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1 DEVERES DE INFORMAÇÃO DAS PARTES JOANA GALVÃO TELES Sumário: I. Introdução. II. Deveres de informação do segurador: A) regime comum; B) modo de prestar informações; C) dever especial de esclarecimento; D) incumprimento. III. Deveres de informação do tomador do seguro ou do segurado: A) declaração inicial de risco; B) omissões ou inexactidões dolosas; C) omissões e inexactidões negligentes. I - Introdução 1. A Lei do Contrato de Seguro (LCS) veio consolidar um regime geral de deveres pré-contratuais de informação específicos da relação de contrato de seguro, a cumprir quer pelo segurador perante o tomador de seguro (arts. 18.º a 23.º da LCS), quer pelo tomador de seguro ou pelo segurado ao segurador (arts. 24.º a 26.º da LCS). Com efeito, é de realçar uma distinção relevante de interesses a proteger nesta sede, na qual o legislador se baseou para alcançar um equilíbrio especial na fixação do regime geral de deveres pré-contratuais de informação, o que confere ao regime do contrato de seguro e ao ramo de direito em questão uma particularidade que não se verifica na generalidade dos contratos celebrados noutras áreas do direito. Se, por um lado, o modo normal de formação dos contratos de seguro assenta no recurso a cláusulas contratuais gerais, predispostas unilateralmente pelos seguradores, que têm um poder negocial mais forte e um maior nível de informação em relação ao funcionamento e regulamentação do mercado dos seguros do que os tomadores de seguro e/ou segurados, que se limitam a aceitá-las sem ter grande margem para as negociar ou alterar, exigindo-se uma especial protecção dos últimos, a qual se sente, exactamente, na imposição de diversos deveres de informação pré-contratuais aos seguradores, por outro lado, e tratando-se de questão diferente, no que se refere ao risco que se pretende segurar, existe, igualmente, um desequilíbrio no acesso à informação. Neste caso, muitas vezes, é o tomador do seguro quem está em melhores condições de transmitir as informações relevantes para previsão e cálculo do mesmo (por se referir à sua saúde, às características de um bem ou de um negócio seus, que o último conhece melhor que ninguém), o que implica um tratamento legal distinto destas situações no sentido de garantir que o tomador do seguro e/ou o segurado se esforça em transmitir toda a informação relevante, que detém efectivamente (sem que, nesta última situação, se considere que o segurador seja uma parte contratualmente mais fraca) 1 . 1 GOMES, Júlio – O dever de informação do tomador de seguro na fase pré-contratual, II Congresso Nacional de Direito dos Seguros, Memórias, Coordenação de António Moreira e M. Costa Martins, Cit. O dever de informação do tomador de seguro na fase pré-contratual, p. 76.

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DEVERES DE INFORMAÇÃO DAS PARTES

JOANA GALVÃO TELES

Sumário: I. Introdução. II. Deveres de informação do segurador: A) regime comum; B) modo de prestar informações; C) dever especial de esclarecimento; D) incumprimento. III. Deveres de informação do tomador do seguro ou do segurado: A) declaração inicial de risco; B) omissões ou inexactidões dolosas; C) omissões e inexactidões negligentes.

I - Introdução

1. A Lei do Contrato de Seguro (LCS) veio consolidar um regime geral de deveres pré-contratuais de informação específicos da relação de contrato de seguro, a cumprir quer pelo segurador perante o tomador de seguro (arts. 18.º a 23.º da LCS), quer pelo tomador de seguro ou pelo segurado ao segurador (arts. 24.º a 26.º da LCS). Com efeito, é de realçar uma distinção relevante de interesses a proteger nesta sede, na qual o legislador se baseou para alcançar um equilíbrio especial na fixação do regime geral de deveres pré-contratuais de informação, o que confere ao regime do contrato de seguro e ao ramo de direito em questão uma particularidade que não se verifica na generalidade dos contratos celebrados noutras áreas do direito. Se, por um lado, o modo normal de formação dos contratos de seguro assenta no recurso a cláusulas contratuais gerais, predispostas unilateralmente pelos seguradores, que têm um poder negocial mais forte e um maior nível de informação em relação ao funcionamento e regulamentação do mercado dos seguros do que os tomadores de seguro e/ou segurados, que se limitam a aceitá-las sem ter grande margem para as negociar ou alterar, exigindo-se uma especial protecção dos últimos, a qual se sente, exactamente, na imposição de diversos deveres de informação pré-contratuais aos seguradores, por outro lado, e tratando-se de questão diferente, no que se refere ao risco que se pretende segurar, existe, igualmente, um desequilíbrio no acesso à informação. Neste caso, muitas vezes, é o tomador do seguro quem está em melhores condições de transmitir as informações relevantes para previsão e cálculo do mesmo (por se referir à sua saúde, às características de um bem ou de um negócio seus, que o último conhece melhor que ninguém), o que implica um tratamento legal distinto destas situações no sentido de garantir que o tomador do seguro e/ou o segurado se esforça em transmitir toda a informação relevante, que detém efectivamente (sem que, nesta última situação, se considere que o segurador seja uma parte contratualmente mais fraca)1.

1 GOMES, Júlio – O dever de informação do tomador de seguro na fase pré-contratual, II Congresso Nacional de Direito dos Seguros, Memórias, Coordenação de António Moreira e M. Costa Martins, Cit. O dever de informação do tomador de seguro na fase pré-contratual, p. 76.

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Daí que, dentro da Secção II do Capítulo I («Disposições preliminares») do Título I («Regime comum») do regime jurídico do contrato de seguro, a LCS preveja duas subsecções, uma relativa aos deveres de informação do segurador para com o tomador do seguro (arts. 18.º e ss.) e outra referente aos deveres de informação do tomador de seguro ou do segurado para com o segurador no que respeita ao risco a ser coberto pelo contrato (arts. 24.º e ss.). Dada a natureza e relevância das finalidades prosseguidas com a consagração das normas em questão, os artigos 18.º a 26.º da LCS incluem-se nas normas qualificadas como relativamente imperativas, pelo que o teor dos mesmos somente pode ser alterado num sentido mais favorável ao tomador de seguro, ao segurado ou ao beneficiário da prestação de seguro (art. 13.º da LCS)2. Além das normas da LCS que compõem o regime referido, dependendo da natureza e tipo de contrato que esteja em causa, poder-se-ão impor outros deveres de informação especificamente previstos noutros diplomas especiais, como os aplicáveis aos contratos à distância ou no regime de defesa do consumidor, entre outros (art. 19.º da LCS).

II - Deveres de informação do segurador

A) Regime Comum

2. Antes da vigência da LCS, o regime dos deveres de informação encontrava-se plasmado nos artigos 176.º a 178.º do RGES3 para o Ramo «Não Vida» e nos artigos 179.º a 181.º do mesmo diploma para o Ramo «Vida». No âmbito dos contratos celebrados no Ramo «Não Vida», a lei previa um «dever de informação» relativo ao «nome do Estado Membro onde se situa a sede social e, se for caso disso, a sucursal com a qual o contrato será celebrado», um dever de informação pré-contratual relativo à lei aplicável ao contrato e às reclamações, bem como «menções especiais» a estarem contidas nos documentos contratuais, o que havia resultado da transposição quer do Anexo III da Directiva «Vida», quer da Terceira Directiva 92/49/CEE. Por sua vez, os artigos 179.º e 181.º do RGES, sob a epígrafe «Transparência», regulavam o «dever de informação antes da celebração do contrato de seguro ou operação», o «dever de informação durante a vigência do contrato ou operação» e as «informações suplementares» a prestar ao tomador de seguro nos contratos de seguro celebrados no ramo «Vida», regime que havia sido produto da transposição da Directiva «Vida» 2002/83/CE. Além do RGES, o RTAS4 veio alargar o âmbito dos deveres de informação pré-contratuais previstos pelo primeiro e impor um regime de transparência quanto aos elementos a constar das condições gerais ou especiais dos contratos de seguro, tanto no ramo «Vida», como no ramo «Não Vida», como também nos Seguros de Grupo. Ainda no

2 Cfr. explicitado supra em Liberdade contratual e seus limites. 3 Na versão anterior à publicação e vigência do presente DL (DL.º 94-B/98, de 17 de Abril, republicado pelo DL n.º 251/2003, de 14 de Outubro e alterado pelos DL n.º 76-A/2006, de 29 de Março, n.º 145/2006, de 31 de Julho, n.º 291.º/2007, de 21 de Agosto e n.º 357-A/2007, de 31 de Outubro). 4 Na versão anterior à publicação e vigência do presente DL, a qual foi maioritariamente revogada por este.

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intuito de complementar o RGES em matéria de deveres de informação, o RTAS5 veio prever, de forma extensa, um leque de deveres de informação específicos nos casos de seguros de acidentes pessoais e doença, protecção jurídica, caução, responsabilidade civil automóvel6.

3. Com a reforma do regime do contrato de seguro operada pela LCS, visou-se, conforme se refere no preâmbulo, a «adaptação das regras em vigor, procedendo à actualização e concatenação de conceitos de diversos diplomas e preenchendo certas lacunas». Foi seguindo os propósitos referidos que, no que respeita aos deveres de informação pré-contratuais do segurador para com o tomador de seguro, se procedeu – mais uma vez, citando o próprio preâmbulo do diploma em questão – a uma «uniformização tendencial» dos mesmos para a generalidade dos contratos de seguros, desenvolvendo-se depois alguns regimes especiais, como o aplicável ao seguro de vida (art. 185.º da LCS). Com efeito, o art. 18.º da LCS começa por consagrar um dever geral de esclarecimento e informação pré-contratuais (art. 21.º da LCS) a cargo do segurador perante o tomador de seguro no que toca às condições do contrato a celebrar, concretizando, nas diversas alíneas que a compõem, os elementos que são objecto do mesmo. Comparando com o regime anteriormente vigente, supra descrito, a presente disposição vem estender a todos os tipos de contratos de seguro e a todos os tipos de tomadores de seguros um dever geral e comum de esclarecimento e de informação por parte do segurador, o qual se insere na doutrina de protecção especial do contraente com menor poder negocial que veio a ser adoptada também em matéria de seguros, tal como sucedia noutros tipos de contratos7. Paralelamente à consagração de deveres de informação, estabeleceu-se «um dever especial de esclarecimento a cargo do segurador» no art. 22.º da LCS, este sim, com verdadeiro «carácter inovador, mas em que o respectivo conteúdo surge balizado pelo objecto principal do contrato de seguro, o do âmbito da cobertura».

4. No direito dos contratos em geral, independentemente do modo de formação dos mesmos, existindo múltiplos e distintos cenários possíveis, certo é que o contrato não fica concluído enquanto as partes não houverem acordado em todas as cláusulas sobre as quais qualquer delas tenha julgado necessário o acordo (art. 32.º do CC). A doutrina distingue, normalmente, duas fases no processo de formação dos contratos, sendo elas, a «fase negociatória», que se caracteriza pelo conjunto de «actos tendentes à celebração do contrato», incluindo propostas, convites a contratar, contrapropostas, contactos mantidos sobre os elementos contratuais, minutas, acordos pré-contratuais (intermédios ou finais) e os actos inseridos em concurso para a formação do contrato, e a «fase decisória» que consiste na conclusão (efectiva ou potencial) do acordo assente na emissão de declarações, simultâneas ou sucessivas, a proposta e a aceitação8. Durante as fases referidas, a lei impõe

5 Na versão anterior à publicação e vigência do presente DL, a qual foi maioritariamente revogada por este. 6 Para análise mais desenvolvida da evolução da legislação anterior aplicável em matéria de direitos e deveres de informação, vide CALDAS, Luís Filipe – Direitos e Deveres de Informação: Sanção das Declarações Inexactas do Tomador, in III Congresso Nacional de Direito dos Seguros, Memória, Coordenação de António Moreira e M. Costa Martins, Coimbra 2003, Cit. Direitos e Deveres de Informação pp. 281 a 284. 7 Vide supra, a este propósito, Liberdade contratual e seus limites. 8 COSTA, Mário Júlio de Almeida – Responsabilidade civil por ruptura das negociações preparatórias de um contrato, sep. da anotação ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05.02.1981, na Revista de Legislação e Jurisprudência, 116.º, p. 84 e ss. Cit. Responsabilidade civil por ruptura das negociações preparatórias de um contrato. pp. 148 e ss.; MACHADO, Baptista – Tutela da confiança e «venire contra factum proprium», Revista de Legislação e de

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que cada parte «deve (…) proceder segundo as regras da boa fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente causar à outra parte» (art. 227.º do CC). É o chamado instituto da «culpa in contrahendo». Convém referir, desde já, que, no âmbito da responsabilidade pré-contratual ou «culpa in contrahendo», podem gerar-se três situações diferentes: i) podem as partes chegar a celebrar contrato, mas inválido (nulo, por exemplo, por inobservância de forma legal ou anulado, por exemplo, por dolo, erro ou coacção) ou ineficaz stricto sensu (a título exemplificativo, por faltar um requisito legal ou por ser celebrado com abuso de representação) por violação dos deveres decorrentes da boa fé nas fases negociatória e/ou decisória; ii) podem as partes celebrar contratos válidos e eficazes, tanto convalidados (anuláveis que não são anulados), como contratos desprovidos de qualquer vício «ab initio»9, mas nos quais se verifique um desequilíbrio de prestações provocado por uma omissão de informação ou falsa informação ou por um aproveitamento por uma das partes de um poder negocial mais fraco da contraparte; e iii) podem as partes não chegar a celebrar contrato, por se interromperem as negociações por violação de deveres de lealdade. A identificação e concretização das regras da boa fé – i.e., dos deveres que se incluem na previsão da norma do art. 227.º do CC – que devem pautar a actuação das partes na fase de formação dos contratos cabe à doutrina e jurisprudência, em cada momento e em cada lugar. Têm sido sendo comummente destacados como tais os deveres de informação (e associado a este, de verdade), de lealdade e de sigilo. Seguindo doutrina alemã, alguns autores destacam, igualmente, deveres de protecção e segurança e, para FERREIRA DE ALMEIDA, pode acrescentar-se o dever de diligência10. No que toca aos deveres pré-contratuais de informação, ora em análise, aqueles que surgem logo numa fase prévia à celebração dos contratos, durante o «iter negotii», pode afirmar-se que os mesmos nascem sempre que uma pessoa, em nome de uma actuação segundo as regras da boa fé, deve transmitir a outra determinado facto ou circunstância que a última desconhece, o que sucede quando, em cada uma das partes ou numa delas, já se criou uma relação de confiança, que é a «ratio» do instituto da responsabilidade pré-contratual11. Os deveres de informação pré-contratuais visam permitir às partes decidir livre e conscientemente se e como pretendem contratar, sendo pressuposto e garantia do princípio da liberdade contratual (art. 405.º do CC e art. 11.º da LCS).

Jurisprudência, ano 117.º, pp. 229 e ss. Cit. Tutela da confiança. pp. 229 e ss.; TELLES, Inocêncio Galvão - Direito das obrigações, 7.ª ed., Coimbra 1997. Cit. Obrigações. p. 71; PRATA, Ana – Notas Sobre Responsabilidade Pré-Contratual, Almedina, 2002. Cit. Notas Sobre Responsabilidade Pré-Contratual. pp. 16 e ss. e 40 e ss.; ALMEIDA, Carlos Ferreira de – Contratos I. Conceitos. Fontes. Formação, 1.ª ed., Coimbra 2000, 2.ª ed., Coimbra 2003, e 3.ª ed., Coimbra 2005 (cito a edição mais recente salvo indicação em contrário). Cit. Contratos I. pp. 186 e ss.. 9 Apesar de serem situações de verificação mais difícil, há exemplos possíveis como a realização de despesas suportadas por um dos contraentes que tenha sido dolosamente convencido pelo outro da necessidade legal das mesmas. Vide, neste sentido, CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Contratos I, 3.ª ed., p. 189 e I. GALVÃO

TELLES, Direito das Obrigações, p. 71, nota de rodapé (1). 10 CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Contratos I, 3.ª ed., pp. 190 e ss.. 11 BENATTI, Francesco A responsabilidade pré-contratual, tradução de A. Vera Jardim e Miguel Caeiro, Coimbra, 1970, Cit. A responsabilidade pré-contratual., pp. 29-30; LARENZ, Karl – Lehrbuch des Schuldrechts, I, Band, Allgemeiner Teil, zehnte, neubearbeitete Auflage, München, 1970. Cit. Lehrbuch des Schuldrechts. p.90; MONTEIRO, Jorge Ferreira Sinde – Responsabilidade por conselhos, recomendações ou informações, Coimbra, Almedina, 1989, Dissertação de Doutoramento. Cit. Responsabilidade por conselhos, recomendações ou informações. p. 15; CARLOS

FERREIRA DE ALMEIDA, Contratos I, 3.ª ed., pp. 200 e ss.; ANA PRATA, Notas Sobre Responsabilidade Pré-Contratual, pp. 42 e ss.; MARIA SOFIA LOPES CARAÇAS CENTENO, Os Deveres de Informação do Segurado, p. 6.

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Importa, porém, questionar qual deve ser a amplitude dos deveres de informação pré-contratuais a que cada parte está obrigada na negociação e celebração de um contrato e ponderar se devem existir limites aos mesmos e, em caso de resposta afirmativa, quais devem ser esses limites. Com efeito, se, por um lado, as partes devem conhecer todos os factos relevantes a uma decisão tão completa e esclarecida quanto possível, de forma a optarem por um negócio que satisfaça o seu interesse, por outro lado, a informação é um trunfo e pode ser utilizada, dentro de certos limites, como elemento de transacção na própria negociação («o segredo é a alma do negócio»), correspondendo a delimitação dos limites referidos ao traçar da fronteira entre os designados «dolus bonus» e «dolus malus»12. Ora, a resposta às questões colocadas não deve ser e não tem sido uniforme para todo o tipo de contratos e para todo o tipo de contrapartes, dependendo de uma multiplicidade de factores, entre os quais se poderão indicar, a título de exemplo, as áreas do direito em que as partes se movem e/ou os interesses subjacentes que se pretendem proteger em cada uma delas. Neste sentido, tanto têm surgido regulamentações mais ou menos extensas de deveres de informação pré-contratuais para determinadas áreas, em que, por se verificar um desequilíbrio acentuado entre partes com múltipla informação e forte poder negocial e partes com menos informação e fraco poder negocial, a lei é mais exigente quanto à amplitude e qualidade de informação a fornecer, como é o caso dos contratos celebrados pelos intermediários financeiros com os seus clientes (art. 7.º, n.º 1, e 312.º e ss. do CVM) e dos contratos celebrados pelas empresas com consumidores (art. 8.º da LDC), como, paralelamente, existem outras áreas do direito que têm ficado sujeitas apenas à regra geral, assente em conceitos indeterminados que têm de ser concretizados em cada caso, consoante diversos elementos a ter em conta, tais como, as características concretas de cada parte, o tipo de negócio a ser celebrado, os tipos de riscos associados a cada contrato, entre outros, sempre mantendo como referência a necessidade de actuar de boa fé. Note-se que a figura do «dolus bonus» vai deixando de ter margem de aplicação nas áreas do direito onde os deveres de informação pré-contratuais se encontram regulamentados de forma mais ampla e específica e com elevados padrões de qualidade. Situações óbvias de violação de deveres de informação pré-contratuais ocorrem quando alguém, por acção ou omissão, induz a outra parte em erro ou transmite informações falsas sobre elementos que sabe serem essenciais, em caso de erro, ou sobre elementos essenciais, em caso de dolo, à decisão de contratar da outra parte, ou quando alguém oculta culposamente um vício do negócio13. Ao invés, limites claros aos deveres de informação pré-contratuais devem ser estabelecidos quando a contraparte não conhece, realmente, determinados elementos que, se utilizasse toda a diligência que lhe é exigida, poderia conhecer. Conclui-se, pois, que os casos mais duvidosos são aqueles em que a lei não estabelece, nem concretiza quaisquer critérios quanto à amplitude e à qualidade da informação a prestar, recorrendo-se apenas à regra geral do art. 227.º do CC para avaliar a conduta das partes.

