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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS GERAIS
INSTITUTO DE ARTES E COMUNICAÇÃO SOCIAL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO (PPGCOM – UFF)
VALERIA VALENZUELA GÁLVEZ
SUJEITO, NARRAÇÃO E MONTAGEM
NOVOS MODOS DE REPRESENTAÇÃO
NO DOCUMENTÁRIO LATINO-AMERICANO CONTEMPORÂNEO
NITERÓI
2008
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS GERAIS
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INSTITUTO DE ARTES E COMUNICAÇÃO SOCIAL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO (PPGCOM – UFF)
VALERIA VALENZUELA GÁLVEZ
SUJEITO, NARRAÇÃO E MONTAGEM
NOVOS MODOS DE REPRESENTAÇÃO NO DOCUMENTÁRIO LATINO-AMERICANO CONTEMPORÂNEO
Dissertação apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção do Grão de Mestre. Área de concentração: Análise da imagem e do som
Orientador: Prof. Dr. ANTÔNIO CARLOS AMÂNCIO DA SILVA
NITERÓI 2008
VALERIA VALENZUELA GÁLVEZ
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SUJEITO, NARRAÇÃO E MONTAGEM
NOVOS MODOS DE REPRESENTAÇÃO
NO DOCUMENTÁRIO LATINO-AMERICANO CONTEMPORÂNEO
Dissertação apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção do Grão de Mestre. Área de concentração: Análise da imagem e do som
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________________ Professor Doutor Antônio Carlos Amancio da Silva – Orientador
Universidade Federal Fluminense
___________________________________________________ Professora Doutora Andréa Molfetta
Universidade de São Paulo
__________________________________________________ Professor Doutor João Luiz Viera Universidade Federal Fluminense
NITERÓI 2008
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AGRADECIMIENTOS
A minha querida Maria Laura pela compreensão das minhas ausências;
A minha família Luiz, Grécia, Pepe, Mariana, Leonardo e Felipe pelo incentivo e apoio;
Á CAPES pelo financiamento;
A Tunico Amâncio pela orientação e pela generosidade com que me acolheu desde o
primeiro dia que manifestei o meu interesse pela pesquisa de cinema latino-americano.
Também lhe agradeço o enorme otimismo e criatividade com que coordena, no LIA,
grupos de pesquisa e um valioso acervo de cinema latino-americano, tendo sempre
novas idéias para estreitar os laços entre o Brasil e o resto dos pesquisadores e
realizadores cinematográficos do nosso continente;
Aos professores Ana Mauad e João Luiz Viera pelas suas valiosas sugestões na minha
banca de qualificação;
À professora Andréa Molfetta pela participação na banca examinadora e pelo grande
aporte que as suas reflexiones sobre documentário latino-americano significaram para o
desenvolvimento desta dissertação;
Aos companheiros e amigos do programa de pós-graduação da UFF, especialmente a
Celina Ibazeta com quem pude compartir minha paixão pelo documentário e pela
história da América Latina.
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“Un país, una religión, una ciudad que no tiene cine documental, es como una familia
que carece de álbum de fotografías, es decir, una comunidad sin imagen, sin memoria”
Patricio Guzmán – La Importancia del Cine Documental – Madrid, 1997
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RESUMO
Na busca por identificar na produção documentária latino-americana
contemporânea estruturas de caráter formal, a partir das quais seja possível reconhecer elementos comuns a todo o conjunto que, nas suas diversas combinações, revelem estruturas narrativas predominantes, foi construído um modelo de analise que permite identificar os elementos discursivos e as figuras de montagem que se destacam nas obras. Percebe-se no novo documentário de autor latino-americano um olhar interior, que observa o mundo histórico permeado por uma percepção subjetiva. O olhar do documentarista se faz evidente no filme através de um sujeito da enunciação que é parte do discurso, no seu papel de autor/personagem. Essa nova modalidade audiovisual contemporânea, cuja enunciação se manifesta como eu te digo que o mundo é assim, expressa um processo que junta elementos discursivos aparentemente antagônicos: o geral com o particular, o individual com o coletivo e o político com o pessoal.
Se os documentaristas latino-americanos do Nuevo Cine elaboraram obras de línea didática e panfletária; hoje, suas preocupações passam pela reflexividade, destacando-se filmes auto-referentes que tratam do próprio processo de produção da reflexão. Uma nova poética surge como prática de resistência substituindo o que fora a linguagem revolucionária: Uma “narrativa dos afetos”, que a partir do registro do encontro entre quem filma y quem é filmado, constituísse também, em quanto reflexão singular, num gesto político.
PALAVRAS - CHAVES
América Latina – Documentário – Autor – Subjetividade – Montagem
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SUMÁRIO
Introdução
I. O Olhar Documentarista na América Latina
1. A vontade de ensinar
2. A necessidade de aprender
II. Relato e Montagem no Documentário Latino-americano
1. A presença de marcas de autoria
2. O domínio da entrevista
3. A natureza do material e suas possibilidades
III. Giro Subjetivo: Eu te digo que o mundo é assim
1. Variações sobre o mesmo
O Autor-personagem no documentário.
2. A “experiência” representada por autores latino-americanos
Yo no sé que me han hecho tus ojos, Calle Santa Fe e Santiago
Conclusões
Obras citadas
Obras consultadas
Anexo
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INTRODUÇÃO
A tradição documentária, ao longo da sua história, edificou suas bases com
maior ênfase nas preocupações morais e nos conteúdos do que nas formas de
representação – permitindo, assim, inúmeras possibilidades estéticas de realizar um
documentário. A grande diversidade, seja temática, estilística, técnica o metodológica,
dificulta enormemente a formulação de modelos e categorias.
Ao pensar, hoje em dia, a América Latina como um território homogêneo não
ressaltam, à primeira vista, escolas que agrupem documentaristas latino-americanos em
torno de um projeto formal de desenvolvimento de suas obras. Se por um lado, trata-se
de documentários com características que fazem referencia à sua origem, por outro,
estão cheios de particularidades que os tornam específicos.
A identificação de características comuns às produções latino-americanas é
difícil. Porém, ao rever obras de um determinado período histórico, constata-se nos
filmes uma espécie de espírito da época -Zeitgeist- impregnado não apenas nas
preocupações em termos de conteúdo, mas também na forma da expressão filmica. Este
espaço comum, no campo das representações, parece ter sua origem nos
condicionamentos procedentes de um processo histórico que reflete realidades diversas,
mas ao mesmo tempo com muitos pontos em comum.
As semelhanças em termos de estabilidade ou instabilidade econômica, assim
como as similitudes com respeito às problemáticas sociais, geraram nestes países uma
produção cultural semelhante no que diz respeito às suas preocupações e às suas
motivações. Na historia audiovisual da América Latina quando os movimentos sociais
se unificaram para lutar por interesses comuns, uma parte da produção cultural também
se unificou na intenção de contribuir com estes movimentos; porém sempre limitada
pelos interesses dominantes controladores da produção audiovisual de massa, assim
como pelas próprias carências econômicas.
Contudo, estas similitudes históricas não chegaram a ser determinantes para a
consolidação de uma produção cultural com uma identidade unificada. A formação da
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identidade latino-americana é um conceito construído, desde suas origens, de uma
forma artificial.
O termo “América Latina” diz respeito a um território delimitado geográfica e
econômicamente. A constituição das nações no continente implicou a assimilação de
modelos estáticos de representação, em que cada região era definida como possuindo
uma unidade homogênea, um conjunto de características que lhe conferiam uma
identidade mais o menos fixa, quando na realidade tratava-se de uma formação
continental mestiça.
Já o termo identidade é um conceito mais dinâmico cujas bases têm a ver com o
pertencimento à história. A idéia de “latinidade” surge nas lutas de independência
contra os europeus, e adquire maior popularidade a partir da revolução cubana, no
contexto das lutas contra as políticas de dominação dos Estados Unidos. No conjunto da
América Latina o conceito de identidade está fortemente vinculado a sua condição
histórica de dependência principalmente político-econômica. Neste sentido a latinidade
tem sido definida, ao longo da historia, pelas suas carências, caracterizando-se
fortemente pela sua condição de “colonizada”. E como a identidade se define em grande
parte a partir da sua relação com o “outro”, ou seja, por oposição a aquilo que “não
somos”, no caso da América Latina esta identidade se constitui pela relação com os
“outros que nos dominam”.
As estruturas políticas e econômicas formadas e deformadas pelo processo
colonial permitem falar da existência, na América Latina, de uma unidade que
“enquanto uma dada realidade sócio-espacial pode ser diversa e plural e a sua
diversidade e pluralidade mantenham-se numa unidade como corolário de um processo
histórico comum” (OLIVEIRA, 1998, p. 227).
Comum a todos os paises da América Latina é, antes de tudo, sua dependência
– econômica, política e cultural – Por isso, a cultura dominante nestes países, ainda
subdesenvolvidos, é entendida por alguns cientistas sociais como um Neo-Colonialismo
que continua se impondo desde fora. A exportação de mercadorias e de valores dá
prioridade às formas de vida ocidentais. As ideologias coloniais, historicamente
dominantes, universalizaram os conceitos políticos, sociais, culturais e artísticos. As
nações latino-americanas construíram suas identidades dentro de uma lógica
neocolonial em concordância com as universalizações do pensamento colonial,
influenciando assim, também, as suas formas de auto-representação. As representações
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audiovisuais da América Latina, que num primeiro momento pudessem ser consideradas
visões universais, são construídas, majoritariamente, a partir de normas eurocêntricas
(STAM, 2006).
A condição de dependência neocolonial pode produzir, também, sintomas de
carência de identidade, conseqüência da heterogeneidade de referências culturais
influenciadas há séculos por culturas externas. Para positivar esta condição, alguns
movimentos na América Latina fizeram uso da apropriação cultural, como forma de
indagar a natureza sincrética deste passado histórico e cultural para, assim, entender a
história da cultura latino-americana e produzir representações simbólicas mais
concordantes com este caráter sincrético da constituição destes países.
A idéia de identidade constituída na sua relação com os mundos culturais
exteriores e as identidades que esses mundos oferecem, quer dizer na interação entre o
“eu” e a sociedade, sofre atualmente uma crise de deslocamento do Sujeito do lugar que
ocupara no mundo social e cultural. Dita crise se desdobra da transformação da
sociedade moderna (projeto forjado no século XVIII), em o que alguns autores, como
Anthony Giddens e Zygmund Bauman, denominam modernidade tardia, ou outros
como Fredric Jameson preferem chamar de pós-modernidade. As reflexões sobre as
mudanças históricas que re-configuraram a atual geopolítica mundial tentam dar conta
das transformações que afetam a sociedade contemporânea.
Simplificando bastante estas teorias, elas postulam que a sociedade atual está
marcada por um tempo-espaço flexível, em mutação constante, onde o que prevalece é o
movimento, intimamente relacionado com a velocidade e com uma desterritorialização
que conduz ao apagamento das fronteiras.
O mundo é menor e as distancias são mais curtas; os eventos que acontecem
num lugar têm impacto sobre outras pessoas de outros lugares. Estas mudanças na
compreensão do tempo-espaço afetam diretamente a constituição das identidades,
localizadas num espaço e num tempo simbólico, já que a própria identidade está
envolvida num processo de representação, afirma Stuart Hall, autor de trabalhos
importantes no campo dos Estudos Culturais. Para Hall a identidade nacional é artificial
e se manifesta como uma comunidade imaginária. Porém “pensamos nela como se fosse
parte de nossa natureza essencial” (2006, p. 47). O autor argumenta que sendo as
identidades construídas no interior da representação, elas devem ser pensadas através da
cultura, e não fora dela.
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Como resultado do crescimento da homogeneização cultural as identidades
nacionais estão se desintegrando, diz Hall, e novas identidades de natureza distinta,
estão tomando seu lugar. Aparece então, o sujeito da modernidade tardia, carente de
uma identidade fixa ou permanente, sua identidade se transforma continuamente em
relação às formas pelas quais é representado ou interpelado nos sistemas culturais co-
existentes.
Na América Latina a questão da desterritorialização do sujeito leva a que as
nações percam seu lugar privilegiado de produtoras de sentido de identidade. Mas suas
razões principais não parecem corresponder a uma movimentação exógena, que se
desprenda de uma nova situação espaço-temporal dominante no mundo. Suas
motivações, muitas vazes se desprendem de contingências endógenas de caráter político
e/ou econômico. A crise que atravessam os modelos de representação das identidades
nacionais parecera estar ligada ao conceito de território desenvolvido por Milton Santos:
O território é o chão e mais a população, isto é, uma identidade, o fato e o sentimento de pertencer àquilo que nos pertence. O território é a base do trabalho, da residência, das trocas materiais e espirituais e da vida, sobre os quais ele influi (SANTOS, 2000, p.97).
Os desplazados na Colômbia, obrigados a abandonar suas terras de origem por
causa da guerra civil, os nordestinos que emigram às grandes cidades brasileiras por
razões econômicas, os Mapuches no Chile que despojados das suas terras trocam o
campo pela cidade, são exemplos de deslocamentos humanos dentro de uma mesma
nação que afeta a identidade sem entrar em conflito com o tema da unidade nacional,
mas questionando os laços de índole territorial.
Entretanto, isso não significa que questões de identidade ligadas diretamente ao
conceito de nação não façam parte do quadro latino-americano. O grande número de
expatriados, conseqüência da serie de ditaduras que, na década de 60 e 70, afetaram a
América Latina, no retorno aos seus paises de origem, enfrentaram muitos problemas
em torno da noção de identidade. Esta crise atravessa pelo menos três gerações, que
atualmente se vêem forçadas a conviver entre o que colheram nos paises dos seus
respectivos exílios e o que encontraram ao retornar aos seus países de origem,
idealizados muitas vezes durante a longa ausência. A discussão neste caso gira em torno
das questões da identidade nacional.
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A desterritorialização latino-americana, seja econômica ou política, parecera
mais uma conseqüência de problemáticas de índole interna, o que não significa a
inexistência de algumas influencias reflexo de articulações externas. Mas, sejam os
motivos de origem interna ou externa ao país, as movimentações migratórias continuam
sendo uma constante quando se faz referencia ao apagamento de fronteiras na América
Latina.
Impulsionadas pela pobreza, pela seca, pela fome, pelo subdesenvolvimento econômico e por colheitas fracassadas, pela guerra civil e pelos distúrbios políticos, pelo conflito regional e pelas mudanças arbitrárias de regimes políticos, pela dívida externa acumulada de seus governos para com os bancos ocidentais, as pessoas mais pobres do globo, em grande número, acabam por acreditar na “mensagem” do consumismo global e se mudam para os locais de onde vêm os “bens” e onde as chances de sobrevivência são maiores (HALL, 2006, p. 81).
Os deslocamentos territoriais na América Latina acontecem geralmente por via
terrestre devido aos escassos recursos financeiros da maioria da população. Em paises
de grande extensão territorial, como Brasil ou México, uma parte destes deslocamentos
não chegam a transpassar as fronteiras nacionais. Em paises menores como Uruguai ou
Bolívia são mais freqüentes as migrações ao estrangeiro. Nos paises maiores existe um
desenvolvimento grande de uma identidade em torno a simbolismos nacionais. Já nos
países menores, que mantêm uma troca mais significativa com os paises vizinhos, se
desenvolvem vínculos que apelam à construção de um sentido mais latino-americanista.
Esta variante modifica a identidade entre um sentido mais “global” ou mais “local”.
Território, nação e identidade: três temáticas que fazem parte da representação
do real no documentário latino-americano. Primeiro, durante o Nuevo Cine
Latinoamericano e o Cinema Novo, como uma forma de criar consciência de grupo e
identificação, tanto no conteúdo como na forma cinematográfica. Já na época atual, num
sentido inverso e mais sutil, tenta-se definir a própria individualidade, para desde este
novo posicionamento procurar outras individualidades similares que permitam dialogar
sobre as mesmas questões: território, nação e identidade.
Nesta nova reorganização da produção de sentido documentário, duas forças,
aparentemente contrarias, coexistem lado a lado: 1) a indústria audiovisual dominante e
as suas estruturas de comercialização (televisão, salas de cinema e festivais, crítica
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cinematográfica e literatura especializada) e 2) a identidade nacional, como força que
denuncia a dependência e rejeita a alienação, em concordância com as necessidades de
emancipação dos povos; linha desenvolvida intensamente pelo documentário político
dos anos 60 e 70.
