Sujeitos de Direitos

download Sujeitos de Direitos

of 13

description

Sujeitos de DireitosSujeitos de DireitosSujeitos de Direitos

Transcript of Sujeitos de Direitos

  • 9Cad. Cedes, Campinas, v. 22, n. 57, agosto/2002, p. 9-21Disponvel em

    A GENTE NO PODE FAZER NADA,S PODEMOS DECIDIR SABOR DE SORVETE.

    ADOLESCENTES: DE SUJEITO DE NECESSIDADESA UM SUJEITO DE DIREITOS*

    JORGE LYRA**

    BENEDITO MEDRADOPEDRO NASCIMENTODOLORES GALINDO

    MARISTELA MORAESCLUDIO PEDROSA

    RESUMO: Em nossa sociedade, percebe-se um crescimento da pre-ocupao com a adolescncia, sendo esta ltima representada noapenas como uma fase da vida, mas um perodo, a priori, sem-pre problemtico. O adolescente, por sua vez, tem sido visto comoum sujeito de necessidades, por exemplo, de um atendimento desade especfico. Na prtica, entretanto, pouco se tem trabalhadocom o adolescente como sujeito de direitos, a despeito do debateem torno do Estatuto da Criana e do Adolescente. Com base nacrtica a esta postura, o presente artigo tem como objetivo apre-sentar uma experincia de pesquisa-interveno de educao no-formal com um grupo de adolescentes de camadas baixas, na qualse procurou discutir noes correntes de adolescncia, possibili-tando um mapeamento e uma (re)construo de outros sentidos.

    Palavras-chave: Adolescncia. Juventude. Pesquisa. Interveno.Educao no-formal.

    * Uma verso anterior desse texto foi apresentada no IX Encontro de Cincias SociaisNorte-Nordeste, em Natal (RN), de 11 a 13 de agosto de 1999, no GT Cultura ejuventude. Gostaramos de agradecer as contribuies de Karla Galvo; Kaliani Ro-cha; Maria do Carmo Adrio; Joo Bosco Junior; Adriano Silva; Luciana Leo; NaraVieira; Sibelle Barros e a todos que fazem o PAPAI.

    ** Todos os autores so membros do Programa PAPAI da Universidade Federal dePernambuco (UFPE). E-mail: [email protected]. Site: http://www.ufpe.br/papai

  • 10 Cad. Cedes, Campinas, v. 22, n. 57, agosto/2002, p. 9-21Disponvel em

    WE CANT DO NOTHING BUT DECIDE ICE CREAM FLAVORS.ADOLESCENTS: FROM SUBJECT OF NECESSITIES TO SUBJECT OF RIGHTS

    ABSTRACT: Our society shows an increasing concern for adolescence,which is represented not only as a phase of life, but also as a periodthat is always problematic. Adolescents, as for them, are consideredas subjects of such necessities as specific health aids. In practice,however, very little has been done for adolescents as subjects ofrights, in spite of the debate about the Statute of Children andAdolescents. Based on a criticism to this position, this paper aimsat presenting an experience of research intervention in non-for-mal education with a group of low-class adolescents, in which weintend to discuss the current notion of adolescence, allowing akind of identification and (re)construction of other meanings.

    Key words: Adolescence. Youth. Research. Intervention. Non-for-mal education.

    os dias de hoje, convivemos com a idia de um sujeito res-ponsvel pelo gerenciamento do seu presente e futuro, respon-svel por seus projetos, cada vez mais individualizado, dimen-

    sionado como decorrente de escolhas pessoais. Se, por um lado, cresceessa responsabilizao pela felicidade (ou infelicidade), por outro, mul-tiplica-se o leque de alternativas possveis: so mltiplos os perfisidentitrios delineveis (Melucci, 1997).

    No seio da sociedade contempornea, a adolescncia emergecomo um perodo da vida revestido de interesse e passa a ser compre-endido como uma poca urea caracterizada pela possibilidade de trn-sito maior em relao aos cdigos rgidos do moralmente louvvel edo moralmente condenvel. Essa , sem dvida, uma retrica que podeser encontrada nas propagandas dirigidas ao jovem e divulgadas pelomass media: ser jovem liberdade, vigor, ousadia, estando estes geral-mente ligados cultura e comportamento (Abramo, 1997).

