). A maioriados sujeitos da amostra (82,5%) tem mais de 40anos.

- 41,7% entre os 40 e os 59 anos- 40,8% com idade igualou superior a 60 anos.

Quanto ao estado civil, a maioria (77,2%) dossujeitos écasada, havendo 13,6% de viúvos e 9~2%desolteiros.

Na distribuição por profissão verifica-se que há

34,8% de reformados e 37,0% de domésticas, enquantoos restantes 28,2% englobam várias profissões.

Para efeitos de estudo considerou-se importanteainda caracterizar a amostra em relação a:

- Presença ou ausência de prescrição defármacos não psicotrópicos.

- Iniciativa da prescrição de psicotrópicos(Clínico GeraIlPsiquiatra).

- Primeira prescrição/Continuação.

Outros Fármacos183 sujeitos (80,3%) tiveram prescrição de outros

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Prescrição de fármacos psicotrópicos em clínica geral

fármacos simultâneos à prescrição de psicotrópicos

Clínico Geral 204 89,5%

Especialista 24 10,5%

Total 228 100,0%

Quadro V - Iniciativa da prescrição

la Prescrição 44 19,3%

Continuação 184 80,7%

Total 228 100,0%

Quadro VI - 1a prescrição/continuação

Foi feito tratamento de dados como programaSPSS/PC e foram utilizadas as seguintes técnicasestatísticas: coeficiente de correlação de Pearson,t-

teste para a significância das diferenças de médias eanálise de variância.

4. RESULTADOS E DISCUSSÃO

Entre os 944 utentes que frequentaram a consultade Clínica Geral no período considerado (1 mês),24,1 % (228) receberam uma ou mais prescrições depsicotrópicos, proporção que é bastante inferiorà de32%, referida na literatura revista (AZEVEDO e col.,1984a).

Verificou-se que apenas 19,7% (45/228) dossujeitos tinham recebido exclusivamente umaprescrição de fármacos psicotrópicos, tendo os outros80,3% (183/228) recebido simultaneamente prescriçãode outros fárrnacos para tratamento de situações médicasdiversas. Este resultado, esperável no âmbito de umaconsulta de Clínica Geral, é semelhante ao encontradopor AZEVEDO e col. (1984a, 1984b).

No grupo de sujeitos que além dos psicotrópicosrecebeu prescrição de outros fármacos (183/228)verificou-se que, em média, consomem maisansiolíticos/hipnóticos do que os sujeitos que hão têmprescrição simultânea de outros fármacos, não havendodiferenças em relação aosantidepressivos.

Quanto à frequência de prescrição verificou-seque os psicofármacos mais frequentemente prescritosforam o Loprazolam (Dormonoct), Alprazolam(Xanax) e Bromazepam (Lexotan), seguidos de pertopelo Lorazepam (Lorenin). Tal como nos estudosrevistos, os compostos mais frequentemente prescritossão benzodiazepinas. No entanto, no presente estudo a

17

benzodiazepina mais prescrita é um hipnótico, enquantonaqueles estudos eram os ansiolíticos.

Este resultado poderá eventualmente significarque os sintomas-alvo que levaram à prescrição dospsicofárrnacos em situações médicas serão,predominantemente, a ansiedade e a insónia.

Considerando toda a amostra estudada, verificou-se que 89% receberam prescrição de ansiolíticoslhipnóticos, Ii % de antidepressivos e 7% deneurolépticos. Este "perfil" de prescrição depsicotrópicos é mais ou menos semelhante ao referidopor AZEVEDO e col. (1984a), excepto no referente aneurolépticos:

Psicotrópicos EstudoactualAzevedoe colo

Ansiolíticos/hipnóticos 89% 95,3%

Antidepressivos 11% 15,8%

Neurolépticos 7% 1,3%

Quadro VII - Comparação inter-estudos

Entre os sujeitos que receberam prescrição deansiolíticos/ hipnóticos, 78,9%( 180/203) receberamapenas 1 composto benzodiazepínico. Apenas 10%(23/203) receberam 2 compostos benzodiazepínicosque constituíram, neste caso, a associação entre umansiolítico e um hipnótico.

Verifica-se que, tal como referido por AZEVEDOe col. (1984a), os antidepressivos e osneurolépticos

são de utilização limitadaem Clínica Geral. No presente. estudo, verificou-se mesmo que a prescrição deantidepressivos e de neurolépticos -é,

predominantemente, da iniciativa do especialista,aspecto que não tinha sido estudado nos trabalhosrevistos, que não investigaram de quem na realidadeera a iniciativa da prescrição, variável que foiconsiderada no presente estudo.

Finalmente, no presente estudo considerou-se umgrupo de Outros Psicotrópicos, onde foram incluidosanti-epilépticos, lítio e tranquilizantes naturais(valeriana); 7,5% dos sujeitos da nossa amostra (17/228) receberam uma prescrição deste grupo,predominantemente de valeriana.

No grupo dos antidepressivos, a Clomipramina(Anafranil) foi o fármaco mais prescrito.

No grupo dos neurolépticos, a Tioridazina(Melleril), foi o fármaco mais prescrito.

Verificou-se ainda a existência de uma correlaçãonegativa significativa entreprescrição de benzodiazepinase de neurolépticos. Sendo estes últimos mais

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18 Carlos Inácio e JoséA. Carvalho Teixeira

significativamente prescritospor iniciativadoespecialistaa homens solteiros com menos de 30 anos de idade, épertinente pensar-se que possam corresponder a estadospsicopatológicos de natureza psicótica, nos quais asbenzodiazepinas não têm praticamente indicação comotranquilizantes quando se instituiu uma terapêuticaantipsicótica com neurolépticos .

Em relação ao sexo verificaram-se as seguintesdiferenças significativas: Asmulheresconsomem maisansioIíticos/hipnóticos do que os homens; estes,consomem significatiyamente mais neurolépticos doque as mulheres. No que se refere aos antidepressivosnão se apuraram diferenças significativas em relação aosexo nem à idade, excepto no grupo etário entre os 30-39 anos, no qual o consumo desses fármacos ésignificativamente maior entre os homens.

Em relação à idade verificou-se que, em média eindependentemente do sexo, são os sujeitos commais de 40 anos de idade que consomem maisansioIíticos/hipnóticos, o que quer dizer que, a partirdaquela idade, esbate-se a diferença anteriormentemencionada no que se refere ao consumo desses.fármacos.

Em relação ao estado civil verificou-se que:- Os sujeitos solteiros consomem significativa-

mente menos ansioIíticos/hipnóticos do que oscasados e os viúvos, independentemente do sexo.No entanto, os homens solteiros consomem maisneurolépticos

. - O consumo de antidepressivos é independente doestado civil na amostra do presente estudo.

Comparando estes resultados com os dos trabalhosrevistos, verificamos que há alguma concordância noque se refere ao consumo de benzodiazepinas emrelação ao estado civil, mas como a nossa amostra nãoinclui sujeitos divorciados, os nossos resultados sãodiferentes, não confirmando que a maioria dasprescrições de psicotrópicos seja feita a divorciados,tal como referido por AZEVEDO e col., (1984a) parauma população urbana.

Em relação à profissão não se apuraram diferençassignificativas, pois os grupos profissionais consideradosna amostra são muito diferentes na sua constituição,pelo que não foi possível valorizar os resultados.

No que se refere à iniciativa da prescriçãoverificou-se que, em geral, elaé da iniciativa do ClínicoGeral, sendo este resultado significativo. No entanto,quando se estuda a iniciativa em função dos grupos depsicotrópicos que foram considerados, verificou-seque aquele resultado se deve à prescrição de ansiolíticos/hipnóticos, uma vez que os antidepressivos e

neurolépticos são predominantemente da iniciativa doPsiquiatra, sendo as diferenças também significativas.Em particular verificou-se que os sujeitos aos quaisforam prescritos neurolépticos não têm prescrição defármacos não-psicotrópicos, o queé concordante com .a iniciativa da prescrição ser do Psiquiatra e, portanto,é plausível pensar-se que correspondem a prescriçõesrelacionadas com patologia mental.

Finalmente, em relação à diferença entre 1"prescriçãolcontinuação verificou-se que 80,7% (184/228) correspondem a continuação e 19,3% (44/228)correspondem a 1a prescrição no período considerado.Quando se analisa esta diferença em função dos trêsgrupos de psicotrópicos considerados, verificou-se queos ansiolíticos/hipnóticos e os antidepressivos não sãodiferentemente prescritos consoante sejam aIaprescriçãoou a continuação, mas que os neurolépticos· apresentamessa tendência para serem de continuação, o que está deacordo com o resultado anterior que aponta para seremprescrição predominantemente psiquiátrica.

5. CONCLUSÕES

No presente estudo exploratório mostrámos que aprescrição de fármacos psicotrópicos é mais frequenteno sexo feminino do que no masculino. No entanto,verificámos que esta diferença, queé significativa, édevida à prescrição de ansioIíticos/hipnóticos

Pelo contrário os neurolépticos sãosignificativamente mais prescritos aos homens do queàs mulheres e a prescrição de antidepressivos não ésignificativamente diferente consoante os sexos,excepto entre os homens do grupo etário dos 30-39anos, que recebeu mais antidepressivos que as mulheresda mesma idade.

Verificou-se também que a prescrição depsicotrópicos é mais frequente a partir dos 40 anos deidade mas não o é entre pessoas de meia idade (40-59anos) na amostra estudada. A maior frequência é devidaà prescrição de ansiolíticos/hipnóticos, queé mais oumenos equivalente aos sujeitos com idade igualousuperior a 60 anos.

Em relação às questões que nos propusemosinvestigar podemos concluir que:

- 24,1% (228/944) do sujeitos que frequentarama consulta no período estudado receberamuma ou mais prescrições de psicotrópicos,percentagem inferior à dos estudos revistos.Contudo, a sua distribuição por sexos (29,8% dehomens e 70,2% de mulheres) é mais semelhanteà desses estudos

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Prescrição defármacos psicotrópicos em clínica geral

- Apenas 19,7% (45/228) receberam

exclusivamente psicofármacos, resultado que

também está de acordo com o obtido por

AZEVEDO e cal. (I 984a)

- Os ansiolíticos/hipnóticos correspondem ao

maior número de prescrições: 8,1 vezes mais

do que os antidepressivos e 12,7 vezes mais do

que os neurolépticos. Este resultado tal como a

frequência de prescrição dos antidepressivos está

de acordo com os obtidos por AZEVEDO e cal.

(l984a), o que já não acontece com a prescrição

dos neurolépticos- Os repetidores de prescrição constituiram a

maioria dos sujeitos, numa percentagem de

80,7% (184/228), percentagem muito superior à

obtida em estudos anteriores. No entanto, essa

diferença não tem grande significado uma vez

que verificámos no nosso estudo que,

designadamente no que se refere aos ansioljticos/

hipnóticos, eles não são diferentemente prescritos

consoante sejam a Ia prescrição ou continuação

- A iniciativa de prescrição dos fármacos é

predominantemente do Clínico Geral no que

se refere a ansiolíticos/hipnóticos e quando se

trata de antidepressivos e de neurolépticos, é

predominantemente do Psiquiatra- Tal como acontecia nos estudos de Azevedo e

cal. (1984a, 1984b), o Diazepam não foi o

fármaco mais prescrito mas também não foi o

Bromazepam, mas sim o Loprazolam

19

(Dormonoct) seguido pelo Alprazolam(Xanax).

Este resultado terá sido também influenciado

pelos oito anos de diferença entre os estudos

Em relação àprescrição de ansiolíticos/hipnóticos

por grupos etários verificámos que, no presente estudo,

ela foi maior nos sujeitos com idade igualou superior

a 60 anos, sem diferença significativa entre os sexos.

Este resultado foi diferente do obtido entre os 40 e os 49

anos no estudo de AZEVEDO e cal. (1984a), mas

parece ser devido a diferenças nas distribuições dos

sujeitos das duas amostras pelos grupos etários,Antidepressivose neurolépticos sãode uso limitado

em Clínica Geral. Em particular, não verificámos a

banalização da prescrição de antidepressivos referida

por alguns autores (LADER, 1978; RA YNAUD e

COUDERT, 1987). Tal como AZEVEDO e cal.

(1984a), conclui mos que os solteiros consomem menos

ansiolíticos/hipnóticos do que os sujeitos casados e

viúvos mas não com diferença entre os sexos.

No período considerado, cerca de 1/4 dos utentes

da consulta de Clínica Geral receberam prescrição

de psicofármacos, mais frequentemente derivados

benzodiazepínicos com efeito ansiolítico ou

hipnótico, associados à prescrição de fármacos não-

psicotrópicos para situações médicas. Seriadesejável

dar continuidade a este tipo de estudos, de forma a

contribuir para a compreensão cada vez mais

aprofundada do uso de fármacos psicotrópicos em

Clínica Geral no nosso país.

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Page 17: Sumário - revistapsiquiatriaclinica.eu · Eunofre Marques (1984) que concluiu que a insegurança, medo, ansiedade e angústia são fenómenos emocionais que respondem, respectivamente,

Psiquiatria Clínica, 19, (1), pp. 21-30, 1998

Aplicações Clínicas do modelo dos cinco factores

POR

MARGARIDA PEDROSO DE LIMAC) e ANTÓNIO SIMÕESC)

Resumo

omodelo dos cinco factoresé uma organização hierárquica e abrangente da estrutura dos traços dapersonalidade. Neste artigo os autores analisam as principais implicações clínicas do modelo dos cincofactores.Nomeadamente, ao nível da Psicologia Clínica, Psicopatologia e Psicologia da Saúde. Conclui-se pelapertinência domodelo nos diferentes contextos analisados.

Summary

The five factor model is a hierarchical and comprehensive organisation of the structure of personalitytraits. In this article the authors analyse the main clinical implications ofthis modeloNamely,Jor psychopathology,health and clinical psychology. They conclude for the pertinence of the model in the referred contexts.

Os teóricos do domínio têm proposto centenas dehipotéticos candidatos a dimensões básicas dapersonalidade, as formas mais importantes em quediferem os sujeitos nos seus duradouros estilosemocionais, interpessoais, experienciais, atitudinaise .motivacionais. Na verdade, a aceitação de umataxinomia abrangente e consensual permitiria adescrição mais correcta, mais económica e mais nuancéeda personalidade.

O modelo dos cinco factoresé a proposta que nosúltimos anos tem reunido maior consenso. Este modelo(Five Factor Model, conhecido pelas siglas FFM) éuma representação da estrutura da personalidade, emtermos de cinco dimensões básicas (os "cinco grandesfactores", no original,"Big Five"). De acordo comCosta e McCrae (1992), os cinco factores são oNeuroticismo (N), a Extroversão (E), a Abertura àExperiência (O de Openness to Experience), aAmabilidade (A)e aConscienciosidade (C). A dimensãoNeuroticismo vs Estabilidade Emocional traduz a

presença e efeitos da afectividadeou emotividadenegativa referida porTellegen, em 1985.A Extroversão/Introversão relaciona-se com a sociabilidade e a energiaou entusiasmo. A dimensão Amabilidade refere-se àdimensão que parece envolver os aspectos maishumanos da humanidade - características como oaltruísmo, carinho e apoio emocional tnurturance'),num dos pólos, e hostilidade, indiferença pelos outros,autocentração, desdém e ciúmes, no outro. A

Conscienciosidade está relacionada com a aquisiçãoescolar, o sentido do dever, o grau de organização,persistência e motivação para levar a cabo umadeterminada tarefa. Digman e Takemoto-Chock (1981)sugeriram o termo Vontade (Will), ou Vontade deRealização/ Força de Vontade (Will to Achieve). Isto,

A palavra nurturance deriva do latim nutrire e,aplicada a um contexto psicológico, significa educar,criar, nutrir e facultar o crescimento interior dosoutros.

(I) Docente da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra, rua do ColégioNovo, 3000 Coimbra.

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na sequência de Webb, em 1915 (citado em Digman,

1990), ter já notado que, para além do factor geral de

inteligência, haveria um factor de vontade(volition ou

will). A última dimensão tem sido interpretada como

Intelecto (e.g., Digman & Takemoto-Chock, 1981;

Goldberg, 1981; Hogan, 1983; Digman & Inouye,

1986; Peabody & Goldberg, 1989), Inteligência

(Borgatta, 1964) e Abertura à Experiência (Costa &

McCrae, 1992). Estes últimos têm sublinhado as dife-

rentes áreas da dimensão Abertura. Hogan (1986), por

sua vez, põe em relevo os interesses culturais, criativos

e educacionais da mesma. Apesar desta dimensão

mostrar correlações com medidas de aptidão intelec-

. tual, sobretudo com o pensamento divergente (McCrae,

1987), os autores consideram que a inteligência,

psicotnetricamente avaliada, representa um factordife-rente. Daí, a opção por O e não por "Intellectance"

(Hogan, 1983) ou "Culture" (Goldberg, 1983), como

rótulo para esta dimensão.

Os defensores do modelo consideram que estes

factores, individualmente ou em combinação, podem

ser encontrados em quase todos os instrumentos da

personalidade. Efectivamente, numerosos estudos, com

várias escalas, chegaram à identificação dos'big five'e, segundo McCrae e Costa (1987), explicações aIter-

nativas, sejam elas, psicofisiológicas, comportamentais,psicodinâmicas ou genéticas estão, eventualmente,

relacionadas com os cinco factores, podendo o modelo

fornecer o enquadramento, no qual estas relações sãosusceptíveis de serem sistematicamente examinadas.

Em consequência dos seus contributos, do consenso

gerado à sua volta e da sua abrangência, têm-se

multiplicado as aplicações práticas do modelo dos

cinco factores a diferentes áreas, designadamente, à

Psicologia Clínica, à Psicologia Educacional eàPsicologia das Organizações.

Neste artigo, discutiremos as apl icações do modelo

à Psicologia Clínica (Aconselhamento, Psicopatologia,

Psiquiatria e Psicologia da Saúde).

I. Psicologia Clínica.

A este nível, é curioso assinalar, segundo Costa e

McCrae( 1986), que foram necessários alguns anos

para reafirmar, apoiados numa base empírica mais

firme, princípios que os clínicos tinham já como garanti-

dos. tais foram, particularmente, os que estabelecem

que existem regularidades no comportamento e que

estas persistem ao longo do tempo, que os traços

predizem o mesmo comportamento eque podem ser

avaliados, com uma dose razoável de precisão, a partir

de auto e hetero-avaliações.

A avaliação do sujeito nos cinco factores poderia,

por conseguinte, aliaro conhecimento actual no domínio

da investigação sobre a personalidade à contribuição

única da reflexão clínica.

Deste modo, nãoédeestranharque CostaeMcCrae

(1992) e outros investigadores tenham vindo a defender

a importância do FFM e, muito em particular, a uti-

lização do NEO-PI-R2, na prática clínica.

Efectivamente, estudos recentes sugerem que as escalas

do NEO-PIINEO-PI-R3 são úteis no desempenho de

uma multiplicidade de funções, designadamente, a

compreensão do cliente, o diagnóstico, a empatia e

rapport, ofeedback(informação retroactiva) einsight(' intuição'), a antecipação do desenrolar da psicoterapia

e a selecção do tratamento adequado.Em apoio do atrás referido, Petot (1994) considera

que o modelo dos cinco factores merece a atenção dos

psicólogos clínicos, visto que, tanto o sistema como a

sua operacionalização são muito' promissores para a

clínica4 e para a psicopatologia. Este autor abandonou

2 O NEO-PI-R é uma das operacionalizações mais

conhecidas do FFM.3 O NEO-PI-R começou a ser construído em 1978,

sendo, então, composto por3 domínios (N, E e O) de

18 escalas. As escalas A e C só foram adicionadas em1985, sendo o instrumento resultante publicado com

o título de Inventário de Personalidade NEO (NEO-

PI). Em 1990, foram completadas as escalas parafacetas A e C e efectuadas algumas alterações menores

nos itens originais, de onde resultou a última versão

- o NEO-PI R (Inventário de Personalidade NEO-

Revisto).

4 Para Petot (1994), as aplicações clínicas têm, aliás,

pouco a ver com a existência de cinco, de quatro, ou

de seis factores, mas sim com o facto das dimensõesprincipais se decomporem num certo número de

facetas - cujo número também é secundário, mas

cuja divisão tão harmoniosa como a do NEO-PI-R

parece artificial - que permitem uma análise mais

fina das grandes dimensões como, por exemplo, o

Neuroticismo. Oquenos"cinco grandes"('Big Five')interessa mais ao clínico são os "trinta pequenos"

(' small thirty'), ou seja as facetas, dado o seu inte-

resse clínico evidente. Antes de mais, enquanto queno EPI obtemos apenas um nível global de instabili-

dade emocional, o NEO-PI-R permite estudar como

é composta essa instabilidade. Consequentemente,

toda uma tipologia de quadros clínicos ansiosos e

depressivos pode ser elaborada, em função da pontua-

ção nas seis escalas das facetas de N: ansiedade,

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Aplicações Clínicas do modelo dos cinco factores

progressivamente a utilização dos questionários, porque,

na sua opinião, eles proporcionavam poucas

informações sobre os clientes examinados na clínica

psiquiátrica. O MMPI, por exemplo, apenas permitia

um diagnóstico e o EPI e os 16 PF pareciam pouco

adaptados ao estudo das doenças mentais. Finalmente,

era difícil interpretar os resultados, à luz do quadro

psicanalítico, que era o referencial teórico do autor,

naquela altura.

Segundo ainda o mesmo autor, o NEO~PI-R, pelo

facto de estar estruturado em dois níveis -as dimensões

e as facetas" - permite uma análise muito fina das

particularidades comportamentais, cognitivas e

afectivas dos pacientes com problemas ansiosos e

depressivos. Por outro lado, a partir dos resultados do

NEO-PI-R, os clínicos têm a oportunidade de formular

algumas reflexões e hipóteses, como, por exemplo, que

as pontuações em A e C estão relacionadas com o nível

de auto-estima, ou que a amplitude dos perfis de

personalidade dos doentes psiquiátricos pode ser mai-

or, e apresentar mais contrastes, do que a dos sujeitos

normais. Porfim,e paradoxalmente, o modelo permitiria

desvendar alguns aspectos inconscientes'' (não directa-

mente acessíveis aos sujeitos) do funcionamento

psíquico dos pacientes.