12 Cfr. CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Contratos I, 2.ª ed., pp. 192 e ss.. 13 Cfr. CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Contratos I, 3.ª ed., pp. 192 e ss..

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5. Atendendo aos contratos de seguro em particular, os mesmos apresentam características e colocam questões específicas, tendo o legislador entendido como necessária uma regulamentação própria de deveres pré-contratuais de informação nesta sede. Conforme referido, os arts. 18.º a 23.º da LCS estabelecem um regime de deveres de informação pré-contratuais do segurador na sua relação com o tomador de seguro, por força de exigências especiais de protecção da parte que está numa posição contratual mais fraca, decorrentes do modo de formação normal dos contratos de seguro. Embora exista um dever geral de actuação de boa fé nas fases negociatória e decisória da celebração dos contratos em geral (art. 227.º do CC), que sempre seria aplicável aos contratos de seguros, é essencial e vantajosa a existência de um regime específico sobre deveres pré-contratuais de informação do segurador (arts. 18.º a 23.º da LCS), já que, conforme supra referido, delimita claramente a amplitude, os limites, a qualidade e o modo de prestação da informação a que o segurador se encontra obrigado perante o tomador de seguro, diminuindo o espaço de dúvidas e conferindo uma maior protecção à parte contratualmente mais fraca, neste caso, ao tomador de seguro. Acresce que, encontrando-se concretizados de forma mais específica e clara os elementos que devem ser objecto do dever geral de esclarecimento e informação a que o segurador está sujeito, deixa de haver espaço para «dolus bonus», devendo o tomador de seguro estar perfeitamente consciente e livre na sua decisão de contratar, ou seja, na sua decisão de aderir às cláusulas contratuais gerais que lhe são apresentadas. Sob a epígrafe de «regime comum», o art. 18.º da LCS enumera um núcleo mínimo de elementos, considerados essenciais, a serem esclarecidos e transmitidos ao tomador de seguro previamente à celebração do contrato, tais como, a identificação do segurador, incluindo denominação, forma jurídica (se é uma sociedade anónima, mútua, empresa pública ou de capitais públicos, sociedade europeia ou outra) e estatuto legal [alínea a)], do objecto do contrato, incluindo o âmbito do risco coberto e as respectivas exclusões e/ou limitações [alíneas b) e c)], de todos os elementos essenciais relativamente à obrigação principal do tomador de seguro de pagamento do prémio (valor total do prémio ou, não sendo possível, o seu método de cálculo, assim como as modalidades de pagamento do prémio e as consequências da falta de pagamento do mesmo – alínea d)], do agravamento ou melhoria de condições que possam vir a ser aplicados de modo a evitar quaisquer efeitos-surpresa [alínea e)], do montante mínimo do capital nos seguros obrigatórios e montante máximo a que o segurador se obriga em cada período de vigência do contrato [alíneas f) e g)], da duração do contrato e dos regimes de transmissão e de cessação do mesmo [alíneas h) e i)], do regime aplicável no caso de surgirem patologias com a execução do contrato [alínea j)] e do regime relativo à lei aplicável, com indicação da lei que o segurador propõe que seja escolhida [alínea l)]. O cumprimento dos deveres impostos nesta sede não afasta ou dispensa a necessidade de incluir na apólice, ou seja, no documento escrito a ser entregue ao tomador, um núcleo mínimo legalmente exigido de informação (art. 37.º da LCS), o que visa quer, do lado do tomador de seguro, uma maior garantia do conhecimento do mesmo das condições contratuais e a existência de um título para exercício dos seus direitos, quer, do lado do

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segurador, uma forma de comprovar que cumpriu os deveres de informação pré-contratuais em questão14. No seguimento da consagração de um dever geral de esclarecimento e de informação sobre um núcleo mínimo de elementos considerados essenciais para uma decisão de contratar do tomador do seguro, e sem prejuízo dos mesmos, o legislador sentiu necessidade de estabelecer, em preceito autónomo, a obrigação legal do segurador de informar o tomador de seguro do Estado em que se situa a sede social e, se for caso disso, a sucursal que irá celebrar o contrato, ou seja, que irá cobrir o risco, indicando, concretamente, os elementos que devem ser transmitidos ao tomador de seguro nessa matéria: o local e o nome do Estado onde se situa a sede e/ou a sucursal e o endereço da sede e/ou da sucursal (art. 20.º da LCS). Com efeito, trata-se da identificação da contraparte, nomeadamente do lugar onde a mesma se encontra sedeada, o que releva para diversos efeitos relativos à regulação do acesso e exercício da actividade seguradora. Vejamos melhor: O RGES contém o regime de acesso e exercício da actividade seguradora e resseguradora, correspondendo, actualmente, ao produto da «codificação» que foi sendo realizada na matéria, do desenvolvimento e actualização constantes da mesma, inclusive através da transposição do conjunto de Directivas Comunitárias que vieram a ser criadas e implementadas15, desde o DL n.º 94-B/98, de 17 de Abril, até ao DL n.º 52/2010, de 26 de Maio. Importa destacar uma das actualizações referidas, nomeadamente aquela em que se procedeu à transposição para o ordenamento jurídico português das directivas de terceira geração, relativas à criação do «mercado único» no sector segurador16, já que «a actividade de seguro directo no mercado interno passou a ficar sujeita ao regime da autorização única válida para todo o território da Comunidade Europeia”17. A partir da alteração legal mencionada, desde que a empresa de seguros obtenha autorização para exercer a sua actividade no território do Estado membro de origem, fica, igualmente, habilitada a exercer actividade no território de qualquer um dos outros Estados membros, quer ao abrigo do direito de estabelecimento (mediante, por exemplo, sucursal ou filial), quer ao abrigo da livre prestação de serviços, podendo cobrir riscos ou assumir compromissos noutro ou noutros Estados membros, mesmo sem ter qualquer estabelecimento no(s) último(s)18. A par desta alteração, ocorreram outras no sentido de complementar a primeira: a supervisão e o controlo prudenciais passaram a ser exercidos pelas autoridades do Estado membro de origem, de acordo com as disposições legais vigentes no território respectivo, as autoridades dos Estados membros de acolhimento continuaram a dispor de poderes para controlar a aplicação de determinadas disposições legais vigentes nos respectivos territórios, nomeadamente de interesse geral, e aboliram-se autorizações prévias ou comunicações sistemáticas de apólices e tarifas às últimas autoridades referidas, mantendo-se apenas para seguros obrigatórios19.

14 Para desenvolvimento do tema relativo à apólice, vide supra O contrato e a apólice. 15 Como a Primeira Directiva 73/329/CEE, a Segunda Directiva 88/357/CEE, a Terceira Directiva 92/49/CEE e a Directiva «Vida» 2002/83/CE anteriormente referidas. 16 Levada a cabo pelo DL n.º 102/94, de 20 de Abril. 17 Vide preâmbulo do RGES e art. 2.º, n.º 1, alínea m) do RGES. 18 Vide, por exemplo, normas que regulam a livre prestação de serviços no território de outros Estados membros por empresas de seguros ou de resseguros com sede em Portugal nos arts. 59.º a 64.º e 67.º-A e normas que regulam a livre prestação de serviços em Portugal por empresas de seguros com sede no território de outros Estados membros nos arts. 65.º a 67.º, todos do RGES. 19 Vide preâmbulo do RGES.

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Atente-se às definições estabelecidas no art. 2.º do RGES, em particular, às que ora relevam para interpretação da norma contida no art. 20.º da LCS, tais como a de «Empresa de seguros ou seguradora», que é «qualquer empresa que tenha recebido uma autorização administrativa para o exercício da actividade seguradora e resseguradora» [alínea b) do art. 2.º do RGES], autorização esta que é um requisito legal para a celebração válida do contrato de seguro (art. 16.º); a de «Sucursal», que inclui «qualquer agência, sucursal, delegação ou outra forma local de representação de uma empresa de seguros ou de resseguros, sendo como tal considerada qualquer presença permanente de uma empresa em território da União Europeia, mesmo que essa presença, não tendo assumido a forma de uma sucursal ou agência, se exerça através de um simples escritório gerido por pessoal da própria empresa, ou de uma pessoa independente mas mandatada para agir permanentemente em nome da empresa como o faria uma agência» [alínea d) do art. 2.º do RGES]; a de «Estado membro de origem» que é aquele «onde se situa a sede social da empresa de seguros que cobre o risco ou que assume o compromisso ou a sede social da empresa de resseguros» [alínea f) do art. 2.º do RGES]; a de «Estado membro da sucursal» que é aquele «onde se situa a sucursal da empresa de seguros que cobre o risco ou que assume o compromisso ou a sucursal da empresa de resseguros» [alínea g) do art. 2.º do RGES]; a de «Estado membro da prestação de seguros» que é aquele onde se situa o risco ou o Estado membro do compromisso, sempre que o risco seja coberto ou o compromisso assumido por uma empresa de seguros ou uma sucursal situada noutro Estado membro» [alínea h) do art. 2.º do RGES]; e, ainda, a de «Estado membro do compromisso» que é aquele «onde o tomador reside habitualmente ou, caso se trate de uma pessoa colectiva, o Estado membro onde está situado o estabelecimento da pessoa colectiva a que o contrato ou operação respeitam» [alínea l) do art. 2.º do RGES]. Por seu turno, o RGES fixa, igualmente, as condições de acesso à actividade seguradora e resseguradora (Título II), que, conforme referido, pode realizar-se ao abrigo do estabelecimento (capítulo I) ou em regime de livre prestação de serviços (Capítulo II). No âmbito da prestação de serviços ao abrigo do estabelecimento, o art. 7.º do RGES estabelece as entidades que podem exercer a actividade seguradora ou resseguradora em Portugal, constituindo um núcleo fechado composto por «sociedades anónimas autorizadas» nos termos do RGES [alínea a)], «mútuas de seguros ou resseguros autorizadas» nos termos do RGES [alínea b)], «sucursais de empresas de seguros com sede no território de outros Estados membros, desde que devidamente cumpridos os requisitos exigidos ou sucursais de empresas de resseguros com sede no território de outros Estados membro» [alínea c)], «sucursais de empresas de seguros ou de resseguros com sede fora do território da União Europeia autorizadas» nos termos do RGES [alínea d)], «empresas de seguros ou empresas de resseguros públicas ou de capitais públicos, criadas nos termos da lei portuguesa, desde que tenham por objecto a realização de operações de seguro ou de resseguro em condições equivalentes às das empresas de direito privado» [alínea e)], bem como «por empresas de seguros ou resseguros que adoptem a forma de sociedade europeia, nos termos da legislação que lhes for aplicável» (n.º 2). Os artigos seguintes estabelecem todos os requisitos e condições, quer gerais, quer específicos para cada forma jurídica prevista, para o exercício da actividade seguradora e resseguradora, os quais não se desenvolverão nesta sede. Ora, do exposto, retira-se que o art. 20.º da LCS estabelece a obrigatoriedade de o segurador transmitir ao tomador de seguro qual é o Estado membro de origem ou o

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Estado membro da sucursal, bem como os endereços da sede social ou da sucursal do segurador, independentemente da forma de prestação de serviços que for adoptada, uma vez que é de acordo com a legislação do Estado onde aquelas se situam que se pode verificar se o segurador está devidamente autorizado para exercer a actividade seguradora, bem como são as autoridades competentes desse Estado que irão supervisionar a actividade do segurador, contraparte no contrato de seguro. Sempre que a sede ou a sucursal se situe em Portugal, a empresa de seguros deverá apresentar uma forma jurídica das supra referidas, bem como respeitar os requisitos e condições exigidos no RGES, estando sujeita à supervisão do Instituto de Seguros de Portugal, sem prejuízo dos poderes de supervisão relativos a contratos de seguro ligados a fundos de investimento atribuídos à Comissão de Mercado de Valores Mobiliários (art. 6.º).

6. Quando concorram, no processo de formação dos contratos de seguro, diversas características que tenham tratamento legal específico noutros diplomas legais, há que atender e conjugar todos os elementos informativos e respectivas regulamentações para além do estipulado no art. 18.º da LCS, como as regras sobre deveres de informação e comunicação previstas na LCCG20, no regime dos contratos celebrados à distância21 ou, ainda, nos diplomas de defesa do consumidor22, entre outros. Note-se que, apesar de a aplicação das regras referidas já resultar quer de uma correcta interpretação e aplicação do direito, nos termos gerais, uma vez que os diplomas referidos são transversais às diversas áreas do direito, quer de previsão específica no art. 3.º da LCS (nos termos do qual, «o disposto no presente regime não prejudica a aplicação ao contrato de seguro do disposto na legislação sobre cláusulas contratuais gerais, sobre defesa do consumidor e sobre contratos celebrados à distância, nos termos do disposto nos referidos diplomas»), o legislador pretendeu reforçar, expressamente, no art. 19.º da LCS, a aplicação das regras relativas aos deveres de informação nos contratos celebrados à distância e com consumidores, dada a especial relevância da matéria. Quanto a estas regras, embora o art. 19.º distinga, nos dois números que o compõem, o regime especial dos contratos celebrados à distância e o regime aplicável aos contratos de consumo, nomeadamente a LDC, e uma vez que o primeiro, conforme se referirá adiante, se aplica aos contratos celebrados à distância com consumidores (RCSFCD), conclui-se que ambos se referem a contratos de consumo, ainda que com particularidades diferentes, às quais importa atender. Por não ser possível proceder a uma análise mais profunda de cada um dos diplomas legais que poderão ter aplicação ao contrato de seguro, irei sublinhar alguns aspectos mais relevantes dos mesmos, bem como o impacto que poderão ter no último: A LCCG regula quer as «cláusulas contratuais gerais» que, nos termos da mesma, são aquelas «elaboradas sem prévia negociação individual, que proponentes ou destinatários se limitem, respectivamente, a subscrever ou aceitar», quer «cláusulas inseridas em contratos individualizados, mas cujo conteúdo previamente elaborado o destinatário não pode influenciar» (art. 1.º da LCCG). Conforme referido, em sede de contrato de seguro, este é o modo mais comum de formação do contrato, i.e., por adesão pelo tomador do seguro a cláusulas contratuais gerais. Nos termos da LCCG, além de regras de interpretação e de validade específicas, impõem-se especiais deveres de informação e de comunicação ao contratante que recorra a cláusulas contratuais gerais (arts. 5.º e 6.º da LCCG), sob pena de

20 Vide Lei das Cláusulas Contratuais Gerais (LCCG). 21 Vide Regime dos Contratos de Serviços Financeiros Celebrados à Distância (de ora em diante, «RCSFCD»). 22 Vide Lei de Defesa do Consumidor (de ora em diante, «LDC»).

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a sua violação conduzir à exclusão das mesmas [art. 8.º alíneas a) e b) da LCCG]. Além disso, regula-se o modo como as informações devem ser prestadas, pretendendo garantir que o alcance do teor das mesmas chega ao destinatário. Conforme se concluirá adiante, concorda-se com CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA23, quando o autor explicita que «o regime de inserção de cláusulas contratuais gerais em contratos singulares só é verdadeiramente especial enquanto reforça, quanto ao conteúdo e efeitos, o dever de informação pré-contratual que, em geral, resulta do art. 227.º do CC». Por sua vez, quando se tratar de contrato de seguro celebrado à distância com consumidor, há que atender ao RCSFCD, o qual veio consagrar um regime específico para os contratos à distância relativos a serviços financeiros, entre os quais se incluem os contratos de seguro (expressamente excluídos do Decreto-Lei n.º 143/2011, de 26 de Abril, que regulava a protecção dos consumidores na generalidade dos contratos celebrados à distância). O RCSFCD veio transpor a Directiva n.º 2002/65/CE, relativa à comercialização à distância de serviços financeiros prestados a consumidores, estabelecendo «o regime aplicável à informação pré-contratual e aos contratos relativos a serviços financeiros prestados a consumidores através de meios de comunicação à distância pelos prestadores autorizados a exercer a sua actividade em Portugal» (art. 1.º do RCSFCD). Nos termos das «definições» do próprio diploma (art. 2.º), «contrato à distância» é «qualquer contrato cuja formação e conclusão sejam efectuadas exclusivamente através de meios de comunicação à distância, que se integrem num sistema de venda ou prestação de serviços organizados, com esse objectivo, pelo prestador [alínea a)] e «meio de comunicação à distância» engloba qualquer meio de comunicação que possa ser utilizado sem a presença física e simultânea do prestador e do consumidor». Note-se que a categoria de «serviços financeiros» inclui os serviços de seguros e a de «prestador de serviços financeiros» engloba, entre outros, as empresas de seguros e resseguros, bem como os mediadores de seguros, pelo que sempre que seja celebrado um contrato de seguro à distância, ou seja, por meio de comunicação sem a presença física e simultânea das partes (a título de exemplo, por telefone, telecópia, «internet»), ao conjunto de deveres pré-contratuais de informação previstos nos artigos 18.º e ss. da LCS, acrescem os previstos no RCSFCD. Na verdade, um dos temas, especifica e detalhadamente, tratados no diploma referido, pela relevância que assume no tipo e no modo de formação dos contratos em questão, é exactamente o da informação pré-contratual (arts. 11.º e ss., Título II do RCSFCD). Nos artigos 11.º a 18.º do RCSFCD, impõem-se diversos deveres pré-contratuais de informação, quer relativa ao prestador de serviços (art. 13.º), quer relativa ao serviço financeiro (art. 14.º), quer relativa ao contrato (art. 15.º), quer sobre mecanismos de protecção (art. 16.º), salvaguardando, ainda, aqueles que estão previstos na legislação reguladora dos serviços financeiros ou no próprio RGES (art. 17.º), os quais têm de ser cumpridos pelo segurador perante o tomador do seguro. Além disso, regula-se a forma e o momento da prestação de informação. Com efeito, tendo em conta o modo de formação do contrato – em particular, o facto de ser celebrado à distância – e a contraparte em causa – o facto de se tratar de um consumidor – impõe-se, por força do diploma em questão, uma protecção especial do último, aplicável também no caso de contratos de seguro celebrados à distância com consumidores. A violação dos deveres pré-contratuais estipulados no diploma, ora em questão, constituem contra-ordenação punível com coima de € 2500,00 a € 1.500.000,00, se praticada por pessoa colectiva, e de € 1250,00 a € 750.000,00, se praticada por pessoa singular [art. 35.º, alíneas c) e d) do RCSFCD].