    Paralela a essa exaltao da juventude, h tambm toda umaretrica do medo, da violncia, do horror diante de uma juventudevista como um problema social: a lgica dos nmeros freqente-mente balizada pela voz de especialistas. Este sentimento de inse-gurana inspirado pelos jovens, como assinala Maugner (1991, apudPeralva, 1997, p. 19), no pode ser reduzido a um efeito mecnicodo crescimento da delinqncia juvenil, (...) lana razes mais am-plamente no conjunto de representaes sociais que cada socie-dade e cada poca constroem sobre sua prpria juventude. Se essas

    N

  • 11Cad. Cedes, Campinas, v. 22, n. 57, agosto/2002, p. 9-21Disponvel em

    duas vises extremas podem ser identificadas, outros repertrios tam-bm se delineiam em meio a esses.

    De fato, pode-se constatar um painel multifacetado de explica-es sobre a natureza, gnese e funo da adolescncia e juventude.Cronologicamente, a adolescncia constitui o perodo imediatamenteanterior juventude, constitui tambm um perodo de interface coma infncia. Entretanto, no campo dos sentidos, a adolescncia podeser desprendida do orgnico, atravs de uma maior nfase no tipo deexperincia que a caracteriza do que propriamente no significante bi-olgico/cronolgico. Torna-se possvel, por exemplo, falar de um pro-longamento da juventude metaforizado nas expresses adultescncia,gerao canguru ou ps-adolescncia.

    Falar em adolescncia implica, de certo modo, uma refernciaao biolgico, mas parece-nos que na experincia atual refere-se, so-bretudo, ao campo dos sentidos dessa experincia contempornea,de um certo modo de subjetivar-se. um fato que no mundo mo-derno esta fase alcanou um status de realidade: uma experincia aser vivida por cada sujeito sem que este possa evit-la ou manter-senela pelo tempo que desejar. A adolescncia percebida como umacena crucial na construo das narrativas pessoais. Naturaliza-se aadolescncia como um perodo essencial para o crescimento do in-divduo e para alguns socilogos, de linha mais evolucionista, essen-cial para o desenvolvimento da sociedade, na medida em que os jo-vens constituiriam focos de mudana, de alteraes no status quo.

    Grande parte das polticas pblicas direcionadas aos jovensparece estar apoiada nessa retrica que ressalta a ameaa representa-da pela juventude, com constante reforamento da idia do jovemcomo exposto a uma srie de riscos prprios a sua fase, os quais po-dem ser internos (crise identitria) ou externos (violncia).

    Em linhas gerais, circulam no cotidiano contemporneo idi-as sobre adolescncia e juventude que se associam noo de crise,desordem, irresponsabilidade, enfim, problema social a ser resolvido,que merece ateno pblica. Assim, o enfoque de risco, em particu-lar, aparece fortemente associado a esses repertrios, por meio de ex-presses como: gravidez de risco, risco de contrair o HIV, risco deuso de drogas ilcitas, risco de vida frente violncia. O risco gene-ralizado parece, assim, definir e circunscrever negativamente esse pe-rodo da vida, possibilitando a construo de expresses absurdas comoa prpria preveno da adolescncia (Medrado & Lyra, 1999).

  • 12 Cad. Cedes, Campinas, v. 22, n. 57, agosto/2002, p. 9-21Disponvel em

    Como analisa Abramo (1997), a maior parte dos programas tomaos jovens como problemas sobre os quais necessrio uma ao parareintegr-los ordem social, por meio de estratgias como ressocializa-o, capacitao profissional, ou de uso do tempo livre.