No terreno da distribuição e exibição de documentários é possível encontrar
também algumas características comuns à América Latina. Na sua maioria, as
produções destes países fazem parte de um circuito restringido a espaços desenvolvidos
fora das regulamentações do mercado, fora dos grandes circuitos de exibição, fora dos
meios de comunicação dominantes. Um cinema, segundo Paulo Paranaguá (2003, p. 25)
“duplamente alternativo, em relação ao mainstream representado pela produção de
ficção e em relação ao grosso da produção de não-ficção representada pelos
noticiários”. Este espaço se articula como um campo de exploração, mas principalmente
de resistência ao grande domínio do discurso sobre o real elaborado pela indústria
televisiva, de tendência jornalística.
Neste espaço alternativo se desenvolve geralmente um trabalho de caráter
autoral, produzido em forma independente, ou seja, sem características industriais e sem
vinculação com as grandes empresas audiovisuais de massa (majors ou estúdios de
cinema).
O cinema de autor1 é aquele em que o olhar ou ponto de vista do realizador é
predominante para decidir o ponto de observação e de focalização da obra. O
documentarista analisa e interpreta as questões do mundo histórico, deixando na obra as
marcas de seu olhar.
A defesa de uma tese particular por parte do autor se estrutura como uma
interpretação metafórica do real, que representa uma nova realidade permeada de
subjetividade. Subjetividade que, segundo Amir Labaki é inerente ao processo de
documentar:
O documentarista procura ser fiel simultaneamente a sua verdade e a verdade dos personagens e das situações filmadas. Não se pretende um recorte pretensiosamente objetivo ou neutro
1 O termo “documentário de autor” surge na França, no seio de uma discussão entre produtores e realizadores independentes, no ano de 1986, na tentativa de diferenciar o documentário das reportagens e programas televisivos de comportamento. A indústria televisiva foi desenvolvendo um interesse maior por representações do real ligadas ao jornalismo, frente ao qual aparece a necessidade de estabelecer um discurso de oposição que diferencie as reportagens informativas do trabalho autoral caracterizado pela maturação do tema tratado, a reflexão complexa e o forte selo da personalidade do autor. Esta diferenciação continua sendo bastante utilizada entre os documentaristas.
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do mundo. O documentário nos oferece um mundo novo, moldado entre a realidade filmada e a realidade de um cineasta (LABAKI, 2001, p.18).
Mas, de que forma as marcas do olhar do autor estão presentes na obra, como se
reconhecem e o que modificam nos textos em que se manifestam?
Michel Foucault no seu texto “O que é um autor?” (2006, p. 264-298) faz uma
caracterização dos textos escritos providos da função “autor”, textos todos de caráter
discursivo: “A função autor é característica do modo de existência, de circulação e de
funcionamento de certos discursos no interior de uma sociedade”.
Foucault define características fundamentais desta função na escrita. Algumas
delas se manifestam, também, nos textos audiovisuais:
1) O nome do autor. O nome próprio que relaciona um discurso com o individuo real e
exterior que o produziu. Trata-se de um nome próprio diferente dos outros, já que
manifesta o modo singular de ser de um discurso: “O nome do autor manifesta a
ocorrência de um certo conjunto de discurso, e refere-se ao status desse discurso no
interior de uma sociedade e de uma cultura” (ibid., p. 274). Na produção documentaria a
assinatura predetermina expectativas com respeito à obra que passam pelo terreno
ideológico, temático e formal. Dependendo do status dessa assinatura, o nome do autor
sobressai ao gênero cinematográfico na hora de caracterizar a obra.
2) A relação de apropriação. Os textos autorais são objetos de apropriação.
Originalmente esta apropriação surge dos discursos transgressores, ou seja, de textos
pelos quais o autor podia ser punido socialmente, a autoria fica destacada num sentido
negativo por não cumprir com as normas discursivas da época. Quando se instaurou um
regime de propriedade para os textos e criaram-se regras sobre os direitos de autor, estas
transgressões ocuparam um lugar mais institucionalizado e determinado. No campo
audiovisual a diferença entre um discurso autoral no documentário e um discurso
jornalístico no noticiário permite distinguir a relação de apropriação à que faz referência
Foucault. As reportagens de origem jornalística procuram a elaboração de textos que
sejam a expressão de um domínio público; são textos que buscam ser fieis a uma
aparente neutralidade, discursos que procuram a imparcialidade tentando se remeter só a
os fatos, como uma maneira de permanecer mais próximos à realidade. Já no caso do
documentário autoral, a ênfase do discurso está na análise feita a partir da realidade, na
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articulação dos elementos registrados do real para a elaboração de uma mensagem
especifica e individualizada.
Vale a pena mencionar aqui, a impossibilidade de atingir a objetividade absoluta
em qualquer texto audiovisual, já que sempre a realidade filmada estará influenciada
pela postura pessoal, hábitos e emoções do autor, pela sua maneira de ver o mundo a
partir da sua própria experiência de vida. Porém, “a função autor não é exercida de uma
maneira universal e constante em todos os discursos” (ibid., p. 276); A importância do
autor varia de um tipo de texto a outro, ao mesmo tempo em que esta valoração se
modifica através do tempo.
3) A relação de atribuição. O que faz de um individuo um autor não surge
espontaneamente pela atribuição de um discurso a um individuo. Na verdade, “o que
no individuo é designado como autor é apenas a projeção. Em termos sempre mais ou
menos psicologizantes, do tratamento que se dá aos textos, das aproximações que se
operam, dos traços que se estabelecem como pertinentes, das continuidades que se
admitem ou das exclusões que se praticam” (ibid., p.277). No caso do documentário, não
basta a presença do realizador no filme, seja através da narração em off ou através da
sua aparição na imagem, para que a obra adquira uma função autoral. A atribuição
autoral não é espontânea, ela diz respeito a um processamento do real e a uma
elaboração particular conseqüência deste processamento; a narração na primeira pessoa
ou a presença física do autor na tela não são necessariamente determinantes na
caracterização do documentário autoral.
4) A posição do autor. O texto sempre contém em si mesmo signos que remetem ao
autor, tanto como locutor real ou como locutor fictício incerto na obra. A função autor
“não remete pura e simplesmente a um individuo real, ela pode dar lugar
simultaneamente a vários egos, a várias posições-sujeitos que classes diferentes de
indivíduos podem vir a ocupar” (ibid., p. 290). O documentarista tem também varias
maneiras de se fazer presente na obra, sendo que a sua função não está numa delas
especificamente. A função autor “é efetuada na própria cisão – nessa divisão e nessa
distância” (ibid., p.279). Nos documentários em que o autor é personagem da sua própria
obra, o “eu” está inserido na obra em diferentes níveis. Foucault fala de uma
“pluralidade de ego” presente em diferentes camadas da obra. Esta função será
aprofundada mais adiante, no capítulo três, dedicado ao autor/personagem no
documentário.
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Nesta pesquisa, se entende por documentário uma modalidade exclusivamente
discursiva, permeada pelo ponto de vista do autor, que estabelece uma relação
individual e única com o tema, e assume uma postura de responsabilidade moral frente à
realidade filmada e aos atores sociais2 que a constroem. O foco de interesse está nas
obras que elaboram uma tese e uma visão personalizada de realidade; uma forma que
está mais próxima da ficção narrativa que do jornalismo, em quanto à articulação do
representado.
Atualmente, a produção contemporânea de documentários passa por um
momento no qual o questionamento do próprio documentarista torna-se um forte
elemento da narrativa, tanto no que diz respeito às suas motivações, como à sua própria
interferência no objeto filmado. Esta nova prática apresenta-se como um formato em
crise, que mistura registro do mundo histórico com encenações ficcionais, autor com
personagem, além de elementos de diferentes estilos documentários, criando, assim,
uma nova categoria, denominada “híbrida”. Por hibridação entende-se: “Processos
socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas que existiam separadamente,
combinam-se para gerar novas estruturas, objetos e práticas” (CANCLINI, 2000, p. 62).
Carmem Guarini, documentarista e co-fundadora da produtora Cine Ojo3, vê o
documentário contemporâneo da seguinte forma:
O documentário dos anos 90 dá uma nova virada, o alvo agora é o que acontece com o ator-personagem e não o que acontece com o espectador. Parece um jogo duplo que transforma a maneira de olhar e de fazer cinema, ficaram para trás os até então conhecidos termos de ator/ficção e personagem/realidade, para que nesta convulsão os homens possam encontrar sua razão de viver e o cinema, reencontrar-se com esta ambigüidade que está no seu início, construção ou engano, impressão de realidade (Informação verbal)4.
Não se trata apenas de um cinema subjetivo, mas de um cinema no qual o
próprio autor aparece representado. Não se trata da representação do real, e sim do real
da representação. O registro de uma busca, na qual o autor tem que realizar movimentos
2 Entende-se aqui por ator social ao indivíduo ou pessoa que se representa a sim mesmo frente a outros, sem sair do contexto histórico ao que pertence. 3 Fundada em 1986, é considerada atualmente a produtora mais importante na realização, produção e distribuição independente de documentários na Argentina. 4 Participação em Seminário da Revista Cinemais sobre Documentário Latino-americano, durante o Festival Cinesul 2005. Tradução ao português da autora (original em espanhol).
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para que os fatos ocorram; filmes nos quais o documentarista não pode determinar a
priori nem o resultado da pesquisa nem o caminho que terá de percorrer para realizá-la.
O rumo que a produção documentária independente vem tomando desde a
década de noventa, na América Latina, insere-se, segundo definição de Bill Nichols, no
movimento de documentários performativos, produções híbridas nas quais o filme é um
processo e não um meio para entender o mundo. Jean Claude Bernardet, na análise de
documentários brasileiros contemporâneos refere-se a este tipo de filmes como
documentários de busca, filmes onde o documentarista não pode antecipar nem o
resultado da sua pesquisa, nem o caminho que deverá percorrer na realização do filme,
sublinhando a própria obra como mediação do processo que está sendo documentado.
Carmen Guarini, para descrever este estilo, desenvolvido consequentemente nas
produções de Cine Ojo nos últimos anos, faz ênfase no “encontro” como dispositivo
fílmico:
Cine Ojo tem estado muito aberta para explorar estas linhas de trabalho acompanhando a muitos diretores que começaram a se motivar por relatos cada vez mais pessoais, onde tanto a voz, como a própria imagem do autor, aparecem como indicadores no só da consciência de outros modos possíveis de intervenção da realidade, senão da maneira em que ela é o resultado de encontros entre quem filma e o que se filma5 (GUARINI & CÉSPEDES, 2007, p. 12).
Um cinema do EU, na primeira pessoa, que permite falar do social e do político
a partir de historias pessoais. “É como buscar um outro espaço para a história. Uma
outra forma de ser contada” diz Guarini.
Nas suas investigações sobre documentário no Cone Sul, Andréa Molffeta6
observa nesta tendência estética contemporânea uma preocupação pela política que se
desenvolve nos mundos particulares, vale dizer, as micro-políticas: “O trabalho da
memória e da consciência histórica do sujeito-realizador encontram no processo fílmico
um modo de escritura ou Técnica de Si, mostrando seus processos e resultados”
(Informação verbal)7. Ao mostrar o micro-mundo do sujeito da enunciação no filme,
seus detalhes, desorientações e contradições, a narrativa se torna política “em quanto ato
5 Tradução ao português da autora (original em espanhol). 6 Professora e pesquisadora do Centro de Pesquisas em Cinema Documentário –UNICAMP - SP. Fundadora e atual presidenta da Sociedade Argentina de Estudos de Cinema e Audiovisual (SAECA). 7 MOLFETTA, Andréa. O Documentário Chileno da atual democracia. Comunicação apresentada no XI Encontro Internacional da SOCINE / PUC-RIO DE JANEIRO / 2007.
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de resistência do sujeito, devolvendo-lhe ao cinema, a partir da observação desta
prática, a densidade social da sua significação”, afirma Molffeta.
São muitos os realizadores latino-americanos que, a partir dos anos 90,
começaram a desenvolver este tipo de narrativas. Desde uma perspectiva pessoal os
documentaristas dialogam com a reconstrução da memória tanto individual como
histórica. Questões referentes a lugar de origem e identidade fazem parte, geralmente,
destes processos de exploração temática e formal. Filmes como os brasileiros: Um
passaporte húngaro (Sandra Kogut, 2001) e 33 (Kiko Goifman, 2001), uma
porcentagem grande das produções de Cine Ojo na Argentina: La televisión y yo
(Andrés Di Tella, 2002), Los Rubios (Albertina Carri, 2003), Fotografias (Andrés Di
Tella, 2007), assim como também os documentários chilenos Chile-La memoria
obstinada (Patricio Guzmán, 1997) e En un Lugar del Cielo (Alejandra Carmona, 2003)
são só alguns dos exemplos destacados deste novo tipo de linguagem documentário.
Este trabalho de pesquisa lida com a questão do autor-personagem e o autor-
narrador neste tipo de filmes. Quando o autor se personifica no filme se estreitam os
laços diretos de identificação entre o autor e o espectador. Quando o autor se manifesta
como o narrador dos fatos apresentados, o vinculo com o espectador é mais distanciado,
através dos argumentos apresentados no filme. Neste desdobramento de identificação do
autor-personagem e ao mesmo tempo de distanciamento do autor-narrador, cabe se
perguntar: Qual é a função da montagem nestes filmes que misturam técnicas de
montagem de ficção narrativa com técnicas de documentário clássico?
Entende-se aqui a montagem como uma especificidade cinematográfica cuja
função é a construção de um discurso articulado com significação própria. Esta
concepção de montagem tem a sua origem no formalismo russo, período em que se
desenvolveram diversas teorias construtivistas de montagem.
A visão construtivista defende a especificidade de uma nova realidade fílmica.
Logo, a aproximação ao mundo histórico quando acontece em forma explícita através
do olhar subjetivo do autor, deixa em evidência a natureza discursiva do texto
documentário. O autor como construtor de cinema, traz o conceito de autor-montador
presente nos manifestos de Cine-Olho desenvolvidos pelo cineasta russo Dziga Vertov
(1896-1954), em defesa da especificidade da forma cinética.
Com tais questões como moldura teórica, nesta pesquisa, foram levantadas as
seguintes interrogantes: a) Existem figuras de montagem próprias dos documentários
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em que o sujeito da enunciação é ao mesmo tempo sujeito do enunciado? b) De que
maneira o autor, enquanto narrador e personagem se faz presente, ativa ou
passivamente, na articulação dos planos? c) A montagem evidencia a construção
cinematográfica ou a oculta? d) Que lugar ocupa o espectador em relação a quem lhe
conta a história?
A dissertação por capítulos
No primeiro capítulo se faz uma observação do espaço cultural que ocupa o
documentarista latino-americano e as possibilidades de interpretação do mundo
histórico que este lugar, não só lhe oferece como também lhe permite. A partir da
análise do percurso histórico do autor latino-americano na produção documental e na
teoria cinematográfica, se analisa como este conjunto de condicionamentos interfere no
entendimento do mundo histórico, na intencionalidade do registro do real e finalmente
se traduz em escolhas de formas de representação. Interessa observar o processo que foi
modificando os parâmetros destas escolhas dos documentaristas como conseqüência de
uma mudança significativa na produção de sentido simbólico na passagem da sociedade
moderna à modernidade tardia, desde o apagamento do autor dos anos 60 até o giro
subjetivo dos 90.
O segundo capítulo organiza os elementos da narração comuns ao documentário
latino-americano contemporâneo, na intenção de observar as articulações da montagem.
Foram diferenciados três elementos: autor, entrevista e material de arquivo, como
fatores que, em suas diferentes combinações, exercem sua capacidade de enunciação
para produzir discursos. Entende-se aqui narração como uma forma discursiva, ou seja,
o fato e maneira de alguém contar uma história, diferenciando-se do “enunciado
narrativo” de Genette (1973, p. 255) “que assegura a relação de um acontecimento ou
uma serie de acontecimentos”. Um filme, antes de tudo mostra, e a narração no cinema
é essa “mostração”, ligada à natureza icônica do plano. A “mostração” de planos
corresponde a um primeiro nível narrativo, e a articulação de planos, quer dizer a
montagem, a um segundo nível (AUMONT, 1983).
No terceiro capítulo, são revisitadas as diferentes categorias de análise
desenvolvidas em torno às “narrativas do eu”, dominantes no documentário
21
contemporâneo. A partir dos estudos do texto documental de Bill Nichols e a
caracterização da modalidade performativa, se incorpora o conceito de “documentário
de busca”, de Jean-Claude Bernardet, e as especificações do documentário performativo
como “técnica de sí” caracterizadas por Andréa Molfetta. Bernardet e Molfetta
desenvolveram esses conceitos baseados na observação da produção documentaria na
América Latina.
O documentário latino-americano contemporâneo parece mais preocupado com
as questões da representação do que com a realidade. Nesse sentido, a montagem ocupa
um lugar fundamental na sua construção.
A interpretação subjetiva do mundo histórico, em termos de montagem valida
qualquer tipo de associação para a construção fílmica, como por exemplo, mistura de
suportes, recursos da narrativa ficcional ou saltos no eixo temporal e espacial.