A ênfase nas potencialidades dos sujeitos permite

ao terapeuta ter uma visão mais ampla do cliente,

incluindo, para além dos seus problemas, as suas

preferências, aptidões, etc. Os resultados sobre asdiferentes dimensões permitem ao conselheiro - ge-

ralmente, mais centrado nas características suscep-

tíveis de mudar ~ uma compreensão rápida das dis-posições duradouras do sujeito, facilitando o processo

de aconselhamento".O compartilhar os resultados dos

testes (jeedbackgeralmente fornecido através da folha'o seu sumário NEO-PI-R') com os clientes pode ser,

por conseguinte, uma forma apropriada de desenvolver

a auto-compreensão.

O interesse clínico de cada um dos factores, no que

diz respeito às indicações psicoterapêuticas - qual a

psicoterapia, para qual doente, sofrendo de qual pro-

blema? - e ao prognóstico da atitude dos pacientes

relativamente ao psicoterapeuta e à psicoterapia, foi

sublinhado por Miller (1991).

2. Psicopatologia

A testemunhar a importância/pertinência e

actualidade do FFM para aPsicopatologia", muito emparticular, para as desordens da personalidade, está a

quantidade crescente de artigos sobre este tema e a

recente edição do livro - "Personality Disorders and

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the Five-Factor Model ofPersonality" - editado por

Costa e Widiger, em 1994. Nas páginas que se seguem,

tentaremos dar uma síntese das principais conclusões e

tendências da investigação neste domínio.

As desordens da personalidade obtiveram um lugar

de relevo, a partir do momento, em que foram colocadas

no Eixo-Il, da 3" edição do manual de Diagnóstico e

Estatística elas Desordens Mentais da Associação

Psiquiátrica Americana (Diagnostic and StatisticalManual of Mental Disorders - DSM-III: AmericanPsychiatric Association, 1980). Mas a literatura

pertinente, cada vez mais volumosa (MilIon, 1994),não deve, segundo Costa e Widiger (1994), obscurecer

o facto de existirem problemas teóricos e metodológicos

sérios com o diagnóstico classificativo da DSM-III.

Um deles, a título de exemplo, consiste no facto dosseus critérios de diagnóstico, supostos classificar os

pacientes em entidades categoriais mutuamente

depressão, mal-estar nas relações interpessoais,

hostilidade, dificuldade de resistir aos impulsos e

dificuldade de lidar com a tensão(stress).Em suma,

os dados obtidos desta forma, permitem afinar a

. avaliação dos problemas da personalidade (Eixo II daDSM-I1I-R), que acompanham, eventualmente, os

problemas clínicos.

5 O NEO-PI-R é constituído por cinco escalas que

avaliam as dimensões gerais (osbig fivei e 30 escalas

que avaliam as facetas das referidas dimensões.

6 Inconscientes, no sentido de um conjunto de conteúdosnão presentes no campo actual da consciência dos

indivíduos.

7 Embora as estratégias decoping possam seraprendidas, através do processo psicoterapêutico, ,o

saber, de antemão, que os indivíduos com elevada

Abertura à Experiência utilizam mais espontanea-mente o humor, ao lidarem com ostress,enquanto os

que pontuam mais baixo naquela variável tendem a

recorrer maisà fé, pode ser de grande utilidade pariao conselheiro (McCrae& Costa, 1986).

No entanto, segundo Watson e colaboradores (1994),muitos investigadores, rejeitam a aplicação da

abordagem dos traços à psicopatologia, argumentandoque a personalidade é demasiado complexa para serestudada cientificamente, que a investigação sobre ia

personalidade é demasiado confusa e caótica e que atécnica principal de investigação da estrutura da

personalidade, a análise factorial, é demasiado rigorosa

matematicamente, para captar a riqueza dapersonalidade e envolve demasiados juízos subjecti-

vos para dar resultados significativos, criar, nutrir 'e

facultar o crescimento interior dos outros.

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exclusivas, não o conseguirem fazer. O que acontece é,segundo as investigações, que os sujeitos caem, emmédia, em 4, das II categorias presentes naclassificação. Outro problema, prende-se com a faltade validade de constructo de muitas das categorias.

Alguns autores (e.g .. Costa & Widiger, 1994;Widiger&Frances, 1994;Widigeretal., 1994;McCrae,1994) opinam que muitos dos problemas da DSM-IIIseriam resolvidos, através da utilização de dimensõescontínuas, em vez de categorias discretas. No entanto,até agora, não tem havido consenso, quanto ao modelodimensional a utilizar. Todavia, cada vez existe maisacordo, em relação à possibilidade do FFM, enquantoclassificação compreensiva das dimensões dapersonal idade, ser o enquadramento útil paracompreen-der as desordens da personalidade. No entanto, asinvestigações. que sustentam a pertinência do modelodos cinco factores (edo estudo das diferenças individuaisem geral) para a compreensão da personalidade, bas-eiam-se em métodos e modelos elaborados parainvestigar a personalidade normal, pelá que os autoresse questionam, quanto à sua aplicabilidade aos proble-mas psicopatológicos e psiquiátricos.

Ora, ainda que para a psicologia tradicional osdomínios do "normal" e do "anormal"(abnormal)

sejam campos, tendencialmente, separados, para apsicologia dos traços, esta dicotomia, não faz sentido.De facto. as diferenças individuais, em grande parte dascaracterísticas, distribuem-se, segundo um contínuo,parecendo, então, razoável supor que diferentespsicopatologias podem estar relacionadas com varia-ções normais nas disposições básicas da personalidade.Assim é que múltiplos estudos sugerem e apoiam ahipótese de que existe um paralelo entre as dimensõesnormais da personalidade e as psicopatológicas.

Na tentativa de clarificar e demonstrar asvirtual idades elo FFM, para a compreensão dasdesordens da personal idade, mui tos esforços empíricose conceptuais têm sido levados a cabo. Assim, Widiger(1994) tenta conceptualizar as desordens dapersonalidade, com base na descrição forneciela peloFFM, considerando que qualquer desvio da média dequalquer faceta pode significar má adaptação". Widigere Frances ( 1994)Ioreferem os obstáculos que o modelodeve ultrapassar para que seja utilizado por clínicos,em particular, o de averiguar se existe alguma relaçãoentre a dimensão Abertura à Experiência (O) e algumadas perturbações da personalidade. Costa, Widiger ecolaboradores (1994), por sua vez, compararam acategorizaçãodas desordens da personalidade da DSM-III e IV com o modelo dos cinco f'actore's,

operacionalizado através do NEO-PI, encontrandoresultados muito encorajadores. Trull e McCrae (1994)mostraram também que os sujeitos com diferentesdesordens de personalidade diferem, de formaprevisível, nos cinco factores. Sugerem ainda que oFFM pode ajudar a compreender a sintomatologiaprincipal de cada desordem, visto permitir entender asobreposição entre o eixo I e o eixo lIll. Enfim,Wiggins e Pincus (1994) mostram, empiricamente, queas escalas do Inventário Clínico Multiaxial ele Millon(Millon ClinicalMultiaxiallnventory; MCMI, Millon,1982) correspondem às dimensões normais da per-sonalidade e, Clark e colaboradores e Schoeder ecolaboradores (1994), os primeiros utilizando a Escala

, para a Personalidade Adaptativa e Não-Adaptativa(Schedule for Nonadaptative and Adaptative

Personality; SNAP) e os segundos, o QuestionárioBásico da Avaliação Dimensional das Patologias daPersonal idade(D ime nsional Assessment of P ersonality

Pathology - Basic Questionnaire; DAPP-BQ), que oFFM é suficientemente amplo para dar conta da variaçãodas desordens da personalidade. Ora, estes últimosautores (Schroederet aI., 1992)também conceptualizamas desordens da personalidade como expressõesextremas do funcionamento da mesma e sugerem queexiste uma semelhança substancial entre as medidasdos cinco factores e aquelas desordens. Sintetizandoesta ideia, Bemardos (1995, p.175)afinna que "o

9 Costa e McCrae, no Manual do NEO-PI-R (1992, p.32), referem que este foi construído com o objectivode medir traços da personalidade normal.Acrescentam, porém, que existe já ampla evidênciada sua pertinência para outras amostras, nomeada-mente clínicas.

lO Segundo este autores, as vantagens da abordagemcategorial são a facilielade eleconceptualização ecomunicação e a familiaridade e a consistência coma tomada -de decisão clínica. As vantagens daabordagem dimensional são aresolução de uma varie-dade de dilemasclassificatórios, a maior retenção deinformação e flexibilidade.

II O sistema multiaxial da DSM-III-R baseia-se napremissa de que as desordens mentais da idade adultapodem categorizar-se em síndromes clínicas (EixoI), ou desordens da personalidade (Eixo 2). Asprimeiras sãotraços de personalidade mais duradou-ros, mais inflexíveis e conelucentes a pior adaptaçãodo que as segundas. Alguns autores têm colocado aquestão ele saber se estes dois tipos de desordensestarão relacionadas e se serão mesmo sobreponíveis.

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Aplicações Clínicas do modelo dos cinco factores

funcionamento humano se verifica em áreas distintas,que têm que ver com as relações que o indivíduomantém com as outras pessoas (E e A), com a sua vidaafectivae emocional (N), com os seus gostos, preferên-cias, formas de ajuizar às normas, os valores, etc. (O),e, por último, com as suas capacidades para resolver astarefas da vida (C). Portanto, as alterações dapersonalidade reflectir-se- iam em pontuações extremasdestas dimensões e/ou determinadas combinações entreelas". Este autor considera ainda que (p.175) "osresultados obtidos apontam para que o Neuroticismo ea Iritroversão sejam os indicadores mais significativosde quase todos os transtornos da personalidade. Damesma forma, a escassa Amabilidade, ou tendência aenfrentar os outros, a promover a agressividade ou acriar situações conflituosas, seria um elemento defi-nidor de grande parte dos transtornos. Os déficesmotivacionais são indicadores de disfunção, 'que sãoassinalados pelo factorConscienciosidade. Finalmente,o papel da Abertura é menos claro, visto que parece sera sua falta, e não a sua presença, que caracteriza osdiversos transtornos".

Outros· investigadores têm-se debruçado sobre asimplicações do modelo para o tratamento de pacientescom perturbações de personalidade. Nomeadamente,Sanderson e Clarkin (1994) examinam a influência doscinco factores nos temas abordados na terapia e naaliança terapêutica (relação de compromisso e confiançaque se estabelece entre o terapeuta e o cliente), e nosresultados do tratamento. Têm também sublinhado aimportância de abordagens específicas das desordensparticulares e a necessidade de optimizar, de formaindividualizada, os procedimentos terapêuticos.MacKenzie (1994), por sua vez, descreve como in-troduzir no processoterapêutico, com base no modelo,avaliações estruturadas, de forma a assegurar acumplicidade do cliente (o seu envolvimento noprocesso), resultados fiáveis e obter dados sobre a

intervenção a seleccionar.Como alternativa ao sistema categorial para

diagnóstico das desordens da personalidade, diversosautores(e.g., Schroederecolaboradores, 1992) propõemque o diagnóstico de problemas relacionados com apersonalidade, nas áreas afectiva, interpessoal, expe-riencial, atitudinal e motivacional, seja feito com basenos cinco factores - substituindo um sistema cate-gorial por um modelo dimensional. Os autoresconsideram, consequentemente, que os distúrbios depersonalidade devem ser conceptualizados comoexpressões extremas do funcionamento daquela. Dadosde análise da regressão múltipla indicam relações

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substanciais entre o modelo dos cinco factores e osdistúrbios da personalidade, sendoO Neuroticismo 'adimensão que revelou as relações mais fortes e aAbertura à Experiência as mais fracas com esses distúr-bios. No entanto, os aspectos mais comportamentaisdos distúrbios de personalidade não estavam fortementerelacionados com os cinco factores. Consequentemente,os resultados sugerem uma semelhança substancialentre os cinco factores e os distúrbios de personalidade,apesar de estes não poderem ser totalmente abarcadospelo modelo.

Em relação a esta questão, Widiger (1993)argumenta que a resistência a um modelo dimensionalreflecte, em parte, problemas de natureza social'ê, enão apenas científica, e considera que o modelo doscinco factores provará ser suficiente para caracterizar,tanto a personalidade normal como a mal adaptada epatológica, já que, os distúrbios de personalidade sãovariantes anormais dos traços de personalidade normais.

Tellegen (1993) concorda com alguns aspectos daproposta de Widiger, no sentido de se utilizar o modelodimensional, em vez do sistema categorial da DSM-I1I-R, para classificar as desordens clínicas. No entanto,este autor defende que um modelo dimensionál de setefactores é preferível ao de cinco, no que obtém aconcordância de Waller e Zavala (1993). Por outrolado, Nathan (1993) considera que o modelo dos cincofactores, proposto por Widiger, para substituir a DSM-Ill-R, pode ser promissor para o diagnóstico do abusoe dependência do álcool. Segundo ele, o modeloésusceptível de definir subtipos, que respondem, deforma diferente, aos tratamentos. Por sua vez, Soldz ecolaboradores (1993) examinaram a relação entre asdesordens de personalidade da DSM-III-R, ocircumplexo interpessoal eo modelo dos cinco factores.Concluíram que muitas das desordens podiam ser,razoavelmente, localizadas no espaço circumplexo,mas que a utilização do modelo dos cinco factoresainda levava a uma melhor colocação espacial dasdiferentes desordens.

Ainda em relação à proposta de Widiger, para seutilizar o modelo dimensional, Carson (1993), emboraconcordando com ela, preocupa-se com o facto de osdados do modelo pertencerem quase exclusivamente auma população normal e com origem na análise factorial,enquanto Benjamin (1993) considera que o modelo doscinco factores, apesar de captar alguns dos compor-

12 O modelo categorial torna mais fácil a catalogaçãode determinadas pessoas, criando a ilusão social deprotecção.

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26 Margarida Pedroso de Uma e Antônio Simões

tamentos dos sujeitos, não abrange alguns aspectos de

interesse para os clínicos. Daí que Clark (1993)

argumente que o modelo proporciona caracterizações

demasiado gerais e abstractas para fins clínicos, sendo

preferível as facetas que têm a vantagem da

especificidade.

Em oposição directa à proposta de Widiger, Davis

e Millon (1993) argumentam que o sistemade diagnós-tico corrente, se conceptualizado de forma apropriada,

tem mais vantagens do que o modelo dos cinco factores.

Schmidt (1993) argumenta também que o modelo dos

cinco factores não está suficientemente desenvolvido,

de molde ajustificar a substituição de uma classificação

por outra, sugerindo que as desordens de personalidade

sejam conceptualizadas em termos das suas

representações interpessoais. Por último, Schacht( 1993)

considera que a proposta de Widiger tem algumas

limitações, na medida em que o modelo dos cinco

factores deriva da abordagem psicométrica ao estudo

da personalidade, e pode ser um erro elevar dados

psicométricos a uma posição de primazia conceptual.

Concluiu, por isso, que, apesar da perspectiva

dimensional ter as suas vantagens para a classificação

e diagnóstico, é ainda uma proposta prematura.

Em síntese, em relação à questão sobre qual

modelo utilizar (o categorial ou o dimensional), ainda

existem bastantes dúvidas e discordâncias. No entanto,

parece ser clara a necessidade da parte de muitos

investigadores de, pelo menos, refinar e reestruturar a

classificação categorial em vigor, integrando os

conhecimentos derivados do modelo dos cinco factores.

Assim, por exemplo, na DSM-II1-R, existe uma listagem

de desordens, que reflectem aIntroversão e a

Extroversão, a Amabilidade e o Antagonismo, a

Conscienciosidade insuficiente e excessiva. Mas, comexcepção da categoria de pessoa dependente, que se-gundo Millon é convencional, não existe nenhuma

perturbação relacionada com a AberturaàExperiência

(Costa & McCrae, 1990).

Para além das implicações do modelo para a prática

clínica e para a reorganização da categorização das

perturbações mentais, algumas investigações têm-no

utilizado, com sucesso, com populações clínicas es-

pecíficas, a saber, toxicodependentes (Brooneret aI.,1993); psicopatas (Harpuret al., 1994); delinquentes

sexuais (Lehne, 1994); pacientesborderline I3 (Bruehl,

1994); narcisistas (Corbitt, 1994); pacientes com buli-

mia nervosa (Ellis, 1994); pacientes com desordem de

personalidade mista, com aspectos passivo-agressivos

e de evitamento(Thorrias, 1994); casais com disfunção

sexual (Fagan, 1991). Embora o estudo da relação entre

os tipos de terapias e os traços da personalidade ainda

esteja, no seu início, parece ser um campo promissor de

investigação. Mas, para além das aplicaçõesàpsicologia

clínica, o NEO-PI-R tem sido também utilizado na

psicologia da saúde, como veremos de seguida.

3. Psicologia da Saúde

Em consequência dos avanços, no domínio dapersonalidade (a relevância do modelo dos cinco

factores), renovou-se o interesse pela associação entre

as características da personalidade e a saúde física,

particularmente, pela relação entre as dimensões da

personalidade (hostilidade e antagonismo) e o comporta-

mento de tipo A, as perturbações psicossomáticas

(Smith & Williams, 1992), a alexitirnia!", as doenças

coronárias e hábitos e atitudes em relação à saúde.

A título ilustrativo, vamos referir algumas das

principais conclusões das investigações levadas acabo,

neste domínio. Um dos resultados mais recentes,

segundo Costa e McCrae (1992, p. 35),"é o da

importância da hostilidade na predição das doenças

coronárias (Costa, Stone, McCrae, Dembroski&Williams, 1989)15. Através da utilização de

questionários (Barefoot, Dahlstrom, & Williams, 1983)

e entrevistas (Dembroski, McDougall, Costa,&Grandits, 1989), estes autores concluíram que a hostili-

dade estaria relacionada com o enfarte do miocárdio, a

morte coronária e o grau da estenose arterial. Mas,

paradoxalmente, medidas relacionadas com a ira não

apresentam relação, ou estão mesmo, inversamente,

relacionadas com a severidade das doenças coronárias

(Siegman, Dembroski, & Ringel, 1987)". Ora, o NEO-

PI -R apresenta uma solução para o paradoxo, ria medida

13 Borderline, ou 'estados-limites', seriam um conjunto

de quadros clínicos que, segundo Dias (1982), nãocorrespondem nem à linha psicótica nem à neurótica

clássica.

14 A alexitimia (Alexithymia) é um conceito de origem

psicanalítica, que caracteriza os sujeitos com uma

incapacidade disposicional de identificare comunicar

experiências emocionais (Sifneos et al., 1977, citado

em Grootede Leeuw). Os estudos existentes apontam

para o facto de estes sujeitos correrem maior risco de

doenças físicas e de desenvolvimento de desordens

psicossomáticas (Smith& Williams, 1992).

15 Esta é, como veremos, a seguir, uma explicação

alternativa à de que estas doenças estariam

relacionadas com o padrão de comportamento Tipo

A, hipótese esta, que tem sido ultimamente con-

testada (Matthews & Haynes, 1986).

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Aplicações Clínicas do modelo dos cinco factores

em que distingue dois tipos de hostilidade. Há, por um

lado, a hostilidade neurótica - avaliada através da

faceta N2 (Hostilidade) - que se caracteriza pela

experiência frequente e intensa de raiva, frustração e

zanga e, por outro, a hostilidade antagonista, corres-

pondente a uma Amabilidade baixa - e presente, muito

especialmente, em sujeitos com escores baixos, nas

facetas AI (Confiança) e A4 (Complacência) -que é

marcada pelo cinismo, rudeza e condescendência.

Consequentemente, quando as pessoas antagonistas

estão zangadas, expressam a sua raiva directamente,

em vez de a dirigirem para elas mesmas. Para Costa e

McCrae (1992, p. 35), "apesar de parecer um contra-

sensoé este tipo de hostilidade a preditorade problemas

coronários".

É, no entanto, necessário acautelar que uma

pontuação muito baixa em A não é, só por si, preditotade doenças coronárias, mas apenas um factor de risco.

Kravetz e colaboradores (1993), por exemplo,

concluíram, a partir de 164 pacientes com doença

coronária, que a tendência para a doença e a afectividade

negativa representam dois conceitos distintos, embota

relacionados. É possível que uma das formas de detectar

comportamentos de risco, para contrair estas doenças

(e.g., fumar, stress), seja através de avaliações feitas

por outros significativos (NEO-PI-R, forma R), cujainformação dada se baseia em anos de interacção com

o sujeito.

Eventuais estratégias para intervir são, aeste nível,

as terapias centradas no aumento da Amabilidade,àsemelhança dos programas elaborados para a alteração

do comportamento de tipo A. Porém, se esta dimensão

se revelasse difícil de alterar, poderiam encarar-se

intervenções, ao ní vel de outros factores de risco (como

o fumar. ou a pressão arter.ial elevada), que são mais

fáceis de trabalhar. Em qualquer das hipóteses, umaavaliação objectiva da personalidade é sempre o

primeiro passo.

Embora sejam muitas as influências que levam os

sujeitos aformular queixas somáticas, os seus princi pais

determinantes são o estado de saúde e o Neuroticismo

(Costa & McCrae, 1986). As pessoas podem lamentar-

se, por várias razões: porque têm problemas médicos,

que causam os sintomas; porque reagem facilmente a

pequenas sensações fisiológicas; ou porque se

preocupam, excessivamente, com a saúde (o excesso

desta característica é designado por hipocondria). Ora,

como o mal-estar somático está intimamente relacionado

com o mal-estar psíquico (Watson & Pennebaker, 1989),

não é surpreendente que o N seja um forte preditor das

queixas somáticas. Porém, as queixas médicas têm mais

27

probabilidade de corresponder a problemas médicos

reais, quando os sujeitos apresentam um N baixo, do que

um N elevado. Daí decorre que as pontuações do N são

úteis para a detecção de falsos sintomas - queixar-se de

um sintoma, sem ter a doença correspondente - e, são,

sempre, pertinentes nos estudos sobre a influência do

stressna saúde (McCrae, 1990). Por exemplo, Schroeder

e Costa (1984) estudaram a influência dos acontecimentos

de vida causadores destressna doença física e Talbert e

colaboradores (1993) administraram o NEO-PleaEscala

de Exposição ao Combate(Combat Exposure Scale)a100 veteranos do Vietnam, cujo diagnóstico era a pertur-

bação designada porstresspós-traumático, relacionado

com combate (PTSD). Estes sujeitos foram colocados,

em três grupos, em função do nível de exposição ao

trauma. Os resultados não indicam diferenças signifi-

cativas entre os perfis de personalidade dos três grupos.No entanto, o perfil do. NEO-PI das pessoas

diagnosticadas com tendo o PTSD é caracterizado por

um Neuroticismo elevado e uma Amabilidade muito

baixa.