    No podemos negar os dados epidemiolgicos, mas to somen-te mostrar como vai se construindo a noo do adolescente como umsujeito permanentemente em risco, submetido a uma condio es-pecial. Se tal concepo pode por um momento ser aceita sem mai-ores implicaes, um de seus reversos deve ser alvo de ateno aconstruo do adolescente como um sujeito de necessidades defini-das em relao a um estado timo, que parece ser a fase adulta, des-crita constantemente como o pice do desenvolvimento humano. interessante que ningum tenha ainda tentado tecer uma histria dosadultos. Se esta uma referncia forte para definir e valorar qual-quer etapa da vida, parece no ser suficiente para abarcar a defini-o de uma historicidade prpria.

    Cria-se, assim, uma relao lgica de causa e efeito: se o adoles-cente uma fonte potencial de problemas sociais e um risco constantea si mesmo e sociedade, torna-se preciso prevenir a sua exposio adeterminados fatores, como, por exemplo, a gravidez. Indo mais a fun-do, v-se subliminarmente a emergncia de um discurso heteronmicono qual o(a) adolescente desprovido(a)1 de sua positividade, em de-trimento de um padro que tem como referncia a vida adulta. Por ummalabarismo retrico termina-se por quase se afirmar que preciso pre-venir a adolescncia, tal qual concluem ironicamente Medrado & Lyra(1999) que, tomando a gravidez na adolescncia como objeto de anli-se, afirmam: no nos surpreenderia se um dia ouvssemos em uma pa-lestra ou lssemos em um projeto de pesquisa e/ou interveno a ex-presso prevenindo a adolescncia (p. 230).

    Com o devido recorte, no se est fazendo uma crtica genera-lizada a trabalhos junto a adolescentes, mas to somente buscandoassinalar premissas problemticas que podem conduzir a aes oudiretrizes distorcidas no que tange populao adolescente, poden-do vir a resultar em aes de pouca efetividade e que, de certa for-ma, podem auxiliar a perpetuao desse modelo.

    Antes de qualquer considerao, configura-se essencial presenti-ficar o adolescente como sujeito dotado de uma positividade. Ao sepensar em qualquer programa de ao direcionado a essa populao,cabe investigar o modo como experimentam e interpretam essas si-

  • 13Cad. Cedes, Campinas, v. 22, n. 57, agosto/2002, p. 9-21Disponvel em

    tuaes problemticas (Abramo, 1997), deixando claro que faz-lono somente criar um espao-simulacro no qual a fala do adoles-cente e do profissional reifiquem o que j se quer dizer ao primeiro,sendo, portanto, mais um espao de reproduo social, e no deconstruo de um espao de dilogo, condio sine qua non para oprotagonismo juvenil.

    Para falarmos de uma positividade do adolescente, cabe-noscaminhar na direo de uma tendncia oposta vinda dos prpriosjovens que, recentemente, tm-se organizado em fruns especiais;seja em lutas contra o status quo, seja em favor de ideais conservado-res. Movimento esse endossado pelo Estatuto da Criana e do Ado-lescente (ECA) e de todos os fruns de discusso feitos em torno dele.Verifica-se a existncia de movimentos feitos por jovens objetivandomudanas mais amplas, em contraponto irresponsabilizao atribu-da ao adolescente. Entretanto, estes movimentos, como assinalaMelucci (1997), aparecem dissolvidos em meio combinao de di-versos outros fatores pobreza, desemprego, imigrao , no ha-vendo ainda um espao para que as vozes juvenis sejam ouvidas.

    A partir dessas reflexes, em nosso programa de interveno to-mamos como princpio tico o respeito s jovens geraes, expressoatravs da criao de um espao de acolhimento e exerccio de auto-nomia e responsabilidade. Isto feito a partir de uma lgica baseada naacepo de um sujeito capaz de pr a prpria noo de adolescnciana arena das possveis ressignificaes, no campo de uma ao propo-sitiva. Trata-se de um espao no qual a noo de um sujeito de direi-tos no aparece definida em funo da heteronomia, numa perspecti-va homogeneizante, mas ao contrrio, incorpora a alteridade comovalor fundamental (Sawaia, 1994). Sujeitos que podem efetivamentecontribuir para a soluo dos problemas sociais, alm de simplesmentesofr-los ou ignor-los (Abramo, 1997, p. 28), por meio da criaode um locus de enunciao juvenil.