O exercício da montagem enquanto forma de organização de produção de
sentido, reflete as particularidades de como o individuo percebe o mundo e se relaciona
com este, numa época determinada. Estas opções construtivas acontecem sempre no
presente, mas também fazem observações de épocas passadas, assim como deixam
entrever seus desejos e projeções futuras.
Três documentários latino-americanos contemporâneos, da década de 2000,
foram analisados para estudar de que maneira o autor, representado no filme como
personagem e narrador, determina a montagem, e que relação estabelece desde este
lugar com o espectador.
Acredito que, mediante a observação da estrutura de montagem de uma obra
filmica, seja possível entender como, numa conjuntura sociopolítica e cultural
determinada, são feitas opções estéticas que dizem respeito aos interesses no mundo das
representações. O espírito da época -Zeitgeist- se projeta no ponto de vista a partir do
qual se constroem as representações do real.
Entender a América Latina através do processo de indagar a própria história tem
se tornado uma estratégia recorrente dos documentários contemporâneos do continente.
O olhar do autor enfrentou a problemática documental na medida em que enfrentara as
problemáticas gerais do continente. O percurso do documentarista latino-americano
entre a sua compreensão da história e a forma com que esta percepção determina a
linguagem da sua expressão é o tema do capítulo a seguir.
22
“Chegou o cinema e fez explodir este mundo de prisões com a dinamite de décimo de segundo, de forma tal que agora viajamos calma e aventurosamente por entre os seus destroços espalhados”. Walter Benjamin – A obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica – 1955.
I.
O OLHAR DOCUMENTARISTA NA AMÉRICA LATINA
23
Os cineastas latino-americanos de inícios do século XX viram no cinema a
possibilidade de ter acesso à modernidade. A fascinação pela técnica cinematográfica
que vinha dos países desenvolvidos, alem do desafio pelo seu domínio, representava
uma maneira de aproximação à civilização contemporânea. Durante os primeiros anos
se realizaram produções imitando os modelos das cinematografias norte-americanas e
européias, entendidas como formas “verdadeiras” da expressão cinematográfica. Esta
tendência ao mimetismo “não decorre sequer de uma imposição e sim da ilusão de
neutralidade, de transparência, de evidência, de mero reflexo da realidade, que o
cinematógrafo herdou da fotografia” (PARANAGUÁ, 1985, p. 29).
Um produto de importação foi introduzido no continente como um ideal de
forma cinematográfica, de estrutura fixa e estática. Outros eram os conteúdos filmados,
outras a origem e a realidade de seus realizadores, outro também o seu público – local
na maioria dos casos –, mas as estruturas, derivadas do que foi entendido na época por
“cinematografia ideal”, eram as mesmas. A superação no oficio, ligada ao domínio
tecnológico tornou-se o desafio de primeira linha, deixando em segundo lugar os
questionamentos surgidos das novas realidades filmadas, tão distantes, tão diversas.
Na escassa produção cinematografia dos primeiros tempos o documentário foi a
regra e a ficção a exceção. Muitos paises desenvolveram uma produção de noticiários
que se realizavam em forma continua com grande aceitação de um público
quantitativamente significativo.
As notas de imprensa adquiriram um papel importante frente aos grandes
acontecimentos sociais, como por exemplo, a Revolução Mexicana (1910-1922),
período em que se estimulou a produção e distribuição de documentários. Na época
eram comuns filmes que retratavam eventos políticos, culturais e folclóricos; mas a
conjuntura histórica exigiu que os documentaristas se adaptassem a um trabalho mais
social e politizado. Este foi o caso de Salvador Toscano, que começou sua carreira de
documentarista, no final do século XIX, fazendo filmes sobre a vida cotidiana do
México, suas riquezas e a sua diversidade cultural. Com a explosão da revolução,
Toscano se dedicou por completo ao registro destas lutas. Como simpatizante da causa
revolucionária, viajava nos trens do exército insurreto registrando as batalhas de
24
caudilhos como Villa, Zapata e Madero. Estes filmes de propaganda eram distribuídos
rapidamente, em formato de cinejornais, por todo o país. Em 1942, a filha de Toscano,
Carmen, iniciou a montagem do conjunto dos registros do já falecido pai, dando forma
ao filme documentário Memórias de um Mexicano (Salvador e Carmen Toscano,
México, 1950). Este filme, exclusivamente de montagem, revela uma enorme
manipulação do material alheio que se intensifica com a utilização de uma narração na
primeira pessoa na função de explicar os conflitos e contradições que se deram durante
a revolução tanto nas estruturas de poder como no seio da família mexicana.
Um outro documentário mexicano que utiliza o recurso de ficcionalizar uma
narração em voice-over na primeira pessoa é El Grito (Lombardo López, 1968). O filme
narra a historia do movimento estudantil, que culminou com o massacre na Praça das
Três Culturas, em Tlatelolco, no dia 2 de outubro de 1968, ano em que se celebraram os
jogos olímpicos no México. Sendo fruto de uma filmagem coletiva dos estudantes do
Centro Universitário de Estudos Cinematográficos (CUEC), resulta estranha a escolha
de personificar o narrador numa jornalista estrangeira que através do off dá um caráter
dramático à narração, em contraposição à rigidez do registro de estilo jornalístico dos
fatos. Este filme é um dos primeiros da escassa produção mexicana que expressa a
modalidade de protesto ou denúncia representada pelo Nuevo Cine Latinoamericano.
A experiência documental da revolução mexicana repete-se em 1952 com a
revolução boliviana e em 1959 com a revolução cubana. Em ambos os casos as
circunstâncias políticas estimularam a produção e exibição de documentários, no
formato de noticiários de propaganda durante o conflito armado, e posteriormente como
documentários institucionais que defendiam as reformas promovidas pela política
oficial.
O Governo Revolucionário Cubano, assim que conquistou o poder, no discurso
sobre a política cultural, anuncia direcionar os esforços para duas metas principais,
segundo os preceitos de Lênin: 1) Democratizar a herança cultural burguesa levando a
arte e a educação às massas e 2) Criar veículos e expressões que servissem à
propaganda ideológica. Com esses objetivos foi criado o Instituto Cubano de Arte e
Indústria Cinematográficos (ICAIC) , no dia 24 de março de 1959, 83 dias após o
triunfo da revolução. O Instituto direcionou seus primeiros recursos para a produção de
noticiários, documentários e curtas educativos, por serem formatos que atingiam as
25
necessidades mais urgentes na estabilização do poder revolucionário (MARTINS
VILLAÇA, 2006).
A continuidade de produção, principalmente dos noticiários semanais foi uma
escola para muitos profissionais e possibilitou a formação de importantes cineastas
como Julio García Espinosa e Tomás Gutiérrez Alea em Cuba, ou Jorge Sanjinés na
Bolívia.
Porém o documentário institucional, ligado geralmente ao aparato de Estado,
não tratou exclusivamente de questões de poder político. As culturas locais, a vida rural,
as comunidades indígenas e as belezas naturais foram temáticas recorrentes de
documentários interessados em ressaltar tanto as riquezas como as singularidades das
diferentes nações dispostas a inserir-se no projeto mundial da modernidade. Foram
muitos países da América Latina que, entre 1930 e 1940, desenvolveram projetos de
cinema educativo, através dos ministérios dos seus respectivos governos. Estes filmes
estavam destinados a um público nacional e, às vezes, local.
No Brasil se destaca especialmente o documentarista Humberto Mauro, que
como funcionário do Instituto Nacional do Cinema Educativo (INCE) realizou, durante
quase 30 anos (1936 -1964), mais de 350 filmes documentais. O IMCE foi criado pelo
governo federal em 1936, inspirado em experiências semelhantes surgidas no mesmo
período em paises da Europa. O Instituto pretendia mostrar uma imagem positivista do
Brasil, com intenção de democratizar o conhecimento partindo das classes
intelectualizadas para as desfavorecidas. Sua produção se baseia em series de
documentários rurais, de fauna, de instituições e cerimônias oficiais, educativos e
científicos.
Apesar de Humberto Mauro ter se iniciado com sucesso, nos anos 20, na ficção
narrativa, 15 anos mais tarde, decide movimentar-se em forma definitiva ao campo do
documentário, gênero que defende com grande paixão, argumentando que se trata de
uma prática “mais autêntica” num sentido ontológico, que devolve à câmera o papel
protagonista do filme e leva o cinema a um estado “mais puro” (PARANAGUÁ, 2003).
Na reivindicação de um cinema sem atores, Dziga Vertov8 defende o documentário
como uma forma mais próxima do propriamente cinematográfico que a ficção narrativa,
por considerar esta última uma adaptação da linguagem desenvolvida originalmente na
8 Dziga Vertov (1896-1954) desde jovem proclamou-se futurista e começou a utilizar um pseudônimo para seus escritos e seus filmes. “Dziga”, derivado de um nome ucraniano, significa a roda que gira sem parar, o movimento perpetuo; “Vertov” deriva do nome russo Brevet, que remete a rodar, girar.
26
literatura e no teatro modificada para o novo formato. No seu manifesto, Vertov (1993,
p. 43)9 escreve: “O campo visual é a vida. A matéria de construção para a montagem é a
vida. Os cenários são a vida. Os artistas são a vida”. No conhecido filme O homem da
câmera (Vertov, URSS, 1928), o autor faz uso do cinema documentário como forma de
enxergar o real aproximando-se das possibilidades que o próprio suporte lhe oferece.
Um autor que se personifica no cinegrafista em cena, e desta maneira nos diz “eu vejo”
o mundo assim.
Na verdade, nesta época, na América Latina, não existiam espaços para
desenvolver um trabalho documental de características autorais, porém, apesar da
natureza oficial e didática do material produzido pelo INCE, Humberto Mauro
conseguiu imprimir uma estética pessoal à maioria de seus trabalhos.
De um modo geral, o percurso necessário para o crescimento de uma indústria
cinematográfica nos países latino-americanos teve que passar por um processo de
adaptação de modelos importados, de tradição norte-americana e européia; o
investimento nesta linha era visto como garantia de um suposto sucesso.
1. A VONTADE DE ENSINAR
A proposta, do Neo-realismo italiano, de uma “estética da pobreza” que utilizava
técnicas de documentário e equipamento leve para criar um cinema tecnicamente pobre,
mas imaginativamente rico causou um grande impacto nos cineastas latino-americanos.
Os filmes neo-realistas provocaram uma onda de otimismo com relação a novas
possibilidades para um cinema nacional e popular (STAM, 2003). Esse modelo, que
surge num país devastado pela Segunda Guerra, entusiasma aos cineastas latino-
americanos a mostrar na tela as carências sociais do próprio continente.
Na Argentina, o documentarista Fernado Birri, formado no Centro Experimental
de Cinematografia de Roma, volta ao seu país em 1956 e na cidade de Santa Fé funda e
dirige o Instituto de Cinematografia da Universidade do Litoral. Assim surge a Escola
Documental de Santa Fé (EDSF), onde aparecem as primeiras idéias sobre um novo
cinema para a América Latina. Entre 1956 e 58 se realiça a obra prima desta Escola,
9 VERTOV, Dziga. “La importancia del cine sin actores”. In: ROMAGUERA, Joaquim & ALSINA, Homero (Eds.) Textos y Manifiestos de Cine. Madrid: Cátedra, 1993.
27
Tire Dié, um documentário coletivo feito por Birri e seus alunos que num estilo
testemunhal denuncia as condições de vida de um bairro marginal nas imediações da
cidade. Tire Dié foi considerada a primeira “encuesta social filmada” na América
Latina. A Escola como espaço de debate e experimentação, segundo Birri, é
indispensável para a constituição de uma cinematografia necessariamente nacional:
Tire Dié é um filme-escola, é um filme feito para que essas quase cem pessoas que o fazem, aprendam a fazer cinema. Façam cinema pela primeira vez em sua vida. Por isso, ao lado de ser um filme-escola, é também um filme coletivo. E essa é outra das minhas idéias fixas, de minhas obsessões - o cinema como arte coletiva (MOURA, Entrevista a Birri, 2006).
A experiência de Santa Fé durou poucos anos para Birri. Em 1963, obrigado ao
exílio político, se muda para São Paulo. Junto a Vladimir Herzog, Maurice Capovilla,
Geraldo Sarno e Paulo Gil Soares participa do movimento documentarista paulistano.
Nesta época conhece o produtor Thomaz Farkas, que possibilita a realização de um
projeto coletivo cujo resultado foi o longa-metragem Brasil Verdade (Brasil, 1968).
Os cubanos Tomás Gutiérrez Alea e Julio García Espinosa, também discípulos
da escola italiana do pós-guerra, junto a Alfredo Guevara, futuro diretor do ICAIC,
rodaram em 1955 El Mégano, um curta documental que denuncia as condições de
trabalho dos carvoeiros nas minas, durante a ditadura de Fulgencio Batista. O trabalho
dos jovens cineastas foi assessorado por Cesare Zavattini.
Segundo Geraldo Sarno, em termos estéticos, a “única questão que unifica o
cinema latino-americano é a influencia do Neo-realismo” (apud BURTON, CINEMAIS
34, p. 209), herança da corrente estética que começou a ser assimilada pelos cineastas
latino-americanos na década de cinqüenta. As duas cinematografias nasceram a partir de
uma grave crise social-histórica na urgência por denunciar situações políticas,
econômicas, sociais e culturais; a italiana, preocupada com a reconstrução da sociedade
num país destruído pela guerra; e a latino-americana, interessada nas lutas pela
construção de sociedades mais justas. Os cineastas latino-americanos não assimilaram
simplesmente o modelo neo-realista, mas bem o utilizaram para abrir uma nova via de
expressão própria, tanto na ficção narrativa como no campo do documentário.
No fim dos anos 50, como reflexo da explosão de movimentos políticos
populares que emergiram no continente, e principalmente depois do triunfo da
28
Revolução Cubana, surge a necessidade, por parte dos cineastas latino-americanos, de
se re-posicionar frente às cinematografias nacionais. Um forte movimento de cineclubes
contribuiu para a aparição de revistas especializadas que discutiam identidade,
compromisso social e militância política como questões fundamentais para a gestação
de novas cinematografias locais. Questionava-se o caráter “comercial” das produções
nacionais, a incorporação de valores externos e a imitação de estereótipos estrangeiros,
sob a argumentação de que tudo isto produzia filmes artificiais com os quais a
população não se identificava. Começou a se articular um discurso de rejeição a esta
visão colonizadora da realidade latino-americana, em prol de alternativas para integrar
ao cinema as próprias originalidades do continente. A valorização da perspectiva
autoral, dos temas regionais, autênticos e politicamente eficazes, bem como o
desenvolvimento de uma estética própria, conformavam a pauta de preocupações dos
cineastas que pretendiam inventar um cinema próprio, diferente do cinema europeu e do
norte-americano.
Os desejos de uma nova cinematografia ficaram plasmados em torno do
movimento do Nuevo Cine Latinoamericano, que entendia o cinema como um
instrumento ao serviço do processo revolucionário. Este movimento surgiu de projetos
estéticos e aspirações políticas de cineastas argentinos, brasileiros, bolivianos, cubanos,
uruguaios e chilenos, entre outros, que integravam também movimentos
cinematográficos nacionais como: Cinema Novo (Brasil), Grupo ICAIC (Cuba), Cine
Liberación e Cine de la Base (Argentina), Cinemateca de los Três Mundos (Uruguai) e
Comité de Cineastas de la Unidade Popular (Chile).
A 5ª edição do Festival de Viña del Mar (Chile-1967) é considerada como
“marco fundador” do Nuevo Cine Latinoamericano. Este festival se iniciou em 1963
como um festival de cinema amador, ligado ao movimento cineclubista liderado por
Aldo Francia10, quem se dedicara em corpo e alma à criação de um espaço para
produzir, discutir e difundir cinema. No festival de 1967 a programação foi
majoritariamente de documentários, apresentando-se os emblemáticos Revolución
(Jorge Sanjinés, Bolívia, 1963), Subterrâneos do Futebol (Maurice Capovilla, Brasil,
1966) Maioria absoluta (León Hirszman, Brasil, 1964), Viramundo (Geraldo Sarno,
10 Nascido no porto de Valparaíso e médico de profissão, Aldo Francia manifestou desde a infância seu amor pelo cinema. No final da década de 50 realizou seus primeiros curtas-metragem. Logo, dirigiu dois longas de ficção Valparaíso, mi amor (1969) e Ya no basta com rezar (1972), os dois de grande importância para a cinematografia nacional chilena.