23 Ob. cit., p. 124.

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De igual modo e por razões semelhantes, sempre que estiver em causa a celebração de contrato de seguro celebrado à distância, em particular na internet, há que atender, além das normas referidas, ao disposto no RJCE24, o qual transpôs para a ordem jurídica interna a Directiva sobre Comércio Electrónico, bem como o art. 13.º da Directiva relativa à Privacidade e às Comunicações Electrónicas25. Nos termos do RJCE, no âmbito da contratação electrónica, ou seja, dos contratos celebrados por via electrónica ou informática, sejam ou não comerciais, os prestadores de serviços de informação têm deveres de informação pré-contratuais a cumprir (vide art. 28.º do RJCE) – alguns dos quais se sobrepõem aos previstos no art. 18.º da LCS –, sob pena de se incorrer em contra-ordenação sancionável com coima de 2500,00 € a 50.000,00 € (art. 37.º, n.º 1, alínea a) do RJCE). No caso dos contratos referidos serem celebrados com não consumidores, os deveres de informação pré-contratuais mencionados são derrogáveis por acordo das partes (art. 28.º, n.º 2, do RJCE). Por seu turno, sempre que se esteja perante um contrato de seguro que seja, igualmente, um contrato de consumo – ou seja, sempre que o tomador de seguro seja um consumidor –, impõe-se o respeito e a aplicação dos diplomas que contêm o regime de defesa do consumidor, desde logo, a LDC. Nos termos do art. 2.º, n.º 1, da LDC, «considera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios». Assim, um dos direitos consagrados expressamente na LDC é, exactamente, o direito «à informação para o consumo» [art. 3.º, alínea d)], o qual se apresenta com duas vertentes, por um lado, o direito à informação em geral (art. 7.º), correspondente a um dever positivo do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais, de criar condições para que os consumidores tenham a informação necessária para a celebração de qualquer contrato e, por outro, o direito à informação em particular (art. 8.º), dirigido aos particulares que celebram contratos com consumidores. O art. 8.º da LDC, que ora releva, estabelece, logo no n.º 1, um dever de informação pré-contratual, utilizando termos que se aproximam dos do art. 227.º do CC para os deveres pré-contratuais nos contratos em geral [«o fornecedor de bens ou prestador de serviços deve, tanto nas negociações como na celebração do contrato, informar (…)»], mas com maior detalhe sobre o modo de cumprimento e o âmbito do dever [«(…) de forma clara, objectiva e adequada o consumidor, nomeadamente, sobre características, composição e preço do bem ou serviço, bem como sobre o período de vigência do contrato, garantias, prazos de entrega e assistência após o negócio jurídico»]. Todavia, o âmbito do dever em questão não fica totalmente delimitado no n.º 1 do art. 8.º da LDC, tendo de se atender ao estabelecido no n. 2 do mesmo, nos termos do qual o mesmo se estende a todos os elos da cadeia de produção-distribuição-consumo, fazendo-o impender também sobre o produtor, o fabricante, o importador, o distribuidor, o embalador e o armazenista, de modo a garantir que a informação correcta, no modo e com o âmbito previstos no n.º 1, chega ao destinatário final. Por sua vez, o n.º 3 do preceito referido autonomiza um dever de comunicação do fornecedor ou prestador de serviços perante o consumidor – que deve ser cumprido de modo claro, completo e adequado – relativo aos riscos para a saúde e segurança dos consumidores que possam resultar da normal utilização de bens ou serviços. Note-se que o âmbito e modo de cumprimento do dever de informação pré-contratual imposto no n.º 1, aquele que tem plena aplicação à

24 Vide Regime Jurídico do Comércio Electrónico (RJCE). 25 Directiva n.º 2002/58/CE, de 12 de Julho de 2002, relativa ao tratamento de dados pessoais e a protecção da privacidade no sector das comunicações electrónicas.

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celebração de contrato de seguro com consumidor, são, praticamente, idênticos e sobrepõem-se ao que é exigido na LCS. Igualmente, as sanções para o incumprimento do dever de informação pré-contratual referido («quando se verifique falta de informação, informação insuficiente, ilegível ou ambígua que comprometa a utilização adequada do bem ou do serviço»), – quer o direito de retratação do contrato relativo à sua aquisição ou prestação, no prazo de sete dias úteis a contar da data de recepção do bem ou da data de celebração do contrato de prestação de serviços (art. 8.º , n.º 4, da LDC), quer o direito a uma indemnização pelos danos sofridos com o mesmo – são semelhantes às previstas no art. 23.º da LCS, inclusive sendo estas mais favoráveis ao consumidor (note-se que o prazo de resolução do contrato em caso de violação dos deveres de informação previstos na LCS é de 30 dias), pelo que deverá prevalecer a aplicação das últimas. Neste sentido, o próprio art. 8.º, n.º 6, da LDC, salvaguarda a aplicação do regime jurídico das cláusulas contratuais gerais ou outra legislação mais favorável para o consumidor. Além dos diplomas legais referidos, outros poderão ser chamados à colação sempre que o contrato de seguro apresente particularidades que se encontrem especialmente reguladas – como por exemplo o Regime Jurídico aplicável aos Call Centers26, o qual contém normas sobre «prestação de informação» (art. 8.º) –, mas sobre os quais não é possível desenvolver a sua análise nesta sede. Bem como sempre que a formação dos contratos decorra com intervenção de um mediador de seguros, acrescem aos deveres de informação exigidos no arts. 18.º e 20.º da LCS os deveres de informação específicos estabelecidos no regime jurídico de acesso e de exercício da actividade de mediação de seguros (art. 29.º da LCS). Além do dever geral de esclarecimento e informação a cargo do segurador perante o tomador de seguro e segurado, vide regras especiais de informação pré-contratual nos seguros de grupo (arts. 78.º e 87.º da LCS), nos seguros de riscos relativo à habitação (art. 135.º da LCS), nos seguros de pessoas com realização de exames médicos (art. 178.º da LCS), nos seguros de vida e outros seguros e operações incluídas no ramo «Vida» (art. 185.º da LCS).

B) Modo de prestar informações

7. Além da consagração de um dever geral de esclarecimento e de informação sobre um núcleo mínimo de elementos essenciais do contrato, a LCS veio, nos termos do art. 21.º (sob a epígrafe «modo de prestar informações») descrever e concretizar o modo de cumprimento dos deveres de informação a cargo do segurador perante o tomador de seguro. Se o art. 21.º da LCS não existisse, poder-se-ia questionar de que modo as informações pré-contratuais em análise deveriam ser prestadas, obrigando o intérprete a recorrer à doutrina e jurisprudência sobre o assunto para concretizar a medida e a qualidade da informação exigíveis, bem como a recorrer a critérios de razoabilidade e normalidade, os quais deveriam atender, essencialmente, ao perfil do tomador de seguro em cada caso concreto. Acresce que sempre seriam aplicáveis as normas estabelecidas na LCCG. No

26 Decreto-lei n.º 134/2009, de 2 de Junho, com as alterações que foram sendo introduzidas até à última aprovada pelo Decreto-lei n.º 72-A/2010, de 18 de Junho.

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entanto, o legislador introduziu expressamente a regra do art. 21.º da LCS, o que se julga ser de aplaudir, já que se diminui a margem para dúvidas de interpretação e para o recurso a técnicas menos claras ou mesmo de «dolus bonus», as quais não parecem conciliáveis com o exigido nessa sede. No seguimento do que já se encontrava estabelecido para os seguros e operações do ramo «Vida» no art. 179.º, n.º 1, do RGES, que correspondera à transposição do 1.º§ do proémio do Anexo III da Directiva «Vida» 2002/83/CE, o n.º 1 do art. 21.º da LCS consagra, como norma geral e extensível a qualquer contrato de seguro no âmbito de qualquer ramo de seguro, a obrigação de o segurador prestar a informação, a que legalmente se encontra obrigado a prestar (não parecendo lógico reduzir o âmbito de aplicação da presente norma somente às «informações referidas nos artigos anteriores», mas sim a todas aquelas a que o segurador está obrigado por força da lei), i) «de forma clara» (ou seja, sem sentidos dúbios, sem termos muito técnicos e demasiado complexos para um tomador de seguro médio normal e razoável compreender, sem recurso a técnicas que acabam por esvaziar ou alterar o sentido das cláusulas contratuais, etc), ii) «por escrito» (mesmo que as transmita e até as esclareça oralmente), iii) «em língua portuguesa» (com a ressalva do n.º 4 e do n.º 2 do art. 36.º a que se fará referência infra) e, finalmente, iv) «antes de o tomador do seguro se vincular» (esclarecendo-se, neste número, que se trata de deveres de informação pré-contratuais, ou seja, de deveres a serem cumpridos em sede de negociação e formação do contrato, e não em sede da sua execução). Às exigências referidas, devem acrescer, conforme supra adiantado, as impostas pela LCCG, uma vez que a generalidade dos seguros se forma através da utilização desse tipo de clausulado. Nos termos dos arts. 5.º, 6.º e 8.º da LCCG, a comunicação das cláusulas contratuais gerais pelo predisponente deve ser i) integral («devem ser comunicadas na íntegra») ii) oportuna («com a antecedência necessária») e iii) «de modo adequado para que possibilite o «conhecimento completo e efectivo» do aderente que «use de comum diligência». Encontra-se aqui previsto o cidadão médio, de zelo, diligência e ponderação médias. Não se considera adequada a comunicação que se revele surpreendente se se atender ao contexto, à epígrafe, à apresentação gráfica (se, por exemplo, for informação sobre um elemento essencial do contrato e surja em letras mínimas que quase não se vêem num canto de uma das páginas do contrato) e se tiver resultado de inserção posterior à assinatura do aderente [cfr, em particular, alíneas c) e d) do art. 8.º da LCCG]. O ónus da comunicação adequada e efectiva cabe ao contratante que submeta a outrem as cláusulas contratuais gerais, pelo que a forma mais segura de acautelar que a comunicação é efectuada e comprovada nos termos exigidos por lei é a de recorrer à forma escrita, com clareza e visibilidade, nos moldes que mais se adeqúem ao tipo de contrato em causa, o que, no caso do contrato de seguro, se encontra, acautelado noutras disposições legais relativas à forma e à apólice de seguro (arts. 32.º e ss. da LCS). Além do ónus de comunicação adequada e efectiva das cláusulas contratuais gerais que cabe ao predisponente (art. 5.º, n.º 3, da LCCG), a lei impõe um dever de informação prévia do sentido e alcance das cláusulas contratuais gerais, «de acordo com as circunstâncias», o qual pode surgir pela própria iniciativa do predisponente, por julgar que a aclaração se justifica (n.º 1 do art. 6.º da LCCG), ou por um pedido de esclarecimentos do aderente (n.º 2 do art. 6.º da LCCG).

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Na verdade, acompanhando o entendimento de CARLOS FERREIRA DE

ALMEIDA27, os requisitos especificados nos arts. 5.º e 8.º da LCCG não são mais que a concretização dos deveres pré-contratuais previstos no art. 227.º do CC, já que nenhum contrato se celebra se não houver uma comunicação integral, oportuna e adequada à compreensão da parte contrária, uma vez que, sem um entendimento adequado das declarações contratuais, não haverá sequer consenso (art. 232.º do CC). O que a LCCG traz de inovador e especial é o reforço dos deveres de informação pré-contratuais relativamente ao estabelecido no art. 227.º do CC, quer quanto ao seu conteúdo, visto que alarga o âmbito dos deveres de informação pré-contratuais exigidos em geral, ao impor a necessidade de esclarecimento do sentido das cláusulas e ao fazê-lo independentemente de qualquer juízo concreto segundo critérios da boa fé, quer quanto ao efeito, uma vez que comina a violação do dever referido com a ineficácia das cláusulas. De acordo com o disposto no art. 21.º, n.º 2, da LCS, «as autoridades de supervisão competentes podem fixar, por regulamento, regras quanto ao suporte das informações a prestar ao tomador do seguro». A norma transcrita constitui um alargamento do âmbito de aplicação da regra vigente anteriormente para os contratos de seguro do «ramo vida», em particular do art. 2.º, n.º 7, do RTAS, que estabelecia o seguinte: «Se as características específicas dos seguros ou operações o justificarem, pode ser exigido que a informação seja disponibilizada através de um prospecto informativo cujo conteúdo e suporte são definidos por norma do Instituto de Seguros de Portugal ou, no caso de contratos de seguro ligados a fundos de investimento, por regulamento da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, ouvido o Instituto de Seguros de Portugal». O alargamento do âmbito de aplicação da regra transcrita verificou-se não apenas no sentido de abranger a generalidade dos contratos de seguro, independentemente do ramo de seguro em questão, bem como no de permitir qualquer tipo de suporte – e não apenas o do prospecto informativo – dando uma maior margem de liberdade às autoridades de supervisão competentes. Para os efeitos referidos, as autoridades de supervisão competentes em Portugal não deixam de ser, para a generalidade dos contratos, o Instituto de Seguros de Portugal e, para os contratos de seguros ligados a fundos de investimento, a Comissão de Valores Mobiliários [art. 6.º e 156.º do RGES, art. 4.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2 do Estatuto do Instituto de Seguros de Portugal28 e art. 353.º, n.º 1, alínea c) e n.º 3 do CVM]. Saliente-se que a norma geral constante do art. 21.º, n.º 2, da LCS encontra-se estabelecida, de forma especial e em termos idênticos ao estatuído anteriormente no n.º 7 do art. 2.º do RTAS supra transcrito, no art. 185.º, n.º4, para o seguro de vida. Importa, quanto ao suporte e ao próprio teor das informações prestadas, sublinhar uma distinção relevante nesta matéria. Embora os artigos analisados nesta sede e o art. 185.º visem e regulem os deveres de informação pré-contratuais, saliente-se que, se as empresas de seguros recorrerem a determinados tipos de suporte, como por exemplo, a um prospecto informativo, para disponibilização da informação, que tem, obrigatoriamente, de ser transmitida aos tomadores de seguro – independentemente de tais tipos de suporte serem impostos e regulamentados pelas autoridades de supervisão competentes – e, mais tarde, após celebração do contrato, se verificar que o bem vendido não apresenta as qualidades indicadas no prospecto ou no suporte utilizado para disponibilizar a informação pré-contratual, está-se no âmbito da responsabilidade contratual (e não pré-contratual). Não se deve confundir informação pré-contratual, que deve ser transmitida à parte

27 CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Contratos I, 1.ª ed., pp. 120-124, 3.ª ed., pp. 160-164. 28 DL n.º 289/2001, de 13 de Novembro, alterado pelo DL. n.º 195/2002, de 25 de Setembro.

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contrária previamente à celebração do contrato, com o conteúdo das declarações contratuais, em relação ao qual não há um dever de informação pré-contratual, mas sim, quanto muito, um dever de comunicação de determinadas cláusulas, sob pena de se considerarem excluídas no contrato (como sucede, por exemplo, no caso de serem cláusulas contratuais gerais29). Igualmente não se deve confundir violação de deveres de informação pré-contratuais (omissões ou informações falsas, entre outros) que causem danos ao tomador de seguro, indemnizáveis em sede de responsabilidade pré-contratual, com violação das declarações contratuais por se entregar um bem que não se apresenta conforme com o estabelecido no contrato, o que, embora também cause danos ao tomador de seguro ou ao segurado, conduz à obrigação de indemnizar ao abrigo da responsabilidade contratual (e não pré-contratual)30. Mais uma vez, também em matéria de modo de prestar as informações em contratos de seguro à distância, há que atender, para além das exigências estatuídas no art. 21.º, n.º 1, da LCS, às regras relativas ao modo de prestação das informações pré-contratuais impostas para os contratos financeiros celebrados à distância. Conforme referido supra, o RCSFCD consagra regras específicas quanto ao modo de prestação de informações pré-contratuais, a que o prestador de serviços financeiros, nomeadamente de serviços de seguros, se encontra obrigado perante o consumidor, nos arts. 9.º («idioma»), 11.º («forma e momento da prestação da informação») e 12.º («clareza da informação»). Nos termos do art. 9.º referido, sempre que o consumidor seja português, a informação pré-contratual, os termos do contrato à distância e as demais comunicações relativas ao mesmo têm de ser efectuadas na língua portuguesa, excepto quando o consumidor aceite a utilização de outro idioma, sendo que nas demais situações (ou seja, em que o consumidor não seja português), o prestador deve indicar ao consumidor o idioma ou idiomas em que são transmitidos os elementos referidos (art. 9.º do RCSFCD). De acordo com os arts. 11.º e 12.º do RCSFCD, a informação pré-contratual e os termos do contrato devem ser comunicados i) «em papel ou noutro suporte duradouro disponível e acessível ao consumidor», ii) oportuna e previamente à celebração do contrato («em tempo útil e antes de este ficar vinculado por uma proposta ou por um contrato à distância», somente com a excepção prevista no n.º 3 do art. 11.º do diploma em questão), iii) identificando, «de modo inequívoco, os objectivos comerciais do prestador», iv) «sendo prestada de modo claro e perceptível, de forma adaptada ao meio de comunicação à distância utilizado» e v) «com observância dos princípios da boa fé». O n.º 2 do art. 11.º do RCSFCD esclarece o que se considera ser um «suporte duradouro», sendo «aquele que permita armazenar a informação dirigida pessoalmente ao consumidor, possibilitando no futuro, durante o período de tempo adequado aos fins a que a informação se destina, um acesso fácil à mesma e a sua reprodução inalterada». Ainda que alguns dos requisitos referidos sejam apenas uma adaptação das regras gerais ao caso particular dos contratos celebrados à distância, que já poderia resultar das normas gerais de interpretação da lei e dos contratos, o regime exposto quanto ao modo de cumprimento dos deveres apresenta elementos inovadores no que se refere ao exigido no art. 227.º do CC para a generalidade dos contratos, quer quanto à forma (i) e ao conteúdo (iii), quer quanto às sanções previstas no caso de incumprimento desses deveres. Com efeito, nos termos do art. 35.º, alíneas c) e d), do RCSFCD, «constituem contra-ordenação, punível com coima de € 2500 a € 1 500 000, se praticada por pessoa colectiva, e de € 1250 a € 750 000, se praticada por pessoa singular, (…) a

29 Cfr. arts. 5.º, 6.º e 8.º da LCCG. 30 CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Contratos I, 3.ª ed., pp. 186 e 187.