    Nessa coletnea, temos como objetivo apresentar uma experi-ncia de pesquisa/interveno, realizada com um grupo formado poradolescentes atendidos pelo Ncleo do Programa de Sade do Ado-lescente (PROSAD)2 no Hospital das Clnicas da Universidade Federalde Pernambuco. Como proposta de atuao, essa atividade estinserida num plano de ao mais amplo, desenvolvido no ProgramaPAPAI, que visa trazer para primeiro plano de discusso a importn-cia da participao jovem e masculina no campo das relaes de g-nero, sexualidade e reproduo.

  • 14 Cad. Cedes, Campinas, v. 22, n. 57, agosto/2002, p. 9-21Disponvel em

    Essa experincia de interveno foi considerada dentro de umalgica institucional, que visa uma interlocuo entre as reas de pes-quisa, ensino e extenso, apontando algumas indicaes para outrostrabalhos junto a esta populao. Nesses grupos de adolescentes,buscamos construir um espao no qual discutimos noes correntesde adolescncia e questes relativas a essas noes, permitindo a cons-truo dialgica de novos/outros sentidos.

    O trabalho de interveno foi subdividido em algumas fases: (1) negoci-ao da proposta com instituio conveniada; (2) recrutamento dos jo-vens; (3) formao do grupo; (4) reunio com pais/responsveis; (5) de-senvolvimento das atividades em grupo; (6) avaliao da atividade junto equipe/profissional da instituio parceira e (7) sistematizao da expe-rincia. Alm disso, a atividade em grupo foi intercalada por reunies deavaliao e planejamento, subsidiadas pelas avaliaes feitas pelos inte-grantes da equipe e pelos registros feitos de cada encontro.

    3

    Os membros da equipe tcnica4 de interveno alternavam-senas funes de: coordenador responsvel pela conduo do encon-tro como um todo; observador encarregado de fazer o registro dasatividades desenvolvidas, estando atento s facilitaes feitas pela equi-pe e aos movimentos do grupo; facilitador compreende a atuaomais centrada diretamente na conduo das atividades do grupo.

    Cada encontro foi subdividido em quatro etapas: 1. abertura aplicao de recurso tcnico para possibilitar um movimento deintroduzir o grupo no sentido da temtica a ser abordada; 2. recur-so expressivo aplicao de uma tcnica na qual buscamos apreen-der vivncias/experincias pessoais e sociais dos membros do grupo;3. discusso confrontao das idias do grupo com maior centrali-dade nos pontos-chave a serem alcanados no dia; avaliao cadaparticipante, incluindo a equipe, apresenta os pontos mais impor-tantes do dia, sugestes e pontos negativos; 4. fechamento recur-so tcnico aplicado ao grupo com o objetivo de concluir a atividadedo dia, reforando pontos necessrios, seja do ponto de vista tem-tico, seja do ponto de vista da dinmica scio-afetiva.

    O grupo iniciou suas atividades no dia 5 de abril de 1999 eencerrou em 7 de junho do mesmo ano, com reunies semanais comdurao de duas horas. Ao todo foram feitos dez encontros, sendo oprimeiro formado por adolescentes e pais de adolescentes, os oito se-guintes apenas com os adolescentes e o ltimo com os pais destes.Em cada encontro, era abordada uma temtica especfica de uma

  • 15Cad. Cedes, Campinas, v. 22, n. 57, agosto/2002, p. 9-21Disponvel em

    programao negociada entre a equipe tcnica e os adolescentes nosegundo encontro.

    Os temas trabalhados nessa programao foram: adolescncia;dilogo com os pais; relacionamentos (amizade, o ficar, namoro);sexualidade na adolescncia (relao sexual, mtodos contraceptivose preveno de DST/Aids); aborto; drogas e relaes de gnero. Noltimo encontro com os adolescentes fizemos uma avaliao geral doprocesso e uma comemorao de encerramento.

    A composio da equipe tcnica levava em considerao a baseinstitucional do PAPAI, que entende a estrutura universitria como umlocus privilegiado que, por sua natureza institucional mais ampla,permite e facilita a inter-atuao de instncias que desenvolvem ati-vidades nas reas de educao, sade e ao social, de modo a possi-bilitar um dilogo entre essas instncias e as perspectivas dos ado-lescentes.