29
Brasil, 1965) Now (Santiago Álvarez, Cuba, 1965), e contando com a participação de
importantes cineastas como Raymundo Gleyzer, Octavio Getino, Julio Bressane,
Humberto Mauro, Miguel Littin, Patrício Guzmán e Mario Handler, entre outros.
Durante o festival se realizou o I Encuentro de Cineastas Latino Americanos,
que discutiu em torno do tópico geral: “Imperialismo e Cultura”. Neste encontro se
chegou ao consenso da necessidade urgente de produzir um cinema antiimperialista que
abordasse os problemas comuns da América Latina e contribuísse para a
conscientização das massas. Os cineastas concluíram que era preciso evoluir do
“Cinema Testemunho” que se estava fazendo no continente, para o “Cinema Agressão”,
com o objetivo de gerar ação política através dos filmes (FRANCIA, 1990). A nova
proposta buscava, através da valorização do povo como protagonista da história,
provocar mudanças num espectador também popular, que era o destinatário por
excelência.
Neste encontro foi definido o Cine Nuevo como um cinema social que tem por
finalidade despertar a consciência do espectador em relação ao seu meio, os problemas
deste, a noção de idiossincrasia e a valorização do nacional. Em contraposição o Cine
Viejo foi enquadrado como um cinema individualista e estrangeirizante, guiado pelos
modelos do “conquistador”, cuja função era evadir o espectador da sua realidade.
Diversos movimentos de cineastas elaboraram uma ideologia do cinema focada
em retratar o homem latino-americano “como realmente ele é”. Tal ideologia
cristalizou-se numa série de ensaios militantes. Alguns dos textos mais difundidos deste
período são: Cine y sobdesarrollo (Argentina, 1962) de Fernando Birri, Estética da
fome (Brasil, 1965) de Glauber Rocha, Hacia un tercer cine (Argentina, 1969) de
Fernando Solanas y Octavio Getino, e Por un cine imperfecto (Cuba, 1969) de Julio
García Espinosa. Abundante também foi a produção de declarações e manifestos
elaborados durante os festivais de cinema latino-americano que incitavam à revolução,
tanto na política como na estética, da atividade cinematográfica.
Em concordância com os sonhos e desejos de construir um homem novo numa
sociedade mais justa e igualitária, os cineastas da época teorizaram em torno de
propostas estéticas adequadas para contribuir tanto no processo de mudança social como
na sua consolidação. Comum a estes textos é o seu olhar em direção ao futuro, suas
preocupações dizem respeito a um ideal de cinema ainda em fase de construção e o
debate gira em torno aos diferentes caminhos possíveis para alcançá-lo. Neles
30
encontramos perguntas como: “Que cinema precisam os povos subdesenvolvidos da
América Latina?” (Birri, Cine y Subsdesarrollo), sugestões como: “O cinema será um
instrumento para comunicar aos outros a nossa verdade” (Fernando Solanas y Octavio
Getino, Hacia un tercer cine), e expectativas como: “... um conjunto de filmes em
evolução dará, por fim, ao público, a consciência de sua própria existência” (Rocha,
Estética da fome). Os novos cineastas não refletiam com base na experiência estética da
cinematografia produzida até esse momento na América Latina; a nova cinematografia
nasceu da idéia de descartar as experiências alienadas existentes, em busca das
originalidades do continente.
Dentro do movimento do Nuevo Cine Latinoamericano existia uma tendência
que buscava se vincular aos elementos mais “puros” de uma suposta identidade
originária, um resgate da arte popular em detrimento da arte das elites – influenciada
principalmente por uma cultura exógena. O foco do interesse centrou-se na criação de
um cinema popular sem pretensões técnicas, que podia ser feito em qualquer lugar e
com qualquer tipo de equipamento – profissional ou amador.
Aparece aqui o conceito de “cinema imperfeito”, elaborado por Julio García
Espinosa, que reivindica um cinema com um conceito diferente de qualidade, onde se
recusam as normas técnicas e de dramaturgia da grande indústria, na procura de uma
linguagem popular, que tenda a desenvolver o gosto pessoal e individual do povo. Isto
não significa que não exista preocupação com o rigor e o bom acabamento, trata-se
antes de assumir uma opção de qualidade em concordância com as carências das
sociedades latino-americanas.
Ao cinema imperfeito não lhe interessa mais a qualidade e a técnica. O cinema imperfeito mesmo pode ser feito com uma Mitchell ou com uma câmera de 8mm. Pode ser feito em estúdio ou mesmo na guerrilha no meio da selva. Ao cinema imperfeito não lhe interessa mais um gosto determinado e muito menos o bom gosto (GARCÍA ESPINOSA, 1988, p. 77)11.
A idéia de um cinema imperfeito foi desenvolvida por García Espinosa como um
conceito em transformação, e não como uma forma estática à qual os paises
11 GARCIA ESPINOSA, Julio. “El Cine Imperfecto” (1969). In: HOJAS DE CINE. Testimonios y documentos del Nuevo Cine latinoamericano. Volumen III. México: SEP, UAM, Fundación mexicana de cineastas. 1988. Tradução ao português da autora (original em espanhol).
31
subdesenvolvidos estivessem condenados. Se bem se trata da expressão de um cinema à
margem do sistema, seu interlocutor são aqueles que lutam pela transformação social e
dialogam com filmes que mostram o processo dos problemas que aparecem neste
caminho; o cinema imperfeito “é uma resposta, mais também uma pergunta que irá
encontrando suas respostas no próprio desenvolvimento” (GARCÍA ESPINOSA, 1988, p.
76)12. Uma nova poética cinematográfica “interessada”, ou seja, com objetivos
predeterminados, e por isso imperfeita, destinada a desaparecer quando alcance a
perfeição, quando a arte seja realmente feita pelo povo.
Os novos cineastas queriam uma dramaturgia liberta de clichês e estimuladora
de uma consciência crítica diante da experiência contemporânea, entendiam que a
dimensão política das novas poéticas exigia a construção de uma linguagem capaz de
“fazer pensar” (XAVIER, 2003). Surgiu uma contra-narração que procurava a produção
de um novo sentido, não alienado, e cujo resultado se materializou numa linguagem
aberta, aparentemente desarticulada. As práticas de resistência inscritas nestes filmes
variam de uma região a outra, se expressam em diversos gêneros cinematográficos e se
inspiram em estratégias estéticas variadas.
As preocupações destes novos cineastas centraram-se na unificação latino-
americana como forma de fortalecimento das suas próprias sociedades. Glauber Rocha
defendia um cinema “de fome” feito de “filmes feios e tristes”, por ser a fome a
originalidade de América Latina:
A noção de América Latina supera a noção de nacionalismos. Existe um problema comum: a miséria. Existe um objetivo comum: a libertação econômica, política e cultural de fazer um cinema latino. Um cinema empenhado, didático, épico, revolucionário. Um cinema sem fronteiras, de língua e problemas comuns (ROCHA, 2005, p. 179).
Existia na época um discurso que rejeitava a intromissão norte-americana nas
economias e na forma de entender os processos sociais, e que tentava redefinir este
outro espaço latino-americano baseado nas teorias da dependência. Neste contexto, os
documentaristas, que entendiam seu trabalho como político, se inspiraram em teóricos
como Gramsci, Marx, Sartre, Mariategui, Brecht e especialmente Franz Fanon. Em seu
livro Os Condenados da Terra, Fanon defende a “Violência Libertadora” como uma
12 idem.
32
necessidade para a revolução e para a construção do “homem novo”. Fanon destaca a
cultura como um espaço privilegiado onde se processa a tomada de consciência dos
indivíduos e se trata a luta política.
A instrumentalização do cinema, não apenas como elemento de reflexão, mas
também como possibilidade de intervir na realidade, levou ao exercício de uma
cinematografia de denúncia, que pretendia reescrever suas próprias histórias,
controlando suas próprias imagens e falando com suas próprias vozes. Esta luta se
manifestou em duas frentes: a política e a estética, combinando a revisão histórica com
as inovações formais.
O documentário argentino La hora de los hornos (Fernando Solanas y Octavio
Getino, 1968) expressa a convergência destas duas vanguardas. Construído como um
ensaio político em três partes, o documentário leva à prática a analogia da câmera como
uma arma, utilizando uma linguagem experimental concordante com a proposta política
de fazer do cinema um “ato para a libertação”. La hora de los hornos rejeita a
hegemonia dominante do “Primeiro Cinema”, cinematografia norte-americana destinada
ao entretenimento; assim como a política de autores do “Segundo Cinema”, produção
européia com aspirações artísticas; e propõe como alternativa um “Terceiro Cinema”, de
produção independente, de conteúdo ideológico e de linguagem inovadora, destinado a
fazer política. La hora de los hornos refere-se diretamente a questões de identidade
sublinhando o caráter neocolonial da cultura latino-americana; como contraproposta
oferece o que Roberto Schwarz denominou “nacional por subtração”: uma visão
bastante purista de resgate da identidade cultural original argentina, que afirma que a
expulsão do estrangeiro bastaria para recuperar o sentimento do nacional.
O Terceiro Cinema na Argentina sempre esteve vinculado às circunstâncias
históricas e políticas, caracterizadas na década de 60 “por um aumento dos níveis de
organização e mobilização populares, assim como pela crescente coerção entre os
setores médios e o movimento dos trabalhadores” 13 (GETINO, 1982, p. 62). A tentativa
de descolonização cultural mediante documentários de guerrilha militantes, se legitimou
no próprio contexto sociopolítico em que tinha sido gerada. A conjuntura política
possibilitou “inaugurar uma proposta distinta, de raiz nacional, e de vigência também
13 Tradução ao português da autora (original em espanhol).
33
provavelmente em espaços e momentos em que possam ser vividas circunstancias
semelhantes” 14 (SOLANAS apud AVELLAR. 1995, p. 122).
No trabalho desenvolvido pelo boliviano Jorge Sanjinés e o grupo Ukamau as
questões da identidade indígena se apresentaram como outra variante do documentário
latino-americano. O coletivo se propunha fazer cinema indígena incorporando os
mecanismos de pensamento destas comunidades, diferente do pensamento ocidental. O
processo de seleção do mundo real – filmagem – , assim como também a ordem dada a
esta nova realidade – montagem – correspondem, neste caso, a princípios organizativos
que não estão influenciados por lógicas eurocêntricas. Para que isto aconteça, o autor,
educado sob a influencia da cultura ocidental, deve ser sumamente cuidadoso com o
lugar que ocupará no filme:
Um filme sobre o povo feito por um autor não é o mesmo que um filme feito pelo povo por intermédio de um autor; como intérprete e tradutor desse povo transforma-se em veículo do povo. Ao modificarem-se as relações de criação se produz uma mudança de conteúdo e paralelamente uma mudança formal15 (SANJINÉS, 1979, p. 61).
Sanjinés precisou revisar cuidadosamente seus próprios parâmetros narrativos
para poder posicionar-se culturalmente no território multiétnico e multicultural do
mundo andino. Algumas das modificações que surgiram no decorrer deste trabalho
foram: a substituição do protagonista individual pelo protagonista coletivo, o
desenvolvimento de um plano seqüência coerente com uma visão integradora e
coletivista da vida, e o entendimento da concepção circular e não linear do tempo. As
obras deste coletivo freqüentemente misturam uma narrativa documentária de denúncia
dos fatos, com encenações ficcionais representadas por atores indígenas.
No caso da cinematografia cubana de inicio dos anos 60, o objetivo era a
contribuição da produção documental à consolidação do novo estado socialista. A
necessidade de fazer do cinema um instrumento de agitação e propaganda ficou
representada pelo trabalho de Santiago Álvarez, diretor do Noticiário ICAIC e
realizador de mais de 600 documentários e cinejornais. Álvarez, que por sobre seu
trabalho de documentarista, sempre se autodefinia como um revolucionário, foi
14 Tradução ao português da autora (original em espanhol). 15 Tradução ao português da autora (original em espanhol).
34
chamado pelo diretor do ICAIC, Alfredo Guevara, para coordenar o Noticiário pelo seu
mérito político, sem importar sua inexperiência na área cinematográfica. Neste sentido,
o próprio Álvarez sempre declarou abertamente a prioridade panfletária de seu trabalho,
para além de qualquer pretensão artística.
Porém, isto não significou em momento algum, uma contenção na enorme
criatividade do cineasta. Santiago Álvarez desenvolveu um novo estilo de cinema de
agitação e propaganda; sabendo transformar as carências materiais e técnicas –
agravadas pelo bloqueio econômico que padecia a Ilha – em soluções originais para
seus filmes, destacadas principalmente no trabalho de montagem. “A razão para tanta
inventividade é a necessidade”, reconhecia o próprio cineasta. A impossibilidade de
obter a exata imagem em movimento desejada jamais foi um empecilho, desenvolvendo
assim a utilização de colagens de materiais variados (fotos, quadros, manchetes de
jornais, panfletos, caricaturas, ilustrações), e fazendo uso de sobreposições, caracteres
com farta exploração de grafismos e trilha sonora que muitas vezes adquiria a função de
“guia dramático” (LABAKI, 1994).
Apesar de sua obra ter uma forte carga retórica e se organizar como uma
seqüência de provas que estruturam os argumentos propostos, ela carece quase por
completo de texto em voice-over, diferenciando-se do documentário canônico e
problematizando as bases mesmas do cinema documental “ao chocar-se de frente com a
escola “neutralista” que procura ocultar atrás da justificativa da “objetividade da
câmera” a ideologia inerente a qualquer discurso. O cinema de Santiago Alvarez não
apenas toma partido, como nasce dele” (LABAKI, 1994, p. 17).
A aparição de uma estética nascida das próprias carências é extensiva a varias
das produções do Nuevo Cine Latinoamericano; trata-se de opções que derivam muitas
vezes das suas limitações concretas de produção: baixos orçamentos, precariedade do
equipamento de filmagem e pouca disponibilidade de material. No caso específico do
documentário, o uso de foto fixa, recursos plásticos da cartazística, gráficos e
animações, também aparecem como alternativas para suprir carências.
Uma outra forma de documentário político, desenvolvida durante o período, está
representada no emblemático Batalha do Chile (Patrício Guzmán, Cuba, 1975-1979),
trilogia que relata o processo que desencadeou a crise do governo socialista de Salvador
Allende, como também o golpe de estado que o levou ao seu fim. Durante os anos da
ditadura, este documentário viajou pelo mundo denunciando a brutalidade do golpe
35
militar e chamando à solidariedade com o Chile. Foi visto em quase quarenta países,
transformando-se num estandarte para quem foi para o exílio e num mito para quem
permaneceu no país. Considerado um dos dez melhores filmes políticos da década, o
documentário consegue explorar a realidade prestando a mesma atenção ao que está
sendo filmado como as questões da linguagem cinematográfica: “Junto com a paixão
política, existe uma paixão pelo cinema” (RUFINELLI, 2001, p. 165).
A Batalha do Chile é um documentário analítico que prioriza o registro da
história na medida em que ela acontece, na intenção de proporcionar informações
essenciais que induzam à reflexão. Os realizadores combinam análise política (realizada
antes, durante e após da filmagem) com uma filmagem direta realizada no calor da luta.
Ou seja, se bem as técnicas de cinema direto se fazem presentes no registro, em sua
totalidade o filme é analítico, emite juízos e opiniões claras frente a os acontecimentos.
Patrício Gúzmán é defensor do documentário cujo registro de uma situação
determinada permita entender uma outra, não perceptível, num primeiro momento, na
observação espontânea da realidade. A Batalha do Chile foi pensada, desde seu roteiro,
tentando articular este principio. Durante os últimos meses de governo da Unidad
Popular eram muitos os acontecimentos políticos significativos, o que dificultava
decidir o que filmar. A equipe estabeleceu critérios de filmagem em função do principio
dialético da luta dos contrários, como o antes e o depois dos acontecimentos, as disputas
entre a esquerda e a direita, ou a concentração dos espaços de conflito (lugares físicos
por onde passavam os fatos). Esta dinâmica possibilitou que o filme mostrasse os “fatos
invisíveis” da crise: as tensões da luta de classe. Segundo Guzmán, é isto o mais
significativo de todo sentido documentário: “Aprender a ver os fatos invisíveis que a
realidade contém” (GUZMÁN apud RUFINELLI, 2001, p. 157). A Batalha de Chile é mais
do que a documentação sobre a luta de um povo, trata-se de uma analise argumentativa
feita a partir de fatos, mas que existe só enquanto organização na tela.
A articulação de fragmentos do real mediante a montagem é o que torna possível
o surgimento de argumentos do mundo do real não visíveis na observação direita deste.