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prestação de informação que não preencha os requisitos previstos nos artigos 11.º e 12.º» e «o incumprimento dos deveres específicos de informação previstos nos artigos 9.º (…)», prevendo-se, ainda, no art. 36.º do mesmo diploma um conjunto de sanções acessórias que devem ser aplicadas em função da gravidade da infracção e da culpa do agente. Por remissão do art. 21.º, n.º 4, da LCS para os requisitos do art. 36.º, n.º 2, ou seja, se tiver havido acordo entre as partes quanto a essa possibilidade e o tomador de seguro o requeira, admite-se que, em derrogação do estabelecido no n.º 1, as informações pré-contratuais sejam prestadas em idioma distinto do português. Face ao anteriormente estipulado no correspondente art. 193.º-A do RGES, o presente preceito dispensa um requisito para que as informações pré-contratuais possam ser prestadas noutro idioma que não o português, o qual consistia em as partes poderem escolher a lei aplicável ao contrato, o que se coaduna com a vasta amplitude consagrada ao princípio da liberdade contratual nessa matéria conferida às partes (arts. 6.º e 7.º da LCS). Assim, o requisito passou a ser, directamente, o do acordo das partes, complementado com o requerimento pelo tomador de seguro31. Finalmente, o n.º 5 do art. 21.º da LCS constitui uma extensão da 1.ª parte do regime previsto no art. 179.º, n.º 2, do RGES e do art. 3.º do RTAS a todos os contratos de seguros, independentemente do ramo de seguro a que respeitem. Note-se que o art. 179.º, n.º 2, do RGES determinava que «[a] proposta deve conter uma menção comprovativa de que o tomador tomou conhecimento das informações referidas no número anterior, presumindo-se, na sua falta, que o mesmo não tomou conhecimento delas, assistindo-lhe, neste caso, o direito de resolver o contrato de seguro no prazo referido no artigo 182.º e de ser reembolsado da totalidade das importâncias pagas». De modo semelhante, o art.º 3.º do RTAS estabelecia que «[a]s propostas relativas a contratos de acidentes pessoais ou doença a longo prazo, devem conter uma menção comprovativa de que o tomador do seguro tomou conhecimento das informações referidas no número anterior, presumindo-se, na sua falta, que não tomou conhecimento delas, caso em que lhe assistirá o direito de renunciar aos efeitos do contrato de seguro no prazo de 30 dias a contar da recepção da apólice e de ser reembolsado da totalidade das importâncias pagas». O actual preceito, embora imponha o dever de a proposta de seguro conter uma menção comprovativa de que as informações que o segurador tem de prestar foram dadas a conhecer ao tomador do seguro antes de este se vincular, ou seja, de que os deveres de informação pré-contratuais foram cumpridos, deixa de estabelecer uma presunção de incumprimento dos deveres referidos quando falte tal menção. No entanto, caso seja necessário provar que foram cumpridos os deveres de informação pré-contratuais, a menção referida na proposta de seguro serve como elemento relevante de prova, que cabe à seguradora demonstrar e a sua falta valerá como um incumprimento de um dever da própria seguradora, potenciador de responsabilidade civil pré-contratual e do direito de resolução do contrato nos termos do art. 23.º da LCS.

C) Dever especial de esclarecimento

8. Conforme supra referido, no intuito de criar um regime geral de deveres de informação a cumprir entre as partes, com a densificação e concretização dos mesmos no

31 Vide MARIA EDUARDA RIBEIRO IN PEDRO ROMANO MARTINEZ, LEONOR CUNHA TORRES, ARNALDO

COSTA OLIVEIRA, MARIA EDUARDA RIBEIRO, JOSÉ PEREIRA MORGADO E JOSÉ ALVES DE BRITO, Lei do Contrato de Seguro Anotada, Coimbra 2009. Cit. Lei do Contrato de Seguro Anotada p. 96.

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sentido de proteger as partes com menor grau de informação e evitar desequilíbrios contratuais, paralelamente à consagração de um dever geral de informação e de esclarecimento (art. 18.º da LCS), bem como de outros deveres de informação específicos ou especiais (cfr. arts. 20.º e 185.º da LCS), a lei estabeleceu «um dever especial de esclarecimento a cargo do segurador» no art. 22.º da LCS, este sim, com verdadeiro «carácter inovador, mas em que o respectivo conteúdo surge balizado pelo objecto principal do contrato de seguro, o do âmbito da cobertura». O dever especial de esclarecimento referido não tem correspondência no regime anteriormente vigente. Somente no que respeita aos contratos celebrados com intervenção de mediador de seguros, o RMS já previa deveres de aconselhamento e esclarecimento a serem cumpridos pelo mediador de seguros perante o tomador, em traços semelhantes ao ora consagrado [arts. 31.º, alíneas b) e e), 32.º, n.º 2, alíneas a) a c), 4 e 5 do RMS, o último correspondendo à transposição do art. 12.º, n.º 1, alínea e), 2 §, 2 e 3 da Directiva 2002/92/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de Dezembro de 2002]. No que toca ao direito comparado, o presente regime somente encontra paralelo com o previsto pela nova lei do contrato de seguro alemã (é, aliás, inspirado no «Beratungspflicht» da lei germânica, consistindo num afloramento do princípio geral «know your costumer»32) e pela lei francesa no que respeita aos contratos de seguro de grupo33.

9. Passando à caracterização do presente dever de esclarecimento, o mesmo i) tem por objecto as modalidades de seguro que, dentre as oferecidas, são convenientes para a concreta cobertura pretendida, ii) deve ser cumprido antes da celebração do contrato, visando uma decisão de contratar do tomador de seguro livre e esclarecida e iii) é de medida variável consoante factores concretos, ou seja, depende da complexidade da cobertura, do montante do prémio a pagar ou do capital seguro (relevância económica do contrato) e do meio de contratação utilizado. Quanto ao objecto do dever de esclarecimento, o mesmo é delimitado quer pelo n.º 1, quer pela parte final do n.º 2 do art. 22.º da LCS, depreendendo-se que incide sobre o objecto do contrato de seguro, que é o âmbito da cobertura que se pretende contratar, a qual é definida, na maioria dos casos, quer pela positiva – identificação do risco que se pretende cobrir –, quer pela negativa, mediante a determinação de exclusões, períodos de carência, franquias, regime de cessação do contrato por vontade do segurador, e ainda, nos casos de sucessão ou modificação de contratos, dos riscos de ruptura de garantia. Na primeira parte do n.º 1 do art. 22.º da LCS, estabelece-se um princípio da modulação do dever de esclarecimento em função de certos factores aí previstos34. A lei não fixa uma medida certa de esclarecimentos para que se considere o dever cumprido, mas sim deixa-a determinável, em cada caso concreto, consoante a complexidade da cobertura, a relevância económica do contrato celebrado e, ainda, o meio de contratação (tem de o permitir, por razões práticas). Do n.º 1 e também do n.º 4 do mesmo preceito, retira-se que as circunstâncias concretas em que o contrato de seguro é celebrado, bem como o perfil do tomador de seguro, devem ser tidos em conta pelo segurador e pelo intérprete na

32 ANTUNES, José A. Engrácia – Direito dos contratos comerciais, Coimbra 2009. Cit. Contratos comerciais. p. 694, nota de rodapé 1400. 33 Cfr. anotação de ARNALDO COSTA OLIVEIRA e de MARIA EDUARDA RIBEIRO, Lei do Contrato de Seguro Anotada, p. 98. 34 Idem.

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concretização da medida de esclarecimento que lhe é exigível. Dependendo da modalidade de seguro, devem ser tidos em conta elementos particulares como a idade, a competência, a experiência, a capacidade de entendimento e discernimento do tomador de seguro. O que é exigível esclarecer ao cliente A, pode não ser, de todo, exigível ao cliente B que é especialista da área em que contrata o seguro. Sublinhe-se que o dever de esclarecimento consagrado no artigo 22.º da LCS é especial, não só em relação ao art. 18.º da LCS, que concretiza os elementos que devem ser transmitidos à contraparte em qualquer contrato de seguro, já que manda atender às características concretas de cada tomador de seguro no que se refere tanto ao seu perfil, como às suas necessidades, como também em relação ao próprio art. 227.º do CC, por ter um conteúdo mais amplo do que este último, indo mais longe no que se exige ao segurador do que é exigido às partes, nessa sede, para os contratos em geral. O que se compreende se se tiver presente o propósito de protecção da parte contratualmente mais fraca, subjacente à imposição e densificação dos deveres de informação pré-contratuais a cargo do segurador e predisponente de cláusulas contratuais gerais perante o tomador de seguro. Da interpretação da presente norma resulta não haver espaço para qualquer «dolus bonus» do segurador e, caso as coberturas que estejam a ser acordadas com o tomador de seguro não sirvam, parcial ou totalmente, o interesse e pretensão do último ao contratar, parece que o segurador tem o dever de esclarecer o último nesse sentido ou, como se refere no n.º 2, de «chamar a atenção» do tomador de seguro para esse facto. A título de exemplo, pense-se no caso de subscrição de contratos em unidades de conta (por exemplo, um Plano de Poupança e Reforma) por cliente idoso que acabou de cessar a sua actividade profissional ou no caso de tomador de seguro que, por ocasião de renovação do seu seguro de saúde, pretende celebrar outro seguro para determinado período em que sabe que irá precisar do mesmo para determinada ocasião (por exemplo para o nascimento de um filho), mas, desse modo, accionando um período de carência que, se optasse pela renovação, não existia e que pode vir a ser relevante. Nos casos referidos, os tomadores de seguro devem ser alertados para a efectiva ou possível inutilidade do seguro para as suas pretensões concretas. Como formas de cumprimento do dever especial de esclarecimento em questão, a lei impõe quer a obrigação de o segurador responder a todos os pedidos de esclarecimento efectuados pelo tomador de seguro (função de reacção a pedidos do cliente), quer a obrigação de «chamar a atenção» do último para o âmbito da cobertura proposta, incluindo a delimitação do mesmo, quer pela positiva, quer pela negativa, conforme acima referido (função activa no esclarecimento aos clientes). Quanto à questão de saber até que limites ou que componentes de um contrato de seguro devem ser esclarecidos ao tomador de seguro – por exemplo, tem sido discutido na jurisprudência francesa se o quadro fiscal onde o seguro, ou o produto da venda, se insere, deve ser esclarecido ao cliente35 –, pode seguir-se o critério da conveniência para a concreta cobertura pretendida. Se determinado elemento ou determinada perspectiva do negócio for relevante para a decisão de contratar uma determinada cobertura, aqueles devem ser pontos a ser esclarecidos perante o tomador de seguro. Claro que, no fim da linha, é sempre o tomador de seguro quem decide. Ao segurador somente cabe fornecer todos os elementos essenciais e relevantes em cada caso concreto. Daí que, pegando no

35 Tem sido entendido que sim. Vide MAYAUX, Luc – L’ ignorance du risque, RGDA, 1999. Cit. L’ignorance du risque. p. 229, nota 431.

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exemplo do regime fiscal, o mesmo é relevante na contratação de determinados seguros, como, por exemplo, os Planos de Poupança e Reforma (PPR). No caso de o contrato de seguro cobrir diferentes tipos de riscos, o art. 22.º, n.º 3, da LCS vem acrescentar um regime específico – prevendo um dever de esclarecimento pormenorizado –, devendo ficar clara qual a relação entre as diferentes coberturas antes da celebração do contrato. Sucede, diversas vezes, que o contrato de seguro tenha coberturas de diversos riscos, a títulos até diferentes e com regimes contratuais diferentes – por exemplo, incluindo coberturas obrigatórias e coberturas facultativas, coberturas gerais e coberturas especiais, as quais podem ser accionadas em circunstâncias diferentes e até segundo procedimentos distintos. Importa que, antes do momento da celebração do contrato, o segurador esclareça pormenorizadamente qual a relação existente entre as diversas coberturas. Dada a especial protecção que se pretendeu conferir ao tomador de seguro ou ao segurado com a previsão do dever especial de esclarecimento, tal como se acabou de descrever, a aplicação do mesmo somente se justifica nas situações em que se verifique um real desequilíbrio de posições contratuais das partes. Nesse sentido, o dever em questão não é aplicável quer aos contratos relativos a grandes riscos – limitando-os aos contratos relativos a riscos de massa, nos quais a necessidade de protecção da parte contratual mais fraca é maior36 –, quer aos contratos celebrados com intervenção de mediadores de seguros, visto que os últimos se encontram sujeitos a um regime específico de deveres de informação pré-contratuais, o qual se mantém aplicável, considerando-se que o mesmo é suficiente para a protecção do tomador de seguro na fase pré-contratual37.

D) Incumprimento

10. Para que um dever seja perfeito, a sua previsão tem de vir acompanhada de uma sanção para o caso de incumprimento do mesmo, sob pena de se tornar num dever imperfeito, insusceptível de ser coercivamente executado. No art. 23.º da LCS, a lei prevê as sanções aplicáveis em caso de incumprimento dos deveres de informação e esclarecimento pré-contratuais previstos nos preceitos anteriores, sendo elas, i) responsabilidade civil do segurador, nos termos gerais (n.º 1), e ii) em alguns casos, o direito do tomador do seguro à resolução do contrato, a exercer no prazo de 30 dias a contar da recepção da apólice, tendo a cessação efeito retroactivo e o tomador do seguro direito à devolução da totalidade do prémio pago (ns.º 2 e 3). O tomador do seguro somente não pode exercer o direito de resolução do contrato «quando a falta do segurador não tenha razoavelmente afectado a decisão de contratar da contraparte ou haja sido accionada a cobertura por terceiro» (n.º 2 do art. 23.º da LCS).

11. A obrigação de o segurador responder civilmente pelos danos que causar com a violação dos deveres de informação pré-contratuais, prevista no art. 23.º, n.º 1 da LCS, não se encontrava expressamente estabelecida no regime anterior, embora já decorresse da aplicação da regra geral do art. 227.º do CC, o qual prevê a responsabilidade pré-contratual

36 Para uma noção da distinção de seguros de massa e de seguros de grandes riscos, vide supra Liberdade contratual e seus limites. 37 Cfr. 29.º da LCS e arts. 29.º e ss., maxime 31.º, 32.º e 33.º do RMS.

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ou a também designada «culpa in contrahendo». Assim, de acordo com o art. 23.º, n.º 1, da LCS, o incumprimento ou violação, quer por acção, quer por omissão, dos deveres de informação (arts. 18.º e 185.º da LCS, entre outros) e de esclarecimento, quer geral (art. 18.º da LCS), quer especial (art. 22.º da LCS), com os contornos delineados nas disposições legais correspondentes, a que os seguradores estão obrigados perante os tomadores de seguros nas fases negociatória e decisória de formação dos contratos, e independentemente de as fases referidas conduzirem à conclusão de um contrato inválido ou ineficaz, de um contrato válido, mas com desequilíbrio das prestações contratuais e/ou à não celebração de qualquer contrato, origina o dever de o segurador responder civilmente nos termos gerais, termos estes que somente podem ser os previstos em sede de responsabilidade pré-contratual (arts. 227.º e 562.º do CC). O instituto da responsabilidade civil pré-contratual prevê «a obrigação de indemnizar os danos causados por quem culposamente violar as regras da boa fé no decurso das negociações destinadas à formação de um contrato», o qual remonta à doutrina e jurisprudência alemãs38, que, por seu turno, haviam recebido influências do Código Civil italiano39, encontrando-se hoje consagrado na generalidade dos sistemas jurídicos romano-germânicos40. Tem sido discutida na doutrina a natureza da responsabilidade civil pré-contratual, havendo quem entenda que tem natureza obrigacional (ou mesmo contratual), quem considere que tem natureza extra-obrigacional e quem a defina como apresentando uma natureza híbrida, o que, obviamente, terá implicações práticas distintas no estabelecimento do seu regime (existência ou não de presunção de culpa, de solidariedade passiva, tribunal competente, entre outros aspectos)41. Independentemente da discussão mais teórica de saber em que categoria a responsabilidade pré-contratual se insere, entende-se que a mesma se aproxima mais, na sua «ratio» e nos seus efeitos, da responsabilidade obrigacional, pois, atendendo à relação pré-contratual entre as potenciais futuras partes de um contrato e aos deveres a que a lei as vincula, considera-se que os últimos constituem obrigações que, embora não decorram de um contrato, decorrem da lei e aos quais as partes se vinculam quando decidem entrar em negociações. Deste modo, naquilo que a lei não regular especificamente a respeito da responsabilidade pré-contratual, tende-se para entender que a solução se deve ir buscar ao regime da responsabilidade obrigacional, conforme, aliás, se referirá infra quanto à culpa. A remissão para os termos gerais implica a aplicação dos pressupostos gerais da responsabilidade civil pré-contratual, que são os mesmos da responsabilidade civil subjectiva: facto ilícito, culpa, dano e nexo de causalidade entre o facto ilícito e dano.

38 JHERING, R. von – Culpa in contrahendo oder Schadenersatz bei nichtigen oder nicht zur Perfection gelangten Verträgen, Jahrbücher für die Dogmatik der heutigen römischen und deutschen Privatrechts, 1861. Cit. Culpa in contrahendo. p. 1 e ss.. 39 SERRA, Adriano Vaz – «Culpa do devedor ou do agente» (1957) 68 BMJ, 13-149. Cit. Culpa do devedor ou do agente. p. 13 e ss. (pp. 118 e ss. e 145 e ss.); CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Contratos I, 3.ª ed., p. 183. 40 CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Contratos I, 3.ª ed., p. 183.; para uma visão do instituto no direito comparado (incluindo os direitos de common law, ainda que nestes a responsabilidade civil pré-contratual apareça transfigurada em responsabilidade contratual), vide VICENTE, Dário Moura – Da responsabilidade pré-contratual em direito internacional privado, Coimbra, 2001. Cit. Da responsabilidade pré-contratual em direito internacional privado. p. 239 e ss.. 41 I. GALVÃO TELLES, Direito das Obrigações, p. 74; CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Contratos I, 3.ª ed., p. 188.

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Quanto ao pressuposto da ilicitude, o mesmo tem vindo a ser definido e caracterizado ao longo da presente análise42, na qual se definiu o âmbito, limites e modo de cumprimento dos deveres de informação pré-contratuais a que o segurador se encontra obrigado perante o tomador de seguro. Para se verificar a violação dos deveres de informação pré-contratuais definidos, tem sido desenvolvido pela doutrina e jurisprudência portuguesas o critério comum da tutela da confiança para analisar se, em cada caso concreto, houve violação dos deveres de boa fé que mereça a protecção do direito43. A doutrina referida tem entendido que a tutela da confiança deve existir desde que i) haja uma situação de confiança imputável a alguém, ii) que essa situação seja justificada por dados objectivos e credíveis, iii) que tenha havido um investimento, com ou sem relevância económica, em consequência da situação de confiança justificada e iv) a pessoa que confiou e investiu esteja de boa fé. Seguindo os requisitos gerais referidos, têm sido criadas e desenvolvidas figuras concretas, onde os mesmos se verificam de modo a detectar-se a violação das regras da boa fé em cada caso concreto, como por exemplo a figura do «venire contra factum proprium» ou as inalegabilidades formais, entre outras44. No que respeita à culpa, como, aliás, o próprio nome do instituto indica («culpa in contrahendo»), a mesma é necessária, podendo, no que respeita ao cumprimento de deveres de informação pré-contratuais, surgir na sua forma dolosa ou negligente. Colocando a questão de saber se, em sede de responsabilidade pré-contratual, a culpa deverá ser presumida, aplicando-se o estabelecido no art. 799.º, n.º 1, do CC previsto para a responsabilidade obrigacional ou se, pelo contrário, deverá caber ao lesado alegar e provar a mesma, como sucede nos casos de responsabilidade civil extra-obrigacional de acordo com o art. 487.º, 1.ª parte, do CC, a doutrina dominante entende que aquela deve ser presumida, por a analogia das situações de violação culposa de uma obrigação contratual e de uma obrigação pré-contratual o justificar. Finalmente, caso ocorra um facto ilícito e culposo na fase de formação de um contrato – no caso concreto, na fase de formação de um contrato se seguro – que cause danos a outrem – no caso concreto, ao tomador de seguro – o responsável deverá indemnizar o último pelos mesmos. No que se refere ao âmbito dos danos indemnizáveis, a doutrina e jurisprudência também não são unânimes. A este propósito, segundo a posição doutrinária e jurisprudencial talvez ainda dominantes em Portugal, apenas são indemnizáveis, no âmbito da responsabilidade pré-contratual, os danos correspondentes ao interesse contratual negativo, também chamado dano da confiança. Com efeito, entendem os autores referidos que, não estando em causa o incumprimento de um contrato, a indemnização deve, portanto, cobrir apenas a diferença entre a situação patrimonial que existiria se o contrato, válido ou inválido, não tivesse sido celebrado ou se as negociações não tivessem ocorrido45 46. Na opinião de alguma doutrina, pode, excepcionalmente,

42 Cfr. também o disposto nos arts. 18.º a 22.º e, ainda, art. 185.º da LCS. 43 BAPTISTA MACHADO, Tutela da Confiança, pp. 229 e ss.; CORDEIRO, António Menezes – Da boa fé no direito civil, Coimbra 1983. Cit. Boa Fé e Tratado de direito civil português, I-I, 1.ª ed., Coimbra 1999, e 3.ª ed., Coimbra 2005 (cito a ed. mais recente salvo indicação em contrário). Cit. Tratado I-I; obra de referência nesta sede é a de CANARIS, C.W. – Die Vertrauenshaftung im deutschen Privatrecht, München, 1971. Cit. Die Vertrauenshaftung im deutschen Privatrecht. p. 491 e ss; CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Contratos I, 3.ª ed., p. 200. 44 MENEZES CORDEIRO, Boa fé, pp. 758 e 759 e Tratado I-I, p. 411. 45 Cfr., neste sentido, VAZ SERRA, Culpa do devedor ou do agente, artigo 10.º, n.º 1 do anteprojecto; PINTO, Carlos Mota, A responsabilidade pré-negocial pela não conclusão dos contratos, pp. 216 e 244; Pessoa Jorge, Ensaio, p. 380, e Obrigações, p. 181; I. Galvão Telles, Direito das Obrigações, pp. 77 e ss., e Culpa na formação do contrato, p. 346; VARELA, João de Matos Antunes, Das obrigações em geral, I, 10.ª ed., Coimbra 2000. Cit. Obrigações I. pp. 278 e ss.; COSTA, Mário Júlio de Almeida – Direito das Obrigações, 8.ª ed. revista e aumentada, Coimbra 2000. Cit.