    O grupo de adolescentes era composto por seis integrantes,sendo cinco do sexo feminino e um do sexo masculino, com idadesentre doze e dezoito anos. Esse nmero foi estabelecido s depoisdo segundo encontro, pois na primeira reunio (no dia 5 de abril)estiveram presentes pais de adolescentes e adolescentes, aproxima-damente 40 pessoas. Nessa reunio, em que foi apresentada aos usu-rios do servio de sade a proposta de trabalho, juntamente comos horrios disponveis para a realizao dos encontros, a incompati-bilidade de horrios foi o maior impedimento participao de mui-tos interessados.

    Num primeiro momento, realizava-se o recurso tcnico deabertura, utilizado para chamar os adolescentes para a atividade, pre-parando o grupo para a temtica do dia. Para tal, foram utilizadastcnicas de relaxamento, mmicas e outros jogos ldicos. Alm dis-so, tal recurso teve, nos primeiros encontros, tambm uma funointegradora do grupo, estimulando a participao dos adolescentesdurante o resto do encontro.

    Um grupo que a princpio se mostrava receoso e hesitante pas-sou a configurar-se num grupo interativo, dinmico e cooperativo, eas histrias construdas no dia a dia de cada um comearam a surgir.Sem dvida que a inibio inicial faz parte do processo de qualquergrupo e que gradativamente vai sendo dissipada, mas podemos apon-tar o desenvolvimento de uma relao ativa e construtiva entre os in-divduos como o resultado pretendido de uma abordagem planejada.

  • 16 Cad. Cedes, Campinas, v. 22, n. 57, agosto/2002, p. 9-21Disponvel em

    Porm, em certas situaes o recurso de abertura escolhido nocumpriu o objetivo. Em alguns encontros, o envolvimento buscadono foi alcanado na intensidade pretendida. Aqui aprendemos noapenas a aceitar o momento do grupo, mas a compreender que estedeveria ser levado em conta ao escolhermos cada recurso a ser utili-zado. No se tratava mais de pensar na dade tema-recurso, masnuma associao tema-recurso-momento do grupo e nvel de mobili-zao da temtica.

    Num segundo momento, era aplicado um recurso tcnico ex-pressivo com o objetivo de subsidiar uma reflexo ulterior a partirdas vivncias do grupo. Como tcnicas utilizamos recorte/colagem,construo de histrias, encenao e mmica, que obedeciam a umroteiro de tpicos definidos na reunio de planejamento. Atentan-do-se no somente para o surgimento de questes propostas pela equi-pe, como tambm se conferia ateno s questes postas no desen-volvimento do recurso.

    Um terceiro momento consistia numa discusso despertada apartir do resultado final produzido na tcnica expressiva (cartaz, his-tria, mmica, teatro etc.). Neste segmento, tanto eram trabalhadostpicos provenientes dos discursos dos adolescentes como tambmeram trazidas informaes adequadas temtica do dia.

    medida que as histrias sociais e pessoais de cada um vinham tona, traziam com elas as diferenas e, com estas ltimas, o confli-to. Ns da equipe, de certa forma, pretendamos que algo aconte-cesse, para que se pudesse tornar explcito o conflito de valores im-plcito na relao do grupo, visando com isso colocar em debate asconcepes hegemnicas que os prprios adolescentes acreditam, eque tambm tm possibilidades de ressignific-las.

    Ao final do grupo, realizou-se uma reunio com os pais/res-ponsveis com a temtica adolescncias, na qual pudemos rediscutircom os pais as concepes utilizadas por eles em sua vida diria, ecomo essas concepes se estruturam ao longo de suas biografias emrelao com a histria social a que pertenciam e como orientam suascondutas na relao familiar.