Colocando-se numa perspectiva diferente da do

estudo da influência dostress na personalidade,

Piedmont (1993) investigou, longitudinalmente, acon-

tribuição da personalidade para o experienciar do

burnout. Para tal, avaliou terapeutas ocupacionais,através do Inventário deBurnoutde Maslach (MaslachBurnout lnventory; MBI) e do NEO-PI, encontrando

correlações razoavelmente elevadas entre as pontuações

de burnout e os cinco factores.

McCrae e Costa (1986) anal isaram também as

relações entre a personalidade e ocoping, procurando

averiguar, mais especificamente, se a primeira in-

fluenciava as respostas decoping, a percepção da sua

eficácia e o seu efeito sobre o bem-estar psicológico.

As dimensões de N, E e O estavam, sistematicamente,relacionadas com os mecanismos decoping, apresen-

tando índices superiores de bem-estar os sujeitos que

utilizavam formas decoping mais eficazes.

Do que ficou dito podemos concluir que o NI6

influencia as percepções destress,as formas decoping,a satisfação com o apoio social, o bem-estar psico-

lógico e as queixas somáticas.

Outros investigadores analisaram a influência das

16 McCrae (1990) refere a importância de controlar a

variável Neuroticisrno, ao estudar ostress.Efectivamente, os sujeitos neuróticos tendem apreocupar-se, independentemente da presença de

ameaças, e a deprimirem-se mesmo não tendo sofrido

uma perda.

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28 Margarida Pedroso de Lima e António Simões

doenças nas dimensões da personalidade. Assim,Siegler e colaboradores (1991) avaliaram, a partir dasrespostas de vigilantes ao NEO-PI, a personalidadeactual e a pré-mórbida de 35 pacientes com problemasmnésicos (com idades compreendidas entre os 51-88anos). Verificaram-se mudanças nos cinco domíniosabrangidos pelo NEO-PI, com a diminuição daConscienciosidade, Abertura à Experiência eExtroversão e aumento do Neuroticismo.

Oshábitos e atitudes,em relaçãoàsaúde, são outraárea em que as variáveis personológicas podem sermuito úteis. A utilização dos traços da personalidadepara prever comportamentos relacionados com a saúdee o seguimento por parte do paciente das prescrições

. médicas é, duplamente, importante, porque permite umamelhor compreensão desta problemática e a identi-ficação de sujeitos que beneficiariam de um programa deintervenção por parte do médico ou do psicólogo. Nestalinha de ideias, Lemos-Giraldez e Fidalgo (1993)encontraram resultados positivos, aoestudarem a associa-ção entre os traços da personalidade e as atitudes ecomportamentos relacionados com a saúde, em 1.184estudantes a quem administraram o Questionário dePersonalidade deEysenck, o NEO-PI, a Escala de Locusde Controlo da Saúde (Health Locus of Control Scale;Wallston etal., 1976)eoQuestionáriodeEstilos de Vida(Lifestyles Questionnaire).

Um dos hábitos prejudiciaisàsaúde mais estudadosé o fumar. Já existe evidência suficiente, de acordo comMcCrae, Costa e Bossé (1978), para se afirmar que ossujeitos com um N elevado têm mais tendência parafumar e, mais dificilmente, deixam de o fazer. A escalaN5 (Impulsividade) conseguiu prever quais os pacientesque, após terem tido problemas coronários, voltaram afumar, passados seis meses (Baile et al., 1984)17.

Contrariamente ao que foi dito em relação aoNeuroticismo, a Conscienciosidade está, positivamente,relacionada com bons hábitos de saúde (Booth-Kewley& Vickers, 1990).

A alexitimia ou. aleximia é outro aspecto dapersonalidade que tem recebido uma atenção crescente,por parte de alguns investigadores. Nomeadamente,Wise e colaboradores (1992) investigaram a relaçãoentre a alexitimia, avaliada através da Escala deAlexithymia de Toronto (Toronto. Alexithymia Scale;TAS-20), e o NEO-PI, em 114 pacientes psiquiátricose 71 voluntários normais. Quando se controla adepressão, consegue predizer-se aquele constructo,com base no Neuroticismo, Introversão, e baixa

Abertura. No entanto, esta investigação sugere que aalexitirnia é um traço de personalidade único, que não

é inteiramente explicado pelo modelo dos cinco fac-tores. De modo semelhante, Bagbye colaboradores(1994), ao analisarem a validade de constructo da TAS-20, examinaram a sua relação com traços depersonalidade, encontrando correlações negativas entrea alexitimia e algumas dimensões do NEO-PI.

Porém, que as relações entre a personalidade e asaúde não são simples e lineares parece ainda comprová-lo a investigação de Moody e colaboradores (1991),que estudaram a bronquite crónica e diversas variáveisa ela supostamente associadas, tais como o efizema, ea gravidade da doença, o risco ambiental, a utilizaçãodo sistema de saúde, a severidade dos sintomas, osfactores de personalidade, o estatuto funcional e aqualidade de vida. Para tal, aplicaram o Instrumento deAvaliação das Doenças Crónicas (The Chronic DiseaseAssessment Tool; Moody et al., 1990) e o NEO-PI,nãoencontrando relações simples e directas entre asdiferentesvariáveis e a personalidade.

Em conclusão, embora com algumas limitações, oNEO-PI-R, pode auxiliaro estudo e a compreensão dasinfluências e das relações entre a personalidade e asaúde. .

ConclusõesDo exposto se infere que a utilização do FFM pode

contribuir para muitas áreas da psicologia.Nomeadamente, no que concerne à Psicologia Clínica,tem sido utilizado para uma multiplicidade de funções,designadamente, para a compreensão do cliente, odiagnóstico, a empatia e rapport,feedback e insight, aantecipação do desenrolar da psicoterapia e a selecçãodo tratamento adequado. No domínio da psicopatologia,sublinhe-se o facto. do ~odelo representar umaalternativa à classificação das desordens da personali-dade, sendo de realçar que na área da Psicologia daSaúde, as investigações recentes apontaram para umaforte relação entre a personalidade e as doenças físicase os comportamentos saudáveis.

17 Costa e colaboradores (1980), para testar areplicabilidade factorial e'a estabilidade longitudinaldos motivos do fumador,' aplicaram o Inventário doFumador de Horn-Waingrow (Horn-WaingrowSmoker Survey), em 1973e, novamente, em 1976, emconjunto com 20 itens elaborados por Coan (1969,1973). Os sujeitos eram 1.340 antigos e actuaisfumadores. Os coeficientes de estabilidade obtidoscoadunavam-se com a ideia de que a motivação parafumar é reflexo das necessidades e traços de

Ipersonalidade.

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Aplicações Clínicas do modelo dos cinco factores 29

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Psiquiatria Clínica, 19, (1), pp. 31-40, 1998

Úlcera gastroduodenal - Perspectivas psicossomáticas

POR

JÚLIO BRANDÃOC), PAULO HORTAC), JOSÉ AMARAL(2) e RUI COELHOe)

Resumo

Os autores desenvolvem, no presente artigo, algumas considerações àcerca das abordagens

psicossomâticasdas funções e quadros patológicos do aparelho digestivo, com particular incidência da úlcera

gastroduodenal.

Centrando-se na importância das relações entre a vida psíquica e asomâticano contexto dofuncionamento

do aparelho digestivo, referem-se especialmente às teorias baseadas napsicogénese(Alexander e Ey) e àquelasque assentam na unidade psicossomática (Marty e Sami-Ali).

Referem seguidamente os aspectosterapêuticas, enfatizandoa relação médico-doente, os métodos de

relaxamento e as terapias de grupo; debruçam-se, ainda, sobre o conceito de entrevista psicossomática.

Terminam apresentando um caso clínico ilustrativo.

Palavras-chave: Úlcera gastroduodenal; Psicossomática; Intervenção terapêutica.

Summary

The authors make some considerations on the psychosomatic approach of the functions and of some

pathological pictures ofthe digestive system, with particular incidence on the gastroduodenal ulcero

.Starting from the relationships betweenpsyche and soma they emphasise the theories based on the

psychogenesis (Alexander and Ey) and those which are based on the psychosomatic unity (Marty and Sami-Ali).

Then they refer the therapeutics aspects, especially the doctor-patientrelationship, the relaxation methods and

group therapies as well as the psychosomatic interview. They finally describe a clinical case.

Key-Words : Gastroduodenal ulcer; Psychosomatics; Therapeutic approach.

É comumente aceite que os hábitos alimentaressão tidos como um espelho das necessidades afectivase do estado psíquico global do indivíduo. Diversasexpressões coloquiais como,"o caminho para o coração

de um homem faz-se através do estômago", "fome de

amor" ... , traduzem, de algum modo, o núcleo deverdade subjacente à associação atrás referida.

Nos estádios precoces da vida, nenhuma outra

(1) Assistente Hospitalar de Psiquiatria, Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental do Hospital de São Gonçalo- Amarante.

(2) Assistente Hospitalar de Psiquiatria, Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental do Hospital Padre Américo- Vale do Sousa.

(3) Assistente Hospitalar Graduado de Psiquiatria do Hospital deS.João. Professor Auxiliar de Psiquiatria e SaúdeMental da Faculdade de Medicina do Porto.

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32 Júlio Brandão, Paulo Horta, José Amaral e Rui Coelho

função vital desempenha um papel tão importante nodesenvolvimento como a alimentação. A satisfação dafome produz um sentimento de segurança e bem-estar;a criança experimenta igualmente sensações de prazerna boca, lábios e língua, quando está a ser alimentadaao seio tentando, inc\usivamente, reproduzir estassensações, mais tarde, através da sucção do polegar.Assim, os sentimentos de saciedade, segurança e de seramado são inseparáveis das experiências precoces dacriança.

Hufeland, em 1798, teve oportunidade de observarque de entre 7000 crianças, vivendo numa casa deacolhimento de crianças abandonadas, em Paris, apenas180 estavam vivas 10 anos mais tarde; o autorreconheceu a importância para esta alta taxa demortalidade da separação da mãe e da ausência deafectividade na prestação de cuidados.

Posteriormente, Spitz (1945/46) pôde detectarníveis significativos de atraso no desenvolvimentopsicomotor e uma elevada taxa de mortalidade pordoenças nutricionais em crianças cuidadas porenfermeiras, com normas adequadas de higiene e regimedietético, mas com despersonalização dos cuidados eescassa manifestação de carinho e afecto; referiu aindaque, com o aumento do número de enfermeiras demodo a que cada criança pudesse ser pegada ao colo,recebesse sorrisos e, enfim,usufruísse de maior tempode contacto com as cuidadoras, aquelas perturbaçõesnão ocorriam e, se presentes por um período inferior a5 meses, desapareciam.(2)

Freud (citado por Plozza et al., 1992)(11) salientouque a relação mãe/bébé era, de facto, mais importanteque o tipo e método de alimentação. Factores comoinsuficiência de afecto e de atenção, cuidados apressadose desajeitados, poderiam dar origem aos primeirossentimentos agressivos relativamenteàmãe, emoçõesque a criança não tem a possibilidade de exprimirnemde elaborar; tal poderá evocar atitudes ambivalentesem relação à mãe, com emoções em conflito quepoderão desencadear várias reacções autonómicas -por um lado a criança encontra-se recepti va e necessitadade cuidados matemos, nomeadamente alimentares, por.outro rejeita inconscientemente a mãe. As sequelaspoderão ser cólicas abdominais, vómitos, enfim, asprimeiras manifestações psicossomáticas.

Do que se tem referido, poderá concluir-se quetalvez nenhuma outra das funções corporais reflictamelhor as complexas inter-relações entre o psíquico eo somático que o aparelho gastro-intestinal;épor estainter-relação que os estadias mais precoces dodesenvolvimento psicobiológico do organismo humano

'foram denominados, na perspectivapsicodinâmina,com termos que remetem para o aparelho digestivo:oral e anal. A escolha destas denominações reflecte asinerentes relações entre a incorporação, a assimilaçãoe a expulsão, quer no sentido dos alimentos, quer dosacontecimentos psicológicos.

Na perspectiva psicossomática deEy (1960) (7), asperturbações do aparelho digestivo podem ser encaradasa três níveis: -expressões emocionais (anorexia, bulimia,náuseas, vómitos, cólicas gástricas, obstipação, cólicasintestinais, diarreias, proctalgias ...), que podem surgirtransitoriamente como resposta a uma situação destress; -perturbações funcionais (constituem umapatologia digestiva a partir dos sintomas anteriores;assim, a anorexia pode converter-se num quadroduradouro e autónomo, as náuseas e os vómitos podeminstalar-se no decurso de uma gravidez ou de outrasituação mal suportada, o mesmo acontecendo com asperturbações funcionais do cólon que têm sido as maisestudadas); -e, por fim, as síndromes lesionais, em queo autor engloba a rectocolite hemorrágica e a úlceragastroduodenal.

Será esta última objecto de algumas considerações.Pese embora evoluções recentes, que adiante serão

referidas, esta doença cíc1icaconstitui talvez o modelomais típico dos estudos psicossomáticos.À intuiçãoclínica, já muito antiga, das perturbações depersonal idade do ulceroso acrescentaram-se,posteriormente, numerosos trabalhos clínicos eanatomopatológicos que têm vindo a sugerir a.importância dos factores emocionais na etiopatogenia,na manutenção e no agravamento desta doença.

Glatzel (1954)(11) descreveu a ulceração pépticacomo o desenvolvimento de úlceras gástricas eduodenais surgindo em certas situações de stress emindivíduos predispostos a reagir a estas experiênciascom doença somática do tracto gastrointestinal, emvirtude da sua estrutura de personalidade e dos seusantecedentes vivenciais. Distinguiu este tipode úlcerasdas causadas por factores puramente físicos, tais comoqueimaduras, venenos, infecções e perturbaçõescirculatórias.

Quanto ao ponto de vistafisiopatológico, as funçõesgástricas, a motil idade, o fluxo sanguíneo e as secreçõesestão intimamente relacionadas com a actividade deprocessos neurohumorais sobrepostos, bem como doestado emocional prevalecente(11). Na verdade, paraalém dos efeitos directos da ingestão de alimentos(neutra]ização ácidae distensãomecãnica),a influênciareconhecida como mais importante na produção deácido e de pepsina relaciona-se com a acção do sistema

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Úlcera gastroduodenal - Perspectivas psicossomâticas

nervoso central, como desde Pavlov se tem vindo ainvestigar (11). Assim, estados de agressividade eressentimento aceleram o esvaziamento gástrico,enquanto quea ansiedade e estados emotivos intensoscausam espasmo do piloro, retardando assim oesvaziamento gástrico; a ansiedade, como resposta adesejos de fuga irrealizáveis e estados depressivos,reduzem a secreção, a motilidade e o fluxo sanguíneogástricos. Por outro lado, a ansiedade crónica e estadoscontlituais que produzem reacções hostis e tendênciasagressivas, aumentam a secreção gástrica e, quandopersistentes, causam alterações da mucosa semelhantesàs da gastrite. A mucosa que sofre alterações deste tipoparece particularmente vulnerável à lesão: um pequenotrauma pode causar uma discreta erosão que, estandoem permanente contacto com os sucos gástricos, podeevoluir para a formação de uma úlcera. Por sua vez, asperturbações funcionais podem originar sentimentosde ansiedade que influenciarão o sistema nervoso,ocasionando espasmo e tensão, completando-se assimo círculo vicioso dos sintomas (Besançon, 1984)(3).

Para além dos factores já descritos, não se podedeixar de citar o papel das hormonas e de outrosneuropeptídeos na regulação da secreção gástrica eportanto, hipoteticamente, na fisiopatologia da úlcerapéptica; assim, verificou-se que a somatostatina epossivelmente a hormona de crescimento inibiam agastrina e reduziam a secreção gástrica, enquanto quea insulina e a paratormona produziriamO efeito contrário(3). Apesar de relatos em contrário, os corticosteróiclese a ACTH não aumentam a secreção gástrica, emboraos primeiros possam ser ulcerogénicos através de outrosmecanismos. Em relação à histamina, e apesar de sercomprovadamente um dos secretagogos mais potentesaté agora conhecidos e de os fármacosanti-histarnínicos

possuiremefeitos terapêuticos evidentes no tratamentoda úlcerapéptica, pouco é conhecido àcerca do seupapel na regulação normal da secreção gástrica(3).

Sem perder de vista a perspectiva psicossomáticae demonstrando mais uma vez a imprevisibilidade e asincertezas que a investigação encerra, serão referidosde seguida alguns dados sobre a hipótese infecciosapara a etiopatogenia da úlcera péptica. Se era sabidodesde o fim do séc.XIX que existiam bactérias noestômago, é apenas em 1983 que Worren e Marshallisolaram e identificaram a bactéria em causa,denominada de início como Campylobacter Pylori eem 1989 rebaptizada como HelicobacterPylori,Verificou-se, posteriormente, que esta bactéria estápresente em mais de metade das populações, dospaísesindustrializados, com mais de 50 anos de idade e, em

33

igual percentagem, em idades mais precoces (dos 15aos 20 anos) em países subdesenvolvidos; de modoainda mais sugestivo esta bactéria foi encontrada emcerca de 90% das pessoas atingidas por gastrite crónicae, em proporção ainda superior nos portadores deúlceras gastroduodenais(10). São conhecidos, ainda,outros dados referentes às características doHelicobacter Pylori que estabelecem que o seureservatório poderá ser estritamente humano, que a suatransmissão se efectuaria de pessoa a pessoa por viaoral e, que a principal fonte de contaminação seria asaliva infectada(10) e, mais recentementeincrirnina-se

a disseminação pelas moscas.Está também bem estabelecido o facto de uma

perturbação funcional de um órgão poder, com.o tempo,levar a alterações estruturais tecidulares (orgânicas), oque constitui algo de reconhecida importância.

Abordagens psicoterapêuticas de ulcerosos têmevidenciado· a problemática que gira em torno dasnecessidades afectivas regressivas, expressasfrequentemente no carácter através de traços opostos(busca excessiva de independência, ambição, actividadee agressividade), mostrando como o ulceroso compensaassim as suas profundas tendências passivas; estasituação representaria um contlito permanente cujaexpressão do estado emocional seria a úlcera (Ey,1960)(7).

Nesta linha, Alvarez, citado por Alexander(I),refere o negociante, activo e eficiente, a pessoaempreendedora, como sendo particularmentepredispostaà patologia ulcerosa; por seu turno. Hartmancaracteriza a pessoa portadora de úlcera péptica comoalguém "11 encontrar obstáculos constituindo umaprovaçãoedesvantagem que, devido à sua natureza, seesforça por superar", considerando as úlceras comodoenças do mundo civi Iizado, afectando principalmenteos homens batalhadores e ambiciosos da civilizaçãoocidental. Draper e Touraine, citados pelo mesmoautor(I ),constataram como típica destes pacientes umarejeiçãode tendências femininas inconscientes, descritasem estudos psicanaliticos como impulsos orais-re-ceptivos O'U orais-agressivos.

Segundo Alexander!I) o que caracteriza o pacientecom úlcera não será tanto um determinado tipo depersonalidade, mas sim uma situação específica deconflito que poderá desenvolver-se em personalidadesdiferentes: o desejo de permanecer na situação dedependência infantil, de ser amado e protegido, estariaem conflito com o orgulho e com a aspiração porindependência, realização e auto-suficiência do Euadulto. Estas duas tendências conflituais reforçam-se

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mutuamente; no seu comportamento manifesto, muitospacientes com úlcera péptica mostram uma atitudeindependente, ambiciosa e agressiva exagerada, sendoesta uma reacçãoà sua dependência extrema, poréminconsciente; no íntimo da sua personalidade, o pacienteanseia, inconscientemente, pela existência protegidada criança pequena. O anseio por amor, reprimido, é oestimulo psicológico inconsciente directamentevinculado aos processos fisiológicos que, finalmente,levam à ulceração. De acordo com aquele autor, esteanseio é a razão dos efeitos benéficos dos tratamentosde repouso, durante os quais o paciente é afastado dassuas responsabilidades contínuas e da sua luta diária;quando os sintomas se tomam ameaçadores ou apósuma hemorragia aguda, o paciente pode cederabertamente ao seu desejo de se afastar dasresponsabilidades, não precisando então de o reprimir- a doença orgânica grave justificaria então talafastamento.

Para alguns autores - "embora a situação de conflitoseja similar em todos os indivíduos com úlcera péptica,a aparência da personalidade dela resultante pode variarde uma independência exagerada a uma dependênciaparasitária"; por isso, é importante realçar que nemtodos os pacientes que sofrem de úlcera pépticasobrecompensam os seus desejos de dependênciaatravés de uma demonstração externa de actividadeempreendedora e da neces-sidade de liderança e de .responsabilidades; muitos deles são manifestamentedependentes, exigentes e descontentes. Nestas pessoas,as tendências de dependência não são frustradas pelorepúdio interno mas sim pelas circunstâncias externas'U,

Plozza et aI. (1992)(11) consideram que o estadoafectivo básico do paciente de tipo passivo é sobretudodepressivoe que os desejos de dependência seexprimemde modo directo; de acordo com Freyberger(1972),asulcerações ocorrem quando desejos conscientes ouinconscientes ligados a esta dependência encontramuma barreira à sua satisfação. De primária importânciano ulceroso de tipo passivo setá o medo inconsciente deperder o carinho e a protecção concedidos pela mãe;este medo leva a uma constante tensão. Estes indivíduosprocuram pessoas que sentem que nunca os abandonarãoe situações de forte vinculação relacional em relação àsquais não concebem qualquer possibilidade de saída ouabandono; são, por exemplo, os homens que não sãocapazes de admitir a eventualidade de deixarem de seramados pelas suas companheiras. Qualquer dúvida aesse respeito pode precipitar ansiedade. Assim, toda asua estratégia de vida está centrada no intuito de seremprotegidos. Balint, citado por Plozzaet ai. (1992) (11),

utilizava os termos de dependentes "ocnofilicos" comooposto aos arrojados "filobatas". Esta dependênciaaberta e passiva parece originar-se em pacientesoriundos de famílias rigidamente organizadas, nas quaisforam alvo de uma atenção excessiva por parte da mãe;poderá dizer-se que, em termos psicológicos, não seprocessou o desmame e-a separação da figura materna.Em relação ao pai ressaltará, predominantemente, umaatitude autoritária e de comando distanciado. A esterespeito, Loch, citado por Plozza etai. (1992) (I1)

descreve a incapacidade de alguns pacientes provarema eles próprios a validade da sua masculinidade emcontraponto com a do pai e a possibilidade de receberemapoio por parte de outros homens.Normalmente estesindivíduos escolhem para os seus relacionamentosafectivos parceiros que preenchem estas suasnecessidades. Assim, os ulcerosos do sexo masculinoprocuram figuras femininas de tipo materno.