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permitir-se a indemnização pelo interesse contratual positivo (ou dano de cumprimento), quando a conduta do lesante consistir na violação do dever de conclusão do negócio47 48. Por fim, entende ainda uma doutrina minoritária que todos os danos causados pelo facto ilícito são indemnizáveis, incluindo os danos correspondentes ao interesse contratual positivo, visto que do artigo 227.º do Código Civil não resulta qualquer restrição às regras gerais da responsabilidade civil49. Sem se entrar em grandes desenvolvimentos das várias posições existentes, julga-se que o entendimento mais correcto é o de Carlos Ferreira De Almeida, que adopta uma posição intermédia que, na falta de resolução do problema na letra do art. 227.º do CC, atende à «ratio» das normas consagradas nos arts. 562.º e 563.º do CC, igualmente aplicáveis em sede de responsabilidade civil pré-contratual. Com efeito, abrangendo o art. 227.º do CC múltiplos cenários possíveis, conforme supra explicado, podendo a fase negocial terminar com a celebração de contratos válidos, mas desequilibrados nas suas prestações, inválidos mas convalidados ou com a interrupção das negociações antes da celebração de qualquer contrato, há que atender ao dano e ao respectivo nexo de causalidade com o facto ilícito que estão em causa em cada situação concreta. Dependendo das situações, serão indemnizáveis apenas o interesse contratual negativo ou dano da confiança – no caso típico da interrupção das negociações, devendo o lesado ficar na situação em que estaria se nunca tivesse celebrado contrato – ou, igualmente, o interesse contratual positivo – quando, por exemplo, esteja em causa a reparação de um desequilíbrio contratual num contrato válido resultante da violação de deveres pré-contratuais, como poderá ser o caso da violação de deveres de informação pré-contratuais50.

12. Visto que o recurso à responsabilidade civil pré-contratual pode não ser uma solução fácil e imediata para o tomador de seguro, por exigir o recurso a tribunal para alegação e prova dos pressupostos da responsabilidade civil (excepto a prova da culpa que se presume), a lei confere ao tomador de seguro, no n.º 2 do art. 23.º da LCS, o direito de resolução do contrato quando se verifique a violação dos deveres de informação pré-contratuais previstos na presente subsecção. Antes de mais avanços, note-se que as previsões legais dos ns.º 1 e 2 do art. 23.º da LCS são diferentes quanto ao seu âmbito, já que o primeiro se refere ao «incumprimento dos deveres de informação e de esclarecimento previstos no presente regime», ou seja,

Direito das Obrigações. p. 539; SINDE MONTEIRO, Responsabilidade por conselhos, recomendações ou informações, pp. 369 e ss.; CALVÃO DA SILVA, Negociação e conclusão de contratos. in Estudos de Direito Civil e Processo Civil (pareceres), Almedina, 1999 Cit. Negociação e conclusão de contratos. p. 73; OLIVEIRA, José de Oliveira, – Direito civil – Teoria Geral, II, Coimbra, 2.ª ed., Coimbra 2000. Cit. Teoria II. p. 374; VASCONCELOS, Pedro Pais de – Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª ed., Coimbra 2005. Cit. Teoria Geral do Direito Civil. pp. 241 e ss.. 46 Na jurisprudência, cfr. Acórdãos do STJ de 9 de Fevereiro de 1999, 16 de Março de 1999 e de 27 de Março de 2001; Acórdãos do TRP de 22 de Abril de 1999 e de 17 de Janeiro de 2000; e Acórdão do TRC de 10 de Outubro de 2000. 47 Neste sentido, cfr. LIMA António Pires de / VARELA, João de Matos Antunes – Código Civil anotado, I, 4.ª ed., Coimbra 1987. Cit. CC Anot. I. p. 216; BAPTISTA MACHADO, Tutela da confiança, pp. 368 e 409; CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Contratos, 3ª ed., pp. 204 e ss.; e MOREIRA, Sónia – “Anotação ao Acórdão da Relação de Coimbra, de 4 de Fevereiro de 2003”, em Cadernos de Direito Privado, n.º 7, (Jul.–Set.), Braga 2004, pp. 32-45. Cit. Anotação ao Acórdão da Relação de Coimbra, de 4 de Fevereiro de 2003, pp. 41 e 45. 48 Este entendimento vem sendo adoptado, cada vez mais, pela jurisprudência, sendo exemplo disso, os Acórdãos do STJ de 28 de Fevereiro de 2002, de 18 de Novembro de 2004, de 4 de Maio de 2006 e de 11 de Janeiro de 2007. 49 Neste sentido, cfr. MENEZES CORDEIRO, Boa Fé, pp. 584 e ss. e Tratado I-I, p. 407; e ANA PRATA, Notas Sobre Responsabilidade Pré-Contratual, pp. 108 e ss.. 50 Para maior desenvolvimento, vide CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Contratos I, 3.ª ed., pp. 204 e ss..

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parece incluir todos os deveres pré-contratuais consagrados na presente lei (arts. 18.º a 22.º e 185.º), e o segundo respeita apenas ao «incumprimento dos deveres de informação previstos na presente subsecção», o que parece incluir apenas a violação dos deveres de informação previstos especificamente na subsecção em que o preceito se insere (arts. 18.º a 21.º da LCS), já não quaisquer outros deveres, como os de esclarecimento. Ora, da redacção do artigo parece resultar que o legislador pretendeu distinguir as situações – a essa conclusão se chega por aplicação do art. 9.º, n.º 3, do CC nos termos do qual «[n]a fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados» – e que somente a violação dos deveres de informação é fundamento de resolução do contrato pelo tomador de seguro, com as excepções aí consagradas, ou seja, «salvo quando a falta do segurador não tenha razoavelmente afectado a decisão de contratar da contraparte ou haja sido accionada a cobertura por terceiro». Com efeito, parece que o legislador quis determinar de forma mais precisa o fundamento de resolução do contrato, até pelo modo de exercício e pelos efeitos consagrados para o direito referido (n.º 3 do mesmo artigo), restringindo-o à falta de informação de elementos que, razoavelmente, tenham afectado a decisão de contratar do tomador. Por sua vez, a segunda excepção explica-se pela necessidade de protecção de terceiro (segurado ou pessoa segura), cujo interesse se impõe e se pretende proteger, de igual forma ao do tomador de seguro e, portanto, neste caso, entende-se que deve prevalecer. Pode, todavia, colocar-se a questão de saber se a falta de esclarecimento especial sobre determinados pontos específicos do contrato de seguro em alguns casos – a título de exemplo, quanto ao âmbito da cobertura e sua articulação com as respectivas exclusões, se a mesma estiver realizada de forma complexa ou através de diversas remissões de umas cláusulas para as outras –, a que o segurador está obrigado nos termos do art. 22.º da LCS, não poderá, pela dificuldade ou complexidade que tais cláusulas apresentem, equivaler à falta de informação sobre os mesmos e se, nesse caso, não deverá conduzir a um resultado idêntico à violação de um dever de informação e ser fundamento de resolução. Entende-se que a resposta deverá ser analisada e encontrada consoante cada caso concreto, dependendo dos elementos contratuais em questão, do nível de complexidade técnica e jurídica das próprias cláusulas, do próprio perfil do tomador de seguro, entre outros aspectos que possam relevar para o efeito e, somente no caso de a falta de esclarecimento devido equivaler à não prestação de alguma informação essencial, é que se poderá aplicar a sanção da resolução do contrato. Tendo em conta o teor do n.º 3 do art. 23.º da LCS, os efeitos da resolução do contrato não diferem, assim, dos estabelecidos no regime geral dos arts. 433.º e 289.º do CC: «t[e]m efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente». No caso concreto do contrato de seguro, a restituição de tudo o que tiver sido prestado corresponderá sempre à devolução do prémio pago. Acresce que não se vê razão para não permitir – nem que seja por aplicação analógica – o exercício do direito de resolução do contrato, previsto e regulado nos ns. 2 e 3 do art. 23.º da LCS, ao caso de violação dos deveres de informação pré-contratuais especialmente previstos para a celebração do contrato de seguro de vida (art. 185.º da LCS). Sublinhe-se, ainda, que, se for celebrado contrato de seguro nulo ou anulável, por se se verificar algum dos vícios gerais da vontade previstos e regulados nos arts. 240.º e

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ss. do CC, obviamente os efeitos e consequências estabelecidas nessa sede mantêm-se aplicáveis. Fora das circunstâncias dos arts. 240.º e ss. do CC e do âmbito de aplicação do direito de resolução previsto nos ns.º 2 e 3 do art. 23.º da LCS, o lesado somente poderá recorrer ao instituto da responsabilidade civil pré-contratual previsto no n.º 1 do mesmo preceito. Resta acrescentar que, caso a violação dos deveres pré-contratuais prevista no presente preceito consubstancie uma prática comercial desleal prevista e regulada no DL n.º 57/2008, de 26 de Março, são aplicáveis as sanções consagradas nessa sede, ou seja, o contrato é anulável a pedido do consumidor, nos termos do art. 287.º do CC, podendo o último, em vez da anulação, requerer a modificação do contrato segundo juízos de equidade ou a manutenção do contrato com a redução das cláusulas inválidas (art. 14.º do diploma citado), além do poder ser ressarcido pelos danos sofridos, nos termos gerais (art. 15.º do mesmo diploma). Finalmente, ainda no que se refere a sanções aplicáveis, nos termos, respectivamente, dos arts. 213.º, alínea i) e 214.º, alínea h), do RGES «são puníveis com coima de € 7500 a € 300 000 ou de € 15 000 a € 1 500 000, consoante seja aplicada a pessoa singular ou colectiva, (…) o incumprimento dos deveres de informação para com os tomadores, segurados ou beneficiários de apólices de seguros, para com os associados, participantes ou beneficiários de planos de pensões, ou para com o público em geral, susceptível de induzir em conclusões erróneas acerca da situação da empresa ou dos fundos por elas geridos» e «são puníveis com coima de € 15 000 a € 1 000 000 ou de € 30 000 a € 5 000 000, consoante seja aplicada a pessoa singular ou colectiva, as infracções adiante referidas, sem prejuízo de infracções mais graves previstas na lei: (…) h) o incumprimento dos deveres de informação para com os tomadores, segurados ou beneficiários de apólices de seguros, para com os associados, participantes ou beneficiários de planos de pensões, ou para com o público em geral».

13. Por seu turno, o art. 23.º da LCS, no seu n.º 4, vem estender a aplicação do n.º 1 a um caso que, na verdade, seria de responsabilidade contratual. Conforme supra explicitado, importa distinguir entre, por um lado, informação pré-contratual e deveres relativos à mesma, ou seja, deveres relativos aos elementos essenciais à decisão de contratar das partes, os quais encontram o seu âmbito de aplicação restringido ao período anterior à celebração do contrato e, por outro lado, conteúdo das declarações contratuais e, quanto muito, ónus de comunicação das mesmas e, ainda, conformidade do cumprimento (do bem ou do serviço) com as mesmas, o que se afere após a celebração e no âmbito da execução do contrato. Ora, tendo em conta o processo normalmente utilizado de formação do contrato de seguro – mediante cláusulas contratuais gerais e através de proposta de seguro apresentada pelo tomador de seguro e aceite pelo segurador, tratando-se de um contrato informal – e o conceito e função da apólice de seguro, é fácil de depreender que, quando a última é entregue ao tomador de seguro, o contrato já está celebrado, encontrando-se as partes já no âmbito de execução do mesmo, pelo que a entrega de apólice que não esteja conforme com o acordado entre as partes e aquilo que foi devidamente informado ao tomador de seguro consubstancia um incumprimento contratual (e não pré-contratual), ao qual a lei manda aplicar as sanções previstas nos números anteriores para a violação de deveres pré-contratuais.

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III - Deveres de informação do tomador do seguro ou do segurado

A) A declaração inicial de risco

14. Se os arts. 18.º a 23.º da LCS estabelecem o regime de deveres de informação pré-contratuais a que o segurador, como parte contratualmente mais forte, se encontra obrigado perante o tomador do seguro, como parte contratualmente mais fraca e com menor nível e qualidade de informação, na senda da necessidade de protecção especial deste último, os arts. 24.º a 26.º da LCS definem o regime de deveres de informação pré-contratuais a cargo do tomador de seguro ou do segurado, por estes se encontrarem na posição mais favorável para identificar os factos que conhecem – porque relativos a si próprio, a um bem seu ou a uma situação, de algum modo, consigo relacionada – e que possam ser relevantes para análise do risco que aquele pretende que o segurador cubra51. Na verdade, a imposição de um dever ou ónus ao segurador de pesquisar e obter todas as informações relevantes em matéria de risco a segurar implicaria, tendencialmente, o dispêndio pelo último de tempo e custos excessivos, que teriam, certamente, reflexo no montante do prémio a cobrar, bem como poderia, nalguns casos, contender com direitos de personalidade do tomador de seguro ou do segurado. Contudo, importa alcançar um equilíbrio justo nesta sede, uma vez que, perante a evolução da realidade da contratação em matéria de seguros e tendo em conta a natureza – por exemplo, contrato de seguro de transporte de bagagem – e o modo de formação do contrato – por exemplo, nos contratos celebrados à distância ou na internet –, o tomador de seguro ou o segurado não é, muitas vezes, quem dispõe de toda ou, pelo menos, de importante informação sobre o risco a segurar ou não tem possibilidade, no espaço e no tempo, de fornecer informações para além das exigidas pelo segurador, não devendo impender sobre ele o dever referido como noutros casos em que o interesse seguro está directamente relacionado com a sua pessoa ou um seu bem. Com efeito, o presente regime é tão ou mais essencial que o analisado anteriormente nos arts. 18.º a 23.º da LCS, por se relacionar com um dos temas mais relevantes para a análise do contrato de seguro – o risco52. O risco é um elemento essencial do contrato de seguro, ou seja, inclui-se no núcleo fundamental do contrato, que corresponde aos termos básicos da operação económica subjacente ao mesmo53. O que significa que, sem risco, não há contrato de seguro54. É, exactamente, para cobertura de um determinado risco – evento futuro e incerto – que as partes – segurador e tomador de seguro – contratam, fixando-se um prémio que terá de ser calculado em função daquele, de modo a permitir que o segurador, caso o mesmo se verifique, tenha possibilidade de suportar a cobertura acordada55.

51 JÚLIO GOMES, O dever de informação do tomador de seguro na fase pré-contratual, p. 76. 52 GOMES, Júlio Manuel Vieira, O dever de informação do (candidato a) tomador de seguro na fase pré-contratual, à luz do Decreto-lei n.º 72/2008, de 16 de Abril, in Estudos em homenagem ao Professor Doutor Carlos Ferreira de Almeida, Volume II, Almedina, cit. O dever de informação do (candidato a) tomador de seguro na fase pré-contratual, à luz do Decreto-lei n.º 72/2008, de 16 de Abril, pp. 387 e ss, maxime p. 388. 53 VASQUES, José «Contrato de seguro: elementos essenciais e características» (2006) LV ScIur 493-525 Cit. Elementos, p. 496. 54 Cfr. arts. 1.º, 43.º e 44.º da LCS; PICARD, Maurice (fund. f) / BESSON, André – Les assurances terrestres, I, orig. 1938, 5.ª ed., Paris 1982. Cit. Assurances Terrestres. p. 104; REGO, Margarida Lima – Contrato de seguro e terceiros. Estudo de direito civil, Coimbra 2010. Cit. Seguro e Terceiros; MARIA SOFIA LOPES CARAÇAS CENTENO, Os Deveres de Informação do Segurado, p. 12. 55 Idem.

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Assim, por «declaração do risco» («disclosure of risk», «vovertragliche Anzaigepflicht», «déclaration des risques», «descrizione del rischio») entende-se o conjunto de informações que devem ser unilateralmente prestadas pelo tomador de seguro ou pelo segurado ao segurador na proposta de seguro, as quais visam permitir que o último, mediante o cálculo exacto do risco e do correspondente valor do prémio e a apreciação das restantes cláusulas contratuais, decida aceitar ou recusar tal proposta. Constitui, assim, um dever pré-contratual por surgir na fase de formação do contrato, ou seja, antes da celebração do contrato e com vista à celebração do mesmo56. A natureza jurídica da figura em análise tem sido discutida, nomeadamente se se trata de um verdadeiro dever jurídico ou de um simples ónus, cujo incumprimento pode conduzir à invalidade do contrato57. Importa salientar que a lei do contrato de seguro insere numa ampla categoria que designou de «deveres» de informação, diversas situações jurídicas passivas, que convém analisar casuisticamente, já que nem sempre a sua qualificação deve ser uniforme. É o que sucede com as situações jurídicas passivas contempladas no art. 24.º da LCS, já que, por exemplo, se se pode considerar o dever pré-contratual de declaração inicial de risco do tomador de seguro um verdadeiro «dever jurídico», o qual, uma vez violado dolosamente, além do regime especial quanto à (in)validade do contrato, pode dar lugar à obrigação de pagar, parcial ou totalmente, o valor do prémio (o que constitui uma indemnização especial fixada para a violação do dever pré-contratual em análise), já o mesmo não se poderá dizer quanto à imposição legal de o segurado, muitas vezes, um terceiro que nem participa na formação e celebração do contrato, declarar inicialmente o risco do contrato, em relação ao qual a lei apenas estipula uma desvantagem ou a perda de uma vantagem – a invalidade do contrato, sem, consequentemente, beneficiar da sua cobertura – e não uma consequência jurídica sancionatória ou indemnizatória da parte contrária.