Foi isto o que Dziga Vertov considerou como a possibilidade cinética de trazer um
mundo não visível à existência. Vertov foi parte das vanguardas formalistas dos anos
20, geradoras das primeiras atitudes direcionadas à montagem. Estes teóricos
pretendiam fundar a especificidade cinematográfica frente às outras artes a partir de
uma poética determinada na montagem. Ele acreditava na capacidade do cinema de
36
tornar visível o invisível, claro o obscuro, manifesto o oculto, evidente o dissimulado,
capaz de transformar a falsidade em verdade. No seu manifesto ABC dos Kinoks, Vertov
define o Cine-Olho como um cinema que explica um mundo visível, embora seja
invisível para o olho que observa diretamente e não através da câmera:
Ao mergulhar no caos aparente da vida, o cine-olho tenta encontrar na vida mesma a resposta ao tema tratado. Encontrar a resultante entre os milhões de fatos que apresentam uma relação com o tema. Montar e arrancar da câmera o que tem de mais característico, de mais útil, organizar os fragmentos filmados, arrancados da vida, numa ordem rítmica visual carregada de sentido, numa formula visual carregada de sentido, num estrato de “eu vejo”16 (In: ROMAGUERA&ALSINA (Org.), 1993, p. 34).
O Formalismo Russo buscava enfocar a arte como uma entidade substancial e
autônoma, capaz de explicar-se a si mesma. Daí seu constante interesse pela forma,
elementos com os quais o artista elabora sua obra. Para Vertov a construção de uma
nova realidade cinematográfica na tela contém a evidencia construtiva deste processo. O
filme A Batalha do Chile se observam marcas de seu processo de fatura, dando à obra
um caráter reflexivo. O enquadramento móvel, as mudanças de foco, as aparições em
quadro da equipe, da claquete e do microfone convidam ao espectador a adotar a
posição de observador participante. Ao vivenciar a intervenção da equipe gera-se uma
aproximação à veracidade dos fatos e automaticamente um maior compromisso por
parte do espectador.
Na Batalha do Chile não existem personagens que se destaquem no percurso
narrativo, que se tornem protagonistas ou fios condutores do filme. Os personagens,
sempre dentro do seu contexto cotidiano, desenvolvem identidades sociais grupais,
descartando a identificação emocional com realidades individuais. Esta idéia do
protagonista coletivo está presente não só na obra de Vertov, como também na de seu
contemporâneo Sergei Eisenstein (1898-1948), um dos principais teóricos da montagem
cinematográfica.
Entretanto a montagem da Batalha do Chile parecera, aparentemente, se afastar
das teorias construtivistas dos formalistas russos. A edição da Batalha se auto-apaga,
16 Tradução ao português da autora (original em espanhol).
37
favorecendo as seqüências em tomada única. O recurso do plano seqüência dialoga com
as teorias bazanianas que buscam imitar o olho humano deixando ver diretamente os
acontecimentos representados na sua integridade espaço-temporal, relembrando a
montagem praticada pelos filmes neo-realistas que tanto influenciaram o cinema latino-
americano deste período. Por outro lado, a construção de sentido na Batalha do Chile é
a resultante da análise política de forças sociais em contradição: esquerda e direita,
trabalhadores e militares, as organizações de poder popular e as greves contra o
governo. As correlações entre estas forças opositoras se organizam na estrutura fílmica
como justaposições que articulam numa nova ordem especificamente cinematográfica.
Diferente dos neo-realistas, os construtivistas baseiam sua teoria no olhar da
mente - um olhar que monta -. Cineastas como Fernando Solanas, Jorge Sanjinés e
Glauber Rocha são exemplos da influência construtivista. Seus filmes aplicam conceitos
da construção fílmica desenvolvidos nas teorias de Eisenstein como o uso do
protagonista coletivo e a justaposição de planos com conteúdos diferentes durante a
montagem.
Em La hora de los hornos o cinema de histórias é substituído por um cinema de
investigação. Seu formato de ensaio ideológico estrutura um cinema de conceitos, de
pensamentos, de temas, com a capacidade de fazer visíveis na mente do espectador
idéias abstratas como, por exemplo, “oligarquia” ou “sociedade de classes”. O filme
parte do pressuposto de que os espectadores são capazes de alcançar o verdadeiro
significado da montagem de uma imagem ou som, revelando a influência de Eisenstein
e da vanguarda. O recurso a uma montagem dinâmica de planos curtos17 revela a
influência de técnicas do cinema publicitário utilizadas com fins de agitação e
propaganda.
La hora de los hornos não pretende explicar os problemas de América Latina, e
sim produzir indignação e conscientização no espectador. Não se trata de reproduzir o
visível, e sim de tornar visível para o despertar da consciência e a provocação de ação.
Isto se torna possível, segundo Vertov, pelas diferentes relações que imagens variadas
quando justapostas estabelecem entre sim:
O Cine-Olho utiliza todos os meios de montagem possíveis justapondo e ligando entre si qualquer ponto do universo em
17 A primeira parte do filme: Neocolonialismo e Violencia consta de aproximadamente 15000 tomadas. A media de um longa-metragem naquela época era de 700 a 800 tomadas.
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qualquer ordem temporal, violando, se for preciso, todas as leis e hábitos que precedem à construção do filme (VERTOV, 1993, p. 34)18
Assim, a montagem não é apenas a junção de imagens, mas a sua relação com
todas as imagens que estão no filme, depois de montado. Vertov além de pensar a
relação de um plano com o subseqüente, está pensando nas relações de planos distantes
do filme na sua totalidade.
São as novas possibilidades de articulação do material extraído do mundo do
real que fazem possível a visão construtiva de um novo mundo e de um novo homem,
fundamental tanto para Vertov como para Solanas e Getino, os que, em diferentes
épocas, tiveram o desejo de repensar o mundo a partir de um modelo diferente de
sociedade. O contexto de efervescência revolucionária, presente tanto nos primeiros
anos do socialismo na URSS como na Argentina de fins dos 60, desperta nestes
realizadores o desejo de libertar-se de todas as limitações que o processo
cinematográfico tinha estabelecido como norma e padrões narrativos. A vanguarda
futurista dos anos 20 entendeu este processo como a: “decifração comunista da
realidade”, os peronistas argentinos do coletivo Cine Liberación como “o único cinema
de massa possível hoje, por ser o único circunstanciado com os interesses, aspirações e
perspectivas da imensa maioria da população” (GETINO & SOLANAS, 1988, p. 56)19 .
Na obra de Jorge Sanjinés a maior influência construtivista se encontra na
substituição do herói individual por um protagonista coletivo. A necessidade de
expressar uma historia coletiva através de um protagonista que se identifica pelo seu
lugar social (operário, fazendeiro, camponesa, mãe) está presente tanto em El coraje del
pueblo (Sanjinés, Bolívia, 1971) como em muitas obras soviéticas do período
construtivista, como por exemplo A Greve (URSS,1924) e O Encouraçado Potemkin
(URSS, 1925) de Eisenstein ou A Mãe (URSS, 1924) de Vsevolod Pudovkin.
Sanjinés conhecia a teoria de Eisenstein desde seus primeiros trabalhos. A falta
de recursos para fazer som direito levou-o a procurar uma linguagem observando as
18 VERTOV, Dziga. “Del Cine-Ojo al Radio-Ojo (Extracto del ABC de los kinoks)”. In: ROMAGUERA, Joaquim & ALSINA, Homero (Eds.) Textos y Manifiestos de Cine. Madrid: Cátedra, 1993. Tradução ao português da autora (original em espanhol). 19 GETINO, Octavio & SOLANAS, Fernando. “Hacia un tercer cine. Apuntes y experiencias para el desarrollo de un cine de liberación en el Tercer Mundo”. In: HOJAS DE CINE. Testimonios y documentos del Nuevo Cine latinoamericano. Volumen I. México: SEP, UAM, Fundación mexicana de cineastas. 1988. Tradução ao português da autora (original em espanhol).
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técnicas do cinema mudo e os princípios de montagem desenvolvidos por Eisenstein. A
ausência de voice-over como de depoimento testemunhal para sustentar as
argumentações teve que ser compensada com articulações de planos baseadas na própria
força das imagens. São as descobertas de Eisenstein sobre “o fenômeno da justaposição
de planos com conteúdos diferentes que dão nascimento a um novo conceito não
contido em nenhum deles isoladamente, é o que interessa mais ao cinema boliviano
comprometido” 20 (SANJINÉS, 1981, p. 22).
Contudo a intensa fragmentação da realidade na montagem de Eisenstein
convence a Sanjinés só num primeiro momento. Nas suas pesquisas em relação à
consolidação de uma estética em concordância com a cultura dos povos andinos, o
tratamento tanto da câmera como da montagem se modificam, encontrando no plano
seqüência integral uma técnica narrativa mais eficaz de realizar um cinema popular que
integrasse a cosmovisão própria das comunidades indígenas:
Para nós ficou claro que a câmara devia se mobilizar sem interrupção e motivada pela dinâmica interna da cena. Só assim podia-se alcançar sua imperceptibilidade e a integração espacial. A não fragmentação da seqüência em diversos planos permitia transmitir um ordenamento novo, um ordenamento próprio dos povos que concebem tudo como uma continuidade deles próprios. O ritmo estaria dado internamente pelos deslocamentos de pessoas e coisas que ao mesmo tempo motivam e geram os movimentos de câmera, as aproximações, os primeiros planos e os planos abertos integradores do grupo21 (SANJINÉS, 1989, p. 17).
Para o crítico de cinema José Carlos Avellar esta opção pelo plano seqüência
não afasta Sanjines de Eisenstein, já que o modo de pensar a montagem, seja na
colagem de planos de detalhe diferentes ou na fragmentação ao interior de um único
plano longo e sem cortes, prevalece. Avellar faz referencia ao ensaio A natureza não-
indiferente (1945) em que Eisenstein aponta para uma nova etapa do conceito de
montagem pós Segunda Guerra Mundial:
Em lugar do plano como fragmento de montagem, a montagem como fragmento do plano; uma montagem audiovisual orgânica, elaboração musical de nuances emocionais da ação
20 Tradução ao português da autora (original em espanhol). 21 Tradução ao português da autora (original em espanhol).
40
capaz de ligar num todo homogêneo as diversas sensações recebidas de diferentes esferas e por diferentes órgãos dos sentidos. Eisenstein diz ainda que um único princípio de composição deve reger a estrutura de cada um dos elementos isolados que formam esta complexa polifonia; e que para garantir um canto em uníssono entre a ação e o plano que irá mostrar a ação será necessário que os mesmos elementos que vão estruturar a ação estruturem também o enquadramento, o espaço recortado pelo retângulo do quadro, a composição visual; do gesto do ator às dobras da roupa que ele veste, do movimento da câmera ao movimento da luz sobre a cena, tudo deve estar voltado para a ressonância de uma única emoção determinante, base desta composição de múltiplos planos dentro de um mesmo plano; o que se obtém assim, conclui, é como se todos os planos de uma cena estivessem montados dentro de um mesmo plano.(AVELLAR,1995, p.265)
É exatamente nesta época que surge o neo-realismo no cinema. Na intenção de
representar a realidade social e econômica de uma época em forma direta e sem rodeios,
a riqueza documental, no sentido de aproximação ao real, que o plano sequência pode
oferecer foi de grande importancia. Na Italia do pósguerra, além da postura ideológica
que buscava denunciar os destroços da guerra e as consequências do fascismo, existia a
necessidade de reconstruir um mundo completamente desestruturado, tanto no exterior
como no interior de cada indivíduo. A opção do plano sequência foi defendida por
André Bazin (1918-1958) como possibilidade de reproduzir o mundo real na sua
continuidade física e de acontecimentos.
Por outro lado, a fragmentação do real para a criação de um novo sentido no
cinema, parecera se mostrar mais vigorosa nos períodos de reconstrução ativa da vida,
quando numa sociedade os homens se empenham no desmantelamento e reestruturação
da realidade. Com a criação da URSS, no final de 1922, o cinema do novo Estado
explorou formas fílmicas que contribuíssem às aspirações revolucionárias do momento:
capazes de representar o “novo homem” da sociedade comunista; de construir uma
cultura distinta, livre da tradição burguesa; e de transcender velhas divisões de classe
nas cidades.
O documentário produzido nas décadas de 60 e 70 na América Latina se
alimentou, como já vimos anteriormente, destas duas vertentes. Se por um lado existia
na época a necessidade de denunciar a realidade social apagando a montagem para
alcançar um efeito do real numa nararativa unificadora; por outro, vigorava também um
forte desejo de transformar esta realidade, dando espaço para a inventiva e
41
experimentação estética. Mostrar o que somos e ao mesmo tempo rejeitar o que somos
oferecendo alternativas de transformação permitiu aos documentaristas daquele periodo
se nutrir tanto da negação da montagem baziniana como da fragmentação construtivista.
2. A NECESSIDADE DE APRENDER
Na busca de uma estética endógena, nascida de manifestações latino-americanas,
do subdesenvolvimento e da miséria, o real tornou-se fundamental para o Cinema Novo
e para o Nuevo Cine Latino-americano: “O que me interessa é que o cinema sirva para
algo e que este algo seja ajudar na construção da nossa realidade” dizia, no inicio dos
anos 60, o cineasta argentino Fernando Birri (apud AVELLAR, 1995, p. 45)22
A necessidade de um cinema realista, ávido em comunicar idéias, além de
assumir uma forte responsabilidade frente ao público, torna o espectador parte
fundamental do filme. Estabelece-se uma relação de intercâmbio, onde a obra modifica
o destinatário e o destinatário modifica a obra, aportando sua experiência humana e
social. Trata-se de um cinema cujo objetivo é transmitir um aprendizado. Um cinema
que pretende mudar a passividade do espectador na expectativa de um despertar
consciente.
Beatriz Sarlo (2006, p. 161) faz referencia a este dever pedagógico como uma
responsabilidade pertencente ao passado: “Deviam então libertar os outros das travas
que lhes impediam de pensar e agir; enquanto isso, enquanto essa nova consciência não
se impusesse a seus futuros portadores, falaram em nome deles”.
Na América Latina, os documentaristas dos anos 60 e 70 assumiram um
compromisso aberto com os setores mais desfavorecidos da sociedade. A idéia de um
“Cine-Acción”, defensor do povo, entendia-se como mais uma arma a serviço das lutas
contra a injustiça e pelas transformações da sociedade. Sendo parte de uma vanguarda
intelectual, estes cineastas se identificaram com o que Sartre chamou “voz universal que
22 Original: MOGNI, Franco. “Nuestro cine, asi, es uma herramienta útil”, Entrevista a Fernando Birri. In: Revista Che, Nº. 2, Buenos Aires, outubro 1960 Tradução ao português da autora (original em espanhol).
42
toma partido”, onde o intelectual, conscientizado da sua contradição de classe, coloca-se
ao serviço da massa para contribuir à construção da tomada de consciência proletária.
A mediados da década de setenta eram muitos os paises da América Latina que
se encontravam baixo o controle de regimes ditatoriais. Os golpes militares
surpreenderam aos documentaristas no auge da discussão sobre as formas mais
adequadas para representar tanto as originalidades como as reivindicações libertadoras
de seus respectivos paises. O cinema “militante” e revolucionário foi totalmente
desarticulado e terminou emigrando para a terra de ninguém. As agrupações de
cineastas reunidos em torno a projetos ideológicos e manifestos se dispersaram.
Essa desarticulação afetou a paises como Chile, Argentina, Uruguai e Brasil. A
produção de filmes tanto documentais como de ficção praticamente desapareceu. Os
órgãos do Estado ou ligados às universidades, responsáveis pela atividade filmica foram
fechados ou paralisados e um grande numero de realizadores e técnicos viram-se
forçados a continuar seu trabalho no exílio.
Os documentários feitos no exílio, principalmente os chilenos, giram em torno
ao golpe militar e suas seqüelas, sendo prisão, tortura, execução e vida no exílio as
temáticas mais recorrentes. Na Argentina, este tema foi abordado desde o exílio, mais
pelo cinema de ficção e geralmente de uma forma alegórica. Nos documentários do
exílio existe um claro interesse por reconstruir o passado como uma forma de manter a
memória viva, seja resgatando uma memória individual que relembra através do
testemunho, ou seja, apelando a uma memória coletiva fazendo reconstrução de fatos
históricos. A referencia a uma experiência individual aparece, nos documentários deste
período, sempre na sua relação direta com a experiência coletiva, ou seja, social,
deixando claro que o que preocupa aos realizadores da época é a denuncia como
possibilidade de modificar o presente, assim como a preservação de uma determinada
memória histórica. “No olvidar”, “Yo recuerdo también”, “Éramos una vez” ou “La
historia es nuestra y la hacen los pueblos” são alguns filmes, da abundante produção da
época, que já desde o título sublinham essa intenção.