Alexander (1950)(1) fez algumas consideraçõespsicossomáticasàcerca deste tema; assim, ele referiuque um tipo de defesa contra a ansiedade é tratar umperigo interno como se ele fosse externo, preparando--se para enfrentá-lo agressivamente. Este tipo de defesapode produzir sintomas tais como a elevação da tensãoarterial, o aumento da frequência cardíaca, o aumentodo tónus muscular e outros sinais somáticos daestimulação 'simpática ou nervosa voluntária. Outrotipo de resposta é o regressivo, que consiste numretrocesso para uma atitude de desamparo, procurandoajuda e protecção. O aumento da secreção do estômagopertence aeste tipo de resposta regressiva à ansiedadee ao medo; é a manifestação de uma regressão ao estadoinfantil, quando a criança se voltava para a mãe àprocura de ajuda. Jáque um dos primeiros desconfortosque a criança experimenta é a fome, que é eliminadapela nutrição materna, o desejo de ser alimentadotorna-se a resposta mais primitiva a todos os tipos destress emocional. O desejo de receber, de ser amado, dedepender de outros é rejeitado pelo Eu adultoou,alternativamente, é frustrado, devido a circunstânciasexternas e, consequentemente, não consegue encontrargratificação nos contactos pessoais. Uma via regressivaé então frequentemente usada; o desejo de ser amadotransforma-se no desejo de ser alimentado. O anseioreprimido de receber amor e ajuda mobiliza asinervações do estômago que, desde o início da vidaextra-uterina, estão intimamente associadas às formasmais primitivas de receber alguma coisa, isto é, aoprocesso de receber o alimento - a activação destesprocessos serve como um estimulo crónico para afunção gástrica; nestas condições, o estômago responde

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Úlcera gastroduodenal - Perspectivas psicossomáticas

continuamente como se o alimento estivesse a ser, ouprestes a ser, ingerido. Quanto maior for a rejeição decada gratificação receptiva, maior será esta "fome"inçonsciente de amor e ajuda. Aquele autor sugere queesta estimulação emocional crónica permanente doestômago resulta numa hipersecreção e hipermotilidadecrónicas. O estômago vazio é, portanto, submetidoconstantemente aos estimulas fisiológicos enquantoque, sob condições normais, é exposto apenasperiodicamente, quando contém ou está prestes a receberalimento. Os sintomas 'do "estômago nervoso" -desconforto epigástrico, pirose e eructação - sãoprovaveI mente manifes tações desta estimulação crónicaque, em alguns casos, pode levar à formação de úlcera.O facto de nem todos os pacientes com hipersecreçãofuncional crónica desenvolverem úlcera levanta apossibilidade de que uma debilidade do estômago,constitucional ou adquirida, possa ser importante nodesenvolvimento da ulceração.

Wolffe Wolf,citados por Alexander'Hestudararnum paciente com uma fístula gástrica permanente eencontraram hiperémia, hipermotilidade e hiper-secreção como reacção à insegurança e a sentimentosagressivos e hostis quando o paciente era inibido e umretomo às funções normais quando recuperava a suasegurança emocional, mostrando a relação entre oanseio por segurança e a hiperactividade das funçõesgástricas. Numa outra investigação experimental,Mittelmann e Wolff, citados por Alexander(I),induziram perturbações emocionais agudas emindivíduos normais e em pacientes portadores de úlcera,gastrite e duodenite; observaram em todos os pacientesum aumento das secreções de ácido clorídrico, muco epepsina, bem como um aumento do peristaltismo,Estas experiências vêm lembrar a importância dosfactores constitucionais, que estão de acordo comasdescobertas mais recentes àcercade uma predisposiçãogenética para a hipersecreção gástrica(3).

Retomado a discussão àcerca da postuladapsicogénese da patologia ulcerosa e tendo em conta anão existência de especificidade no que concerne aosfactores de personalidade, e as várias constelações defactores emocionais envolvidos, será de interesse referira classificação de M'Uzan e Bonfils, citada por Ey(7)

,que agrupa os ulcerosos em quatro grandes tipos: TipoI :hiperactivo - relação de rivalidade e de independênciacom um comportamento social de rivalidade e decompetição, recusa obstinada das tendências passivas,sintomas de tipo compulsivo e uma vida familiar nãoraramente desequilibrada (corres ponderá a 25% doscasos); Tipo 2 : equilibrado - estável social e

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familiarmente, ainda que possa apresentar algunssintomas neuróticos; frequentemente, a esposaé dotipo "boa mãe frígida" (representa 50% das situações);Tipo 3 : instável- alternam os sintomas de dependênciacom um comportamento independente, manifestações.de passividade com manifestações opostas; carênciasfamiliares frequentes, por vezes com comportamentosa raiar o psicopático (representam 10% dos casos);Tipo 4 : passivo - dependência tanto na relaçãoterapêutica como fora dela (com frequentes episódiosde depressão e ansiedade); manifestações múltiplas detendências 'passivo-receptivas; vida familiar e socialperturbada; alcoolismo frequente (representa 15% dassituações),

Será importante realçar que vários autoresencontraram melhores resultados com um tratamentoradical, como a gastrectomia, nos doentes do tipo 2,recomendando o seu evitamento nos outros grupos.Nesta classificação transparece arelação desta patologiacom entidades como a depressão e a toxicodependênciaque, numa perspectiva psicodinâmica, se ligarão àoral idade; é curioso que frequentemente sãocomplicações deste tipo as que aparecem após umagastrectomia.

Como se tem vindo a constatar., são numerosos ostrabalhos efectuados na tentativa de averiguar o papeldo psiquismo dos indivíduos portadores de patologiadigesti va; apesar da sua extrema diversidade é, contudo,possível distinguir basicamente duas orientaçõesesquemáticas, caracterizadas por pressupostos teóricosdiferentes e tendo,' consequentemente, objectivosdiversos relativamente à investigação psicossornática.

A primeira orientação, de que se tem vindo a falar,centra-se basicamente na psicogénese, procurando

I

estabelecer correlações entre os parâmetros psíquicose os sornatícos, entre traços de carácter ou decomportamento e uma patologia digestiva específica -a investigação psicossomática tem, então, por objectivocolocar emevidência estruturas fixas e rígidasou perfisde personalidade (o uJceroso, o colopata ...)(14).

A segunda orientação, mais recente, constitui umatentativa de ultrapassar o dualismo psique/soma,assumindo uma perspectiva na qual seja possívelconceber a unidade psicossomática constitutiva dohomem, enfatizando um modo de funcionamento deconjunto propiciador das condições dinâmicas de umapatologia eminentemente orgânica - a investigaçãopsicossomática tem, então, por objectivo colocar emevidência uma semiologia onde participem em partesiguais o modo defuncionamento, na sua relação com oimaginário (presença ou ausência de actividade onírica

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ou de seus equivalentes - o fantasma, o afecto, o jogo,a alucinação, a transferência, o delírio, a crença, ocorpo imaginário, o espaço e a temporal idade doimaginário), e as situações de vida, conflituais ou deimpasse. Esta corrente de Investigação psicossomáticatem como objectivo, não a pesquisa de uma psicogénesepara uma afecção orgânica, nem a tentativa de encontrar,através daquela, uma especificidade etiológica parauma doença orgânica, mas sim a conceptuatização docorpo na sua dupla pertença,sirnultâneamente ao reale ao imaginário. Compreender a sornatização exige,então, ter em conta, intcgradamente, por um lado arelação positiva ou negativa com a projecção -entendendo o imaginário na sua oposição ao real-, e poroutro a situação de conflito, implicando ou não acontradição.

Segundo aqueles autores(6, 8, 9, 12, 15, 17\esta

perspectiva psicossomática apoia-se em duas referênciasteóricas fundamentais: -A primeira, de ordemconceptual, é o próprio fundamento desta concepção:é a projecção, identifiçadaà dimensão do imaginário eprovida de um valor biológico, que constituiO eixoprincipal para a compreensão dos fenómenos desomatização, A projecção compreende, paraestes.autores, a actividade onírica e os equivalentes do sonho- desde que a via imaginária não esteja obliterada, elapermite, aquando da elaboração de um conflito, apossibilidade de um compromisso; -A segunda permitepensar um modelo desornatização multidimensional :consiste na formulação daexistênciade uma correlaçãonegativa entre a projecção, ou actividade imaginária, euma somatização afectando o corpo real. A somatizaçãoocorre, então, quandoa actividade projectivaé colocada"fora de circuito" por um recalcamento eficaz da funçãodo imaginário, impossibilitando, assim, a elaboraçãode uma situação de crise e de a ultrapassar através daspossibilidades do imaginário, não permitindo apossibilidade de uma solução de compromisso. Asornatização substitui aqui a regressão, não tendo outrosentido que o literal e atingindo o corpo real: aqui, asomatização vai a par com o recalcamento eficaz detoda a actividade do imaginário.É assim que, porexemplo, numa situação de perda objectal, estando aactividade imaginária indisponível, se torna impossívelpensar a ausência, criando-se as condições dinâmicaspara uma patologia orgânica.

Robert (I 992)(1 7) refere que o laço entre a falênciada função onírica e o sintoma somático, ou seja apossível doença orgânica, é actualmente reconhecidopor numerosos autores como um facto de observaçãoclínica significativo. Uma tal falência acarreta a perda

de um sistema de descarga das tensões através dasatisfação alucinatória, assim como de um sistema deintegração dos acontecimentos actuais nas recordaçõesde uma história pessoal. O caminho das representações,viabilizado pelo trabalho do sonho, é abandonado emproveito 'de uma acção que tem como fim, mais adescarga das tensões internas que a modificaçãoreflectida do meio interno. Se este modo de acção seprolonga, pode tornar-se uma solução permanente devida numa história pessoal muitas vezes dramática,onde a questão do sere do ter não se coloca em termosde equilíbrio entre sonho e realidade, mas em termosde equilíbrio entreavida e a morte. Recorde-se apropósito, num breve parêntesis, que Mellita Sperling,(13) concebe a doença psicossomática como aconsequência da inversão pulsional sobre o organismo;os impulsos, em vez de se descarregarem pelocomportamento sobre o exterior, são dirigidos para osoma; a doença psicossomática será então um acting--in - um acto orientado para dentro, o agir através domeio interno.

Voltando a Robert (1992)(17), a escolha de umatal solução de vida que não é, bem entendido, umaescolha consciente, tem lugar muitas vezes naadolescência, período onde só um bom funcionamentoda função onírica permite a passagem da representaçãode um corpo de criança para a de um corpo sexuadoadulto. Este período de passagem é, ele próprio,preparado aquando da relaçãomãe-bébé, quando asmensagenssomáticas deste são recebidas, "ligadas" erestituídas pela capacidade de "rêverie" da mãe. Osindíviduos que excluíram a função oníricaem proveitode uma acção de descarga, na qual todo o prazer éexcluído, são conduzidos, para se adaptarem àrealidade externa, a utilizar o seu corpo de umamaneira particular, istoé,sob a forma de uma doençasomática. Num trabalho do mesmo autor'17)é referidoo caso clínico de um individuo de 35 anos, alpinistadesde os 13 anos, que na procura de situaçõesparticularmente perigosas se decidiu pela profissãode guia de alta montanha; o autor refere que ele nãosonhava - agia, através de um comportamento para-suicida. Portador de úlcera duodenal, o autor verificouainda que, nos períodos em que não exercia a actividadede guia, ganhando a vida como vendedor numa livraria,recorria frequentemente aconsulta médica por recidivadolorosa da sua úlcera e insónia. Acting-in e acting--out aparecem como formas simétricas e diame-traImente opostas de sintomatologia; podem excluir--se reciprocamente, alternar-se ou entrecuzar-se nomesmo paciente.

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Úlcera gastroduodenal - Perspectivas psicossomáticas

ASPECTOS TERAPÊUTICOS

Alexander 'I) sublinha que, no tratamento da úlcerapéptica, a primeiraconsideração deve ser o tratamentoda condição local; chama a atenção, no entanto, para ofacto de que a vagotomia e outros tratamentos médicosnão alterarem os conflitos psíquicos do paciente queconstituem a perturbação primária numa cadeia deacontecimentos que leva, finalmente, à ulceração; poreste motivo, pacientes vagotomizados são propensos adesenvolver várias outras perturbações mais ou menosgraves. Refere, ainda, que a psicoterapia éprincipalmente de natureza preventiva, tendo comoobjectivo impedir recidivas. Na maioria dos casos, háum período de tempo variável em que a perturbaçãofuncional está presente, antes de se desenvolver aúlcera activa; a hiperacidez crónica e outros sintomasgástricos são os primeiros indicadores dc que o controlenervoso das funções do estômago está perturbado.Nestas ocasiões, a concentração nos sintomas locais ea negligência dos factores da personalidade poderáconstituir um erro grave. Sendo a úlcera péptica umaperturbação crónica, segundo este autor está indicada apsicoterapia em combinação comO tratamento médico.

Luban-Plozza et aI. (1992)(11) enfatizam aimportância da relação médico-doente, para além doindispensável tratamento médico. Na fase aguda deveráser evitada a abordagem directa dos conflitos,colocando-se a tónica em alterações do dia-a-dia dopaciente. Desde início, o médico deverá avaliar o tipode paciente que tem em presença: o tipo passivorequere preferencialmente uma relação médico-doenteprotectora e uma arte de persuasão para a toma regularda medicação; o tipo hiperactivo requer uma abordagemdiferente, havendo necessidade de uma atençãoparticular ao conflito entre aspirações de independênciae necessidades de dependência, para além da valorizaçãodo cumprimento da medicação. Segundo os mesmosautores, o relaxamento de Schultz tem provado ser degrande valor. Também a terapia de grupo é defendidana abordagem destes pacientes.É particularmenteimportante que o doente hiperactivo se aperceba de quetambém é possível uma vida activa em estado derelaxamento. Não será raro que o paciente portador deúlcera se torne estável emocionalmente após umaintervenção cirúrgica; o novo estatuto como pessoadoente foi então "legalizado" aos olhos dos outros,sendo assim encarado e aceite como sendo "realmente"doente. No entanto, se os problemas emocionaispermanecem por resolver, várias complicações após acirurgia são possíveis : poderá ocorrer uma mera

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alteração da natureza dos sintomas, uma vez que adinâmica do conflito inconsciente ainda está presente,ou, segundo Freyberger e Leutner (1992)(11),

perturbações mais. graves poderão ocorrer comfrequência, nomeadamente alcoolismo, abuso defármacos, sintomas neuróticos ...

Meyer (1992) (11) refere que os portadores deúlcera aceitam a psicoterapia com extrema relutância.Sublinha que os pacientes "pseudo-independentes"resistem a ser dependentes dos psicoterapeutas e têmtendência a abandonar a terapia aos primeiros sinais demelhoria sintomática; por outro lado, os pacientes dotipo dependente tornam-se frequentementedesapontados pela impossibilidade do acesso livre,como desejariam, ao seu terapeuta fora dos períodos deconsulta. O paciente deve ser colocado em posição depoder exprimir as suas necessidades de dependênciasem o receio de se ver depreciado pelo médico; e,assim, capaz de investiro médico como figuraparental;

e revelar os seus medos internos. Será, então, possívelverbalizar os conflitos, discutir os problemas e reduzira tensão psicológica interna.

Aqueles autores (1992)(11) referem ainda que,numa abordagem familiar, os benefícios do tratamentopoderão ser ampliados se for possível incluiros membrosda família no processo terapêutico, introduzindo assima estratégia de confronto familiar no tratamento dedoentes psicossomáticos. A família constitui umaunidade integral, sendo o membro familiar doentegeralmente o mais sensível, tornando-se o portador dosconflitos familiares. Quanto mais a família adquirir osentido da responsabilidade na contribuição para aterapia e o paciente se sentir por ela compreendido,melhor será o prognóstico. A abordagem familiar étambém importante, uma vez que os portadores deúlcera possuem frequentemente uma história familiarde doenças similares; assim.esta abordagem poderá terum valor profiláctico contribuindo para a eliminaçãode um certo grau de predisposição à ocorrência depatologia ulcerosa; a eliminação de padrõesdisfuncionais de interacção e de situações de conflitointrafamiliares poderá, então, prevenir dificuldadesprecoces na comunicação, típicas dos portadores deúlcera, nasgerações subsequentes.

Derzelle e Gorot(6) referem que a abordagempsicossomática terapêutica deverá integrar umainvestigação clínica, radiológica e biológica minuciosa.Por vezes, o relato da afecção tal e qual o paciente adescreve espontâneamente pode, desde logo, sugerirao médico assistente a existência de conflitospsicológicos desencadeantes, podendo mesmo o

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paciente estabelecer a ligação entre o aparecimento dasua doença e uma perturbação da sua existênciavivencial, um acontecimento de vida; outras vezes, opaciente não faz mais que "oferecer os seus sintomas".Em qualquer dos casos, a entrevista psicossomáticadeverá ser efectuada pelo médico assistente, sob aforma de um exame complementar, útil para umamelhor compreensão da doença. Segundo aquelesautores, a entrevista psicossomática deverá decorrerface-a-face, se possível sem secretáriaentreposta; deveráser uma entrevista não-dirigida, numa técnica análogaà da "anamnese associativa" de Félix Deutsch, queconsiste em permitir que o paciente se expresselivremente, observando-se os seus movimentos, oestilodo seu comportamento, do seu discurso, das suasemoções, dos seus silêncios; o observador limita-se aestimular o discurso de vez em quando; assim, opaciente pode verbalizar e repetir, tanto quanto deseje,a descrição da sua patologia, dos seus sintomas,associando-os com o que desejar; desta forma, namente do observador vai tomando corpo uma imagemcada vez mais precisa da estrutura psicológica dopaciente. Só numa segunda fase o observador deveráintervir, se necessário, de um modo mais activo paraprecisar alguns elementos da vida do paciente. Referemos mesmos autores que, quando não existir um quadroneurótico franco mas sim um mosaico de manifestaçõescaracteriais diversas não constituindo uma neuroseestabelecida, estará indicada uma abordagempsicoterapêutica, tendo como base a recuperação dafunção do imaginário, favorecendo a possibilidade dasua integração na experiência consciente e seguindo omovimento de "vai-e-vem" do corpo real/corpoimaginário. Esta abordagem psicoterapêutica poderá,basicamente, seguir o seguinte esquema: -constataçãoda ausência de actividade onírica e seu significado nadinâmica individual; -introdução, na relaçãotransferencial, da reemergência da actividade onírica;-constatação das recordações dos sonhos e dapossibi Iidade de os verbal izar na relação; -aprendizagemdo paciente, ajudado pelo terapeuta, em estabelecerlaços simples entre a sua vida no estado de vigília e asua vidaonírica. A integraçãodesta última possibilidadena relação constitui a principal aquisição terapêutica:o sonho vai-se revelando, progressivamente, comofacilitador da resolução do conflito pela possibilidadede pensar o contraditório. Os mesmos autores advogam,por fim, algumas formas de relaxamento desenvolvidaspor Cady que- permitem ao paciente, através daexperiência corporal, na qual subjaz a problemáticatensão/relaxamento, actividade/passividade, o acesso

à vida onírica, possibilitando assim a passagem de umvivido corporal a um imaginário corporal(4,5).

Quanto à função específica do terapeuta, foi jádescrita por Bion no seu conceito evocativo da"capacidade derêverie materna": estimular, receber,conter e restituir os afectos expressos pelo paciente deuma forma progressivamente mais aceitável, adequada,e passível de elaboração por ele.

ILUSTRAÇÃO CLÍNICA

António de 57 anos de idade, casado desde os 16,electricista numa empresa recentemente falida.Actualmente desempregado e a aguardar decisãojudicial sobre a indemnização acordada com a empresaantes da sua falência. Vive do salário da esposa,empregada de limpeza. Tem uma filha, única, de 22anos, casada, empregada de escritório.

Da sua história pessoal, refere ter sido sempre umapessoa reservada, tímida, sempre correcto com oscolegas de trabalho mas "de poucas conversas .., eramais um homem caseiro, nunca fui muito de conviver"(sic).

De pouca iniciativa, sem ambições nem projectos,foi o seu pai, por intermédio de um amigo, que lhearranjou emprego na empresa onde sempre trabalhou,primeiro como aprendiz e depois como electricista.Nunca procurou ascender, profissional ou socialmente;ao longo de 40 anos "entrei no emprego como saí,sempre com o mesmo posto, não sou invejoso nemambicioso, nunca fui um sonhador - trabalhava paraganhar o dia-a-dia e sentia-me satisfeito assim",sublinhando, contudo, sercumpridorescrupuloso, querdos horários, quer das actividades que lhe eramdestinadas. Cordato e conciliador, nunca teve conflitos,nem com os patrões, nem com os colegas, "não faltandoao trabalho um dia que fosse, ao longo de todos estesanos".

O ambiente familiar é descrito como harmonioso,"nunca houve conflitos nem discussões, esteve sempretudo bem", considerando-se bom marido e bom pai,"com o pouco que sempre ganhei lá consegui criar umafilha e dar-lhe estudos até ao 5° ano".

Vem à consulta externa de Psiquiatria por suainiciativa, na sequência de dificuldades profissionais.A informação da triagem refere que, desde há meses,"anda descontrolado, tem dificuldades em trabalhar, jánão se sente com capacidade, faz muitas confusões".

Nas primeiras consultas, o seu discurso éexclusivamente centrado na sua situação profissional -a empresa onde trabalha está em situação económica

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Úlcera gastroduodenal - Perspectivas psicossomáticas

difícil, prevendo-se o despedimento de numerosostrabalhadores. Discursa profusamente sobre estasituação, fornecendo ao pormenor todos os aspectos, asameaças de desemprego, as propostas e negociações depatrões e trabalhadores, a insegurança destes. De si nãofala, solicitando opiniões sobre conflitos de trabalho,conselhos sobre advogados e tribunais.

Convidado a falar sobre os seus sentimentosrelati vamente a esta situação, diz "andar descontrolado,já não se sentir com capacidade para trabalhar, muitoconfuso". Refere um estado de tensão corporal e doresadbominais, dizendo ter uma úlcera desde 1983, de queestaria curado.