15. Segundo o preâmbulo do presente diploma, «no que respeita à declaração inicial de risco, teve-se em vista evitar as dúvidas resultantes do disposto no art. 429.º do CCom, reduzindo a incerteza das soluções jurídicas». Com efeito, os arts. 24.º a 26.º da LCS vieram regular matéria que era, anteriormente, regulada pelo art. 429.º do CCom, segundo o qual «[t]oda a declaração inexacta, assim como toda a reticência de factos ou circunstâncias conhecidas pelo segurado ou por quem fez o seguro, e que teriam podido influir sobre a existência ou condições do contrato tornam o seguro nulo. § único. Se da parte de quem fez as declarações tiver havido má fé o segurador terá direito ao prémio.». O art. 429.º do CCom previa um regime marcadamente distinto do regime comum sobre os vícios da vontade58, estabelecendo um regime bastante favorável ao segurador, que teve fundamento no contexto histórico em que surgiu, em que o segurador era uma parte desprotegida na fase de formação do contrato («comerciantes individuais, quando não associações mutualistas de viúvas e órfãos») e totalmente dependente das informações a serem transmitidas pelos tomadores do seguro ou segurados59. O art. 429.º

56 vide DONATI, Antigono – Trattato del diritto delle assicurazioni private, I, Milão 1952. Cit. Trattato I pp. 297 e ss. 57 Cfr. BUTTARO, Luca– «Assicurazione (contratto di)» em Enc Dir, III, Milão 1958, pp. 455-493. Cit. Contratto di Assicurazione. pp. 455 e ss., maxime p. 485; JÚLIO GOMES, O dever de informação do tomador de seguro na fase pré-contratual, p. 76. 58 JÚLIO GOMES, O dever de informação do tomador de seguro na fase pré-contratual, p. 76. 59 JÚLIO GOMES, O dever de informação do (candidato a) tomador de seguro na fase pré-contratual, à luz do Decreto-lei n.º 72/2008, de 16 de Abril, p. 388-396.

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do CCom consagrava, assim, a invalidade do contrato na sua forma mais forte – nulidade60

– desde que se verificasse ter havido qualquer declaração inexacta ou reticente de factos conhecidos do tomador de seguro que tivessem podido influenciar a existência ou as condições do contrato, independentemente de o tomador de seguro estar de boa ou má fé (a qual apenas relevava para efeitos de restituição ou manutenção do prémio no segurador) e não se exigindo qualquer nexo de causalidade entre o facto ou circunstância omitido(a) ou inexactamente declarado(a) e o facto ou circunstância que determinou o sinistro. Para a invalidade do contrato, o art. 429.º do CCom somente considerava se tinha havido um cálculo exacto do risco e do prémio do seguro pelo segurador e se teria existido qualquer omissão ou inexactidão nas declarações e informações prestadas pelo tomador de seguro susceptível de influenciar as condições contratuais. Nada mais relevava61. O que abrangia muitos casos em que a omissão ou inexactidão nas declarações iniciais não fosse causada por dolo ou mesmo por negligência do tomador do seguro ou segurado, ou em que a omissão ou inexactidão não se relacionasse, de forma alguma, com o facto que deu lugar à verificação do sinistro. O art. 429.º do CCom estabelecia um regime, que, após alteração do contexto histórico que o fundamentou, se tornou demasiado favorável ao segurador e deixava desprotegido o tomador do seguro ou segurado, sem fundamento razoável que o justificasse62. Ao abrigo da norma referida, protegia-se, de forma excessiva, o segurador, quando, na verdade, este não deixava de ocupar uma posição contratual mais forte, por conhecer melhor o funcionamento do contrato e os elementos necessários para o cálculo acertado do risco, por poder impor unilateralmente as cláusulas contratuais gerais que entendesse ao tomador de seguro e por nem sempre as formas de cálculo do risco e do pagamento do prémio assentarem apenas nas declarações do tomador de seguro ou do segurado, contando até, muitas vezes, com margem de erro quanto às mesmas. A interpretação do art. 429.º do CCom não era isenta de dúvidas na jurisprudência e/ou doutrina, existindo diversas questões controversas, como as de, entre outras, saber se o tomador de seguro estava obrigado a declarar apenas todos os factos que conhecia ou se também os que devia conhecer ou não podia ignorar, se o questionário constituía um «favor» ou uma «facilitação» que o segurador concedia ao tomador de seguro63 ou se consubstanciava um verdadeiro ónus do segurador imposto pela boa fé64, se o regime de invalidade previsto nessa sede e adequado à previsão legal do mesmo era o da nulidade65 ou o da anulabilidade (ou «nulidade relativa»)66, tendo, ao longo dos tempos, a

60 Embora, conforme se referirá adiante, a forma de invalidade – nulidade ou anulabilidade – fosse discutida na doutrina e jurisprudência portuguesas. 61 Para uma visão do direito comparado, nomeadamente com indicação de semelhanças e dissemelhanças entre o regime português (art. 429.º do CCom) e os estrangeiros, vide JÚLIO GOMES, O dever de informação do tomador de seguro na fase pré-contratual, p. 97 e ss.. A ordem jurídica que mais se aproximava da portuguesa no regime de declaração inicial de risco que consagrava era a britânica, onde vigorava o princípio da máxima boa-fé. Quanto ao regime inglês, LOWRY, John and RAWLINGS, Philip – Insurance Law, Doctrines and Principles, 2.ª ed., Oxford 1999. Cit. Insurance Law, pp. 77 e ss. e CLARKE, Malcolm – Policies and perceptions of insurance law in the twenty-first century, Oxford 2005. Cit. Policies. pp. 101 e ss.. 62 Para maiores desenvolvimentos da matéria, vide JÚLIO GOMES, O dever de informação do tomador de seguro na fase pré-contratual, pp. 76 e ss.. 63 ALMEIDA, José Carlos Moitinho de – O contrato de seguro no direito português e comparado, Lisboa 1971. Cit. Contrato de Seguro. p. 74; JOSÉ VASQUES, Contrato de Seguro, p. 220. 64 JÚLIO GOMES, O dever de informação do tomador de seguro na fase pré-contratual, p. 97 e ss.. 65 Ac. TRP, de 16 de Outubro de 1990, in Colectânea de Jurisprudência, 1990, tomo IV, pp. 230 e ss., p. 232. 66 Ac. STJ, de 8 de Junho de 2010, Barreto Nunes, proc. n.º 90/2002.G1.S1, in www.dgsi.pt/jstj; Ac. TRC, de 6 de Março de 1997, in Colectânea de Jurisprudência, 1997, tomo II, pp. 62 e ss, p. 63; Ac. TRL, de 4 de Fevereiro de 2005, Fátima Galante, proc. n.º 10357/2004-6, in www.dgsi.pt/jtrl; Ac. TRL, de 12 de Julho de 2007, Maria José Mouro, proc. n.º 3053/2007-2, in www.dgsi.pt/jtrl; Ac. TRL, de 26 de Marco de 2009,

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jurisprudência e a doutrina maioritárias tendido para a segunda tese67. Embora a nova lei do contrato de seguro tenha atenuado algumas das dúvidas existentes, conforme se concluirá, não resolveu totalmente os problemas interpretativos que se podem colocar em torno dos preceitos em análise, como por exemplo não esclarece se o tomador de seguro ou o segurado deve declarar tudo o que conhece e que pode influenciar a análise de risco, exigindo-se, com isso, uma atitude pró-activa de adoptar todas as diligências necessárias e ao seu alcance para se informar quanto a factos que desconhece ou se é suficiente declarar aquilo que conhece sem recorrer a outros meios de investigação e de pesquisa suplementares. Segundo o preâmbulo da lei do contrato de seguro, pelo presente diploma, «[m]antendo-se a regra que dá preponderância ao dever de declaração do tomador sobre o ónus de questionação do segurador, são introduzidas exigências ao segurador, nomeadamente impondo-se o dever de informação ao tomador de seguro sobre o regime relativo ao incumprimento da declaração de risco, e distingue-se entre comportamento negligente e doloso do tomador do seguro ou segurado, com consequências diversas quanto à validade do contrato. Neste âmbito, cabe ainda realçar a introdução do parâmetro da causalidade para aferir da invalidade do contrato de seguro e do já mencionado dever específico, por parte do segurador, de, aquando da celebração do contrato, elucidar devidamente a contraparte do regime de incumprimento da declaração de risco. Quanto à causalidade, importa a sua verificação para ser invocado pelo segurador o regime de inexactidão da declaração inicial de risco e a consequente invalidade do contrato de seguro». Vejamos melhor o regime referido.

16. O art. 24.º da LCS delineia, nos seus ns. 1 e 2, os contornos do dever ou ónus68 de declaração inicial de risco a cargo do tomador de seguro ou do segurado, estabelecendo-se, nos arts. 25.º («omissões ou inexactidões dolosas») e 26.º («omissões e inexactidões negligentes») da mesma lei, os efeitos jurídicos do incumprimento do dever referido69. Por sua vez, nos ns. 3 e 4 do art. 24.º da LCS, prevêem-se limitações à aplicação do dever de declaração inicial de risco, tal como se encontra previsto nos ns. 1 e 2 do mesmo preceito 70. Nos termos do n.º 1 do art. 24.º da LCS, o dever ou ónus de declaração inicial de risco deve i) ser prévio à celebração do contrato (pré-contratual), ii) implicar a declaração exacta – ou seja, rigorosa e clara – e iii) completa («todas») das circunstâncias conhecidas pelo(s) tomador de seguro e/ou segurado iv) e que o(s) mesmo(s) razoavelmente deva(m) ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador, o que aponta para o conjunto de circunstâncias que o homem médio consideraria como relevantes para a apreciação do risco.

Fátima Galante, proc. n.º 171/06.2TJOPRT.L1-6, in www.dgsi.pt/jtrl; Ac. TRL, de 17 de Setembro de 2009, Fátima Galante, proc. n.º 5890/05.8TVLSB.L1-6, in www.dgsi.pt/jtrl; Ac. TRL, de 4 de Fevereiro de 2010, Manuel Gonçalves, proc. n.º 3214/06.6TVLSB.L1-6, in www.dgsi.pt/jtrl. 67 Idem. Na doutrina, vide J. C. MOITINHO DE ALMEIDA, Contrato de Seguro, pp. 61 e 79; JOSÉ VASQUES, Contrato de Seguro, p. 380 e JÚLIO GOMES, O dever de informação do tomador de seguro na fase pré-contratual, p. 102 e ss.. 68 Cfr. o que foi supra explicitado quanto à natureza das situações jurídicas abrangidas pelo preceito em análise. 69 Cfr. Comentários complementares de PEDRO ROMANO MARTINEZ em anotação ao art. 24.º da LCS in PEDRO ROMANO MARTINEZ, LEONOR CUNHA TORRES, ARNALDO COSTA OLIVEIRA, MARIA EDUARDA

RIBEIRO, JOSÉ PEREIRA MORGADO E JOSÉ ALVES DE BRITO, Lei do Contrato de Seguro Anotada, 2.ª Ed., 2011, pp. 148 e ss.. 70 Idem.

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Antes de mais, note-se que se trata de um dever pré-contratual, ou seja, que tem de ser cumprido desde o início do processo de formação do contrato até ao momento da celebração do mesmo, independentemente do modo como o mesmo decorre, pelo que engloba todas as circunstâncias conhecidas pelo tomador de seguro ou pelo segurado, que possam influenciar a apreciação do risco, verificadas até ao momento da celebração do contrato. Após o momento referido, estar-se-á em sede de dever de informação contratual de agravamento do risco (art. 93.º da LCS)71. Seguidamente, e conforme resulta do exposto, o dever de declaração inicial do risco tem como titular principal a contraparte do segurador – o tomador de seguro –, podendo, em determinados casos, caber, igualmente, ao segurado, quando este não coincida com o primeiro e tenha qualquer tipo de intervenção na fase de formação do contrato, como sucede, por exemplo, nos seguros de grupo. Com maior relevância, coloca-se a questão de saber quais as informações e declarações que o tomador de seguro ou o segurado têm de transmitir à seguradora ao abrigo da presente disposição, ou seja, qual o âmbito do dever referido. Há muito tempo que é pacífico que o dever de declaração inicial de risco existe relativamente a factos e circunstâncias conhecidos, que podem influir sobre a decisão de contratar ou de contratar naquelas condições. Todavia, dito assim, não se fica com uma ideia clara da amplitude do dever referido e com todos os instrumentos para a delimitar: será que o tomador de seguro tem de informar o segurador de todas as doenças, situações de mal-estar e consultas médicas de que se lembre já ter tido na vida para celebrar, por exemplo, um seguro de saúde? Será que o tomador de seguro tem de conhecer e identificar as doenças que podem ser relevantes para a apreciação do risco pelo segurador em detrimento de outras, que sejam irrelevantes? De acordo com que juízo? E com que grau de diligência terá de proceder a esse juízo? Pegando num exemplo de um juiz inglês, um homem pode sofrer de enxaquecas e, conhecendo esse facto, ignorar que se deve a um tumor cerebral72. Com efeito, a discussão do problema foi evoluindo nas várias ordens jurídicas e foi-se ganhando consciência de que não se podia exigir um dever de tal modo amplo e difícil de cumprir ao tomador de seguro ou ao segurado, sem quaisquer limites, que o tornasse irrealizável e susceptível de ser manipulado pelo segurador e da necessidade de criar um equilíbrio, assente nos princípios da boa fé, na repartição de tarefas entre, por um lado, o tomador de seguro e/ou o segurador e, por outro lado, o segurador. Conforme refere o autor que vem sendo citado, «pode, por isso, dizer-se que, ainda que em diferentes graus nos vários países, se procede hoje, como refere MATTEO MANDÒ, a uma divisão de tarefas entre as partes do contrato na determinação do risco contratual»73. Conforme se demonstrará, foi esse, também, o caminho da nova lei do contrato de seguro. Assim, esclareça-se que o presente dever ou ónus respeita apenas aos factos e circunstâncias conhecidos do tomador ou do segurado, já não aos desconhecidos. Não faz

71 Cfr. JÚLIO GOMES, O dever de informação do (candidato a) tomador de seguro na fase pré-contratual, à luz do Decreto-lei n.º 72/2008, de 16 de Abril, p. 404 e 405. 72 Cfr. JÚLIO GOMES, O dever de informação do tomador de seguro na fase pré-contratual, p. 87. 73 Cfr. JÚLIO GOMES, O dever de informação do tomador de seguro na fase pré-contratual, p. 88 e MANDÒ, Matteo – Dichiarazioni inesatte e reticenze nella fase precontrattuale del contratto di assicurazione, Diritto ed economia delll’ assicurazione, 1996. Cit. Dichiarazioni inesatte e reticenze nella fase precontrattuale del contratto di assicurazione. p. 795.

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sentido exigir ao tomador de seguro ou ao segurado a declaração ou informação de factos que não conhece. Como destacam alguns autores, em relação a factos desconhecidos, nem sequer se preenche o tipo legal objectivo74 e estender o dever do tomador de seguro a esse nível «corresponderia a transformá-lo no segurador do segurador»75. Porém, a questão pode colocar-se de outra maneira. Será que o tomador de seguro deve declarar apenas aqueles factos que conhece ou também aqueles que devia conhecer e que, somente por falta de diligência ou por ignorância, desconhece? Na pendência do regime anterior, JÚLIO GOMES defendeu que, perante um regime tão desequilibrado e favorável ao segurador, o tomador ou o segurado estão apenas obrigados a declararem os factos conhecidos, muito embora aceitasse que, perante questões concretas do segurador, o tomador do seguro ou o segurador se deveriam esforçar por se recordarem de todos os elementos relevantes e por fazer alguma pesquisa76. Referindo-se ao regime actual, entende que «a obrigação de declaração apenas abrange, como resulta inequivocamente da letra da lei, as circunstâncias conhecidas do tomador de seguro ou segurado e já não as cognoscíveis, isto é, aquelas que ele poderia ou, mesmo, deveria conhecer»77. A questão é discutida nas várias ordens jurídicas78. O artigo em análise não se refere directamente à questão, exigindo somente a declaração de todas as circunstâncias que conheça, parecendo excluir aquelas que o tomador ou o segurado «deveria» conhecer. No entanto, a questão não pode deixar de ser analisada e a lei interpretada de acordo com as regras legais (art. 9.º do CC), não se restringido à letra da lei, mas reconstituindo o pensamento legislativo, a «ratio legis» dentro da unidade do sistema actual. Obviamente, não se pode exigir ao tomador do seguro ou ao segurado que se informe e pesquise sobre todos os aspectos que podem vir a ser relevantes para análise do risco – que, por exemplo, vá a consultas médicas referentes a todas as partes do corpo para entregar um relatório completo sobre o seu estado de saúde antes da celebração do contrato de seguro de saúde –, pois isso seria impor um dever de diligência demasiado elevado, seria quase impor ao tomador de seguro que substituísse o segurador na realização do seu «trabalho», ou mesmo sobre novos factos que, até ao momento, nunca conheceu mas que seria melhor se conhecesse. No entanto, o tomador de seguro ou segurado não pode deixar de fazer um esforço de memória para invocar todos os factos relativos ao risco em questão, que possam influir na apreciação do mesmo: por exemplo será que, num seguro de incêndio da habitação, o tomador do seguro pode deixar de invocar a existência de uma bomba de gasolina em frente da porta de entrada, invocando que desconhecia tal facto? Se se tratar da habitação principal do tomador de seguro, onde este dorme, toma as refeições, entra e sai todos os dias, não lhe será exigível conhecer que, à frente da porta do prédio, existe uma bomba de gasolina? Em determinados casos, parece que será contrário à boa fé aceitar que o tomador de seguro ou o segurado desconhecesse determinados factos que são demasiado

74 Cfr. JÚLIO GOMES, O dever de informação do tomador de seguro na fase pré-contratual, p. 89; 75 Cfr. JÚLIO GOMES, O dever de informação do tomador de seguro na fase pré-contratual, p. 89; TEDESCHI, Guido – «Misrepresentation» e «Non-Disclosure» nel Diritto Assicurativo Italiano, Rivista di Diritto Civile, 1958, Anno IV, Parte Prima. Cit. «Misrepresentation» e «Non-Disclosure» nel Diritto Assicurativo Italiano p. 488. 76 Posição semelhante em LUC MAYAUX, L’ ignorance du risque, p. 735. 77 Cfr. JÚLIO GOMES, O dever de informação do (candidato a) tomador de seguro na fase pré-contratual, à luz do Decreto-lei n.º 72/2008, de 16 de Abril, p. 405. 78 Vide anotação de ARNALDO COSTA OLIVEIRA, Lei do Contrato de Seguro Anotada, pp. 119 e ss..