Muitos destes cineastas são acolhidos em Cuba. Através do Instituto Cubano del
Arte e Industria Cinematográficos (ICAIC) produzem filmes que denunciam a realidade
social e política dos seus respectivos paises. Neste mesmo período a cinematografia
cubana se vê afetada pela “sovietização”, alinhamento de Cuba ao bloco socialista, fase
43
na que a produção documentaria privilegia as temáticas históricas, “disfarçando a crítica
social e política vinculada ao momento presente” (MARTINS VILLAÇA, 2006, p.258).
Alguns dos cineastas exilados retornam aos seus paises nos 80, com a volta à
democracia. Outros regressam unicamente para filmar. Mais praticamente todos eles,
continuam fazendo um cinema de ligação temática com América Latina.
O inicio dos anos 80 pode ser considerado um período de recomposição. O auge
televisivo levou a uma demanda maior de publicidade. Uma grande parte dos
realizadores que permaneceram nos seus países, se estruturou em produtoras
audiovisuais privadas para atender o mercado publicitário, o que lhes permitiu a
produção esporádica de documentários feitos, inclusive, em forma clandestina.
No Brasil em plena ditadura se roda Iracema, uma Transa Amazônica (Jorge
Bodansky e Orlando Sena, 1974), difundida no país clandestinamente em exibições
privadas e em alguns Cineclubes, e lançada oficialmente em 1981. O filme, realizado
num momento fechado e repressivo da ditadura militar, denuncia o ilusionismo da
propaganda oficial e mostra uma realidade contraria ao discurso de um país que se
expande e moderniza com a construção da Transamazônica. Saindo dos cânones da
denuncia testemunhal, Iracema é uma experiência de hibridação entre os registros de
ficção e documentário, onde o que estava preparado para acontecer frente à câmera
(encenação) e o que no estava (registro do real) tem a mesma importância.
As grandes mobilizações de massa do final dos períodos ditatoriais foram
documentadas por realizadores mobilizados por produzir um cinema de denuncia e um
cinema testemunhal, que pode ser considerado como a continuação do cinema militante
dos anos 70.
No Chile, estas produções começaram a serem feitas por equipes jornalísticas.
Com o objetivo de informar à população dos conflitos do país, circulam por canais de
comunicação alternativos aos oficiais, criando espaços de resistência vinculados a
organizações comunitárias, culturais e algumas vezes eclesiásticas. Os Noticieros
Alternativos, realizados pelo grupo Proceso e o noticiário Teleanálisis, vinculado à
revista Análisis, constituem uma das principais fontes de documentação audiovisual
existentes no Chile sobre o período da ditadura (GETINO, 1996).
O grupo teatral ICTUS amplia o seu trabalho ao campo do audiovisual
produzindo nos anos 80 mais de trinta documentários. Tendo também como objetivo a
denuncia social, seus filmes apresentam um tenor mais analítico, onde o caráter e
44
urgência dos noticiários será trocado por uma análise mais autoral. Destacam-se aqui os
trabalhos de Tatina Gaviola, Pedro Chasquel, Pablo Salas, Patrícia Mora e Augusto
Góngora, entre outros. Desenvolve-se uma escrita mais observacional, onde o uso de
uma câmara na mão que participa dos acontecimentos e de uma montagem ao interior
do plano seqüência remete a escola deixada pelo cinegrafista de A batalha do Chile,
Jorge Muller, detido e desaparecido em 1975.
Na Argentina, documentaristas como Marcelo Céspedes, Alberto Giúdice,
Tristán Bauer e Silvia Chanvillard se organizaram no Grupo Cine Testemunho. O
coletivo trabalhava em duas diretrizes: a identidade dos povos originários de América e
a marginalidade urbana. A mediados dos 80 estes realizadores se unem a outros, como
David Braunstein, e começam a realizar filmes numa linha mais autoral.
Em 1986 surge, em Buenos Aires, a produtora Cine Ojo que unificará cineastas
que vinham de uma linha testemunhal com outros influenciados pelo Cinema Direto,
numa sorte de sintetizar o político utilizando técnicas do Direto. Os primeiros filmes de
Cine Ojo procuravam transmitir uma mensagem política, às vezes más explícita, às
vezes menos, mais trabalhando as marcas formais destas mensagens, em relação às
historias, aos personagens e a geografia dos lugares onde o filme acontecia.
Outro espaço importante para o desenvolvimento de um documentário de caráter
autoral nos anos 80, foi o Festival Franco-Chileno de Vídeo-Arte, que, mais tarde, se
transformou em Festival-Franco-Latino-Americano. Nos seus inícios o festival
concentrou a escassa produção ficcional, documentaria e de vídeo-experimental
independente da época, tornando-se um espaço alternativo à hegemonia do
documentário de denuncia da época. Já nos 90 incentivou o intercâmbio entre países
como Argentina, Uruguai, Chile, Colômbia, Brasil e França.
A entrada no mercado do formato vídeo no inicio dos anos 80, traz uma
possibilidade mais acessível para a produção de vídeos documentais, o que gera uma
sorte de boom. No Brasil, com a volta à democracia, surge a Associação Brasileira de
Vídeo Popular (ABVP), entidade que consagra os produtores de todo o pais num
modelo que pretende conceber termos de produção, linguagem e participação popular.
O suporte vídeo democratiza o acesso à produção de imagens e a expressão da
diversidade nacional brasileira. Exemplo disso é a produção do Centro de Trabalho
Indigenista (CTI), consolidado no projeto Vídeo nas Aldeias, que desde 1987 coordena
a produção audiovisual de aldeias de todo o Brasil.
45
Já na área televisiva, a produção desenvolvida na primeira década do programa
Globo Repórter, da TV Globo, é uma escola importante para o documentário brasileiro.
Desvinculado do departamento de jornalismo, este espaço é preenchido por cineastas
que buscavam revelar um país desconhecido através de uma linguajem inovadora e
autoral. Dessa vasta produção em 16mm destacam-se O Último Dia de Lampião
(Maurice Capovilla, 1975), Caso Norte (João Batista de Andrade, 1977) e Teodorico, o
Imperador do Sertão (Eduardo Coutinho, 1978), entre outros. O Globo Repórter
manteve essa equipe de produção até 1983, quando o filme de 16mm é substituído pelo
vídeo e os cineastas são substituídos pelos repórteres.
Deste grupo de documentaristas, Eduardo Coutinho se destaca pela realização de
Cabra marcado para morrer (Brasil, 1964/84). O filme interrompido pelo governo
militar, só será concluído em 1981, quando Coutinho volta ao Nordeste, dando inicio a
uma nova forma do documentário brasileiro de caráter mais reflexivo e performativo
“trata-se fundamentalmente de uma realidade sendo produzida no contato com a
câmera, e de deixar claras as condições de produção do filme, o processo de filmagem”
(LINS, 2004, p.40).
Outro trabalho brasileiro significativo que começa a questionar o estatuto da
representação cinematográfica e da abordagem do real, refletindo sobre os encontros e
desencontros do documentário com a ficção é Ilha das Flores (Jorge Furtado, 1989).
Importante para toda produção documental da América Latina foi o inicio da
realização do Festival Internacional del Nuevo Cine Latinoamericano (FINCL) em
Havana, a partir de 1979, bem como a criação da Fundación del Nuevo Cine
Latinoamericano e da Escuela Internacional de Cine y Televisión de los Tres Mundos,
em 1986. Esta estrutura vai permitir a re-alimentação do pensamento do Nuevo Cine
latinoamericano, fundado em 1967, em Viña del Mar.
Fernando Birri, nos anos 60 afirmava: “Que nenhum espectador saia o mesmo
depois que termine de assistir um dos nossos filmes”. Já na década de 80, o mesmo Birri
declara: “Que nenhum cineasta latino-americano seja o mesmo que começou a fazer o
filme quando termine de fazê-lo”. E continua:
Houve um período no qual falávamos que a câmara era uma arma. Isto correspondia à projeção dos nossos sentimentos revolucionários, a nossa adesão a um processo. Só depois entendemos que isso não era a verdade, que a câmera não é uma arma. Que a câmara pode ser usada como uma arma. Isto é, que
46
a câmara pode ser usada como uma forma de acompanhar um processo, mas sem a ilusão idealista de que com essa câmera, e só com essa câmera, vamos transformar a realidade; e principalmente essa realidade objetiva, externa a nós. Outra coisa poderia ser falada do caminho de uma realidade interna, de uma realidade subjetiva ou se vocês preferem a palavra, da consciência. Ou seja, o cinema como transformação interior, como conscientizador, que depois obviamente se reproduz também no exterior23 (BIRRI, 1982, p. 37).
A década de 80 pode ser considerada um período de passagem, em que às
características textuais dos documentários produzidos até esse momento entram num
processo de transformação. Continua-se querendo contar o social e o político mais não
de uma forma testemunhal e direta, já que se reconhece a um público cansado com a
repetição das formulas de escritura, onde o único que mudava era o conteúdo. Começam
as experimentações na linguagem numa linha que usa a realidade como escusa para
fazer com ela um relato cinematográfico. Muitos dos realizadores que estavam fazendo
documentário testemunhal incorporam elementos reflexivos às obras, preparando o
terreno para o que seria o giro reflexivo e subjetivo dos anos 90.
Se nos 60 a valoração discursiva do documentário estava dada em grande
medida pela sua função mediatica, nos 90 esta mediação passa a ser parte do discurso,
tornando-se o próprio sistema de representação em questão, tema recorrente no
documentário das ultimas duas décadas.
Conseqüência disto, o lugar social do documentário também se viu modificado,
deixando de ser necessariamente representativo de uma ideologia, para ocupar espaços,
às vezes, alheios às questões políticas, tanto oficiais como contra-oficiais.
Na América Latina o político tem sido fundamental na hora de dimensionar
trajetórias culturais. A escassez de projetos grupais em torno a ideais políticos das
últimas décadas foi gerando uma produção cultural mais diversificada que atinge os
interesses, tanto ideológicos como estéticos, dos pequenos grupos representados na
fragmentada sociedade contemporânea.
Os tempos mudaram. O regime de historicidade que definia o papel histórico dos
intelectuais iluministas, das utopias transformadoras e do radicalismo estético, foi
substituído pela negação da articulação grupal e da autoconsciência coletiva. Não
existem mais os grandes objetivos nem as tarefas comuns a todos os indivíduos da
23 Tradução ao português da autora (original em espanhol).
47
sociedade, colocando em risco a credibilidade na capacidade humana de produzir seu
futuro.
No terreno da produção simbólica isto traz algumas modificações significativas.
Os novos critérios de legitimação do autor têm pouco a ver com o intelectual tradicional
de saber integral e unificado, cuja missão é a de ser a consciência crítica de seu tempo e
a sua responsabilidade perante a sociedade, “dizer a verdade e denunciar a mentira”.
Atualmente, numa sociedade caracterizada pela sua fragmentação, se fortalece a figura
gramsciana do intelectual orgânico: líder intelectual de uma tendência, grupo ou facção,
da qual faz parte por outros méritos. Edward Said observa que o intelectual orgânico,
que lida com a esfera pública sendo em grande medida um componente dela, ao
contrario do tradicional, parecera existir com muita vida. A sua legitimação na
sociedade tem aumentado tanto que ele começa a cumprir também as funcoês do
intelectual tradicional.
No campo da produção audiovisual a fragmentação se manifesta numa
diversificação de produtos, aparentemente feitos para públicos especializados. O espaço
social destas obras fica determinado por uma valoração no campo das novas
tecnologias. Mas ao mesmo tempo, esta tecnologia aumenta a “probabilidade de atingir
públicos muito maiores do que poderíamos imaginar há uma década, embora as chances
de manter esse público sejam, pela mesma moeda, bastante incertas” (SAID, 2004, p. 36).
O discurso será então, opaco para um público e transparente para um outro; e o
destinatário será, para o realizador, um ser difuso. Torna-se assim mais difícil fixar
objetivos nas obras destinados a produzir efeitos específicos no espectador. E as
produções começam a focar seus interesses em outro tipo de preocupações.
Para Milton Santos, o valor que foi dado à técnica no mundo globalizado tem
produzido, também, um efeito de neutralidade na esfera social e política, permitindo a
consolidação de um pensamento único, que se autodefine como universal:
Como as técnicas hegemônicas atuais são, todas elas, filhas da ciência, e como sua utilização se dá ao serviço do mercado, esse amálgama produz um ideário da técnica e do mercado que é santificado pela ciência, considerada, ela própria, infalível. Essa, aliás, é uma das fontes do poder do pensamento único. Tudo o que é feito pela mão dos vetores fundamentais da globalização parte de idéias científicas, indispensáveis à produção, aliás, acelerada, de novas realidades, de tal modo que as ações assim criadas se impõem como soluções únicas. (SANTOS, 2000, p.53).
48
A produção audiovisual, em circunstâncias em que seis multinacionais dominam
90% do fornecimento mundial de imagens e notícias, estas agências controlam os
temas, as fotos, os debates que são difundidos, ou não, nos meios de comunicação. O
conceito de “efeito de opacidade”, de Santos (2004, P.127), em que a informação nem
sempre se propõe a informar, e sim convencer acerca das possibilidades e das vantagens
das mercadorias, produz “uma informação manipulada que, em lugar de esclarecer,
confunde”. Os artifícios utilizados pela mídia contemporânea são evidenciados num
suporte que, pela sua natureza, tem a mesma possibilidade potencial de manipulação.
O espectador, neste contexto, se apresenta como um indivíduo na busca de
informações que lhe ajudem a entender as diferentes realidades que formam parte direta
e indireta de seu cotidiano. A informação, ou melhor, a interpretação dos fatos que se
lhe oferece, se apresenta camuflada e legitimada enquanto especialização técnica,
distante de qualquer tipo de opção ideológica. Surge uma nova figura, bastante
explorada pelo formato documental: os especialistas.
Os especialistas, como especialistas, tendem a demarcar os limites do possível, e sua opinião (que parece livre de qualquer ideologia, já que detém a autenticação da ciência e da técnica) define políticas de longo alcance. Num clima em que se comemora o fim das ideologias, os especialistas encarnam a figura da história: garantem o pragmatismo e fundam um novo tipo de realismo político. (SARLO, 2006, p. 167).
O culto à especialização parecera governar no mundo do discurso. Nos meios de
comunicação – programas de entrevista na televisão, programas de rádio, textos nos
jornais e revistas – se encontram, sem que se tenha real consciência disso, os
formadores de opinião da sociedade contemporânea.
A maioria da produção latino-americana contemporânea encontrou um lugar
dentro da programação televisiva. O documentário televisivo, feito geralmente por
encomenda, transformou-se num produto homogêneo adequado ao perfil dos canais. As
marcas de autoria do realizador desapareceram em beneficio de um “absolutismo de
mercado” que destaca a “marca” da mercadoria. O discurso, nestes casos, se legitima
através da voz do especialista, na sua suposta condição de independente e por tanto
49
capaz de emitir um juízo objetivo; o autor se auto-apaga e todas suas marcas se
desvanecem.
Neste novo cenário, o documentário autoral ocupou um espaço de circulação
mais restrita – festivais de cinema e cineclubes –, porém não por isso livre dos
condicionamentos dos “fluxos de mercado”. A legitimação das obras no âmbito cultural
está condicionada a um mercado cultural de bens simbólicos submetido ao gosto do
público.
As posições estéticas reduzem-se a relações de força dentro do campo
intelectual, situação, segundo Beatriz Sarlo, extensiva a todas as manifestações
artísticas:
As tomadas de posição no campo intelectual ficam restritas aos verdadeiros impulsos que as regem: a busca de consagração e legitimidade para as próprias obras, a competição entre artistas, suas estratégias de luta e aliança. Não é o campo sagrado da arte, e sim um espaço profano de conflito. (SARLO, 2006, p. 143).
O conceito de Relativismo Absoluto, de Sarlo, explica um novo cenário de
produção cultural, onde os particularismos impossibilitam uma legitimação estética que
possa se desdobrar numa luta pela legitimidade social, sem espaço no mundo atual:
Em matéria de arte, uma forte tomada de partido que faça possível a discussão de valores pode deixar em evidência para muitos a significação densa (a mais densa das significações na sociedade contemporânea) do fato estético: mesmo quando se reconheça que instituir valores para a eternidade é uma ilusão (SARLO, 2004, p. 158).
Neste sentido, tomar partido além do universo da própria experiência, não
encontra eco numa cultura que busca o consenso de vozes. Em prol da neutralidade e da
imparcialidade sugere-se às vezes um multiculturalismo simplificado.
Em contrapartida, os intelectuais independentes, separados uns de outros,
estabelecem ligações, de modo variado, com um grande número de comunidades de
ativistas que são evitadas pela mídia principal. Diversas experiências de comunicação,
alternativas ao monopólio, se expressam em torno da cultura popular ou de grupos de
minorias que se apropriam dos elementos da cultura de massa para a expressão da
50
cultura popular. O domínio da técnica se torna fundamental neste processo de
apropriação, já que o advento de novos canais de distribuição de material audiovisual e
a revolução midiática operada por intermédio da internet estabeleceram novos
parâmetros de difusão e consumo de produtos audiovisuais.