Negoceia com a entidade patronal, aceitando o seudespedimento com direito a indemnização. Dadas asdificuldades da empresa, aceita que o pagamento sejaefectuado em duas prestações, porque "eles têm os seusproblemas e eu compreendo". Perante o não pagamentoda indemnização, ao fim de alguns meses, contrata osserviços de um advogado. O processo toma-se arrastado,não se visualizando a resolução do conflito. Oferece aoadvogado, como honorários, metade da indemnização,referindo mais tarde a possibilidade de ter sido enganadopor aquele - "suspeito que ele negociou com a empresa,recebeu metade da indemnização e depois andou aarrastar o processo". Faz radiografia gastroduodenal,confirmando-se a recidiva da úlcera duodenal. Mudade advogado - "este parece mais despachado, maisdinâmico, deu-me esperanças" (sic). A empresa é levadaa tribunal, após sucessivos adiamentos - "eu e outrostrabalhadores estivemos presentes, mas os principaiscredores é que vão receber as dívidas em primeirolugar". Por fim, a empresa é declarada como falida,

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instalando-se novamente a desesperança.Ao longo de parte deste processo, durante as

entrevistas, o seu discurso é literal, semsubjectividade,centrado no conflito laboral, nas dificuldades emadormecere nas queixas gástricas. Traz para as consultasdocumentos, fotocópias, nomes de advogados, quemostra e comenta.

Contacta o psiquiatra entre as consultas, trazendomais documentos e notícias da sua situação - "sempreque tiver alguma novidade posso vir dar-lheconheci mento, mesmo antes das consultas?". Comenta--se a sua necessidade de dependência, as suas dificul-dades em falar das emoções e sentimentos - "não souexpansivo, meto tudo para dentro, só falo disto à minhamulher e, mesmo assim, receio incomodá-Ia, sou muitoreservado, não falo com mais ninguém". Mais tarde,exprime sentimentos de revolta perante a sua situação,com ansiedade, irritabilidade, cefaleias, sentindo-seinjustiçado e exaltado - "não vejo saída para estasituação, nada se resolve, ora ando irritado, com vontadede partir tudo, ora fico triste, com vontade de chorar ...com esta idade como vou conseguir outro emprego?".

Através da psicoterapia, o impasse da sua situaçãode vida vai eclodir numa situação de depressão,possibilitando, então, uma melhor elaboração da perda.Pôde assim aproximar-se dos outros - "ao fim-de--semana tenho saído com o meu genro ... parece que,pela primeira vez, começo a relacionar-me com osoutros ...".

Foi, assim, sendo cada vez mais claro na melhoriado paciente, a importância da emergência,desenvolvimento e resolução da depressão (trabalhodepressivo).

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Psiquiatria Clínica,19, (I), pp. 41-46,1998

Oniomania (compras compulsivas): a propósito de 7 casos*

POR

FRANCISCO ALLEN GOMESC), MARIA HELENA PINTO DE AZEVEDO(2) e ISABELCOELHO C)

Projecte bem as suas compras para não ficar preso a dividas,Todos sabem que as dívidas em excesso ou mal planeadas, podem tomar-se numa prisão para toda a vida.Prisão essa que conduzirá à privação, não só de bens materiais, mas de outros mais importantes e dos quais

depende uma vida estável e equilibrada a nível psicológico. Antes de contrair dívidas, estude bem apossibilidade de as saldar sem dificuldades. Ou o que podia ser um sonho, facilmente se tomará em pesadelo.

Liberte-se das dívidas, principalmente daquelas de que não necessita realmente.É um conselho de amigo.Instituto do Consumidor.

(Anúncio de página inteira publicado na imprensa diária - Dezembro de 1997).

Introdução

Até muito recentemente as compras compulsivasmereceram mais atenção das' associações deconsumidores, a chamada literatura leiga, do que daliteratura psiquiátrica (McElroy et ai, 1994). Isto étanto mais estranho quanto sabemos não ser estefenómeno recente pois já Kraeplin (1915) e Bleuler(1924) utilizaram o termo de Oniomania (mania dascompras) definindo-a como um impulso patológico ereactivo, respectivamente.É preciso esperar até aosanos 80 para aparecerem alguns relatos de casos isolados(Winestine, 1985; GIatt& Cook; 1987) e um grupo dequatro por Krueger (1988). Provavelmente, estedesinteresse ficou a dever-se ao facto de os gastosexcessivos serem um dos critérios diagnósticos de umacrise maníaca, o que levaria a considerar as comprasexcessivas como uma manifestação típica de doentesmaníacos ou maniformes.

A mudança do interesse psiquiátrico referente àoniomania verifica-se nos anos 90. Em 1991 SusanMcElroy et ai apresentam 3 casos tratados com

antidepressivos e em 1994 aparecem, por ordemcronológica, séries mais significativas e com descriçõesmais sistematizadas: Garry Christenson et ai (24 casos),Susan McElroy etal (20casos) e Steven Schlosseretal (46casos). Ainda em 1994Michel Lejoyeux et ai descrevemas compras patológicas como uma adicção comporta-mental e encontram em 143 franceses (98 mulheres e 45homens) .residentes na região de Paris e sem históriapsiquiátrica, cerca de 50% de indivíduos com acentuadosimpulsos de compra. Em 1996Monahan, Black & Gabeiapresentam uma escala para detectar compradorescompulsivos e, ainda em 1996, Black publica uma re-visão. Em 1997 BIack, Monahan&. GabeI apresentam osresultados de 10doentes tratados com Fluvoxamina e, nomesmo mês, Lejoyeux et ai encontram31.90/0 decompradores compulsivos em 119 doentes deprimidos.

Definição e prevalência

o primeiro problema que se coloca ao analisar ofenómeno de compras excessivas é estabelecer umadistinção clara entre um comprador normal e um

(I) Chefe de Serviço de Psiquiatria. Clínica Psiquiátrica, H.U.C ..(2) Chefe de Serviço de Psiquiatria. Clínica Psiquiátrica, H.U.C:.. Professora Catedrática de Psiquiatria na F.M.C ..(3) Consultorade Psiquiatria. Clínica Psiquiátrica, HU.C ..* Trabalho apresentado no II Congresso Nacional de Psiquiatria. Coimbra, Junho de 1997.

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comprador patológico. Será o comprador patológicoo extremo de um continuum que começa noconsumidor normal, ou apresenta característicasespecíficas que merecem um tratamento particular eque o torna diferente mesmo quando comparadocom grandes compradores sem problemasespecíficos? Para Lejoyeux (1996) o único critérioque faz uma distinção clara diz respeito mais àsconsequências do que ao comportamento em sipróprio. Deve ser considerado um distúrbio ouperturbação mental quando acarreta sofrimentopessoal, dívidas financeiras e graves problemasfamiliares. É, justamente, este critério de perturbação,que é usado ao longo da DSM IV para reconhecer oóbvio: os sintomas na ausência de perturbação nãoatingem o limiar para um diagnóstico psiquiátrico(Black, 1996). Oniomania será pois umasituaçãoclínica em que, a pessoa sente um impulso irresistívelpara comprar coisas de uma forma excessiva edesnecessária, eventualmente, seguida no imediatode gratificação ou alívio de tensão, mas causandograves problemas a nível pessoal, conjugal e familiar,ou a nível profissional, ou ainda nas áreas financeirae legal.

Para o seu diagnóstico têm sido criadas váriasescalas (Faber& O 'Guinn, 1988, Monahan et aI,1996, Lejoyeux et aI, 1997) e McElroy et ai (1994)elaboraram critérios clínicos' de acordo com ametodologia diagnóstica das DSM (ver Anexo).

Faber & O'Guinn (1988), utilizando uma escalaespecífica, estimam uma prevalência para apopulação geral de 5.9%, mas posteriormente (1992),com critérios mais restrictivos, apresentam umaprevalência de 1.1%. Entre nós não existe qualquerestimativa e a pequena série de casos que iremosapresentar foi recrutada através do nosso trabalhoclínico. Contudo achamos que se reveste do interessenecessário para chamar a atenção para esta situaçãoclínica e poder ser um estímulo para investigaçõesfuturas.

Descrição dos Casos

Como se pode ver no Quadro I todos os doentessão do sexo feminino, comidades compreendidas entre31 e os 54 anos, sendo a média de 41 anos. Aidade

média em que foi possível apurar o início do problemafoi de 32 anos, variando de 18a 48 anos. Dos sete casos,1 era solteira, I divorciada e as restante 5 casadas.Todas exerciam uma profissão e pertenciam à classemédia.

Quadro 1

Caso IdactualId início E.Civil Profissão

I 33 19 casada ProfdoSecundário

2 38 30 solteiro ProfUniversitária

3 40 18 casada Pintora

4 51 48 casada EducadoraInfância

5 54 43 casada EducadoradeInfância

6 31 29 casada Secretária

7 42 41 divorciada Técnicadeinformática

Todas as doentes obedecem àdefinição apresentadae os períodos de gastos excessivos, em nenhum doscasos corres ponderam a uma alteração maniforme dohumor.

As compras excessivas ocorreram por períodos(alguns atingindo seis meses) seguidos de intervaloslivres (à excepção do caso 6 em que as compras semantiveram, consecutivamente, durante um ano, sóparando quando abandonou o trabalho e saíu da terraonde residia à qual apenas regressou após iniciado otratamento). Os episódios têm, muitas vezes, um ritmodiário e o tempo gasto em lojas ocupa, praticamente,todos os tempos Iivres (uma das nossas doentes, duranteum episódio que durou dois meses, permanecia naslojas, diariamente, entre as 15 e as 19 horas). Ascompras diziam respeito a roupas, calçado, carteiras,perfumes, bijouterias e óculos. O pagamento utilizadofoi o mais variado: dinheiro, cartão de crédito, cheques,cheques pré-datados, "fiado" e dinheiro emprestado.Em todas, este comportamento de compras excessivasteve graves consequências: conjugais, familiares,sociais, económicas e legais. Pelo menos em 5 casos (I,2, 5, 6 e 7) foi possível estabelecer um padrão bem

marcado: tensão prévia (muitas vezes experimentadaainda em casa) - alívio/prazer - remorso/culpa.

Como se pode ver no Quadro 2 e, à semelhança doque característicamente é apontado na literatura, asnossas doentes apresentam uma comorbilidade "aolongo da vida", acentuada. Estafoi investigada atravésdo registos clínicos de 4 casos, e de uma entrevistaestruturada (DIGS, Azevedo et ai, 1993) nos outros 3.

Os distúrbios do humor foram registados em todasas doentes (85.7%), excepto uma. Os restantesdiagnósticos distribuiam-se pordiferentes quadrosclínicos, como distúrbios de ansiedade (42.8%),

distúrbios alimentares (28.6%), distúrbios adictivos

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Oniomania (compras compulsivas): a propósito de 7 casos

- (28.6%) e outros distúrbios do controlo do impulso(28.6%).

Quadro 2

COMORBILIDADE

Caso 1 (DIGS)

Dist. do humor

CasoS

Dist. do humor

Desejo sexual hipoactivo

Caso 2 (DIGS)

Dist do humor

Dist de pânico

Cleptomania

Caso 3

Anorexialbulimia

Caso4

Dist do humor

Dist de ansiedade

Dependência de psicofármacos

Personalidade borderline

Dependência alcoólica

Distobsessivo-compulsivo

Cleptomania

Automutilações

Caso 6 (DIGS)

Óist. do humor

Bulimia

Caso 7

Dist. do humor

Finalmente, e a título ilustrativo, apresentamosuma descrição resumida de um dos nossos casos:

X , sexo feminino, 31 anos, casada (caso 6). Ascompras excessivas começaram cerca de ano e meioantes da I"consulra. Refere que, na altura, se encontravadeprimida. Pela primeira vez na sua vida, encontrava--se numa situação de autonomia económica. Começoua comprar com um enorme prazer roupas de marca,bijouteria e perfumaria. Sentia uma especial satisfaçãoem estar em boas lojas, em experimentar roupas e,depois, em as adquirir. Da mesma forma passou arecorrer a tratamentos de beleza para melhorar a auto-estima. Rapidamente, apareceram os problemas: oscartões de crédito são-lhe retirados por ultrapassar o"plafond" permitido. Passou então a recorrer a chequese a empréstimos. Chegou a falsificar assinaturas emlivranças. As roupas que comprava já não eram só parasi mas também para a família. O critério já não era sóa qualidade. Havia uma necessidade imperiosa decomprar. Dá como exemplo, o ir a um supermercado eter que comprar detergentes para a máquina de lavar,mesmo sabendo que já tinha excesso deles em casa.Quando se levantava de manhã sentia logo uma tensãoprévia que só esbatia comprando. Quando chegava acasa, sentia-se destroçada e arrependida. Ao fim de umano, as dívidas tinham ultrapassado os 8.000 contos.

43

Quando a situação se descobre, para além dos problemasfinanceiros e da perda do emprego, surgem gravesdesavenças familiares e conjugais.

Discussão e conclusões

De acordo com a literatura sobre o assunto, aoniomaniaé umcomportarnento bastante mais frequenteno sexo feminino, variando de 91.6% de 24 casosrecrutados por anúncio de jornal (Christenson et ai1994) a 80% tanto no estudo de Schlosser et ai (1994)sobre 46 casos igualmente recrutados por anúncio dejornal, como no trabalho de McElroy et ai (1994) comuma amostra de 20 doentes de hospitais psiquiátricos.

A idade média de procura de ajuda das nossasdoentes é de 41 anos, superior aos 30 anos dos estudosde Christenson et ai (1994) e de Shlosser et ai (1994) -estudos em que, como se disse, as amostras foramrecrutadas em anúncios de jornais, mas idêntica aos 39anos do trabalho de McElroy et ai (1994) em que, àsemelhança dos nossos casos, os doentes foramrecrutados em instituições psiquiátricas.

Do mesmo modo a idade de início do problema de32 anos, é próxima da de McElroy et ai, (1994) - 30 ebem afastada das idades referidas por Christenson et ai(1994) - 17.5 anos e Schlosser et ai (1994) - 18.7 anos.

Com respeito ao comportamento de comprar, meiosde o fazer, vivências experimentadas antes e depois dascompras, e às graves consequências pessoais, familiarese financeiras, as características das nossas doentes sãosobreponíveis às descritas nas séries publicadas(Christenson et ai 1994; McElroy et ai, 1994, Schlosseret ai, 1994).

Em relação à comorbilidade, novamente os nossosdados são concordantes com os de McElroy et ai, 1994,que também encontrou maioritariamente distúrbios dohumor(85.7%vs95%)emassociaçãocomaoniomania,O que contrasta com os 54% de Christenson et aI (1994)e 28% de Schlosser et ai, (1994).

Os distúrbios de controlo do impulso são de 28.6%na nossa pequena amostra, o que é uma percentagemintermédia em relação às referidas pelos outros estudosque varia entre os 20.8% (Christenson et ai, 1994) e os40% (Mcfilroy et ai, 1994, Schlosser et ai, 1994).

À semelhança do que encontraram os outrosautores, ainda que em percentagens diferentes, tambémas nossas doentes apresentaram distúrbios de ansiedade,alimentares e adictivos,

A oniomania é uma situação clínica de etiologia

desconhecida. Teorias sociais explicam-na pelo apelopersistente ao consumismo, o que explicaria o facto de

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ser mais frequente em mulheres, visto serem estas, emgeral, quem faz as compras da casa (McElroy et aI,1995). Também os psicanalistas teorizaram que ascompras compulsivas e o prazer com elas experimentadorepresentavam uma defesa simbólica contra impulsos,desejos e confl itos inconscientes inaceitáveis, sobretudode cariz sexual.(Lawrence, 1990).

Recentemente, tem sido posta aênfaseem aspectosbiológicos pelas razões que se seguem: Christenson etaI (1994) afirmam que a oniomania partilhacaracterísticas comO distúrbio obsessivo-compulsivoe com as doenças do controlo do impulso, embora refiraque se aproxime mais dos distúrbios do impulso. Defacto, as características básicas dum distúrbio doimpulso, estão presentes naoniomania: comportamentoproblemático e repetitivo; subida de tensão prévia aoacto; alívio da tensão ou gratificação que se segue aoacto. Por outro lado, os impulsos para comprar e osrespectivos comportamentos são, à semelhança do quese passa nos distúrbios do impulso, ego-sintónicos queé,justamente, o oposto doque se passa com asvivênciasobsessivas e compulsivas que são, por definição, ego-distónicas. McElroy et aI (1994) estão de acordo comas reflexões de Christenson et aI (1994) mas inclinam--se mais para as considerar no amplo espectro dasperturbações obsessivo-compulsivas talvez porque, nacomorbilidade dos seus casos, encontraram350/0 dedistúrbios obsessivo-compulsivos, percentagem esta,muito superiorà das outras séries, incluindo a nossa.Posteriormente, McElroy etal (1995) conceptualizarama oniomania, bem como a bulimia e a cleptomania,como distúrbios do controlo do impulso que fazemparte de uma extensa família do espectro dos distúrbiosobsessivo compulsivos que, por sua vez, podempertencer á grande família das perturbações afectivas.Aliás, Lejoyeux et aI (1995 e 1997) chamam a atençãopara a estreita ligação entre a oniomania e a depressão,

considerando as compensações provocadas pelascompras como induzidas pela depressão e sem qualquerrelação com a mania. De facto, no seu estudo publicadoem 1997, encontraram 38(31,90/0) compradorescompulsivos em 119 doentes deprimidos havendo umanítida relação entre o começo da depressão e às comprasexcessivas. Estes doentes apresentavamsignificativamente mais distúrbios de controlo doimpulso do que os doentes deprimidos semcomportamento de compras compulsivas. Me Elroy etaI (1995) afirmam ainda que, a boa resposta dos doentes

com oniomania aos fármacos antidepressivos, é maisum argumento a favor da sua inclusão no espectro dasdoenças afectivas, admitindo que, na sua base, seencontraria uma alteração central da neurotransmissãoserotoninérgica.

Estamos de acordo com McElroy et aI (1994), emque a oniomania deve ser considerada, por direitopróprio, como um distúrbio mental. É, sob o aspectonosológico, um distúrbio do controlo do impulso (actosinadequados e repetitivos; aumento de tensão prévia aoacto; alívio de tensão ou prazer após cometido o acto;posteriores vivências de culpa ou remorso). Já Kaplanet aI (1994) referem-se ao "compulsive shopping"como um distúrbio do controlo do impulso sem outraespecificação. Achamos que, embora partilhe algumascaracterísticas com o distúrbio obsessivo-compulsivo,nomeadamente os aspectos compulsivos e repetitivos,a fenomenologia dos comportamentos de compra ébem diferente e, apesar de algumas tentativas pararesistir ao impulso, este é, invariavelmente, ego-sintónico.Énossa convicção que há uma íntima relaçãoentre a depressão e a oniomania, a crer nos dados dasamostras clínicas: quer no nosso estudei, quer no deMcElroy et aI (1994) a comorbilidade mais encontradaé com a doença afectiva e, por outro lado, Lejoyeux etaI (1997) constataram uma significativa percentagem(31.90/0) de compradores compulsivos em doentescuidadosamente diagnosticados como deprimidos. Nasnossas doentes, é muito claro que as compras excessivassurgem em períodos de maior vivência depressiva. Etambém devemos realçar o facto de o tratamento queparece mais eficaz envolver antidepressivos eestabilizadores de humor (nos nossos casos, o valproato).

Por último, devemos explicar porque utilizamosa designação de oniomania em detrimento de comprascompulsivas (embora tendo a noção exacta que esteúltimo termo vai ser hegemónico). Primeiro, porrazões históricas: foi este o termo utilizado porKraepelin e Bleulerque primeiro chamaram a atençãopara esta situação clínica; segundo, porque está deacordo com as designações maioritárias das outrasdoenças do controlo do impulso como a cleptomania,piromania e tricotilomania, em que foi respeitado ocritério dos autores que primeiro as descreveram;terceiro, porque o termo compulsivo vinculademasiado a oniomania ao distúrbio obsessivo-com-pulsivo o que, em nossa opinião, não se nos afiguracomo adequado.

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Oniomania (compras compulsivas): a propósito de 7 casos 45

Resumo

Conhecida desde o princípio do século, a oniomania só muito recentemente recebeu a atençào dacomunidade psiquiátrica. Apropósito de sete casos clínicos da experiência de um dos autores,faz-se uma breverevisào sobre os aspectos epidemiológicos, clínicos, diagnósticosenosológicos da oniomania.

Summary

Although recognized as a mental disorder at the turn of the century, oniomania has been, until recently,largely ignored by the psychiatric community. The authors describe the main features of seven cases seen at thepsychiatrc outpatient clinic, and discuss some issues related with the condition.

ANEXO

Critérios Diagnósticos (Adaptado de McElroy et ai, 1994)

A. Preocupações maladaptativas com compras, ou compras maladaptativas, ou impulsos para comprar de acordo

com, pelo menos, um dos seguintes:

I.Preocupações frequentes com compras ou impulsos para comprar que são vivenciados como irresestíveis,

intrusos e/ou sem sentido.

2.Compras frequentes superiores aos seus recursos, comprafrequentede coisas desnecessárias, ou compras

por períodos de tempos superiores aos planeados.

B. As preocupações, impulsos ou comportamentos relacionados com as compras causam uma acentuada

perturbação, consomem muito tempo, interferem significativamente com o funcionamento social ou

profissional, ou provocam graves problemas económicos (ex: dívidas ou falências).C. As compras excessivas não ocorrem, exclusivamente, durante períodos de hipomania.

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Psiquiatria Clínica, 19, (I), pp.47-56, 1998

Trabalho de pesquisa de factores psicopatológicos na infância e adolescência de doentescom os diagnósticos de psicose não orgânica (295-298 CID-9)

PORHENRIQUE PEREIRA(l), ALDA MIRA COELHO(2) e LUCINDA NEVESC)

INTRODUÇÃO

Os adultos com Quadros Psicóticos terão sidocrianças normais ou teriam tido alteraçõespré-mórbidasna infância?

Já Bleuler dizia em 1911: «De 10 futurosesquizofrénicos que conheci na Escola nenhum eracomo as outras crianças ...»,

Uma revisão de estudos recentes sobre Psicosesinfantis realizadas por vários autores (Lebovici, Misés,Manzano) afirmam a convicção quanto à existência decontinuidade entre a organização Psicótica da Infânciae no estado Adulto. Outros, apostamente, insistem noaspecto de descontinuidade (Kestemberg e col.) abrindo--se um conflito antigo já salientado por Jaspers sobre«ruptura oucontinuidade na trajectória existencial doPsicótico?».

Existem numerosos estudos em busca de umaresposta que permanece inatingível, sendo abundantese contraditórios os resultados encontrados.