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óbvios para invocar o seu desconhecimento e que, somente por culpa ou mesmo por dolo, não foram informados ao segurador. Além disso, o dever ou ónus em questão inclui os factos que o tomador do seguro ou o segurado «razoavelmente deva ter por significativos para apreciação do risco pelo segurador», o que pressupõe que aquele compreende o sentido do contrato que está a celebrar, ou seja que o segurador vai cobrir um risco e que o prémio será calculado com base na análise do mesmo. Aliás, de acordo com o n.º 4 do art. 24.º da LCS, conforme se analisará adiante, o segurador, antes da celebração do contrato, deve esclarecer o eventual tomador de seguro ou o segurado acerca do dever de declaração inicial do risco e das consequências do seu incumprimento. Mesmo que, cumprido pelo segurador o dever estabelecido no n.º 4, o tomador de seguro ou segurado não compreenda bem o sentido do contrato que pretende celebrar, por ignorância ou pouca reflexão, parece que se mantém vinculado ao dever de declaração inicial do risco79. Com efeito, o tomador de seguro ou o segurado não pode invocar que não considerou relevante um facto que, aos olhos da generalidade das pessoas, de uma pessoa razoável, normal, com conhecimentos médios, seja relevante para apreciação do risco (por exemplo, num seguro de incêndio, não informar que se trata de uma fábrica com actividade perigosa, que envolve o uso de produtos facilmente inflamáveis). Quanto a este ponto, importa proceder a uma distinção relevante entre, por um lado, o conteúdo do dever de declaração inicial de risco – ou seja, aquilo a que o tomador de seguro ou o segurado está obrigado nos termos da lei, que conjunto de circunstâncias o mesmo deve, em cada caso, transmitir ao segurador, independentemente das concretas capacidades e conhecimentos do mesmo – e, por outro lado, a medida de diligência exigível no cumprimento do dever referido – ou seja, aquilo que se exige e espera do tomador de seguro ou segurado no caso concreto, atendendo às características particulares do mesmo e às especificidades das circunstâncias concretas (juízo de culpa, que relevará em sede de determinação dos efeitos do incumprimento do dever)80. Outra questão que se tem colocado é a de saber se, no âmbito da tendencial repartição de tarefas entre o segurador e o tomador do seguro ou segurado na obtenção do objectivo de aquele deter todas as informações necessárias para o cálculo do risco e do prémio e outras condições a vigorar num contrato de seguro, a seguradora tem algum dever ou ónus – como por exemplo, o de fazer as questões relevantes ou de apresentar um questionário completo e exaustivo, pelo qual se responsabiliza – ou se sobre a mesma não impende qualquer dever ou ónus, podendo, quanto muito, aquela decidir orientar e facilitar a tarefa ao tomador do seguro ou ao segurado81, mas sem ter qualquer responsabilidade concreta na obtenção das respostas necessárias. Existem duas teorias, que conduzem a dois tipos de regimes legais diferentes na solução das questões referidas: o chamado sistema do «questionário aberto», em que, apesar de o segurador poder elaborar um questionário, o mesmo somente vai funcionar como guia ou facilitador da recolha da informação sobre o risco relevante para apreciação do mesmo, mas em que é ao tomador do seguro ou ao segurador que cabe o dever ou o ónus de executar essa tarefa, por serem eles que se encontram na posição mais favorável para o

79 Concorda-se com a posição adoptada nos comentários complementares de PEDRO ROMANO MARTINEZ, Lei do Contrato de Seguro Anotada, 2.ª ed., pp. 149. 80 Idem. 81 Vide LUC MAYAUX, L’ ignorance du risque, pp. 730-754, maxime p. 735, que entende que as questões «refrescam» a memória dos tomadores de seguro ou segurados.

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fazer82, em oposição ao designado sistema do «questionário fechado» em que a seguradora é quem tem o ónus de elaborar um questionário claro e completo, ao qual o tomador do seguro e o segurado possam responder, de forma clara e completa, declarando, assim, os factos e circunstâncias relevantes para a análise do risco a cobrir pela primeira83 84. No primeiro caso, tratando-se de dever ou ónus do tomador ou do segurado, caso estes não o cumpram, ficam sujeitos às sanções e/ou às consequências desvantajosas que daí decorrem; no segundo caso, se a seguradora não apresentar qualquer questionário ou apresentar um questionário incompleto ou pouco claro ao tomador do seguro ou ao segurado, em que faltem respostas ou em que as que existam, estejam incompletas ou obscuras, não pode depois invocar que os últimos não declararam o risco, suportando as desvantagens inerentes ao incumprimento do ónus. Ora, a resposta à questão referida encontra-se na conjugação do n.º 1 analisado com o n.º 2 do art. 24.º da LCS: consagrou-se um sistema próximo de «questionário aberto», cabendo ao tomador do seguro ou ao segurado o dever ou o ónus de declarar espontaneamente, de forma exacta e completa, os factos e circunstâncias que conheça e que razoavelmente deva ter por significativos para a apreciação do risco pelo segurador, mesmo que «a sua menção não seja solicitada em questionário eventualmente fornecido pelo segurador para o efeito» (n.º 2). A lei determina, claramente, que o dever ou ónus estão a cargo do tomador de seguro ou do segurado, independentemente de haver questionário, considerando – com o «eventualmente» – a hipótese de o último nem sequer existir. No entanto, o legislador não ficou por aqui. No intuito de encontrar um equilíbrio contratual justo e de concretizar a ideia de repartição de tarefas entre tomador ou segurado e segurador, embora não estabeleça o ónus de realizar um questionário, impõe limites ao dever ou ónus do tomador ou do segurado que são, em simultâneo, ónus impostos ao segurador (n.º 3). Do n.º 3 do artigo em análise resultam, assim, alguns ónus do segurador, como os de: quando houver questionário, o elaborar de forma precisa, concreta e clara de modo a permitir respostas exactas, completas e claras do tomador do seguro ou do segurado; quando houver questionário, o rever e controlar as respostas que são dadas no mesmo antes da celebração do contrato e, em caso de omissão, imprecisão, incoerência ou contradição evidentes, pedir ao tomador ou ao segurado para responder a todas as questões e precisar ou esclarecer alguma das respostas; de actuar com diligência exigível a qualquer profissional da área na recepção das informações e respostas dadas pelo tomador do seguro ou pelo segurado; e, ainda, de ter em conta as circunstâncias públicas e notórias, sob pena de, aceitando o contrato sem o fazer, não se poder prevalecer da omissão, imprecisão ou incorrecção das declarações e informações prestadas nessa sede. No fundo, a lei vem proibir o abuso ou «venire contra factum proprium» do segurador que, sendo profissional e experiente nas matérias em questão, está obrigado a um nível de diligência elevado e não pode prevalecer-se de circunstâncias para as quais ele próprio contribuiu e teve ocasião de evitar. A ideia subjacente ao n.º 3 consiste em considerar que o segurador, ao aceitar a celebração do contrato com base nas respostas ao

82 Entre os defensores desta tese, vide J.C. MOITINHO DE ALMEIDA, Contrato de Seguro, pp. 73 e ss. e JOSÉ

VASQUES, Contrato de Seguro, pp.219 e ss. 83 Entre os simpatizantes desta tese, JÚLIO GOMES, O dever de informação do tomador de seguro na fase pré-contratual, p. 97 e ss., entre outros, referidos nessa sede. 84 O sistema do «questionário fechado» encontra-se consagrado em Espanha, França, Finlândia, Suíça e Alemanha.

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questionário – tal qual as mesmas se apresentaram, ainda que imprecisas, com omissões, pouco claras –, considerou que as mesmas eram suficientes, claras e que os factos que não foram indicados ou que o foram de forma imprecisa ou obscura não eram elementos essenciais para a apreciação do risco, não podendo vir invocar as referidas omissões ou inexactidões numa fase posterior. No que respeita às alíneas a), b) e c) do n.º 3 do art. 24.º da LCS, as mesmas contemplam hipóteses em que, existindo questionário, o segurador tem de actuar com a diligência de um profissional com conhecimentos específicos sobre o mercado e os contratos de seguros, a qual impõe que o mesmo não só elabore o questionário, como também controle e reveja o preenchimento do mesmo pelo tomador de seguro ou segurado, com o zelo e cuidado exigíveis, correspondendo, por isso, a situações em que o segurador agiu com negligência grave ou mesmo dolo perante o tomador de seguro. Trata-se da aplicação do instituto da culpa do lesado, que, neste caso, afasta qualquer efeito do incumprimento do dever de declaração inicial do risco. Quanto às alíneas d) e e) do n.º 3, as mesmas incluem factos ou circunstâncias conhecidas do segurador ou do seu representante, incluindo factos públicos ou notórios, estes conhecidos de todos – ou, nos termos do art. 514.º, n.º 1, do CPC, «do conhecimento geral» –, uma vez que, se são conhecidos do segurador, não faz sentido impor as consequências e efeitos do incumprimento do dever pré-contratual de informação a cargo do tomador de seguro ou do segurado, cujo objectivo se encontra atingido nesses casos. Por outro lado, visa-se, igualmente, impedir atitudes abusivas por parte da seguradora que, conhecendo ou devendo conhecer os factos e circunstâncias em questão no momento de celebração do contrato, pretenda vir, mais tarde, invocar a sua omissão para, assim, se ver livre da execução do contrato. O resultado pretendido com a previsão das alíneas referidas poderia ser obtido pela aplicação de princípios e normas gerais – como do art. 334.º e 227.º do CC ou, no caso específico da alínea d) do n.º 3 do art. 24.º da LCS, da aplicação dos arts. 500.º e 800.º do CC, quer se entenda que a responsabilidade pré-contratual apresenta natureza extra-obrigacional, quer se considere que apresenta antes natureza obrigacional, já que o segurador deve responder, também na fase de formação do contrato, pelos actos dos seus auxiliares, independentemente da relação que exista entre os mesmos (seja de subordinação, seja de representação, etc), devendo entender-se que as informações e declarações chegaram à esfera do segurador, mesmo que através de um empregado ou de um representante do segurador, a não ser que tenha havido conluio entre o tomador ou segurador e o empregado ou agente do segurador. Apesar disso, julga-se conveniente e vantajoso para o tomador de seguro ou segurado que o art. 24.º da LCS contenha o estatuído expressamente nas alíneas referidas do n.º 3, para que não haja dúvidas quanto à sua aplicação. Refira-se, ainda, que, quanto aos factos conhecidos do segurador – quer por via da celebração de contratos anteriores, quer por via da comunicação social, quer por outra via –, há que ter cautela na análise do ónus do segurador, já que o nível e qualidade de informação que o último pode ter desses factos ou circunstâncias, não tendo sido transmitidos pelo próprio tomador ou segurado, podem ser pouco profundos, insuficientes ou desactualizados, daí que tenha de ser efectuada uma apreciação casuística dos mesmos e do impacto que a ausência de dados do tomador ou do segurado teve caso venha a verificar-se um previsão errada ou imprecisa do risco pelo segurador. Ainda no que toca ao n.º 3 do art. 24.º da LCS, a exclusão de responsabilidade pelo incumprimento do dever pré-contratual do tomador de seguro ou segurado não se verifica quando haja «dolo do tomador de seguro ou do segurado com o propósito de obter

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uma vantagem». A doutrina85 tem entendido que tal formulação engloba os casos de «fraude», com a complexidade de relações que a mesma pode implicar, correspondendo aos casos em que o tomador de seguro ou o segurado omitiu factos ou transmitiu factos falsos ao segurador com intuito de conseguir um benefício ilegítimo para si ou para o segurado à custa do último, nomeadamente uma diminuição do valor do prémio ou mesmo a celebração de contrato que não seria celebrado, caso o segurador conhecesse o facto omitido ou a inexactidão. JÚLIO GOMES critica a ressalva do n.º 3 do art. 24.º da LCS, defendendo que o regime do n.º 3 referido não vem favorecer o tomador de seguro ou o segurado, pois corresponde ao que resultaria da aplicação das normas gerais, nomeadamente no caso da alínea e), o segurador não poderia invocar erro em situações em que o mesmo não existia por estarem em causa omissões ou inexactidões de factos conhecidos pelo segurador. Consequentemente, entende que a ressalva da «hipótese de dolo do tomador do seguro ou segurado com o propósito de obter uma vantagem, se destaca e distancia dos outros ordenamentos, adoptando uma perspectiva puramente punitiva e moralista que nos parece deslocada». Mais, não compreende como é possível permitir ao segurador invocar as omissões e/ou inexactidões fraudulentas do tomador de seguro ou do segurado para, assim, anular o contrato, se o próprio não estava em erro, por se tratarem de omissões e/ou inexactidões de factos conhecidos pelo mesmo. Ora, quanto à ressalva do n.º 3 em análise, compreendem-se, em certa medida, as críticas do autor citado, uma vez que a mesma é muito abrangente – na maior parte dos casos, se houver dolo do tomador de seguro será para obter uma vantagem à custa do segurador –, o que poderá levar a uma redução significativa da aplicação das alíneas do n.º 3 em questão. No entanto, em primeiro lugar, parece que ainda restam casos que caem no âmbito das alíneas do n.º 3 do preceito em análise, nomeadamente aqueles em que o tomador do seguro ou o segurado tenha actuado com negligência, leve ou grave, ou com dolo simples, mas sem visar a obtenção de uma vantagem à custa do segurador, ou ainda com dolo simples «por inércia, vergonha ou hábito»86, considerando-se que somente nos casos referidos o tomador do seguro ou o segurado merece protecção. Em segundo lugar, tendo em conta o raciocínio supra desenvolvido quanto ao teor e «ratio» do n.º 3 do art. 24.º da LCS, no sentido de se preverem situações de culpa do lesado que excluem as consequências do incumprimento do dever pré-contratual de declaração inicial de risco, bem como que a ressalva aí prevista inclui casos de «dolo qualificado» do tomador do seguro ou do segurado, pode compreender-se que o mesmo deva prevalecer sobre a negligência ou dolo simples do segurador no conhecimento e apuramento dos factos, dada a sua gravidade superior. Já no que toca às situações especiais de factos efectivamente conhecidos do segurador, incluídas na alínea e) do n.º 3 do art. 24.º da LCS, inexistindo uma situação de erro, não faz sentido aplicar-lhes as consequências jurídicas do incumprimento do dever de declaração inicial de risco e, consequentemente, não é, igualmente, possível ao segurador invocar a ressalva referida. Na verdade, se após a declaração inicial de risco do tomador de seguro, incluindo o preenchimento do

85Vide JÚLIO GOMES, O dever de informação do (candidato a) tomador de seguro na fase pré-contratual, à luz do Decreto-lei n.º 72/2008, de 16 de Abril, p. 425 e ss.; Comentários Complementares de PEDRO ROMANO MARTINEZ em anotação ao art. 24.º da LCS, Lei do Contrato de Seguro Anotada, 2.ª ed., pp. 152. 86 Cfr. Comentários Complementares de PEDRO ROMANO MARTINEZ em anotação ao art. 24.º da LCS, Lei do Contrato de Seguro Anotada, 2.ª ed., pp. 152.

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questionário pelo último, o segurador aceita celebrar o contrato de seguro, conhecendo determinados factos, ainda que os mesmos tenham sido omitidos dolosamente pelo tomador do seguro com propósito de obter uma vantagem à custa do segurador, aquele fê-lo com base em todos os factos significativos para a análise de risco, não existindo uma violação de deveres pelo tomador que tenha induzido em erro o segurador87. Assim, quanto à alínea e) do n.º 3 do art. 24.º da LCS, a ressalva somente poderá ser aplicada aos casos de factos que, por serem públicos e notórios, deveriam ser conhecidos do segurador, mas não o eram no momento da celebração do contrato88. Acresce que o ónus da prova de que houve «dolo qualificado» do tomador de seguro ou do segurado cabe ao segurador. Por outras palavras, cabe ao segurador provar que o tomador do seguro ou o segurado sabia que a omissão ou inexactidão do facto em causa conduziria o segurador a reduzir o valor do prémio, ou a celebrar um contrato, ou ainda à obtenção de outra vantagem que, conhecendo a realidade daquele facto, o primeiro não aceitaria e de que, mesmo sabendo disso, o tomador ou segurado quis esse resultado. Deste modo, caso não haja elementos de prova suficientes do propósito daquele de obter uma vantagem ilegítima à custa do segurador e se verifiquem as situações previstas no art. 24.º, n.º 3, da LCS, vale a exclusão dos efeitos do incumprimento do dever de declaração inicial de risco aí determinada. Por último, «quid juris» se, além de «dolo qualificado» ou fraude do tomador do seguro ou do segurado, também o segurador tiver agido com «dolo qualificado» ou fraude na aceitação de informações que sabia serem incompletas ou falsas para, mais tarde, conhecendo o dolo do tomador do seguro ou do segurado, poder invocar a incompletude ou falsidade referidas e, assim, anular o contrato e ainda fazer seu o prémio até ao final do mesmo? Será que, nesse caso, a fraude do segurador torna inoperante a ressalva do n.º 3 do art. 24.º da LCS, mantendo-se a impossibilidade de o segurador invocar a anulabilidade prevista no art. 25.º da LCS ou, diferentemente, não impede a anulabilidade, mas somente a aplicação da sanção prevista para o tomador do seguro ou segurado no n.º 5 do art. 25.º da LCS? Ora, caso a actuação referida do segurador não caiba na previsão do n.º 4 do art. 24.º da LCS, aplicando-se-lhe a estatuição do mesmo (conforme se concluirá, a exclusão dos efeitos do incumprimento do dever de declaração inicial do risco), parece resultar do conjunto de normas previstas nos arts. 24.º a 26.º da LCS e de uma interpretação racional e sistemática das normas gerais aplicáveis aos contratos (arts. 253.º e 254.º, maxime n.º 1, do CC) que o «dolo qualificado» ou fraude do segurador somente o impedirá de poder reclamar o prémio até ao termo do contrato. Finalmente, a lei consagra expressamente, no n.º 4 do art. 24.º da LCS, um dever – e não um ónus – de esclarecer o eventual tomador de seguro ou o segurado da existência e do âmbito (total) do dever de declaração inicial do risco – quer exista, quer inexista questionário –, a que os últimos se encontram vinculados, bem como o seu regime e as consequências em caso de incumprimento do mesmo. Tratando-se de contratos que resultam de um processo de formação que, como se referiu, é desequilibrado, verificando-se um maior poder negocial do segurador em oposição a um menor poder negocial e medida de informação sobre o tipo de contratos em questão do tomador do seguro, a lei impõe que seja o segurador a informar o tomador do seguro ou o segurado da necessidade de cumprimento do dever em questão, fornecendo-lhe os dados necessários para que o mesmo seja cumprido. Com efeito, dada a dimensão e gravidade dos efeitos do incumprimento do dever ou ónus pré-contratuais de declarar o risco (arts. 25.º e 26.º da

87 A idêntico resultado se chegaria pelo próprio regime da confirmação (art. 288.º do CC), aplicável à anulabilidade do contrato de seguro por dolo do tomador. 88 Prefere-se, nesta matéria, a interpretação feita em Comentários Complementares de PEDRO ROMANO

MARTINEZ em anotação ao art. 24.º da LCS, Lei do Contrato de Seguro Anotada, 2.ª ed., pp. 153.