No terreno documentário latino-americano se encontram exemplos destas
práticas em obras com fortes marcas jornalísticas, nascidas no contexto social e cultural
de lutas reivindicativas. Geralmente agrupados em coletivos, encontramos na Argentina
um Cinema Piquetero, no México o Proyecto de Medios de Chiapas e Canalseisdejulio,
no Brasil a experiência audiovisual indígena Vídeo nas Aldeias, para mencionar só
alguns. A prática de um documentário partidário, assim como a retro-alimentação a
partir de valores próprios da cultura popular se desenvolvem como importantes
ferramentas de luta no debate ideológico contemporâneo. Porém se trata de uma
produção escassa e de menor amplitude.
O documentário latino-americano das ultimas décadas se apresenta com uma
grande diversidade de formas. Não encontramos características comuns que permitam o
seu agrupamento em movimentos ou escolas, similares às dos anos 60 e 70. Seus
autores raramente elaboram manifestos, mantendo vínculos com outros documentaristas
só em relação a atividades de grêmio. A identificação de uma linguagem comum a um
conjunto de obras acontece geralmente pelas marcas deixadas pelo trabalho autoral de
um mesmo realizador.
Se nos anos 60 o debate cultural, fundamentado numa análise estrutural da
sociedade, levou a pensar na idéia da morte do sujeito, na modernidade tardia um
ressurgimento do sujeito como identidade singular retoma seu lugar tornando-se uma
hegemonia simbólica, principalmente no território dos meios audiovisuais. Nas últimas
décadas a legitimação da historia oral e suas fontes testemunhais devolvem a confiança
a uma primeira pessoa que narra sua vida, seja privada, pública, afetiva ou política.
Encontra-se no novo documentário de autor latino-americano um olhar interior
de um documentarista que expressa, num estilo pessoal de reconstrução de realidades
individuais, um ponto de vista interno a partir do qual entende o mundo histórico. As
obras, majoritariamente reflexivas, fazem uso deste recurso de maneiras diversas.
Destacam-se os filmes auto-referentes que tratam do próprio processo de produção da
reflexão. Tal processo parte da experiência particular e única do autor, e representa uma
intenção de compreender a própria história para assim chegar ao entendimento da
51
memória histórica da sociedade. Trata-se de um processo de dentro para fora que une
elementos discursivos aparentemente antagônicos: o geral com o particular, o individual
com o coletivo e o político com o pessoal.
Voltando à idéia de Birri: o cineasta aprende através de seus filmes, durante o
processo de registro do real, momento em que se produz um encontro que modifica o
realizador. Uma espécie de transformação interior de um autor que não será o mesmo
depois de finalizar o filme.
Se os documentaristas do Nuevo Cine Latinoamericano se posicionaram como
mediadores entre os intelectuais e as massas marginalizadas, elaborando obras de linha
didática e panfletária, as preocupações dos documentaristas hoje passam pela análise
reflexiva de seu lugar em relação às pessoas que desejam representar. Direta ou
indiretamente, o cineasta discute o processo de criação dentro dos próprios filmes
questionando os métodos e crenças estabelecidas.
A tendência documental performativa, na América Latina, cuja enunciação se
manifesta como: eu te digo que o mundo é assim, parece buscar nos fatos representados
uma reflexão subjetiva que contribua à reconstrução da memória histórica de seus
respectivos países. O próprio questionamento do documentarista numa obra que
combina estruturas e práticas de origens diversas, livre de modelos preestabelecidos de
representação, produz um estranhamento no espectador capaz de contribuir na discussão
acerca da representação da fragmentada sociedade contemporânea.
Surge uma nova linguagem que se constitui como prática de resistência e que vai
substituir o que fosse a linguagem revolucionária:
Substantivos como “revolução” e “libertação” se transformaram em adjetivos de oposição: “contra-hegemônico”, “subversivo”, “oposicionista”. No lugar das narrativas-mestras da revolução, agora o foco recai em uma multiplicidade descentrada de esforços localizados. Embora a nação e as classes sociais não tenham desaparecido do horizonte, esses termos perderam sua posição privilegiada e foram complementados e desafiados por categorias como raça, gênero e sexualidade (STAM, 2006, p. 438).
Embora o documentarista latino-americano não se interesse mais pelas meta-
narrativas de libertação, isto não significa necessariamente que tenha abandonado a
noção de luta pela emancipação. Enquanto a representação de mundos particulares
52
possibilite chegar a um entendimento geral, esta “narrativa dos afetos”, que surge a
partir do registro do encontro entre quem filma e quem é filmado, pode alcançar uma
reflexão singular que se constituía também como um gesto político, fundamental numa
América Latina que continua sendo parte do mundo desde o lugar do oprimido.
E assim, no sentido de Benjamín, talvez seja possível que estas fotografias do
momento de um processo –– estes instantâneos do encontro ––, se tornem uma
possibilidade revolucionaria de lutar por um passado oprimido, ao procurar nas imagens
onde o passado se junta com o agora o imaginário social da nossa própria historia.
53
“Porém, não basta mostrar fragmentos da verdade na tela, partes separadas da verdade. Devem-se organizar essas partes tematicamente para que também o todo seja uma verdade” Dziga Vertov – ABC dos Kinoks – 1924
II.
RELATO E MONTAGEM NO DOCUMENTÁRIO LATINO-AMERICANO
A grande diversidade temática, estilística, técnica e metodológica presente no
documentário latino-americano dificulta a criação de modelos e categorias para a sua
analise aplicável ou conjunto das obras de um período determinado. No decorrer da
história, diferentes modalidades de representação se desenvolveram em torno de dois
critérios principais: 1) O entendimento sobre a função social da informação, e 2) O
desenvolvimento das técnicas de captação e pós-produção audiovisual.
Atualmente, diversas formas de representação não só coexistem paralelamente,
mas também se misturam no interior de uma mesma obra.
Na tentativa de definir o documentário pelas suas características textuais Bill
Nichols estabeleceu seis formas básicas de organizar textos e as denominou Modos de
Representação: patrões organizativos dominantes que dão conta da estrutura da maioria
dos textos documentais. Cada modo utiliza os recursos da narrativa e do realismo de
diversas maneiras, gerando assim textos diferentes elaborados a partir de elementos
comuns. Os Modos Poético, Expositivo, Observativo, Participativo, Reflexivo e
Performativo surgiram, de uma forma geral, nessa ordem cronológica na história do
documentário. Atualmente coexistem, lado a lado, nas produções contemporâneas.
O Modo Poético retira do mundo histórico24 sua matéria prima, mas transforma-
a em textos que enfatizam na fragmentação e na ambigüidade. Quer dizer, na maneira
pela qual a voz do cineasta dá a fragmentos do mundo histórico uma integridade formal
24 Nichols analisa o discurso documentário desde o ponto de vista do realizador, do texto e do espectador. Dentro deste contexto define o mundo histórico na sua relação de oposição ao mundo imaginário. O mundo histórico é a base da representação documental.
54
estética específica do filme, que reflete o estado de ânimo, o tom e o afeto. As
convenções da montagem em continuidade são sacrificadas para explorar associações
que envolvem ritmos temporais e justaposições espaciais.
O Modo Expositivo agrupa fragmentos do mundo histórico numa estrutura
argumentativa ou retórica. Dirige-se diretamente ao espectador através de uma lógica
informativa transmitida verbalmente, onde as imagens ilustram, esclarecem, evocam ou
se contrapõem ao que é dito. O comentário em voice-over sustenta o argumento do
filme. Este comentário provém de um lugar ignorado, mas associado à objetividade ou
onisciência, uma espécie de “voz de Deus”, onde o narrador se empenha na construção
de uma sensação de credibilidade usando características como distância, neutralidade,
indiferença e onisciência. A montagem pode sacrificar a continuidade espacial ou
temporal para manter a continuidade do argumento ou perspectiva verbal: “montagem
de evidencia”.
O Modo Observativo sublinha a observação espontânea da experiência vivida,
das coisas conforme elas acontecem, evitando a intervenção do realizador. Este tipo de
filmes cede ao “controle” dos acontecimentos que se desenvolvem frente à câmera e se
apóiam na montagem para aumentar a impressão de uma continuidade em “tempo
presente”. O isolamento do cineasta na posição de observador pede que o espectador
assuma um papel mais ativo na determinação de importância do que se diz e faz,
estabelecendo um marco de referência muito similar ao do cinema de ficção: sensação
de aceso sem travas e sem a mediação de um realizador. Este tipo de filmes levantou, na
década de sessenta, o debate sobre até que ponto qualquer realidade não muda a partir
do momento em que está frente a uma câmera.
No Modo Participativo se espera testemunhar o mundo histórico da maneira pela
qual ele é representado por alguém que nele se engaja ativamente; isto significa que os
documentaristas também fazem parte do filme, vivem entre os outros e falam de sua
experiência. O cineasta e os atores sociais25 negociam um relacionamento, ou seja, e as
formas de poder e controle que entram em jogo no “encontro” entre alguém que
controla uma câmera de filmar e alguém que não a controla. O encontro acontece
geralmente através de uma entrevista de estilo intervencionista. As respostas e os
25 Segundo Nichols, os atores sociais, ou seja, os “indivíduos” o “pessoas” observados num documentário pertencem ao mundo histórico. Eles se representam a si mesmos frente a outros, sem abandonar o contexto histórico ao que pertencem. Esta representação se manifesta em níveis diversos, chegando, às vezes, a ser considerada uma interpretação.
55
comentários dos atores sociais oferecem uma parte essencial da argumentação do filme:
o espectador espera ser testemunha do mundo histórico através da representação de uma
pessoa que mora nele, cuja autoridade textual é significativa.
No Modo Reflexivo a representação do mundo histórico se converte, em si
mesma, no tema de meditação cinematográfica. Os textos reflexivos são conscientes de
si próprios não só no que diz respeito à forma e estilo, mas também no que diz respeito
à estratégia, estrutura, convenções, expectativas e efeitos. São os processos de
negociação entre cineasta e espectador que se tornam o foco de atenção, priorizando a
relação realizador/espectador e não a realizador/sujeito. O reflexivo estimula no
espectador um estado de consciência intensificada a respeito de sua relação com o
documentário e aquilo que ele representa. A montagem incrementa a sensação de
consciência, porém uma consciência do mundo cinematográfico e menos do mundo
histórico.
O Modo Performativo sublinha a complexidade de nosso conhecimento do
mundo ao enfatizar suas dimensões subjetivas e afetivas. O documentarista e seus
questionamentos particulares são o centro de um filme narrado na primeira pessoa.
Dirige-se ao espectador de maneira emocional e significativa em vez de apontar para o
mundo objetivo que existe em comum. Os documentários performativos recentes tentam
representar uma subjetividade social que une o geral ao particular, o individual ao
coletivo e o político ao pessoal.
As características de cada modo funcionam como dominantes no documentário,
elas dão estrutura ao filme, mas não determinam todos os aspectos da sua organização.
Por isso é possível reconhecer num mesmo documentário mais de uma modalidade de
representação.
O documentário sempre se apresentou como um formato híbrido. Na América
Latina, a urgência por denunciar realidades adversas em condições de produção
desfavoráveis, levou à mistura de estilos e técnicas, na intenção de juntar formas
pertinentes à intencionalidade enunciativa. Ainda nos anos 60, período em que surge
uma contra-narração própria da cinematografia latino-americana, as práticas de
resistência inscritas nestes filmes variam de uma região a outra, se expressam em
diversos gêneros cinematográficos e se inspiram em estratégias estéticas variadas.
A influencia das teorias neo-realistas, interessadas em narrar a realidade social
dos setores mais populares, levou a que na ficção se utilizasse uma linguagem mais
56
própria da escritura documental, trocando sets e cenários por locaçoes naturais com ruas
e casas verdadeiras, filmadas por uma câmera na mão, com inclusão de atores não-
profissionais e som direto.
Um dos maiores exemplos desta tendência é a cinematografia cubana. A
importância moral que a revolução dava ao documentário levou a que na ficção sempre
existisse uma referência documentária – empenhada em conseguir na tela “a impressão
de verdade”, em vez da enganosa “ilusão de realidade” –. A incorporação, dentro de
uma ficção narrativa, de passagens documentais com depoimentos de atores sociais ao
serviço da reconstrução histórica são exemplos disto. No caso do documentário,
também se encontram estruturas mais próprias da ficção num grande número de obras
latino-americanas, fazendo do documental uma ficção, e vice-versa.
Desde a experiência de hibridação cubana do primeiro período da revolução,
com o trabalho de Sara Gómez e Tomás Gutierrez Alea; passando pelas experiências de
Sanjinés na Bolívia, de filmes brasileiros como Iracema: Uma transa amazônica (Jorge
Bodansky, Orlando Senna, 1974), mexicanos como Del olvido al no me acuerdo (Juan
Carlos Rulfo, 1999) ou argentinos como Los rubios (Albertina Carri, 2003); na América
Latina, desde sempre, a divisão entre documentário e ficção nunca fez muito sentido26.
A experiência cultural do colonialismo, vivenciada pelo conjunto da América
Latina, também contribuiu para o desenvolvimento de práticas artísticas definíveis
justamente pela incorporação e mistura de tendências diversas. Os artistas, na cultura
dominada, desenvolveram estratégias de produção baseadas no sincretismo e na
antropofagia cultural.
A influência de uma cultura dominante exógena produz uma cultura local
heterogênea, onde os conceitos com os que, embora de uma forma desigual, se convive
e se dialoga em forma intensa, transformaram-se através dos anos numa importante
26 As teorias estruturalistas consideram todo filme como ficcional, pois as imagens são sempre uma “ausentificação” do que mostram, ou seja, ontologicamente falsas. Neste sentido, a ficção oferece, através de processos narrativos, acesso a um mundo fictício e o documentário acesso a representações do mundo histórico. Para Nichols, documentário e ficção são homólogos em quanto à estrutura textual; a diferença entre eles se apresenta no regime discursivo e no tipo de engajamento a que convida. Em termos de tipo de discurso existe a adesão a códigos perceptíveis na superfície do filme, como a motivação de movimentos de câmera, de duração dos planos e da natureza dos cortes, códigos que variam segundo a época, contexto, estilo e modo de representação. As marcas na superfície do filme induzem a diferentes modos de ver, ouvir e pensar – diferentes formas de engajamento por parte do espectador-, seja um engajamento retórico ou um engajamento com o mundo histórico (Da-rin, 2004). As experiências de hibridação entre os registros de ficção e do documentário na América Latina descritos acima, dizem respeito ao regime discursivo dos filmes.
57
referência cultural. Esses elementos da cultura exógena podem ser assimilados como
rejeitados. Mais existe também a possibilidade da apropriação cultural, como uma
forma de indagar o passado cultural e a história da cultura para entender esta amálgama
y poder definir tanto o nacional como a identidade desde um ponto de vista político.
Como é impossível haver uma recuperação não-problemática das origens nacionais,
livres das impurezas das influências externas, devorar antropofagicamente diversos
estímulos culturais em toda a sua heterogeneidade, desde uma posição de autoconfiança
cultural, se tornou una estratégia artística na América Latina. Já que o continente se
alimenta de uma cultura dominante estrangeira, porque não, em vez de ignorar sua
presença, reciclar os materiais para fins nacionais, postulou o movimento tropicalista
brasileiro dos anos 60, trazendo consigo uma serie de produções ricas em sincretismos
cinematográficos, tanto de uma perspectiva temática quanto formal.
Hoje, antropofagia e sincretismo estão mais do que presentes no documentário
contemporâneo. O formato se apresenta híbrido, misturando o registro do mundo
histórico com representações ficcionais, autor com personagem, e subjetividade
interpretativa com objetividade factual.
Partindo, então, da premissa de que a produção documentária latino-americana
atual, num primeiro momento, não pode definir-se em termos de estilos, pretende-se
pesquisar a estrutura do relato, com a intenção de identificar as formas predominantes
na narrativa e na montagem das obras contemporâneas.
Montagem e Documentário
Ao falar em montagem nos referimos a um processo que se compõe de três
grandes operações: seleção, combinação e junção. Mediante um processo criativo de
articulação de material audiovisual cria-se um novo espaço-tempo idealizado e lógico
que representa uma continuidade aparente. (SANCHEZ, 1985).
Não somente ordenações temporais, mas também relações, associações
(emocionais ou intelectuais) que não eram visíveis nos planos soltos do material de
câmera, se tornarão presentes na montagem. A união de determinados planos produz
significados simbólicos, metafóricos, sentimentais.