Segundo a classificação de Garmezy há 4 tipos deestudo que podem ser realizados:

I - Clínico Retrospectivo (investigaçãoanarnnésticaa partir dos próprios pacientesou familiares) que levanta problemasmetodológicos de vária ordem atendendo àsubjectividade e relatividade das infor-mações fornecidas, devido aos factoresemocionais envolvidos (Soulé, Diatkine).Utilizando este tipo de metodologia Ammare Ledjri, entre outros, concluem que foipossível individualizar antecedentes dealterações de carácter ou de comportamentoem 90% dos casos, salientando-se a Esqui-zotimia (55%) e a Instabilidade (19%),

reafirmando os conceitos de «Esquizoidia»de Ketschmer ou «Esquizofrenia latente»de Bleuler.

II - Social Retrospectivo (estudo dos dossiersescolares ou de instituições sociais). Estemétodo, embora falível pela provável faltade informações precisas e completas temtido alguns resultados interessantes. Boweraponta a maior percentagem de insucessoescolar e dificuldade de relacionamento com«timide~ e passividade» nos antecedentesdos Psicóticos.Spoerry insiste na maior frequência deantecedentes patológicos na Ia infância(acidentes peri-natais, alt. de linguagem oudo comportamento) e na 2" infância (dif.escolar; dif. na socialização).

III- Estudos de Follow-Up (consulta deprocessos dos Centros de Saúde MentalInfantil). Utilizando um métodocatamnés-tico procura-se avaliar a adaptação dessesdoentes na idade adulta. A maioria dosAutores refere como inconveniente destemétodo o facto da maior parte dos psicóticosnão ter recorrido a consultas de Psiquiatriainfantil.Robins (1974) refere uma maior percen-tagem de doenças infecciosas, aIterações doapetite e do sono, tiques e fobias na infância.Nameche e Ricks salientam a frequência do.Atraso de Desenvolvimento e da linguageme um isolamento social marcado.Mellsop refere que mais de 50% dos futurosesquizofrénicos tiveram o diagnóstico deNeurose na infância.

(I) Assistente Eventual de Psiquiatria, Hospital Magalhães Lemos.(2) Assistente Eventual de Pedopsiquiatria, C. S. Mental Infantil e Juvenil do Porto.

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48 Henrique Pereira, Alda Mira Coelho e Lucinda Neves

Para Hartmann seria possível encontrar nainfância alguns «indicadores de vulnera-bilidade à esquizofrenia» (ansiedadeexagerada, neofobias, excesso de agressi-vidade ou cólera, anhedonia, falta de cons-tância objectal, dificuldade nas relaçõesinter-pessoais, entre outros).

IV - Estudos de «Follow-through» (estudoprospectivo longitudinal de crianças derisco). Esta metodologia levanta váriosinconvenientes atendendo aos custos,dificuldade na selecção dos casos, ausênciade critérios quanto às variáveis a estudar eao tempo de duração do estudo. Há trabalhosque procuraram fazer uma selecção dedoentes através de factores genéticos (filhosde pais esquizofrénicos) tendo sidoapontadas percentagens de 12,3% de riscoquando um dos pais é afectado e 36,6%quando ambos os pais têm adoença (Tsuange Vandermey, 1980) o que é extremamenteraro acontecer. Be·isseret col. referem maiorinadaptação de filhos de mães esquizo-frénicas (agressividade, dificuldadesescolares) comparando com mães saudáveismas não encontram diferenças significativasquando .comparam com filhos de mãesneuróticas.Os trabalhos de Mac Crimmon em filhos demães esquizofrénicas referem que a co-existência de isolamento social, dificuldadesde concentração e pontuação alta no P.S.S.e M.M.P.L, aumentam muitoO risco deEsquizofrenia.Kendler salienta afrequênciade dificuldadesde ajustamento social eos traços anti-sociais,sugerindo uma forte relação genética entre

a Esquizofrenia e as personalidadesesquizotípicas.

A diversidade e heterogeneidade de resultadosencontrados não permite tirar conclusões específicassendo necessário, segundo Bourgeois, um maior rigormetodológico a nível dos critérios utilizados e gruposde controle devidamente seleccionados incluindo, sepossível, crianças que não apresentem patologiapsiquiátrica na idade adulta.

Tendo em conta este aspectos e aproveitando aproximidade geográfica entre o Departamento de SaúdeMental Infantil e o Hospital Psiquiátrico Magalhães deLemos, tentámos realizar um estudo retrospectivo dospsicóticos adultos que frequentam a consulta de

Psiquiatria no sector de Matosinhos, procurandoseleccionar os que também frequentaram a consultapsiquiátrica na infância ou Adolescência.

O objectivo deste trabalho consistiu na tentativade pesquisar eventuais antecedentes psicopatológicosna infância dos Adultos Psicóticos, com dadosobjectivos registados anível dos processos de consulta.

MATERIAL E MÉTODOS

A amostra era constituída por todos os doentes dosector de Matosinhos que frequentavam a consulta como diagnóstico de Psicose não orgânica (295- -298)pelos critérios da CID-9 (classificação internacional dedoenças - 9" revisão) desde, há pelo menos, um ano,com idadesf 30 Anos (n= 80).

Desta amostra seleccionaram-se os pacientes quetinham frequentado o Centro de Saúde Mental Infantil(n = 20), tentando distinguir os que foram transferidosposteriormente para a consulta de Adultos (n= 10).

• Fez-se a Análise cuidada dos processos daconsulta e/ou de internamento, em ambas asinstituições, procurando recolher o máximo deinformações objectivas relativamente aantecedentes pessoais e familiares, assim comoum resumo do estado actual, de forma a preencherum protocolo previamente elaborado (AnexoI).

• Procurou definir-se um Grupo Controleconstituído por adultos, com idadef 30 anos,actualmente sem sintomatologia psiquiátrica,que tivessem frequentado a consulta de PsiquiatriaInfantil.Para obter este grupo enviaram-se fichas pararecolha de informação ao domicílio (Anexo 2),seleccionando-se moradas ao acaso de doentesque frequentaram a consulta do Centro Infantil.Enviaram-se cerca de 60 fichas e, das respostasobtidas, seleccionaram-se aqueles que, actual-mente, não frequentam qualquer consulta dePsiquiatria nem apresentam sintomatologia.Aplicou-se o mesmo protocolo ao grupo controleno sentido de avaliar os antecedentes pessoais efamiliares, pesquisando sintomatologiapsiquiátrica na infância e comparando com aamostra em estudo.

• Com vista a melhor validação dos resultadostentou-se obter outro Grupo Controle a partirde Doentes Adultos com o Diagnóstico actual(91/92) de Neurose - 300.0 (CID-9),seleccionando-se os que tinham frequentado aconsulta de Pedopsiquiatria na Infância. Dos

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Trabalho de pesquisa de factores psicopatológicos na infância e adolescênciade doentes com diagnósticos de psicose não orgânica(295-298 CID-9)

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300 casos encontrados na consulta de Psiquiatrianão havia nenhum que tivesse frequentado aconsulta na infância, o que nos pareceusignificativo ao compararmos com o resultado

inicial da amostra seleccionada nos pacientescom o Diagnóstico de Psicose (para n = 80, 20tinham frequentado a consulta de Pedopsi-quiatria).

ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

I - Descrição da AMOSTRA

• n= 20 128

T - Transferidos * = 10NT - Não transferidos = 10

* Doentes transferidos directamente da consulta infantil para a consulta de Adultos.

• Média de idades:T - 23,9 25.35 (idade actual)NT- 26,8

• Idade à data da 1a consultade Psiquiatria Infantil

T -14.0NT- 12.8

• Estado Actual

Diagnóstico Actual Estado Civil Emprego Escolaridade(CID-9)

n= 14-295 15 - Solteiros 7 - Desemp. 15 - 6° Anon= 3 - 295.7 4- Casados 10 - Empreg. 4- ? (sem inform.)n= 2 - 297 1 - (?) (sem inform.) 3 - (?) (sem inform.) 1- C.Superiorn= 1-298 Média - 6° ano

GRUPOCONTROLE- Actualmente sem patologia psiquiátrica

n = 20 128

Média de idades - 20.15(idade actual)

Média de idade à data da 1a

consulta em Pedopsiquiatria - 8.7

Estado Actual

Clinicamente bemEmprego

4- Desemp.

13 - Empreg.3 - sem informo

Média - 8° Ano

Estado Civil14 - Solteiros6 - Casados

Escolaridade

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11 - Análise dos Dados Obtidos

1 - Antecedentes Pessoais

Foram seleccionados 6 grupos de Antecedentes Pessoais:

APO- Perturbações precocesAP] - Desenvolvimento psicomotorAP2 - Patologia do SNCAP3 - Traumatismos/acidentesAP4 - Patologia orgânicaAP5 - Hospitalizações prolongadas (não psiquiátricos)

Entre parentesisO assinala-se a distribuição quantitativa dos casos em que os antecedentes ocorreram na ]a

infância (I) 2a infância (2) ou adolescência (3), convencionando-se os seguintes limites de idade:

• Ia infância - 0-6 anos• 2a infância - 6-12 Anos• Adolescência -> 12 Anos

Assim, relativamente aos Antecedentes Pessoais, obtivemos os seguintes dados:

AMOSTRAAPO- 1 (1)APl - 3 (1.1.1.)AP2 - 2 (2;3)AP3 - I (3)AP4 - 6 (1.1; 2.2; 3.3)AP5 - 4 (2; 3.3.3)

CONTROLEI (I)

1 (I)2 (2.2)1(I)9 (1.1.1.1.1.1.1.; 2.2)

3 (I; 2.2)

2 - Life Events

Foram apenas encontradas 6 referências na AMOSTRAn= 6 (1.1; 2; 3.3.3) assinalando-se com 1, 2 ou 3consoante os acontecimentos marcantes tenham ocorrido na Ia infância, Z" infância ou Adolescência.

Apenas em 2 casos parece ter havido coincidência entre a data de início da sintomatologia e a ocorrência dolife-event.

No grupo CONTROLEregistaram-se 4 referências a life-events.n = 4 (2.2.2; 3)

3 - Antecedentes Familiares

Seleccionaram-se 4 tipos:

AFO- patologia psiquiátrica não específicaAFl - patologia psicótica confirmadaAF2 - alcoolismoAF3 - outras

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Trabalho de pesquisa de factores psicopatológicos na infância e adolescênciade doentes com diagnósticos de psicose não orgânica(295-298 ClD-9)

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AMOSTRA CONTROLE

(T) (NT)I + 2 = 3 AFO 54 + 2 = 6 AFI I (*)6 + 5 = 1I AF2 82 + I 3 AF3 5

(*) familiar não directo

4 - Diagnósticos (CID-9) registados na consulta de Psiquiatria Infantil.'

AMOSTRA

• T 6 casos tinham desde o início o diagnóstico de Psicose4 casos tinham outros diagnósticos inicialmente:

317 / 304(atraso (c.

m. aditivos)leve)

318(atraso m.)

314(instabilidade)

307.6(enurese)

* À data da transferência para a consulta de adultos todos apresentavam sintomatologiapsicótica

• NT Apenas I caso tinha desde o inícioO Diagnóstico de Psicose (aos 16 anos), tendoabandonado a consulta, motivo pelo qual não foi transferido.Dos 9 casos restantes encontraram-se os seguintes diagnósticos:

3 - 312 (Alt. de comportamento)- 313 (Perturb. de afectividade na infância ou adolescência),

4 - 313 (Instabilidade)- 301.8 (Pert. da personalidade)

n=9

CONTROLE

- 300.0 (N. ansiedade)- 300.1 (N. histérica)

300.3 (N. obsessiva)I - 307.1 (Anorexia)I - 307.2 (Tiques)2 - 307.6 (Enurese)3 - 309.0 (Reacção depressiva transitória)2 - 312 (Alt. de comportamento)4 - 313 (Perturb.de afectividade específicas da infância)3 - 314 (Instabilidade)

- 317 (Atraso mental leve)

n= 20

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5 - Análise da sintomatologia registada na infância/adolescência

Sintomas AMOSTRA Total ControleT A.D NT

Insónia 5 1 1 6 6Parassónia 1 1 2Anorexia 3 O 2 2 5 2Q.Somáticas O O O ·0 O 3Isolamento 5 1 4 4 9 OInibição 3 1 2 2 5 6Instabilidade 4 2 7 7 10 13Déficit Atenção O O 4 4 4 9Dif. Escolar 8 3 6 6 14 10V Humor 5 2 5 5 10 6L Humor O O 4 4 4 OAnsiedade 5 2 5 5 9 14Alt.pensam. 6 7 OAlt.percepção 3 4 OAIt.comport. 2 O 4 4 6 2C.aditivos 1 O O O 1 OAgressividade 2 1 4 4 6 7Tiques O O 2 2 2 2Rituais O O O O O IS.obsessivos O O O O OS.fóbicos O O 1 2Enurese 2 2 1 3 5Encoprese O O O O O OAlt.linguagem 4 1 O O 4 OOutros

T - Doentes transferidos (passaram da consulta infantil para a consulta de Adultos).NT- Doentes não transferidos (tempo de latência entre a consulta na infância e a consulta no

estado Adulto).A.D. - Sintomas anteriores ao início do Quadro Psicótico.

6:- Distribuição dos sintomas por faixa etâria (antes do início do quadro psicótico)

AMOSTRA CONTROLE

0-6 Anos ParassóniaAtraso de linguagem

ParassóniaAnorexiaInstabilidade (n = 2)

AgressividadeTiquesAnsiedade

6-12 Anos ParassóniaAnorexiaIsolamento (n= 2)Inibição

InsóniaAnorexiaQ. somáticasInibição (n= 4)

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Trabalho de pesquisa de factores psicopatológicos na infância e adolescênciade doentes com diagnósticos de psicose não orgânica(295-298 CID-9)

Instabilidade (n= 6)V atençãoDific.escolar (n= 5)

Ansiedade (n= 4)

Alt. comportoAgressividade (n= 4)

TiquesEnureseV humor (n= 2)

Instabilidade (n= 7)V atenção (n= 5)Dif. escolar (n= 7)

Ansiedade (n= 8)AgressividadeTiquesRituaisS.fóbicos/obsessivosEnurese (n= 4)

>12 Anos InsóniaAnorexiaInibiçãoIsolamento (n= 3)

InstabilidadeV atençãoDif. escolarAnsiedadeAlt.comport. (n= 4)

AgressividadeV humor (n= 5)

L humor (com altemância de humor) (n= 3)

InsóniaInstabilidadeV atençãoAnsiedade (n= 4)

Agressividade (n= 5)

Cxonversíva (n= 2)V humor (n =4)

* Sublinhado nos sintomas mais frequentes

7 - Relação entre a data de início da sintomatologia e a idaà consulta de Pedopsiquiatria

• Idade naI". Consulta de Pedopsiquiatria:

Amostra Controle

0-6 Anos6-12 Anos> 12 Anos

n= 4n= 11

n= 5

n= O0"= 6n= 14

• Idade de início dos lOssintomas na Infância:

Amostra Controle

0-6 Anos6-12 Anos> 12 Anos

n= 7n =48n = 35

n = 2n =36n = 35

• Idade de início do Quadro Psicótico (Amostra):

0-6 Anos - -7

6-i2 Anos

> 12 Anos

--7

- n = 20 T - 15.9NT-12.8

53

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8- Relação entre Diagnóstico Actual e Sintomas na Infância

Diagnóstico Actual Diagnósticos nainfância

Sintomas mais frequentesna infância

295n = 14 10

4

295.0 (n = 3)298.0 (n = 2)314(n=4)312(n=3)301.8 (n = I)

307.6 (n « I)

Dific. escolar (n = 9)Ansiedade (n = 6)Instabilidade (n = 5)Isolamento (n = 5)Alt.comportamento (n = 4)Agressividade (n = 4)

295.7n= 3 1

2

314(n=l)295(n=l)313(n=l)

V Humor (n = 3)Exaltação do humor (n= 3)Instabilidade (n = 3)Dific. escolares(n = 3)

297.0,n=2

317/304(n= I)314 (n = I)

Instabilidade (n = 2)VL humor (n = I)Dific. escolares (n = I)

298.0n=IU 295.0 (n = I) V humor (n = I)

Dific. escolar (n = I)

9 - Relação entre os antecedentes familiares de Psicose e início do Quadro Psicótico

Nos casos AFI (n = 6) em que há comprovação de antecedentes de Psicose em familiares directos:

Diagnósticos Actuais Diagnósticos na Infância Idade de início do Quadro Psicótico

295.0 (n =4)295.7 (n =1)

298.0 (n = I)

295.0 (n =4)295.0 (n = I)295.0 (n = 1)

18A(n=l)17A(n=3)16 A (n = 2)

(Média 17.6)

CONCLUSÕES Controle Ansiedade (n = 14)Instabilidade (n = 13)Dif. Escolares (n = 10)Déficit de Atenção (n = 9)

• Os sintomas mais frequentes na infância dosPsicóticos Adultos, em comparação com o grupocontrole foram:

Psicóticos(Amostra)

Dif. escolares (n = 10)Instabilidade (n = 10)

V humor (n = 10)Isolamento (n = 9)

• O isolamento não aparece referido na infância dogrupo controle mas é um sintoma frequente na

- infância dos Psicóticos da Amostra estudada.• A Depressão com períodos de alternância de

humor também só aparece na infância dos

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Trabalho de pesquisa de factores psicopatológicos na infância e adolescênciade doentes com diagnósticos de psicose não orgânica (295-298 CID-9)

Psicóticos da Amostra e não aparece no grupocontrole.

• A idade da 1a consulta na infância foi mais tardianos psicóticos apesar dos sintomas 'se tereminiciado com grande frequência anteriormente(Tabela 7).

'. Nos casos em que havia antecedentes familiaresde Psicose a idade da Ia consulta infantil ainda foimais tardia, coincidindo habitualmente com oinício do Quadro Psicótico.

• A média de idade de início do Quadro Psicóticofoi mais tardia nos casos com AntecedentesFamiliares directos de psicose.

• Os casos em que se especificou o Diagnósticoactual de 295.7 (n= 3) todos apresentaram nainfância altemância de humor(LV) antes doinício do Quadro Psicótico.

• No que respeita aos Antecedentes Pessoais nãoparece haver diferenças significativas em relaçãoao grupo controle.

• Éde realçar o não aparecimento de Psicoses da I"infância nos Antecedentes Pessoais dos Psicóticosestudados.

• No que se refere à ocorrência da life-events nãoparece haver diferenças significativas emcomparação com o grupo controle embora em,pelo menos, 2 casos, tenha havido coincidênciacom a data de início do Quadro Psicótico.

• Relativamente aos Antecedentes Familiares nota--se a maior frequência de patologia psicótica nasfamílias da Amostra estudada.Em ambos os grupos há grande percentagem deAlcoolismo nos familiares directos embora sejamaior a frequência no grupo dos Psicóticos.

• Parece-nos significativo o facto de 25% (n= 20)da Amostra estudada (n= 80) ter frequentado a

55

consulta de Pedopsiquiatria na infância, sendotambém de realçar o predomínio do Diagnóstico295 no Estado Actual.

Mais do que encontrar soluções para a questão deruptura ou continuidade na'trajectória do psicótico estetrabalho pretende abrir caminhos de investigação ereflexão.

Parece-nos, no entanto, significativo o facto de,em 80 casos de psicose se terem detectado 20 (25%)que frequentaram a consulta de Saúde Mental Infaritil.

Embora não haja dados suficientes para seleccionarsintomas pré-mórbidos não podemos deixar de realçara maior frequência dos sintomas isolamento ealternância do humor como parecendo significativosnos antecedentes destes doentes.

A aparente ausência de sintomas precoces noscasos em que há antecedentes familiares de psicosealerta-nos para a eventual necessidade de observaçãopreventiva de crianças de risco, com carga familiarpositiva, na medida em que, ao contrário do que seriade esperar, são as que mais tardiamente aparecem naconsulta. Este facto, se porum lado pode significarumamaior tolerância da família ao sintoma também poderárepresentar uma organização defensiva patológica porparte da criança (falso self de Winnicott).

De qualquer forma os dados obtidos sugeremque a infância dos pacientes psicóticos não é isentade perturbações, seja a nível do comportamento(instabilidade, agressividade) do humor (V aL), daadaptação escolar (insucesso frequente) ou dasrelações inter-pessoais (isolamento e dificuldadesde contacto).

Seria desejável a continuação de estudos destetipo, eventualmente com metodologias altematívasutilizando outros grupos controle, no sentido de tentarvalidar mais objectivamente os resultados obtidos.

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Psiquiatria Clínica,19, (I), pp. 57-60, 1998

Definições e senso clínico - Breve reflexão sobre a morte e sentimentos com ela relacionados

POR

MARIA BEATRIZ SANTOSC)

Resumo

Neste trabalho pretendeu-se elaborar uma breve reflexão sobre problemas tão importantes e tão comunspara nós técnicos de saúde mental, como a perda. o luto, a morte e a depressão, e como conciliar os nossosconhecimentos teóricos nessa área, com a sua aplicação prática, no sentido de prestarmos um maior e maiscorrecto tratamento aos nossos doentes.

Summary

The aim of this work is a brief reflection about some important problems of mental health, such asdepression and grief, and how we can help our patients with our knowledges.

Começando pelas definições, temos por exemploa tristeza, que é definida por Alonso-Fernández comoum sentimento desagradável motivado por algumaadversidade da vida. A depressão, por sua vez, édefinida segundo o mesmo autor, como um quadroclínico encravado no terreno do anormal, patológico emórbido. Freud em "Luto e Melancolia" fala-nos noluto definindo a sua constituição: as fases de choque,negação, depressão, culpa, ansiedade, agressividade ereintegração. A fixação numa destas fases; desencadeia

O aparecimento do luto patológico com o seu cortejo desintomas característicos, nos quais se incluem os sonhosfrequentes com a pessoa que morreu. Nestes sonhos ofalecido aparece como se estivesse vivo e saudável.Com a progressão do processo de luto, o doente iráreconhecer a morte do ente querido, o desespero e aangústia inerentes e a auto e hetero culpabilização pelosucedido. Finalmente retomará o gosto pela vida,começando então a fazer novos projectos.

E a morte quem a define? O que representa?Quem de nós médicos não fantasiou a resposta a

esta ou outras questões relacionadas, quando ingressouem medicina?

Quem, mesmo após a sua formação, não sentiu odesespero de ver morrer um paciente, a impotênciaperante o sofrimento de outro que perdeu um familiarou, pior do que isso, não se angustiou perante a mortede familiares seus ou ao pensar no seu próprio fim?Citando Luis Cernuda: "Caminhar para a morte não éfácil e seé duro viver, morrer tão pouco oé menos."