    Problematizando a experincia: a possibilidade de aes propositivas

    Viabilizar a experincia de interveno implicou atuar em meioa um conjunto de discursos que, mesmo heterogneos, convergiam

  • 17Cad. Cedes, Campinas, v. 22, n. 57, agosto/2002, p. 9-21Disponvel em

    para uma concepo do adolescente como vtima dos hormnios,da imaturidade, da falta de servios da prpria adolescncia. Rea-lizar o trabalho com o grupo implicou, assim, um processo de ne-gociao junto aos profissionais.

    Nas primeiras reunies com a equipe do ncleo do PROSAD,era clara uma posio medicamentosa explicitada pela definio doadolescente como um sujeito instvel, para o qual questes comogravidez e sexualidade mereciam ateno redobrada, com o fim deevitar uma gravidez precoce, por exemplo. Assim, tinha-se por par-te da instituio uma solicitao de atuar no sentido de prevenirque esses adolescentes se tornassem um problema social, a partirde uma situao de dilogo. Desse modo, o primeiro momento con-sistiu em criar junto com os profissionais desse ncleo uma outraperspectiva sobre a adolescncia, a fim de possibilitar a efetivaodo trabalho.

    Implicou tambm trabalhar as formulaes e posicionamentosenunciados pelos pais/responsveis. Estes, de certo modo, pareciamtambm esperar um outro tipo de trabalho de cunho psicoteraputicoou de orientao diretiva, explicitado no desejo de que eles [os ado-lescentes] tenham alguma orientao, de que possam conversar por-que so muito problemticos, agressivos e no sabem como lidar como adolescente porque hoje esto cada vez mais difceis. Uma das mesenunciou: certos filhos insistem em fazer coisas erradas.

    Uma das mes, inclusive, compareceu ao segundo encontrodestinado apenas aos adolescentes, intervindo no sentido de mostrarque a filha estava ali porque toma remdio, j que o dilogo emcasa existe. Ao que ela responde que ... vai melhorar essa fase queeu t passando. Assim, v-se que o espao de dilogo se afigurapara aquela me como instaurado por uma ausncia do mesmo noespao familiar e nunca um espao definido em funo de uma aopropositiva do/a adolescente.

    Significou trabalhar, junto aos adolescentes, a perspectiva deque no se trata de um grupo teraputico, nem uma exposio decontedos, mas um grupo para discutir temas de interesse relacio-nados, direta ou indiretamente, vivncia da adolescncia.

    Estes saberes diferenciados no foram anulados no contextointeracional do grupo. Estiveram presentes nas falas, nas prticas e nasintervenes demandadas. Partimos da compreenso de que, indepen-dente dos sujeitos envolvidos, todo olhar mais atento, de perto, com

  • 18 Cad. Cedes, Campinas, v. 22, n. 57, agosto/2002, p. 9-21Disponvel em

    a inteno de respeitar os pontos de vistas alheios e, na medida emque isto possvel, o distanciamento de nossos preconceitos e opini-es formadas, far sempre entrever realidades at ento impensadas e,quando no tanto, ao menos a elucidao de suposies.

    Saberes e poderes: negociando sentidos com os(as) adolescentes

    A prpria existncia desta experincia s foi possvel pelo fatode duvidarmos das opinies correntes acerca desta fase da vida. Aexistncia do PAPAI est motivada, em grande medida, pela crena deque no apenas estas so equivocadas, mas que, mais ainda, podeme precisam ser modificadas. Sendo assim, pde-se perceber os ado-lescentes com quem convivemos como sujeitos de direitos e deveres,imbudos de um forte sentido de autonomia e que, por isso mesmo,so capazes, como todos os sujeitos, de manipular suas identidadese discursos de acordo com seus interesses e contextos diversos.

    Esta a questo que estamos trazendo tona. A viso tradici-onal do adolescente como um ser dependente, um sujeito de ne-cessidades vivendo a eterna crise de no-ser-mais-criana-e-ainda-no-ser-adulto, talvez fale muito mais dos que a construram do quedos prprios adolescentes. No entanto, essa viso , muitas vezes,acionada de acordo com a questo que est sendo posta em jogo: mes-mo assumindo o esteretipo, eles o negam. Em outros momentos, aclareza com que eles interpelaram certas questes postas por ns, dei-xando-nos, s vezes, embaraados, faz tambm entrever uma postu-ra ativa, que vises cristalizadas no permitiriam notar que certas ati-tudes eram expresses de vozes discordantes do que est posto.