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LCS) para o tomador do seguro ou o segurado, estes somente devem ficar sujeitos àqueles se conheciam o dever ou ónus a que estavam vinculados e as consequências desfavoráveis que o incumprimento dos mesmos podia acarretar-lhes, o que apenas se garante por esta via. Trata-se de um dever pré-contratual do segurador – e não um ónus – já que o seu incumprimento implica responsabilidade civil pré-contratual nos termos gerais (arts. 227.º e 562.º e ss. do CC). Conforme referido supra, impõe-se a verificação dos pressupostos gerais da responsabilidade civil. Dado que a ilicitude se encontra prevista no n.º 4 do art. 24.º da LCS, com o teor e âmbito acabados de referir, e que não se concebe a possibilidade de o incumprimento do mesmo por um profissional segurador não ser culposo (ainda que negligente), a estatuição da norma somente opera no caso de tal incumprimento culposo causar danos ao tomador de seguro ou ao segurado. Ora, dado que os danos sofridos pelo tomador do seguro ou pelo segurado serão as próprias consequências do incumprimento do dever de declaração inicial do risco (arts. 25.º e 26.º da LCS), ou seja, a não cobertura do sinistro ou a cobertura em moldes diferentes do acordado inicialmente, o segurador terá de indemnizar os danos referidos. E como se calculam os danos referidos? Seguindo-se as regras gerais consagradas nos arts. 562.º e ss., terá de se comparar a situação de não cobertura ou de cobertura em termos diferentes dos inicialmente acordados com a situação que existiria se o segurador não tivesse incumprido o dever de informação em questão. Caso o cumprimento do dever referido tivesse conduzido à cobertura do sinistro, pelo mesmo ou por outro segurador, o lesante deverá pagar o valor da cobertura, mesmo que seja necessário descontar o montante do prémio eventualmente superior que houvesse a pagar pelo tomador do seguro. Caso o cumprimento do dever referido tivesse conduzido à não celebração de qualquer contrato de seguro que cobrisse tal risco, por não existir qualquer segurador que o cobrisse, então o segurador teria de devolver o prémio pago. Consequentemente, o efeito da responsabilidade pré-contratual assim entendida acaba por se confundir com o afastamento ou, pelo menos, a atenuação das consequências do incumprimento do dever de declaração inicial do risco previstas nos arts. 25.º e 26.º da LCS. Sublinhe-se, porém, que podem colocar-se sérias dúvidas quanto à existência e ao cálculo do dano no caso de incumprimento pelo segurador do dever de informação previsto no n.º 4 do art. 24.º da LCS em caso de omissões ou inexactidões dolosas do tomador de seguro. Na verdade, nada garante que o cumprimento pelo segurador do dever de informação previsto no n.º 4 do art. 24.º da LCS conduziria ao cumprimento do dever de declaração inicial do risco pelo tomador de seguro ou segurado, mesmo nos casos em que estes o violaram dolosamente e, principalmente, quando o tenham violado dolosamente com o propósito de obter uma vantagem à custa do segurador. Saliente-se, ainda, que o regime relativo à declaração inicial de risco deve constar da apólice de seguro escrito em caracteres destacados e de maior dimensão que os restantes [art. 37.º, n.º 3, alínea a) da LCS].

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B) Omissões ou inexactidões dolosas

17. Conforme referido supra, a presente lei introduziu a separação de regimes para o caso de incumprimento doloso ou negligente, referindo-se o art. 25.º da mesma aos casos de omissões ou inexactidões dolosas, na senda do direito comparado próximo89. Antes de mais, convém analisar a natureza e «ratio» do dever de declaração inicial do risco (art. 24.º da LCS) para melhor compreensão e análise do próprio regime de incumprimento do mesmo. De acordo com o explicitado supra, no âmbito e como resultado da responsabilidade pré-contratual ou da «culpa in contrahendo», além dos casos em que as partes não cheguem a celebrar contrato por força da interrupção das negociações por violação de deveres de lealdade, podem as partes chegar a celebrar contrato, quer inválido (nulo, por exemplo, por inobservância de forma legal ou anulado, por exemplo, por dolo, erro ou coacção) ou ineficaz stricto sensu (a título exemplificativo, por faltar um requisito legal ou por ser celebrado com abuso de representação) por violação dos deveres decorrentes da boa fé nas fases negociatória e/ou decisória, quer válidos e eficazes, tanto convalidados (anuláveis que não são anulados), como contratos desprovidos de qualquer vício «ab initio», mas nos quais se verifique um desequilíbrio de prestações provocado por uma omissão de informação ou falsa informação ou por um aproveitamento por uma das partes de um poder negocial mais fraco da contraparte. Ora, no caso sob análise, o dever ou ónus de declaração inicial de risco do tomador do seguro ou do segurado inclui-se na categoria dos deveres pré-contratuais, ou seja, a serem respeitados pelo tomador do seguro ou segurado nas fases negociatória e decisória da formação de um contrato de seguro, e a sua violação pode conduzir à celebração de contrato, tratando os arts. 25.º e 26.º da LCS das consequências aplicáveis caso o mesmo se venha a formar com violação do dever pré-contratual referido.

18. Seguindo o regime geral dos vícios da vontade, o art. 25.º da LCS estabelece, claramente, como sanção ou consequência desfavorável para o incumprimento do dever ou ónus do tomador do seguro ou do segurado de declararem inicialmente o risco nos termos do art. 24.º da LCS, a invalidade – na forma da anulabilidade – do contrato de seguro, por se verificar erro provocado ou dolo (art. 252.º do CC). Antes de mais avanços, convém, seguindo PEDRO ROMANO MARTINEZ90, relembrar os distintos sentidos da noção de «dolo»: quer o sentido de modalidade de culpa, ou seja, de elemento subjectivo de uma acção, correspondente ao juízo feito pelo próprio agente em determinada actuação (conhecimento e intenção de produzir determinados efeitos) – contrapondo-se a negligência, a qual corresponde à violação de deveres de cuidado –, quer o sentido de vício da vontade, ou seja, de «qualquer sugestão ou artifício que alguém empregue com a intenção ou consciência de induzir ou manter em erro o autor da declaração, bem como a dissimulação, pelo declaratário ou terceiro, do erro do declarante», previsto e regulado nos termos do art. 253.º do CC – contrapondo-se, neste sentido, ao erro simples, ou seja, situações em que a declaração negocial se formou com

89 Consagrada em França, Bélgica, Itália, Espanha, Alemanha. 90 Comentários Complementares de PEDRO ROMANO MARTINEZ em anotação ao art. 24.º da LCS, Lei do Contrato de Seguro Anotada, 2.ª ed., pp. 161.

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algum desvio em relação ao que se queria dizer por ter assentado em pressupostos ou informações insuficientes ou incorrectas, mas sem que tenha havido intenção do declarante de provocar tal situação (arts. 247.º, 251.º e 252.º do CC). Com efeito, enquanto que o dolo-modalidade de culpa é um elemento subjectivo de uma conduta, o dolo-vício da vontade é uma acção, que, necessariamente, é acompanhada do elemento subjectivo dolo, i.e., é praticada com conhecimento e intenção de produção do erro no declaratário. Ora, nos arts. 25.º e 26.º da LCS prevêem-se, distintamente, as sanções para o incumprimento do dever pré-contratual de declaração inicial do risco previsto no art. 24.º da LCS consoante a modalidade de culpa em causa – ou seja, consoante a violação seja dolosa ou negligente –, mas no art. 25.º da LCS a situação de omissões ou inexactidões dolosamente provocadas corresponde ao instituto do dolo, vício da vontade, previsto no art. 253.º do CC. Deste modo, o art. 25.º regula a situação de contrato de seguro celebrado com violação dolosa pelo tomador do seguro ou pelo segurado de dever pré-contratual de informação, no que toca ao risco a segurar pelo segurador, e, consequentemente, com base numa declaração negocial pelo último assente em erro causado pelo dolo. Por outras palavras, e conforme referido, se não houver erro, não se aplica o art. 25.º em causa, pois está-se fora do âmbito da sua previsão. Acresce que o facto de o art. 25.º da LCS regular um caso de «dolo», como vício da vontade, tem como consequência a necessidade de verificação dos requisitos exigidos nos arts. 253.º e 254.º do CC, nomeadamente da dupla causalidade neles requerida: o dolo tem de ser causa do erro e este tem de ser essencial para o declarante, sendo a causa da anulabilidade (n.º 1 do art. 254.º do CC); se o dolo não for a causa do erro, está-se perante erro simples, o qual não se inclui no âmbito do art. 25.º da LCS, mas no do art. 26.º da LCS, não determinando a invalidade do contrato; se o erro não for essencial, ou seja, se o segurador, mesmo conhecendo o erro, tivesse contratado com o tomador do seguro, então também não se aplica o art. 25.º da LCS e o contrato é válido. Deste modo, para anular o contrato o segurador terá de demonstrar que o dolo o conduziu ao erro e que, se conhecesse o erro, não teria celebrado o contrato, ou seja, a essencialidade do erro. Verificada a previsão do art. 25.º da LCS, «o contrato é anulável (…)», tendo o legislador seguido solução equivalente à prevista no regime geral das situações de erro (arts. 247.º, 251.º, 252.º e 253.º do CC). O artigo mencionado regula, então, de forma especial relativamente ao que se encontra previsto em sede geral, alguns aspectos da anulabilidade por omissões ou inexactidões dolosas, tais como a forma de fazer operar a anulabilidade - «mediante declaração enviada pelo segurador ao tomador do seguro» (n.º 1) –, o prazo dentro do qual se pode proceder à anulação do contrato – «no prazo de três meses a contar do conhecimento daquele incumprimento» (n.º 2), aplicando-se os efeitos gerais do regime da anulabilidade que, no caso concreto, do lado do segurador, correspondem à não cobertura retroactiva do sinistro – «o segurador não está obrigado a cobrir o sinistro que ocorra antes de ter tido conhecimento do incumprimento doloso referido no n.º 1 ou no decurso do prazo previsto no número anterior, seguindo-se o regime geral da anulabilidade» (n.º 3). Por sua vez, do lado do tomador do seguro ou do segurado, os efeitos da anulabilidade corresponderiam à restituição do valor do prémio pago, mas a lei prevê especialidades para os casos em que aqueles tenham agido com dolo simples ou qualificado, nomeadamente, estabelece o direito do segurador, em caso de dolo simples e de ausência de dolo ou negligência grosseira por parte do segurador, «ao prémio devido até

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ao final do prazo referido no n.º 2» (n.º 4) e, «em caso de dolo do tomador do seguro ou do segurado com o propósito de obter uma vantagem», ao prémio devido «até ao termo do contrato» (n.º 5). Tem sido colocada a questão de saber qual o prazo aplicável para a anulação do contrato, se o prazo geral do art. 287.º do CC91, se um prazo especial de três meses previsto no n.º 2 do art. 25.º da LCS. Da interpretação do art. 25.º supra efectuada, não parece defensável outro sentido que não o de o n.º 2 do mesmo prever um prazo especial mais curto, de três meses, que afasta o prazo geral, de um ano (art. 287.º do CC), a contar do conhecimento do vício, mantendo-se, em tudo o que não for especialmente regulado no art. 25.º da LCS, o regime geral da anulabilidade do contrato. Assim que o segurador tem conhecimento do erro, tem três meses para enviar declaração ao tomador do seguro a anular o contrato, sob pena de o mesmo se convalidar. Somente no caso de o sinistro ocorrer no decurso do prazo de três meses, parece que o segurador terá de anular o contrato logo no momento e no processo de regularização do sinistro, pois não poderá escusar-se do cumprimento da sua prestação sem proceder à anulação do contrato. Se negar o cumprimento da prestação, com base noutro fundamento, sem proceder à anulação do contrato, ter-se-á de concluir que considerou o contrato convalidado, restando discutir os outros fundamentos invocados. Caso o sinistro já tenha ocorrido quando o segurador se apercebe do erro, então o primeiro ainda goza do prazo de três meses a contar do conhecimento do vício para anular o contrato, sem prejuízo de o ter de fazer no âmbito do processo de regularização do sinistro se ainda estiver em curso. Conforme referido, os ns.º 3, 4 e 5 do art. 25.º da LCS regulam os efeitos da anulação do contrato, remetendo-se para a lei geral (arts. 285.º e ss. do CC), com as especialidades aí previstas. As especialidades determinadas nos n.º 4 e 5 do art. 25.º da LCS podem ser interpretadas como uma indemnização pré-fixada para a violação dos deveres pré-contratuais pelo tomador do seguro (responsável pelo pagamento do prémio), embora no caso do n.º 5, essa indemnização pareça ter mais uma natureza sancionatória (aplicável ao caso de fraude, ou seja, «de dolo do tomador do seguro ou do segurado com o propósito de obter uma vantagem»). Nos termos do n.º 4, o dolo e a má fé do tomador do seguro conferem a possibilidade de o segurador fazer seu o prémio até ao final do prazo dos três meses, mesmo anulando o contrato, que não produz qualquer outro efeito (nos termos gerais do art. 289.º do CC para os quais remete o n.º 3 do artigo em anotação), a não ser que tenha havido, igualmente, dolo ou negligência grosseira do segurador ou do seu representante. Podem enquadrar-se na excepção prevista no n.º 4, os casos de o segurador ter tido conhecimento ou de se ter apercebido ou de se dever ter apercebido, se usasse da diligência normal que lhe era exigível, das omissões ou inexactidões cometidas pelo tomador do seguro ou segurado e não tenha dito nada para se fazer valer mais tarde das omissões ou inexactidões para anular o contrato e, ainda, ganhar o valor do prémio com isso. Mais uma vez, numa procura de solução de equilíbrio, o dolo ou negligência grosseira do segurador (ou do seu representante, cujos actos são imputáveis ao primeiro), mais experiente no mercado, anulam o efeito do dolo simples do tomador do seguro. Somente no caso de o dolo do tomador do seguro ou do segurado apresentar uma gravidade superior – constituir fraude – é que a lei deixa de ter qualquer preocupação com os primeiros, obrigando-os a pagar a totalidade do prémio devido até ao final do contrato, o que, claramente, tem uma função punitiva e preventiva. Contudo, conforme referido supra,

91 No sentido da aplicação do prazo geral de um ano nos casos referidos, Arnaldo Costa Oliveira, em anotação ao art. 25.º da LCS, Lei do Contrato de Seguro Anotada, 2.ª ed., pp. 158.

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embora não esteja previsto no n.º 5, caso haja «dolo qualificado» ou fraude de ambas as partes, embora o negócio se mantenha anulável (art. 254.º, n.º 1, do CC), não há lugar à indemnização estabelecida como sanção para o tomador do seguro no preceito referido.

C) Omissões ou inexactidões negligentes

19. Tendo a lei dado um tratamento separado e específico ao caso das omissões ou inexactidões negligentes, no seguimento das discussões doutrinárias e jurisprudenciais relativas ao art. 429.º do CCom, a solução consagrada já não é a de invalidade do contrato, mas sim a da validade do contrato e da consagração do direito potestativo do segurador à sua alteração ou cessação do contrato, seguindo, mais uma vez, solução pacifica no direito comparado92. Com efeito, dada a menor gravidade das omissões ou inexactidões negligentes – em que o agente violou deveres de cuidado, mas não quis e não se conformou com o resultado – considerou-se que as mesmas tinham de ter tratamento substancialmente distinto dos casos em que o tomador do seguro ou o segurado agiu dolosamente – querendo conscientemente a violação do dever de declaração inicial do risco e a indução em erro do segurador –, impondo-se um regime menos pesado, já que o regime da anulabilidade seria excessivamente desfavorável ao tomador do seguro e/ou ao segurado. Assim, o âmbito do art. 26.º da LCS abrange aqueles casos em que, apesar da violação de um dever pré-contratual de informação, se chega a celebrar contrato de seguro válido, mas em que poderá existir um desequilíbrio de prestações ou mesmo a cobertura de objecto que, caso o segurador tivesse conhecido devidamente os factos omitidos ou inexactos, não teria existido. Deste modo, nos termos do n.º 1 do art. 26.º da LCS, perante o incumprimento negligente pelo tomador do seguro ou pelo segurado do dever de declarar inicialmente o risco, o segurador tem o direito de propor uma alteração do contrato, fixando um prazo não inferior a 14 dias, para o envio da aceitação ou, caso a admita, da contraproposta [alínea a)], ou de fazer cessar o contrato, para o que tem de demonstrar que, em caso algum, celebra contratos para a cobertura de riscos relacionados com o facto omitido ou declarado inexactamente [alínea b)]. A solução consagrada, não sendo idêntica, nem assentando nos mesmos requisitos, apresenta algumas semelhanças com o regime geral da alteração das circunstâncias (art. 437.º do CC), para o qual se remete em caso de erro sobre as circunstâncias que constituíram a base do negócio (art. 252.º, n.º 2, do CC). De facto, no caso de ter havido omissões ou informações inexactas prestadas negligentemente – e não intencionalmente – pelo tomador do seguro ou pelo segurado ao segurador, mas tendo conduzido a uma previsão errada ou inexacta do risco pelo segurador, que ficou prejudicado nas condições contratuais que aceitou, prevê-se a possibilidade de uma solução de equilíbrio entre os interesses das partes, caso a mesma ainda seja possível, e somente se permite o exercício do direito de resolução do contrato pelo segurador no caso de o risco real, na parte em que diverge do risco previsto, não integrar as suas coberturas normais, ou seja, encontrar-se excluído dos riscos normais dos contratos que celebra. Outra característica do regime consagrado é a necessidade de verificação de um nexo causal entre

92 Solução consagrada em Bélgica, França, Espanha e Itália. Vide ARNALDO COSTA OLIVEIRA, Lei do Contrato de Seguro Anotada, pp. 119 e ss..

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o incumprimento negligente do dever pelo tomador do seguro ou segurado e a divergência entre o risco previsto e o risco real, causando, um dano ao segurador. Quanto ao modo de exercício dos direitos referidos, o segurador pode exercê-los i) extrajudicialmente, mediante declaração a enviar ao tomador do seguro, ii) no prazo de três meses a contar do seu conhecimento, iii) a cessação somente produzindo efeitos 30 dias após o envio da declaração de cessação ou 20 dias após a recepção do tomador do seguro da proposta de alteração, sem que este responda ou a rejeite. A lei prevê este período temporal como forma de proteger o tomador do seguro ou segurado, durante o período referido até, por exemplo, conseguir a cobertura certa com o mesmo ou com outro segurador, sendo uma norma especial em relação ao art. 224.º, n.º 1, do CC. Com a cessação do contrato, o prémio é devolvido pro rata temporis atendendo à cobertura havida, solução que consiste na aplicação da regra do art. 107.º, n.º 1 e 2 da LCS. Finalmente, o n.º 4 estabelece mais uma solução de equilíbrio na sequência da consagrada no n.º 1 do mesmo preceito: se antes da cessação ou modificação do contrato ocorrer um sinistro causado por facto relativamente ao qual tenha havido omissões ou inexactidões negligentes (exigência de nexo causal), verifica-se uma redução na cobertura do sinistro proporcional à diferença entre o prémio pago e o que seria devido, caso tal facto tivesse sido previsto desde o início, aquando da celebração do contrato. Mais uma vez, só se permite que o segurador não cubra o sinistro se este demonstrar que, em caso algum, teria celebrado o contrato se tivesse conhecido o facto omitido ou declarado inexactamente, nesse caso, devolvendo o valor do prémio de modo a que o tomador do seguro não fique excessivamente prejudicado. No seguimento do exposto quanto à lógica e à «ratio» do regime sob análise e também do regime geral dos contratos, caso tenha havido dolo do segurador a par do incumprimento negligente do dever de declaração inicial de risco pelo tomador do seguro ou pelo segurado, ainda que a conduta dolosa do segurador não caiba no âmbito da previsão da norma do n.º 4 do art. 24.º da LCS e não se aplique a estatuição da mesma, o segurador deixa de poder invocar a modificação ou resolução do contrato (vide solução semelhante no art. 438.º do CC).