A morte desde os tempos remotos apaixonou o

Homem, que a tentou ultrapassar ou vivenciar deformas diferentes, conforme as suas raízes culturais.Assim, antes da Idade Média, a morte era um eventoaceite sem grandes temores, sendo preparada quasesempre de forma antecipada, pelo moribundo eacompanhantes, com uma calma resignação e aceitecomo Um simples adormecimento.

Na Idade Média o peso da religião impôs um carizdiferente à morte: correspondia à passagem para ojulgamento final. Quem acompanhava o falecido,exprimia a sua dor chorando, dando lugar a francas

(1) Assistente Hospitalar Eventual de Psiquiatria do Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental do Hospital de S.Marcos.

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manifestações de pesar e iniciando-se o uso decarpideiras. Surgia a ideia da separação e a necessidadede perpetuar o desaparecido na memória dos quesobreviviam. Citando António Gala: "Na tãoerroneamente chamada obscura Idade Média, osHomens viviam e morriam de verdade com os olhosabertos ... por outro lado escreviam-se livros deBem-Amar e de Bem-Morrer."

Até ao séc. XVIII a ideia da separação mantém-secorrespondendo à passagem de um testemunho.Assistem-se às últimas vontades do moribundo, que seencontra rodeado de familiares e amigos.

No séc. XIX mantêm-se as manifestações de pesarpela partida do ser amado, sendo o moribundoacompanhado pelos familiares e padre. O luto dovestuário aparece como uma manifestação legítima enecessária da dor, com a imposição de regras por parteda sociedade.

Nas últimas décadas deste séc. houve grandesalterações. Com o avanço técnico da medicina, a mortepassou a existir mais no hospital do que em casa; omoribundo tem agora ao seu lado não os familiares eamigos mas máquinas, outros moribundos e pessoaltécnico assoberbado com a necessidade de prolongar asua existência, porque vida já não lhe poderemoschamar na maior parte das vezes. São as cortinas que secorrem, as visitas que se proíbem.É a negação darealidade eminente. Já Unamuno nos refere: "oesquecimento da morte é a deserção da vida". Tambémem Hamlet a simplicidade das palavras é sábia: "tudoo que nasce morre e tudo o que morre terá nascido".

Na verdade não só tememos a morte como arechaçamos, e nas palavras de Epicuro é um contracenso,pois "não há que temer a morte porque se existimos elanão o é, e quando o é nós não existimos". A morte paraa maioria das pessoaséum tabu. Às criançasédiluídaa curiosidade: o avô não morreu, foi fazer uma viagem.

As emoções são contidas, a sociedade reprime-as,critica-as, condena-as.

Atitudes e rituais tão díspares fazem-nos pensar equestionar sobre a nossa forma de agir e por vezespsiquiatrisar as atitudes e reacções dos nossos pacientes.

Quem chora e se desespera perante a perda de umente querido, terá. um comportamento passível deactuação médica imediata ou não? Que benefícios lhepodemos dar com o tecnicismo dos nossos diagnósticos:

-Isso vai passar, está deprimido;-Isso é normal, está a fazer um luto.E, quando o paciente em causa é uma criança, que

nos é trazida pelos pais após a perda de uma figurasignificativa, porque tem um comportamento diferente

do habitual nela, estará deprimida ou isso não existenuma criança?

Aí além dos conhecimentos teóricos, queabordaremos sumariamente impõe-se o nosso sensoclínico.

Citando Bolwby: "a perda de uma pessoa amada éuma das experiências mais intensamente dolorosas quequalquer ser humano pode sofrer. E não é somentedoloroso experimentá-la, mas também testemunhá-la,tão impotentes nós somos para poder auxiliar". Omesmo autor relata-nos casos de crianças privadas dassuas mães, que exprimem a sua dor e tentam ultrapassá--Ia, com os limites que lhe são impostos pelas suascapacidades.É o caso do Philip, com treze meses,colocado numa instituição residencial e que, sempreque frustrado, inicia movimentos associados ao ritmo"round and round in the garden", com o qual a sua mãecostumava acalmá-lo em casa quando irritado ouinquieto. Em Grief and Mourning in Infancy andChildhood, publicado em 1960, Bowlby chama aatenção para as semelhanças, principalmente a níveldescritivo, entre as respostas das crianças à perda damãe e as respostas dos adultos enlutados. O autorrefereque o processo de luto é semelhante desde que a criançaseja capaz de compreender a irrevogabilidade da morte.Existem assim três fases tal como na separação: protesto,desespero e desapego. Na fase de protesto, que podedurar até uma semana, a criança tem um forte desejo deestar com a pessoa desaparecida, chorando e chamandopelo seu retorno; na fase de desespero a criança começaa sentir a falta de esperanças quanto a esse retorno, ochoro é intermitente e estabelecem-se a apatia e oretraimento. Na fase de desapego a criança começa amostrar um reaparecimento de interesses por aquiloque a cerca, e começa a procurar por figuras adultassubstitutivas, com as quais possa envolver-se.

E a depressão infantil existe como entidade clínica

identificável ou não? Várias são as opiniões, emboraactualmente se vão reunindo num consenso, no sentidodaexistênciadadepressão infantil como um diagnósticoa reconhecer e não negligenciar. Kaplan refere que oestudo de perturbações de humor em crianças eadolescentes só se edificou em 1980, com o crescentereconhecimento de que este quadro existe em todas asidades. O mesmo autor fala-nos do luto não complicado,que tipicamente ocorre imediatamente após a morte eraramente acontece depois de dois ou três meses.Estudos recentes em crianças que perderam uma figuraparental, revelam que 45% satisfazem os critérios paraum episódio depressivo major durante os três mesesapós a morte. A maior parte dos sinais e sintomas

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Definições e senso clínico - Breve reflexão sobre a morte e sentimentos com ela relacionados 59

referidos pelas crianças eram similares aos apresentadospelas crianças-deprimidas. Diminuição do apetite, perdade peso e insónia são dados comuns. No entanto,lentificação psicomotorae alteração no funcionamentodiário, normalmente indicam depressão major. Aculpa,se presente, usualmente diz respeito ao que foi feito ounão pelo sobrevivente, ao falecido.

Carlson e Garber em 1986 falam do isomorfismodo quadro clínico na depressão infantil relativamente àdo adulto. Também Poznanski suporta a noção de quea depressão infantil e a depressão no adulto sãocondições similares.

Sandler e Joff descreveram em 1965 o quadroclínico da depressão infantil e que inclui sintomas taiscomo tristeza, inibição, sentimentos de desgosto e denão ser amado ou rejeitado, passividade e insónia.Bibing acentuava que a depressão é uma defesa do egorelativamente à perda de auto-estima.

René Spitz em 1946 descreveu o quadro dadepressão anaclítica em 123 crianças. Notou quealgumas delas desenvolveram um comportamentochoramingão, perda de peso, lentificação psicomotora,insónia e doenças várias após a separação da mãe entreo 6° e o 8°mês. Este quadro durou 3 meses e era seguidopor vezes de uma postura rígida e parada. Se a mãeregressasse antes dos três meses, a criança voltava a seralegre, comunicativa e a retirada e rejeição do mundodesapareciam. Sem intervenção o quadro evoluía.

Apesar das semelhanças, convém não esquecer asdiferenças, pois tal como é profundamente errado negara possibilidade de um quadro clínico de depressãonuma criança, pode ser perigoso adiar o diagnósticopor não encontrarmos todos os sintomas necessários aoquadro num adulto. Assim Ajuriaguerra refere queO

termo depressão na criança não tem o mesmo sentidodo que no adulto. A depressão infantil não tem o mesmoconteúdo, representando uma experiência diferenteconforme a idade. Considerada por uns como uma tase

normal da evolução, é isolada por outros como umfenómeno patológico. Se a patologia quer dizer fora danorma, nós não cremos que haja indivíduos que nãotenham apresentado períodos depressivos, e algunsautores podem distinguir com razão "o afectodepressivo" da "doença depressiva", o "momentodepressivo" do "modo de ser depressivo", "as fasesdepressivas" do "processo depressivo". TambémLepkowistz e Burton em 1978 em estudosepidemiológicos sugerem que a incidência da depressãonas crianças era uma função da idade, e poderiam ser

manifestações transientes de reacção dedesenvolvimento ao stress, em crianças basicamentenormais. Ajuriaguerra salienta ainda queas criançasem idade escolar manifestam a sua depressão pelasintomatologia quase exclusivamente psicossomática.A criança de idade escolar apresentapredominantemente inibição afectiva das pulsões comsintomas psicossomáticos: enurese, onicofagia, terroresnocturnos, crises de choro e gritos. Na criança maisvelha a sintomatologia depressiva tem relação com odomínio cognitivo (ruminações, ideias de suicídio,sentimentos de inferioridade ~ opressão). De realçartambém que a palavra depressão quer no adulto quer nacriança, é muitas vezes usada como sinónimo dedistúrbio de adaptação com humor depressivo, oucomo depressão reactiva ou ainda neurótica, poroposição à psicótica, não correspondendoobrigatoriamente à entidade depressão major. Maisuma vez impõe-se o senso clínico para ultrapassardefinições rotulativas e anal isar cada caso, cada doentede forma personalizada, com uma história e umdiagnóstico próprios.

Paradoxalmente não posso terminar sem lembrar abeleza existente numa poesia que tem tanto de belocomo de depressivo:

EU

Eu sou a que no mundo anda perdida,Eu sou a que na vida não tem norte,Sou a irmã do sonho, e desta sorteSou a crucificada ... a dolorida ...Sombra de névoa ténue e esvaecida,E que o destino amargo, triste e forte,Impele brutalmente para a morte!Alma de luto sempre incompreendida!

Sou aquela que passa e ninguém vê...Sou a que chamam triste sem o ser. ..Sou a que chora sem saber porquê ...Sou talvez a visão que Alguém sonhou,Alguém que veio ao mundo pra me verE que nunca na vida me encontrou!

Florbela EspancaSonetos Completos

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Psiquiatria Clínica, 19, (I), pp. 61-69,1998

Perturbações psíquicas na gravidez e puerpério

POR

MARIA BEATRIZ SANTOSC)

Resumo

Neste trabalho pretendeu-se elaborar uma breve reflexão sobre problemas tão importantes e tão comunspara nós técnicos de saúde mental, como a perda, o luto, a morte e a depressão, e como conciliar os nossosconhecimentos teóricos nessa área, com a sua aplicação prática, no sentido de prestarmos um maior e maiscorrecto tratamento aos nossos doentes.

Sumrnary

The aim of this workis a brief reflection about some important problems of mental health, such asdepression and grief, and how we can help our patients wirh our knowledges.

INTRODUÇÃO

As perturbações afectivas que acompanham umamulher grávida relacionam-se com asalterações corporaise psicológicas próprias da gravidez e puerpério. Amaternidade e principalmente uma primeira maternidade,provoca uma crise de identidade que contudo pode serreforçadora do papel feminino. Mas a gravidez nemsempre tem um cunho de felicidade e bern-aventurança,e a patologia psiquiátrica existente nessa fase testemunha-

-o, e por isso são cada vez maiores os esforços dainvestigação no sentido de se detectarem factoresetiológicos que nos permitam impedir a caminhada parauma crise puerperal, ou, melhor ainda, que nos permitamtão precocemente quanto possível, detectar uma gravidezde risco e encaminhá-Ia no sentido da normalidade.História pessoal, terreno biológico, organização dapersonalidade prévia, factores situacionais presentes nasrelações da mulher com o seu ambiente, família, meiosocial e cultural têm sem dúvida um elevado peso nodespoletar destas situações patológicas.

Citando Dias Cordeiro, os estudos transculturaisdos costumes, mitos e superstições revestem-se degrande interesse para a compreensão da própriapsicodinamia-da gravidez. Assim, enquanto que nospovos primitivos é praticada a frugalidade (a mulhergrávida come pouco e são contrariados os seus desejosalimentares), nos povos ocidentais existe a ideiageneralizada que a boa alimentação da grávida éessencial para o bom desenvolvimento do feto e osapetites da grávida são satisfeitos ou mesmo

encorajados. Curiosamente nos povos primitivos emque a regressão oral é contrariada são raras as náuseaseos vómitos enquanto que nos povos emque a oral idadeé estimulada existem, com frequência náuseas e vómitosdurante a gravidez.

Na esfera genital sucede justamente o oposto:enquanto que nas culturas primitivas existe a ideia deque as relações sexuais durante agravidez são benéficaspara fortalecer o feto através do sémen, nas culturasocidentais pensa-se que podem prejudicá-lo,considerando que oque é importante nãoé agenitalidade

(I) Assistente Hospitalar Eventual de Psiquiatria do Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental do Hospital de S.Marcos.

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mas sim a alimentação da grávida, postura esta por

vezes geradora de conflitos conjugais algo

perturbadores. No que diz respeito aos tabus eles

abundam nas culturas primitivas. Uma das fantasias

respeitantes à gravidez é a reivindicação pelo homem

não apenas da fecundação mas igualmente da gestação

ao longo de toda a gravidez: efectivamente existe a

convicção de que se o marido não mantiver a actividade

sexual com a mulher grávida o seu papel de pai daquela

criança fica em dúvida por não ter participado, com o

seu sémen na alimentação da criança. Uma outra fantasia

é que o parto difícil corresponderia ao adultério da

mulher com um antepassado: o trabalho de parto

prolongado corresponderia à presença no canal vaginal

de um antepassado que obstruiria o nascimento seria

uma tentativa de um antepassado impor o seu nome à

criança. Existe também a crença muito divulgada

nalguns povos de que o feto corresponderiaà

reincarnação do avô. Estas crenças estão assim ligadas

a conteúdos de carácter erótico nomeadamente fantasias

de adultério e incesto. Nos povos ocidentais existe uma

grande relutância em -abordar estes temas pelo que o

problema se toma mais difícil de analisar, sendo algumas

das fantasias como a fecundação por via oral ou na

banheira após a utilização desta por algum familiar,

manifesta referência a fantasia de incesto e adultério.

Alguns autores defendem que nas culturas primitivas

os tabus ou seja o que a grávida deve evitar são muito

mais intensos, o que corresponderia à necessidade de

criar um "Super-Eu cultural"; esta instância

supra-psicológica permitiria assim controlar o risco de

adultério e de incesto reactivado pelo aumento das

fantasias na gravidez associado ao encorajamento da

vida sexual na grávida. O menor recurso a tabus nas

culturas ocidentais dever-se-ia ao reforço cultural da

regressão oral e desinvestimento da genitalidade na

gravidez.

EPIDEMIOLOGIA

Durante agravidez, a incidência das hospitalizações

é pouco elevada o que levou certos autores a invocar a

influência protectora da gravidez relativamente à

manifestação dos distúrbios mentais graves. A

frequência dos distúrbios psíquicos ligadosàpuerperalidade foi durante muito tempo sub-estimada.

As formas graves, geralmente psicóticas,que necessitam

de internamente, são relativamente raras, com uma

incidência de I ou 2 por mil partos segundo alguns

estudos americanos e ingleses, enquanto que os estados

neuróticos ou ansio-depressivos de ansiedade moderada

são relativamente frequentes, escapando na maior parte

à observação médica ao serem encarados facilmente

como componentes das contrariedades da gravidez. A

natureza depressiva destes distúrbios, cuja frequência

é respectivamente de 50 e 10% coriforme se trate de

formas moderadas ou graves, não é por vezes

reconhecida alterando o funcionamento da mulher em

vários domínios e, se prolongados podem comprometer

o desenvolvimento harmonioso das primeiras relações

mãe-bebé, tal como é referido num estudo feito a

parturientes com distúrbios depressivos no primeiro

ano após o parto, notando-se perturbações na interacção

mãe-bebé quer naquelas que ainda se encontravam

deprimidas na altura do estudo (ao 19° mês) quer

naquelas que já tinham recuperado nessa data.

Relativamente à frequência das hospitalizações

psiquiátricas ao longo da puerperalidade elas variam

conforme as estatísticas de I por mil a 2 por mil

gravidezes. Os dados disponíveis apontam para uma

maior concentração de hospitalizações nos primeiros

meses do pós-parto, particularmente nos dois primeiros

meses, sendo a distribuição nos meses seguintes mais

irregular (segundo autores como H. Kaplan das

puérperas hospitalizadas 50% são-no na primeira

semana pós-parto, 25% entre a segunda e a quarta

semana e 25% durante os onze meses restantes). Alguns

epidemiologistas referem que a mulher durante o

primeiro mês após o parto encontra-se em maior risco

de hospitalização psiquiátrica do que durante toda a sua

vida. De referir que para estudos epidemiológicos o

período pós-parto foi definido como o período

decorrente entre as duas semanas após o parto e um ano,

embora para os ingleses este se inicie logo após o parto.

O que talvez seja mais "stressante" em toda esta

informação é que mais de 70% destas mulheres não

tinham antecedentes psiquiátricos.

ETIOLOGIA

Segundo H. Ey são múltiplos os factores etiológicos

dos distúrbios psíquicos na gravidez e pós-parto,

dividindo-los em:

-factores hereditários e constitucionais;

-factores psicossociais;

-factores endócrinos;

-infecção.

Saliente-se que a situação da mulher no que diz

respeito àgravidez e ao parto tem de ser analisada como

a confluência de todo o seu passado(biológico,

psicológico e social), presente (com todas asvivênciasactuais pessoais, familiares e profissionais), situações

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Perturbações psíquicas na gravidez e puerpério

ocorridas especificamente no decurso da gravidez epuerpério e, finalmente, com as perspectivas abertasdiante dela pela maternidade.

Outros autores como H. Kaplan referem queindependentemente dos investigadores se basearemem conceitos psicanalíticos, eixo hipotálamo-pitui-tário-gonadal, neurotransmissores, genética, stress, eteorias de suporte social, todos concordam que, porexemplo, a psicose puerperal é duas vezes mais comumem primíparas do que multíparas; o risco dedesenvolverem um distúrbio pós-parto está aumentadose a mãe teve um distúrbio pós-parto ou se há históriafamiliar de distúrbio de humor. Mulheres com históriaconhecida de distúrbio bipolar e que tiveram umadoença psiquiátrica no pós-parto são as que possuemum risco mais elevado de recorrência noutra gravidez,chegando num estudo a taxas de 100%. Um factorconstitucional ou genético associandoodistúrbio bipolarcom uma predisposição ao desenvolvimento de distúrbiode humor pós-parto é o mais inequívoco factor de risco.Relativamente aos factores biológicos o objectivo étentar relacionar os distúrbio afectivos que existem emalguns períodos da vida da mulher (período pré-mens-trual, pós-parto, e menopausa) com alterações dosníveis hormonais do eixohipotálamo-pituitário-go-

nadal. Especificamente no período pós-parto imediato(5 dias após o parto) há uma queda acentuada no nívelde estrogéneos e progesterona com elevação daprolactina, correlacionando-se com o pico deapresentação das psicoses pós-parto. A. Fernandesespecifica mesmo psicoses puerperais de origem nadesregulação diencefalohi pofisária, que conjuntamentecom as de etiologia infecciosa formam as psicosessintomáticas.

Alguns estudos foram feitos no sentido decorrelacionar os níveis hormonais com o humor emmulheres multíparas e primíparas no período ante e pósnatal. Após o controle de factores sociais de stress asconclusões foram as seguintes:

- um nível elevado de estrogéneos pré-parto estavaassociado com grande irritabilidade;

-quanto maior foi a queda do nível deprogesterona mais deprimidas estavam asdoentes ao 100 dia pós-parto;

-quanto maior foi a queda do nível deprogesterona menores os distúrbio do sono;

- quanto mais baixo estivero nível de estrogéneospós-parto mais frequentes os distúrbio do sono.

No entanto nem sempre as terapêuticas tendo em

conta estes dados foram congruentes encontrando-segraus variados de sucesso.

63

Outros factores biológicos em estudo são:- AMP cíclico que se encontra elevado durante a

gravidez e que alguns autores associam a suaqueda no pós-parto com depressão;

-o cortisol que alguns autores associam àdepressão no pós-parto e referem bons resultadosao administrá-lo a doentes em risco de formaprofiláctica;

- triptofano e serotonina cuja queda relacionamcom a depressão;

- alfa-2-adrenoreceptor que se encontraaumentado nas mulheres combluescontrariamente às outras;

- a hormona tiro ideia, as endorfinas, o cálcio.Quanto aos factores psicossociais formulações

psicanalíticas postularam que, o ante e o pós-parto sãostressantes para a mulher. Estes stresses levam aregressões que evocam conflitos antigos especialmentequando houve uma história de modelos maternaisinadequados ou rejeitantes. Igualmente importanteéaseparação ou o conflito com o pai. A depressão poderesultar de conflito não resolvidos relativamente àmaternidade ou papel feminino. Alguns autores referemque mulheres que se classificaram em escalas deautoavaliação como mais masculinas tiveram menossintomas psiquiátricos durante a gravidez mas mais nopós-parto. Alguns autores concordam em que aambivalência acerca da manutenção da gravidez e osconflitos conjugais estão associados com um aumentode incidência das perturbações pós-parto. Não há acordorelativamente ao papel da depressão e ansiedade pré-parto nas perturbações do pós-parto; assim num estudode Gotlib em 89 verificou-se que quanto mais baixa fora idade, o estatuto socio-econórnico e o número decrianças pequenas em casa, maior é o risco dedesenvolver depressão durante a gravidez, mas nãoinfluencia a depressão no pós-parto. No entanto a perdade suporte afectivo está implicada como factor majorno aumento das perturbações pós-parto, sendo essesuporte uma variável identificada por vários autorescomo moderadora dos efeitos de stress no períodoperi-natal. Tal como discutido por autores como Kumare Robson a percepção da existência desse suporte émais importante do que a sua existência em si. Outrosfactores supostamente stressantes incluem o baixonível sócio-económico, e a legitimidade da gravidez.

Estudos de personalidade indicam que mulherescom traços obcessivo-compulsivos estão em risco desofrerem perturbações pós-parto, pois os seusmecanismos de coping são rígidos e inflexíveis,experimentando muitas vezes sentimentos de culpa e

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64 Maria Beatri; Santos

.de inadequação que podem acompanhar inaceitáveissentimentos de hostilidade e ansiedade.

Eventos obstétricos outros que não paridade nãoforam comprovados como significantes no desencadeardas perturbações.