    Em determinada situao, quando estvamos criando conjun-tamente uma histria cujo tema eram as relaes de namoro e ami-zade, pudemos perceber um grande nmero de opinies que se opu-nham, cada um dos adolescentes buscando fazer com que o seu pontode vista prevalecesse. O prprio fato de perceber o grupo de modoheterogneo, por vrias vezes fazendo surgir conflitos, um elemen-to importante para o propsito de problematizar uma viso homoge-neizante do adolescente marcada pelo esteretipo.

    Duas integrantes do grupo, que eram amigas mesmo antes daformao do grupo, em vrias situaes marcavam suas opinies sem-pre em oposio a uma terceira. Enquanto esta se anunciava sempredentro de um discurso moderno e livre, onde dizia fazer sempre

  • 19Cad. Cedes, Campinas, v. 22, n. 57, agosto/2002, p. 9-21Disponvel em

    o que queria, sem maiores interferncias dos pais e mostrava-se favo-rvel a questes como sexo antes do casamento, passar a noite forade casa etc., as duas primeiras anunciavam um discurso que chama-ramos de conservador e sempre apresentado como condicionadopelas opinies e o controle dos pais. Demonstrando mesmo aver-so a certos comportamentos ou falas da outra integrante.

    Numa discusso sobre namoro, quando suas idias destoaramsignificativamente, intervimos colocando: o que fazer diante da di-ferena de opinies? Fomos mais alm, perguntamos o que cada umadelas sentia em relao divergncia da adolescente em questo e oque a prpria pensava. Depois disso, o grupo obteve um melhor fluxode comunicao e ela foi integrada. No pretendamos com estaao negar as divergncias, ou suprimir os conflitos do grupo, masviabilizar um maior dilogo entre todos os integrantes. A importn-cia do mesmo est em sugerir a diversidade de pontos de vista queso recobertos pela mesma noo de adolescncia.

    Em nvel diferente, mas igualmente apontando para a existn-cia de adolescentes sujeitos, podemos pensar sobre como, em algu-mas situaes, estes operavam uma certa manipulao de identidadesa partir do mesmo repertrio de esteretipos com que so percebidos.Como pontuamos acima, uma das mais veiculadas imagens acerca dosadolescentes a de que eles vivem num limite sempre mal definidoentre a infncia e a fase adulta e que, por isso, enfrentariam profundacrise de identidade e falta de clareza acerca de seus posicionamentos,aspiraes e projetos. Em outros termos, falta-lhes autonomia. Estasituao os impeliria a comportamentos transgressores, rebeldia, pou-ca adequao s regras e, face ao controle dos adultos, uma constantebusca por emancipao e liberdade.

    A gente no pode fazer nada, s podemos decidir sabor desorvete. Essa fala de uma das adolescentes do grupo remete insa-tisfao diante da autoridade dos pais, num momento em que fal-vamos sobre liberdade e sobre o modo como os pais educam os fi-lhos. Surge aqui um adolescente que quer ser livre para fazer o quequiser, sem ter que dar satisfao a ningum, corroborando a idiada privao, na qual se questiona a autoridade paterna, apontandosuas contradies: Um dia eles deixam, outro dia no deixam e noexplicam porque. (...) Um pai deve ter voz firme e no dizer umacoisa e depois outra. O prprio espao de discusso foi apontadoem momentos de avaliao como uma experincia positiva, exatamen-

  • 20 Cad. Cedes, Campinas, v. 22, n. 57, agosto/2002, p. 9-21Disponvel em

    te por constituir um lugar de liberdade que o ambiente domsticono proporcionava.