FENOMENOLOGIA DA GRAVIDEZ

A gravidez acompanha-se de modificaçõespsicológicas e comportamentais mínimas outransitórias: labilidade emocional, breves períodosdisfóricos, momentos de apatia ou irritabilidade,perturbações das condutas alimentares.É raro que umagravidez não comporte momentos de inquietude, decrenças relativamente ao filho (medo que ele nasçamorto ou malformado) ao desenrolar da gravidez eparto, às responsabilidades futuras (medo de serincompetente) e não só a grávida viverá estes momentosde regressão mas também o companheiro e o meiosocial imediato. A ansiedade é sobretudo notória duranteo I° trimestre atenuando-se nodecorrer do 2° trimestree tendo a mulher a sensação de bem-estar por volta do6° / 7° mês; nas semanas que precedem o parto aansiedade sofre uma recrudescência aparecendo comfrequência os medos, fantasias e sonhos englobando ofuturo bebé e a própria grávida. Das perturbaçõespsicofisiológicas que podem acompanhar a gravidezsão frequentemente abordadas as náuseas e os vómitosque sobrevêm durante o I° trimestre na maioria dasmulheres, prolongando-se por vezes depois do 3° mês;a sua persistência ocorre frequentemente em mulheresimaturas e com falta de apoio afectivo e social. Sãotambém frequentes nesta fase a hipersónia, as náusease os desejos alimentares.

Algumas das hipertensões arteriais da gravidezacompanham-se de perturbações emocionais sendo osestados ansiodepressivos frequentes nas mulheres jáhipertensas ou naquelas euja hipertensão foi descoberta

durante a gravidez.As manifestações francamente depressivas

observam-se em pelo menos 10%das gravidezes, sendoa maior parte depressões neuróticas e surgindo nosprimeiros meses da gravidez geralmente de formapassageira.À disforia e às crises de lágrimas associam--se a astenia, os sentimentos de incapacidade edepreciação, a procura afectiva tal como variadasqueixas somáticas e as perturbações do sono. Ainquietação referente à saúde ou ao futuro da criançatoma-se nestas mulheres obcecante, exacerbando-seem paroxismos vespertinos.

As depressões gravídicas surgem por vezes como

agravamento de uma neurose pré-existente ouconstituindo a primeira manifestação patológica numamulher até aíequilibrada. Encontramos uma correlaçãosignificativa entre a idade inferior a 20 anos na gestantee a depressão gravídica, tal como a ambivalência faceà gravidez (Lempériee e Roiulon). Salienta-se tambéma influência patogénica dum meio ambientedesfavorável ou stress vividos durante a gravidez(conflitos conjugais, ausêpcia de companheiro estável,isolamento afectivo ou situação material difícil).

As depressões melancólicas são raras e sobrevêmna segunda metade da gravidez, tomando no período determo características confusionais e delirantes. Têmtendência a prosseguirem durante as primeiras semanasapós o parto.

Relativamente às perturbações psiq.uiátricas majoras opiniões dividem-se: a gravidez tem um papelprotector perante elas (Lempériee e Roiulon), sendo aspsicoses gravídicas cerca de 5 vezes menos frequentesdo que no pós-parto. No entanto há. autores comoT.F.McNeil (84) que num estudo com 88 grávidas comhistória de psicose verificaram que este grupo,relativamente ao controle, referia agravamento da suasaúde mental.

Os acessos melancólicos são raros e os maníacosexcepcionais. São também de referir o ressurgir dosestados ansio-depressivos sob o efeito dosbetamiméticos (salbutamol) usados correntemente emobstetrícia pelos seus efeitos tocolíticos.

Segundo Lempériee e Roiulon a gravidezacompanhada de perturbações. psíquicas dá maisfrequentemente origem a complicações obstétricas e aacidentes neo-natais. O peso à nascença é em médiainferior ao dos bebés nascidos de gravidezes semperturbações psíquicas, no entanto estas constataçõesdevem ser analisadas tendo em conta factorespsicológicos e fisiológicos pois as mulheres comperturbações psíquicas são as quemais bebem, fumam

e ingerem medicamentos.A maior parte dos estados disfóricos e ansiosos

melhoram com uma psicoterapiade suporte securizanteno sentido da desculpabilização e desdramatização. Orelaxamento pode ajudar a diminuir a tensão.

Os psicotrópicos deverão ser prescritos comprudência tendo em conta a gravidade clínica e omomento da gravidez, pois vários psicotrópicos sãoincriminados na origem de malformações congénitassem contudo a sua responsabilidade ser demonstrada(exceptuando os casos bem conhecidos do litio,meprobamato e a maior parte dos antiepilépticos), peloque devemos ser prudentes na prescrição de

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Perturbações psíquicas na gravidez epuerpério

medicamentos durante o primeiro trimestre e, em casode necessidade imperiosa, optar pelos mais inócuos.Nos estados depressivos deverão ser prescritosantidepressivos imipramínicos e nos casos severosdevemos optar pela electroconvulsivoterapia.

Curiosas são as alterações decorrentes dumagravidez no futuro pai. Citando Dias Cordeiro, elas sãoo resultado de perturbações na identificação ao paisurgindo então dificuldades em assumir o papel demarido e pai. Na relação com a mulher a identificaçãopode ser controlável e o marido tolerar bem a regressãoda grávida mas pode dar-se também uma identificaçãopatológica (síndrome de Couvade) apresentando omarido os mesmos sintomas da mulher (náuseas,vómitos, alterações do apetite, dores abdominais, etc.).Existe mesmo um ritual de Couvade em que o homemsimula o processo de parto colocando-se na posição damulher. Quando a identificação do marido com amulher se toma impossível, então a intolerância emrelação à grávida põe em risco a sua relação não só coma mulher como também com o feto.

H. Kaplan cita um estudo do National Institute ofMental Health que refere num grupo de pais bipolaresmaníaco-depressivos problemas emocionais. No estudo50% dos homens experimentaram um distúrbioafectivodurante o período do parto e muitas vezes durante agravidez.

PERTURBAÇÕES PSÍQUICAS NO PÓS-PARTO

Autores como H. Kaplan dividem as perturbaçõesdo pós-parto em três tipos: psicosepós-parto ou psicosereactiva breve, pós-natal blues e depressão majorpós-parto.

Alonso Femandezdivide-os em psicoses endógenase somatogéneas ou seja psicoses de causa corporaldesconhecida e conhecida respectivamente, admitindocontudo alguma interacção etiológica entre elas.

H. Ey fala em psicoses puerperais propriamenteditas e em formas com perturbações tímicas, como asmelancolias puerperais, a excitação maníaca e os estadosmistos, descrição muito semelhante a Lempériee eRoiulon. Assim pondo de lado asperturbações psíquicasde etiologia seguramente orgânica como é exemplo atoxiinfecção por retenção placentária, temos de formasucinta os seguintes quadros:

l-pás-PARTO BLUES OU SÍNDROME DO 3°DIA

Alguns dias após o parto surge em 30 a 80 % daspuérperas manifestações neuropsíquicas geralmente

65

leves, mas por vezes intensas e surpreendentes,atendendo aonormal decorrer da gravidez. Trata-se deum episódio benigno, geralmente fugazque dura apenasalguns dias, por vezes um só dia, comportando emgraus diversos astenia, queixas somáticas, perturbaçõesdo sono, crises de lágrimas, ruminações pessimistassobre como cuidar do recém-nascido. O humor éinstável, variando bruscamente da disforia ansiosa àjubilação intensa. A sensibilidade parece exacerbada,ficando susceptível e irritável. Há por vezes dificuldadesde concentração, ligeiras perturbações mnésicaspermanecendo estes sintomas psico-orgânicosgeralmente discretos e pouco objectiváveis pelos examespsicométricos.

Kendell refere que em escalas visuais analógicasos valores para a tristeza, crises de lágrimas, labilidadetímica e ansiedade elevam-se nos primeiros dias, tendoum pico para os três primeiros sintomas ao 5° dia,diminuindo depois rápida e regularmente. Airritabilidadetendeasermaiselevadaàsegundasemanae a euforia diminui nos primeiros dias para se elevaremseguida. Outros autores como Ballinger referem umpico para a depressão entre o 3° e 6° dia.

A sua resolução é rápida e favorecida por umaatitude calorosa dos que rodeiam a puérpera. Somenteem menos de10% dos casos a depressão persiste ao fimde uma semana, sendo por vezes o ponto de partida parauma depressão arrastada do pós-parto.

Contemporâneo à subida do leite o blueségeralmente atribuído às alterações horrnonais. A descidabrutal dos estrogéneos e progesterona nos primeirosdias do pÓS~paJ10provocam uma brusca desestabilizaçãodo metabolismo neuronal seguido de alterações a níveldos neuromediadores. Isto explicaria segundo algunsautores a persistência do síndrome entre o 3°e 6° dia talcomo os 'seus pequenos sinais psico-orgânicos porvezes constatados. No entanto, fica por explicar aausência oeblues em algumas mulheres apesar dasalterações endócrinas. Nos estudos de Handley osblues foram correlacionados com uma taxa elevada decortisol no fim dagravidez e um nível baixodetriptofanono 1° dia do pós-parto, no entanto a administraçãoprofiláctica de triptofano não reduziu a presença deblues. Balliger e col. em mulheres com elevação dehumor entre o 2° e 4° dia constataram variações nastaxas de AMP-cíc\ico, hematócrito e excreção urináriade 110HCS (metabolito da norepinefrina) similar àencontrada nas psicoses maníaco-depressivas de cicIosrápidos a quando das viragens de humor. Metz

demonstrou recentemente que entre o7° e o 10° dia dopós-parto nas mulheres com blues a capacidade de

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ligação dos 2-alfa-adrenoreceptores plaquetários eramais elevada do que nas mulheres sem perturbações nopós"parto. De referir ainda a discordância de váriosautores quanto à relação do blues com a paridade ou osíndrome pré-menstrual, mas concordando na suacorrelação com perturbações emocionais (ansiedade edepressãojnas últimas semanas da gravidez. CitandoStoleru e Lebovici:

"Após o parto ela deverá fazer o luto do seu estadode gravidez e da criança imaginária, perfeita, ideal,adequada a cada um dos seus desejos. Seguidamentedeverá fazer o trabalho inverso: de se dedicar aosdesejos esperanças e sentimentos do recém-nascido;definitivamente deverá dar lugarna sua vida mental aorecém chegado. Tomar-se uma mãe maternalé a formahabitual de se recuperar de ter estado grávida".

Na maioria dos casos o blues não necessita detratamento particular, sendo a instauração de um climaafectivo mais caloroso e menos desumanisado emtomo da maternidade, um caminho a seguir no sentidode diminuir as atitudes patogénicas do ambientecircundante.

Toda a mulher que apresentar um blues pós-partoanormalmente intenso ou durando mais de um mêsdeverá consultar o médico.

2-DEPRESSÃO DO PÓS-PARTOCom um pico nos primeiros meses e um segundo

pico entre o 9° e o15° mês apresenta-se com umaincidência que varia entre os 5 e 10% e correspondendopor vezes a uma depressão já existente (cerca de 10 a20% segundo alguns autores), ou ainda aoprolongamento de um blues.

Só hoje esta entidade é verdadeiramente conhecidaquanto à sua frequência e repercussão nodesenvolvimento da criança.

Na sua chegada a casa a puérpera vê-se de repenteassolada por crises de lágrimas e com uma sensação de

abatimento, incapacidade e impotência ao que se associauma irritabilidade despoletada pelos mínimos eventos,como por exemplo o choro do bebé. Sente-se mudada,compreendendo mal as suas reacções e achando-seincapaz de cuidar do seu filho, não desfrutando omínimo prazer nas suas tarefas. O desinteresse sexualé evidente e os pesadelos atormentam-na. Associa-sepor Vezes a este quadro fobias de impulsão em que sejulga possuidora de uma força interior irresistível nosentido de fazer mal ao bebé, o estrangular ou odefenestrar. Para reduzir a sua angústia evita todos oscontactos com ele, colocando-o à distância outransferindo as suas competências para os que arodeiam.

A maior parte evolui espontaneamente para arecuperação em semanas ou meses, no entanto umapercentagem não desprezível evolui de forma menosfavorável prolongando-se a depressão.

Segundo alguns trabalhos não parece haver relaçãoentre a depressão pós parto e algumas variáveis comoetnia e classe social, estado civil, sexo da criança,forma de aleitamento e complicações somáticas dagravidez ou do parto. Há no entanto alguns factores quese relacionam de forma positiva com a depressão dopós parto:

- idade- se a mãe tiver menos de 20 anos ou for umaprimípara com mais de trinta anos;

- dificuldades familiares na infância ou separaçãoprecoce dos seus pais que resultam numadificuldade em estabelecer relações equilibradascom o seu filho, apresentando este mais distúrbiosdo sono e da alimentação;

- perturbações psíquicas antes da gravidez: aquiautores como BaIlinger encontram relação eoutros como Kumar e Robson negam que acorrelação seja significativa;

- perturbações psicológicas durante a gravidez(como a ansiedade e hostilidade): surge um maiorrisco de distúrbios pós parto durante o I° ano;

- ambivalência relativamente à gravidez;- tensões afectivas conjugais tal como deficiente

suporte .emocional e material;- severidade do blues;- eventos desfavoráveis vividos durante a

puerperalidade: surgindo o stress como o factormais importante na incidência da depressão. Afragilidade pessoal, com os antecedentespsiquiátricos, e as perturbações neuroendócrinascomo o blues prolongado ou severo, jogam só porsi um papel favorecedor independentemente daacção do stress.

Relativamente à terapêutica é essencial adimensão

psicoterapêutica apoiada na relação mãe-bebé que vaidesde a consultadoria, terapêutica de interacção precoce,terapia de apoio à terapia de casal ou mesmo à terapiafamiliar. A quimioterapia antidepressiva é por vezesútil e necessária.

PSICOSES DO PÓS PARTO

O pós-parto é um período onde o risco dedescompensação psiquiátrica é maior, sendo cerca de80% das admissões psiquiátricas do pós-parto porperturbações afectivas, depressivos ou maníacos.

O risco de admissão psiquiátrica por psicose

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Perturbações psíquicas na gravidez e puerpério

funcional no primeiro trimestre do pós-parto émultiplicado pordeze surgindo no decurso do primeiromês em 80% dos casos e na primeira semana em 40%dos casos. Motivo de controvérsia e de busca de umaetiologia e especificidade c1inica, a psicose pós-partoinsere-se mal dentro das classificações tradicionaisdevido a uma certa atipia semiológica e evolutiva,sendo durante muito tempo inserida em diferentesrubricas nosológicas mais pelo critério das diversasescolas do que pela realidade clínica. Recentementemultiplicaram-se os estudos utilizando critérios dediagnóstico no sentido do desmembramento daspsicoses do pós-parto e da confirmação das suasparticularidades semiológicas (Lempériee e Roiulon).

Como quadros tímicos francos, maníacos oumelancó Iicos, raramente como quadros esquizofrénicostípicos, as perturbações do pós-parto oferecem porvezes uma semiologia tão particular como a de umapsicose delirante aguda com desorganização daconsciência e uma nota tímica mais ou menos manifesta.

1- PSICOSES DELIRANTES AGUDASSão referidas sob diversos vocábulos consoante os

estudos e autores: baforada confuso-delirante, psicosesoniroides, perturbações esquizo-afectivas, psicosesesquizofreniformes, psicoses cicIóides. Caracterizam-sepor:

- um início brutal dentro das três primeirassemanas do pós-parto com um pico de frequênciaao 10°dia. Os pródromos constam de ruminaçõesansiosas, crises de lágrimas, pesadelos comagitação nocturna, precedendo em alguns dias aerupção delirante;

- uma sintomatologia polimorfae lábil, passandoda agitação ao estupor, da agressividade àscondutas lúdicas em função das tlutuaçõestímicas e de consciência; os bouffés oniroides eas cenas oníricas alimentam a ansiedade e odelírio. O humor é instável, depressivo ouirritável;

- a problemática delirante é geralmente centradano nascimento e na relação com a criança, porvezes com negação da própria gravidez e donascimento da mesma. As atitudes deagressividade para com o recém-nascido sãomuitas vezes manifestas mas convém nãoesquecer que sob uma apatia pode surgir umgesto infanticida;

- tem uma evolução em regra favorável; uma

medicação neuroléptica ou por vezes electro-convulsivoterapia promovem o retrocesso

67

rápido das perturbações embora o seureaparecimento a curto prazo não seja raro soba forma de estados mistos, acessos melancólicosou maníacos. Autores como H. Kaplan citampercentagens de 10 a 50% relativamente àrecorrência em gestações posteriores.

2- PERTURBAÇÕES TÍMICAS FRANCASSão as perturbações psiquiátricas major mais

frequentes no pós-parto, incluindo os acessos maníacose os depressivos major.

. a-ACESSOS MANÍACOSCaracterizados por um início brutal, quase sempre

nas duas semanas que se seguem ao parto com umaagitação intensa e desorganização com actividadealucinatória e delirante: ideias deinfluência, de missãodivina, temas erotomaníacos ou persecutórios. Osestados mistos são frequentes porimbricação oualternância rápida de elementos maníacos emelancólicos. Cerca de metade dos casos da maniapuerperal evolui para uma fase depressiva.

h-ACESSOS DEPRESSIVOS MAJORConstituem cerca de 40% da totalidade de casos

admitidos em psiquiatria dentro dos três primeirosmeses do pós-parto. Um em cada cinco casos tem uminício precoce com uma forma estupurosa confusionalou mista. Pelo menos um terço das depressões major dopós-parto são precedidas de perturbações semelhantesdurante a gravidez. Clinicamente observa-se em estudosde Kendel a presença de um delírio e de uma labilidadede humor tendo cerca de metade destas depressõescaracterísticas de melancolias delirantes.

Na melancolia puerperal a temática ansio-delirantecentra-se no recém-nascido, dominando os sentimentosde culpabilidade e incapacidade.A jovem mãe sentepesar sobre ela e o seu filho várias ameaças: ela estácondenada, deve desaparecer, vão matá-los. As visõesfúnebres são constantes com cenas catastróficas ondeela se sente responsável. As pulsões mortíferas assaltam--na e os raptus suicidários e/ou infanticidas, sendoentão aconselhável a hospitalização.

3-ESTADOS ESQUIZOFRÉNICOSPodem ter início logo após o parto com agitação

delirante, discordância ideo-afectiva e negativismo oucomo um quadro esquizo-afectivo com excitação atípicae depressão delirante. Por vezes um quadro dissociativo

aparece insidiosamente com atitudes hostis,comportamento biiarro e desinteresse pelo bebé que é

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negligenciado ou tratado de forma aberrante.

Numerosas esquizofrenias puerperais foram

precedidas por surtos psicóticos anteriores ou sinais

precursores de psicose. Por vezes a puerperalidade

pode precipitar o distúrbio em mulheres de

personalidade rígida e esquizoide bem adaptadas até à

altura. Segundo, autores franceses como Lemperiére e

H. Ey o diagnóstico de esquizofrenia puerperal foi

outrora suportado demasiado facilmente pelos quadros'

de catatonia aguda e de psicose delirante sub-aguda,

que acabavam por recuperar completamente dando à

esquizofrenia puerperal um rótulo de bom prognóstico.

Na realidade estes episódios esquizofreniformes ou

esquizo-afectivos são mais afectos à psicose maníaco-

depressiva do queàesquizofrenia como comprovam as

recaídas posteriores de características fortemente

tímicas. Apenas 10 a 15% das psicoses do pós-parto

evoluem a longo prazo para um estado dissociativo

crónico ou uma psicose esquizo-afectiva. Nestas

esquizofrenias de inicio puerperal a adaptaçãoàmaternidade fica severamente comprometida.

Como conclusão podemos referir que a imensa

maioria das psicoses do pós-parto são psicoses tímicasq.ue se revestem em 20% dos casos de características

próprias de desorganização profunda da consciência e

de f1utuações tímicas amplas e rápidas. Essas psicoses

de traços oniroides ou esquizo-afectivos iniciam-se

geralmente de forma brusca nas primeiras semanas do

pós-parto.

A maioria das manias e melancolias puerperais

não tem especificidade semiológica ou evolutiva. Nas

esquizofrenias de início puerperal, que constituem 10

a 15% das psicoses do pós-parto, só a sua evolução a

longo prazo permite pôr o diagnóstico, conferindo a

puerperalidade traços esquizofreniformes a certas

psicoses tímicas.As psicoses puerperais sobrevêm num terço dos

casos em pacientes apresentando.jã anteriormente

perturbações pós-partoóu acidentes psiquiátricos major

espontâneos como a baforada delirante.

TERAPÊUTICA

Para cada caso e, de acordo com a clínica, são

seleccionados os meios terapêuticos a utilizar. As

psicoses oniroides agudas, as melancolias delirantes,

os estados mistos e mesmo os estados maníacos

necessitam de recurso à electroconvulsivoterapia

atendendo à sua eficácia mais completa e rápida

relativamente aosneurolépticos, que contudo podem

ser usados em alguns casos pontuais de acordo com a

sintomatologia. Também o lítio pode ser administrado

nos acessos maníacos.

Autores como Alonso Fernandez preconizam

também uma especial atençãoà secreção láctea

aconselhando a sua supressão imediata após a suspensão

da amamentação e, citando autores como Abely, que de

uma forma um pouco radical consideram a

administração de neurolépticos no período pós-parto

um perigo pela sua acção sobre a secreção láctea e

sobre uma hipófise em plena regeneração, não

aconselhando o seu uso até ao reaparecimento da

primeira menstruação. Ainda A. Fernandez refere casos

resistentes a neurolépticos e electroconvulsivoterapia

que remitem com uma curetagem uterina cuja acção

terapêutica reside na supressão de resíduos tóxicos

com a reaparição de um cndométrio de sensibilidadenormal para as hormonas hipofisátias. Também H. Ey

cita trabalhos de Delay e Corteel que vão no mesmo

sentido referindo casos de imagens típicas da mucosa

uterina enquanto dura a psicose e remitindo após a

remissão clínica.

São preconizadas nestes quadros de perturbações

pós-parto unidades de hospitalização psiquiátricas mãe

recém-nascido no sentido de se preservar ao máximo a

relação da mãe com a criança.Devemos advertir a mãe do risco de uma psicose

posterior numa próxima gravidez (risco aumentado

nos bipolares) e tentar espaçar as gravidezes futuras, se

desejadas, no sentido de dar à criança o maior tempopossível com amãe numa relação estável e harmoniosa.

Medidas particulares de vigilância devem ser

tomadas nos casos de psicoses maníaco-depressivas

que pararam o lítio durante a gravidez e que poderá ser

reintroduzido a partir do 4° mês sob rigorosa vigilância

da litémia.

Medidas de suporte psicológico são sempre

necessárias e benéficas.

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