    Porm, em outros momentos, foi possvel ouvir coisas do tipo:Mas a gente deve dar razo aos pais, apesar de tudo. Aparecia a idia,veementemente reafirmada, das vantagens que podem existir nesta si-tuao. Possivelmente, isto se deve ao fato de que ningum queria pas-sar uma imagem negativa de suas famlias, ou de seus pais, mas remetetambm ao fato de que, no apenas se tem conscincia da estrutura dasrelaes de poder em que se vive, mas que as mesmas so resignificadasde acordo com os interesses em jogo. Ou seja, em alguns momentos, odiscurso de necessidade de emancipao e busca de liberdade aciona-do, fazendo perceber a assimetria geracional, mas esta mesma assimetria configurada positivamente quando se ressalta a importncia de se teralgum que cuida da gente e responsvel por muitas atitudes quepodem estar, inclusive, assentadas nesta relao.

    bom ter em mente que essa noo no est querendo remetera um jovem manipulador ou desproblematizar a situao de subordi-nao e falta de autonomia dos adolescentes, pelo contrrio, o que seest fazendo alertar para o fato de que apontar esta condio no qualificar o adolescente como vtima. Alm disso, ainda que questio-nem certas atitudes dos pais: a minha me fuma e bebe, eu no. Sefosse por uma influncia..., em outras situaes os adolescentesposicionam-se reproduzindo comportamentos dos pais, por vezes con-testados: Acho que quando eu crescer vou ser muito protetora comominha me. Vou fazer meu filho sofrer como minha me faz.

    Em suma, importante destacar que as anlises aqui apresen-tadas compreendem um processo ainda em fase inicial de desenvol-vimento. As consideraes por ns levantadas constituem anlisesexploratrias, que tiveram a difcil meta de propor um constante di-logo entre pesquisa e interveno social. A experincia com esse gru-po foi uma oportunidade para problematizar a viso estereotipadado adolescente como sujeito de necessidades, oferecendo subsdiospara aes mais eficazes voltadas para esta populao. importantetermos ateno especial para no construirmos, com base em valoresdados como naturais, verdadeiros problemas.

    Notas

    1. A partir desse momento empregaremos o genrico masculino para nos referirmos aose s adolescentes.

  • 21Cad. Cedes, Campinas, v. 22, n. 57, agosto/2002, p. 9-21Disponvel em

    2. O Programa de Sade do Adolescente (PROSAD) um Programa Nacional do Sistemanico de Sade (SUS) organizado numa distribuio distrital em ncleos e unidadesde sade pblica com base nos princpios da Organizao Mundial de Sade (OMS).

    3. O registro constitui um instrumento valioso de avaliao do processo, posto que per-mite um maior rigor na coleta e anlise das informaes. Atravs dos registros foipossvel observar a maneira como o grupo operava e seu progresso, permitindo ajus-tes constantes na proposta em funo do andamento do processo.

    4. A equipe tcnica, no 1 semestre de 1999, foi composta por profissionais e estudan-tes das reas de Psicologia, Antropologia, Medicina e Enfermagem.

    Referncias bibliogrficas

    ABRAMO, H.W. Consideraes sobre a tematizao da juventude noBrasil. Revista Brasileira de Educao, Belo Horizonte, n. 5/6, p. 25-36, 1997. Nmero especial.

    MEDRADO, B.; LYRA, J. A adolescncia desprevenida e a paternida-de na adolescncia: uma abordagem geracional e de gnero. In:SCHOR, N.; MOTA, M.S.F.T.; CASTELO BRANCO, V. (Org.). Cadernosjuventude, sade e desenvolvimento. Braslia, DF: Ministrio da Sa-de, Secretria de Polticas de Sade, 1999, p. 230-248.

    MELUCCI, A. Juventude, tempo e movimentos sociais. Revista Brasilei-ra de Educao, Belo Horizonte, n. 5/6, p. 5-14, 1997. Nmeroespecial.

    PERALVA, A. O jovem como modelo cultural. Revista Brasileira de Edu-cao, Belo Horizonte, n. 5/6, p. 15-24, 1997. Nmero especial.

    SAWAIA, B.B. Cidadania, diversidade e comunidade: uma reflexopsicossocial. In: SPINK, M.J.P. (Org.). A cidadania em construo: umareflexo transdiciplinar. So Paulo: Cortez, 1994, p. 147-156