58
Uma das funções da montagem é a ordenação rítmica. Entende-se por ritmo a
tensão produzida entre uma constante em relação com outra constante que surge no eixo
temporal. Qualquer repetição periódica faz nascer um ritmo; esta repetição pode ser
visual, sonora, temática ou narrativa. Ao produzir-se uma tensão dramática cujo
desenlace é seguido de uma nova tensão e assim sucessivamente, cria-se uma forma
rítmica. O ritmo acentua, dá compasso e tempo às seqüências. O ritmo é a respiração do
filme.
O tipo de leitura que o espectador faz de um filme depende, em grande parte do
ritmo, mas também da valoração dada às informações contidas no interior do plano. A
interrupção de uma cena antes de poder ser absorvida a informação da imagem,
surpreende; continuar observando um plano que, em princípio, já foi observado na sua
totalidade e “nada mais aporta”, também produz desconcerto. Ambas as situações
modificam o valor do plano, produzindo, assim, novas significações.
Na produção audiovisual contemporânea é possível reconhecer a presença de
duas teorias de montagem com funções antagônicas. Por um lado, a função narrativa da
montagem e, por outro, a função de articulação de sentido na montagem de Eisenstein.
Além delas, pouca é a discussão teórica que prevalece em torno de outras teorias de
montagem.
A teoria de André Bazin, sublinha a função narrativa na qual a montagem está a
serviço da produção de sentido num espaço-tempo. Em Bazin tem origem o conceito de
“transparência”, que estabelece que o filme tem como função essencial deixar ver os
acontecimentos representados e não se deixar ver a si mesmo Nas seqüências montadas
sob o princípio de transparência cada plano continua a ação do seu antecessor.
Fundamental para a criação artística será a seleção que se faz da realidade e não a sua
transformação. Trata-se de uma montagem que pretende representar fielmente a
realidade, e não se interessa pela articulação de um sentido próprio do suporte de
representação que a sustenta. As decisões de montagem têm a ver com a significação
dos fatos filmados, com a reprodução de nossa maneira de perceber os fatos reais. As
trocas de plano reproduzem nossa maneira de olhar, e são o método mais correto para
expressar a passagem de nossa atenção de uma imagem à outra. Bazin inclina-se por um
cinema realista e defende o uso da profundidade de campo (plano seqüência) como
estrutura ideal de montagem, já que será aí que o espectador terá liberdade de atenção,
59
da mesma forma como acontece na realidade empírica do seu cotidiano (DUDLEY,
1993).
Para Sergei Eisenstein, a montagem é um fim em si mesmo. Trata-se de uma
forma de articulação de sentido e não de um meio cuja finalidade é estruturar uma
narração que se identifique com o mundo real. Eisenstein vê o cinema como um
discurso articulado com significação própria. Para ele, o cinema tem a obrigação de
intervir na realidade, de refleti-la ao mesmo tempo em que emite um juízo ideológico
sobre ela. Considera o exercício da montagem um gerador de novas significações. A
continuidade narrativa é dada por uma série de choques entre fragmentos do filme, que
criam uma impressão nova na mente do espectador. Estes choques articulam novas
significações, e na totalidade do filme cria-se um novo discurso, exclusivo da estrutura
fílmica. Este novo significado se forma com a ajuda do espectador, já que é na sua
mente onde será feita a leitura do choque de planos; o público participa emocional e
intelectualmente do processo criativo. “A força da montagem reside no fato de que faz
participar às emoções e a razão do espectador. O espectador deve percorrer o caminho
da criação que o autor percorreu ao criar a imagem” (EISENSTEIN, 2001, p. 101)27.
Assim, a montagem torna-se o princípio de vida que dá sentido às tomadas primarias.
A montagem tem a função instrumental de incentivar a capacidade intelectual do
espectador, pela sua capacidade de abstração simbólica, podendo assim, transmitir
idéias e conceitos abstratos. A montagem entendida como o instrumento de uma forma
de pensamento do conflito, ou seja, da dialética, levou Eisenstein a desenvolver sua
teoria sobre montagem intelectual. O tratamento da imagem com o fim de fazê-la apta
para transmitir conceitos abstratos e a operação de choque que tem lugar entre os planos
permite a atração intelectual entre os componentes mínimos interiores al plano.
Segundo a definição de Bill Nichols, o documentário corresponde a um discurso
do real, que será estruturado com base numa argumentação que pertence ao mundo
histórico e não a um mundo imaginário. A ordem destas argumentações está dada por
uma montagem provatória, cuja intenção é convencer ao espectador da argumentação
apresentada. O mundo histórico, então, é a base da representação documental, e a
argumentação é “uma exposição de provas com o objetivo de transmitir um ponto de
vista particular e constitui a espinha dorsal organizativa do documentário” (NICHOLS,
27 EISENSTEIN,S.M. “Montaje 1938”. In:GLENNY, Michael & TAYLOR Richard (Org.). S.M. Eisenstein. Hacia una teoría del Montaje. Volumen II. Barcelona: Paidós, 2001.
60
1997, p. 169). A montagem provatória está em função da argumentação, permitindo a
justaposição de imagens e sons que salta no espaço-tempo de forma intermitente, a
continuidade se produz pela lógica dos argumentos “[...] os sons e as imagens se
sustentam como provas e são tratados como tais, em vez de como elementos da trama”
(NICHOLS, 1997, p. 50). Qualquer tipo de junção é válida desde que existam provas que
permitam que a coerência argumentativa seja mantida.
A montagem no documentário consiste na organização de idéias subordinadas ao
desenvolvimento de um pensamento específico. Ao realizar saltos espaciais e temporais
na montagem, que não correspondem ao desenrolar lógico dos acontecimentos, a
imagem que antecede adquire um valor e uma compreensão dada pela imagem
posterior; trata-se aqui de uma lógica de implicação.
As relações que se estabelecem entre os planos na montagem provatória,
característica no documentário, lembram o conceito de montagem intelectual,
desenvolvido por Eisenstein. Ele parte de uma série de imagens que não se
correspondem no mundo físico, para uni-las conforme uma concepção intelectual: “A
justaposição de dois planos unidos é uma criação, é mais do que a simples soma de um
plano e outro” (EISENSTEIN, 1986, p. 63).
A montagem intelectual no documentário ressalta a qualidade evidente ou
construída de uma argumentação, baseada em representações do mundo histórico. As
justaposições de imagens ocorrem em função da elaboração de argumentações assim
como na montagem provatória.
A montagem provatória organiza suas argumentações de acordo com uma
reconstrução fiel do mundo representado. A montagem intelectual constrói a
representação visual do mundo, provocando um transtorno ou desequilíbrio em relação
às normas, suposições ou expectativas que prevalecem no espectador. Trata-se de uma
reflexão formal, cujas associações não são reconhecíveis para o espectador, mas sim
desconcertantes. Uma montagem que consegue seu efeito através de justaposições
incomuns.
A montagem intelectual também pode ser provatória. Ambas baseiam-se na
justaposição de idéias. No caso da montagem provatória, os argumentos elaborados se
apresentam de forma implícita ou explícita na obra documentária. No caso da
montagem intelectual, os argumentos formam parte de um processo que acontece no
espectador, a partir da justaposição de planos que representam conceitos.
61
Na ficção narrativa clássica a lógica de reconstrução busca simular nossa
maneira de ver e mover-nos pelo mundo real. No documentário, esta lógica reproduz
uma forma de pensar, de fazer associações, de reunir provas e elaborar um argumento
para construir um discurso, em que “as técnicas narrativas clássicas sofrem uma
modificação significativa” (NICHOLS, 1997, p. 50). A montagem tenta acumular a maior
quantidade possível de provas que sirvam para sustentar a argumentação do realizador.
Quanto maior for o número de provas, maior será a validade da argumentação e maiores
também as possibilidades de que esta argumentação venha a se tornar convincente. As
argumentações que compõem sua estrutura são abstratas e para poder transmitir seu
significado, a maioria dos documentários, faz uso da banda sonora. Em especial, a
palavra falada é um recurso fundamental para a exposição de idéias. As cenas de um
documentário estão mais firmemente organizadas em torno ao princípio do som ou do
comentário falado, do que as cenas de ficção.
É através da palavra que surge, geralmente, o autor no filme. O recurso da voz
em off lhe permite expor idéias que escapam à mera observação das imagens; neste
espaço, o autor manifesta o seu ponto de vista em relação aos temas expostos. A relação
da voz off com o resto do texto fílmico pode ser contida, caso em que se entregam
indícios que complementam a imagem; como também pode subordinar à imagem,
unificando cenas ou simplesmente fazendo da imagem a ilustração da palavra falada.
A entrevista também é uma manifestação da palavra, neste caso da palavra
filmada. A entrevista no documentário tem a especificidade da presença visual. A
fisionomia, linguagem, gestos, emotividade, assim como o entorno da fala, expressam
dados do entrevistado, só visíveis para o espectador na entrevista como registro visual.
As diferentes maneiras de expressão aportam textura à palavra, sendo fundamentais para
a credibilidade retórica da fala.
A organização do material de arquivo na montagem, em muitas ocasiões, se vê
condicionado à palavra, seja do autor, no rol do narrador, ou de um dos entrevistados.
Aplicação de um modelo de análise
Mesmo que qualquer junção justifique uma argumentação é possível distinguir,
na montagem de um documentário, elementos discursivos que, nas suas diversas
62
combinações, constroem a narrativa. Atendendo às características destes elementos
comuns foi construído um modelo de análise que consta de três categorias:
AS MARCAS DE AUTORIA
As marcas de autoria correspondem aos aspectos que o realizador deixa passar
para a obra, ao reconhecimento da marca do autor a partir de diferentes perspectivas da
narração.
A entrevista é a voz do personagem; tem um lugar singular dentro da enunciação
diferenciando-se de outras vozes por seu caráter testemunhal. Sua função no
documentário é a de emitir uma opinião sobre o tema que não será entendida como a
opinião do realizador. O discurso testemunhal permite um aceso mais direto ao
entrevistado, rico em autenticidade e credibilidade pela falta aparente de mediação entre
o espectador e o entrevistado.
A informação recebida através de uma entrevista, terá para o espectador um
valor diferente do comentário em voz off. Para o espectador, a entrevista é uma fonte
direta de informação, que não está filtrada pelo olhar do realizador. As reconstruções
baseadas em fontes testemunhais asseguram um sentido e por isso sustentam a ação:
Trata-se de um sistema de certezas, mais que de hipóteses.
Uma outra forma da entrevista se encontra nos depoimentos dos especialistas,
cuja opinião se sustenta na autoridade que cria o conhecimento profissional. Eles que
contribuem para o relato com informações de uma perspectiva que não os compromete
emocionalmente.
A natureza do material se refere ao tipo de registro; se é um registro do mundo
histórico ou uma encenação, se são imagens atuais ou não.
A aplicação deste modelo permite reconhecer, no documentário, elementos
comuns a todo o conjunto, elementos estes, que, nas suas múltiplas combinações,
permitem identificar as figuras de montagem que articulam a construção fílmica.
A ENTREVISTA A NATUREZA DO MATERIAL
63
MODELO DE CATEGORIAS:
Uso de caracteres Animação Encenação
Registrado para a obra
Registrado para outros fins
Construído para registro
NATUREZA DO MATERIAL
De arquivo em movimento De arquivo em foto fixa
Centrada num único personagem
Vários personagens em torno de uma temática comum
Em ordem sucessiva Em ordem intercalada
Centrada em personagens secundários
A ENTREVISTA
História do personagem Tema conduzido pelo personagem
Olhar do autor
Intervenção do autor na narrativa
Lugar do autor na narração
MARCAS DE AUTORIA
Endógeno Exógeno
Manifesta Oculta
Presente Ausente
64
1. A PRESENÇA DE MARCAS DE AUTORIA
Nesta categoria destacam-se três aspectos:
a. O olhar do autor
b. A intervenção do autor na narrativa
c. O lugar do autor na narração
a. O olhar do autor
Refere-se à forma como o realizador está vinculado ao tema da sua obra, sob que
perspectiva ele observa a história que está sendo contada. O lugar desde o qual o autor
observa e trabalha determina características importantes da obra que elabora.
Este olhar pode ser endógeno, isto é, observa a realidade de dentro da situação,
participando dela, ou exógeno, referindo-se a uma observação distante, evidenciando
que se trata de uma realidade que lhe é desconhecida.
A distância existente entre o documentarista latino-americano e o tema da sua
obra é variável; porém, as temáticas originadas na realidade latino-americana são
praticamente uma constante. Os cineastas latino-americanos as vêem como parte de um
projeto nacional.
Geralmente, os autores trabalham temas que afetam a realidade dos seus países,
filmam e estruturam discursos sobre suas realidades culturais ou referentes à
idiossincrasia do país que habitam. Exemplo disto é Notícias de uma guerra particular
(João Moreira Salles / Kátia Lund, Brasil, 1999), que discute a violência urbana no Rio
de Janeiro a partir da necessidade dos autores de documentar acontecimentos que fazem
parte das preocupações da sociedade carioca. Moreira Salles (apud Avellar, 2003, p.248)28
refere-se a este documentário como “Um filme de urgência, onde duas pessoas, de uma
semana à outra perceberam que Rio de Janeiro se convertia numa cidade conflagrada e
quiseram de alguma maneira dar testemunho disto”. Os realizadores manifestam sua
28 AVELLAR, José Carlos. “João Moreira Salles”. In: PARANAGUÁ, Paulo (Org.). Cine documental en América Latina. Madrid: Ediciones Cátedra, 2003.
65
necessidade de documentar os acontecimentos que comovem aos grupos a que
pertencem.
Muitos documentários latino-americanos abordam o tema de uma perspectiva
afetiva. A forma de aproximar-se e perceber a situação corresponde a um olhar
subjetivo. Ao assistir a esta interpretação subjetiva, o espectador obtém um
conhecimento de caráter marcadamente afetivo.
É o caso do documentário Aquí se
construye (Ignacio Agüero, Chile, 2000),
história sobre demolições de casas antigas para
a construção de prédios modernos em alguns
bairros de Santiago; o ponto de vista da
narração corresponde ao olhar da comunidade
afetada pelo problema. Por intermédio de um
personagem central, toma-se conhecimento da
maneira como a situação afeta o grupo
familiar; e por intermédio de seqüências de
demolições, generaliza-se o problema.
O espectador toma consciência do barulho ensurdecedor, da poeira, da força
destruidora das máquinas, assim como se sensibiliza com as mudanças forçadas dentro
do núcleo familiar. A montagem subordina-se ao olhar subjetivo, construindo
seqüências dramáticas que conseguem transmitir as sensações vividas pelos
personagens. A intencionalidade não se encontra na explicação do fenômeno na sua
totalidade, e sim, em como este afeta as pessoas em particular.
O olhar exógeno apresenta-se quando se filmam mundos alheios ao
documentarista, como no caso dos filmes etnográficos ou dos filmes de viagem. Uma
boa quantidade de filmes, sobre a América Latina, feitos por documentaristas de
“passagem” são representativos deste olhar exógeno, e correspondem a uma tradição
praticada já no cinema dos primeiros tempos.
No geral, estes filmes têm um tratamento temático que opera com um
distanciamento pedagógico, sem levar em conta o momento da aproximação entre o
autor e seu objeto. Busca-se uma suposta transmissão de informações imparciais, mas
que não consegue se libertar de um tipo de compreensão determinada pelo campo
66
cultural do forasteiro. Muitos destes filmes correspondem à modalidade expositiva, que
dependem de uma lógica transmitida verbalmente, à maneira de um comentário que
adota o lugar da “voz de Deus”.
Os autores latino-americanos, quando optam pelo tratamento exógeno,
pareceram se interessar pela elaboração de obras estandardizadas, que quando alinhadas
a um modelo de representação dominante, não apresentem dificuldades para uma
eventual distribuição no mercado mundial, principalmente televisivo e das novas
mídias.
O aumento e a rapidez do fluxo de imagens que as novas tecnologias
possibilitam trazem consigo a discussão sobre a equidade desta troca. No cinema, na
televisão, assim como nas novas mídias existe a tendência a um fluxo unilateral. Na
América Latina, o alto consumo de produtos audiovisuais norte-americanos ou
europeus, fazem que as imagens que os próprios latinos constroem de si mesmos, em
muitos casos, correspondam a padrões estabelecidos por este olhar alheio. Os limites do
olhar endógeno e do olhar exógeno se tornam aqui mais sutis e ligados a fatores
relacionados diretamente à dominação ideológica.
O filme brasileiro O prisioneiro da
grade de ferro (Paulo Sacramento, 2003),
documentário que revela a intimidade e a
rotina da vida no cárcere através do ponto de
vista dos detentos, desloca os parâmetros que
delimitam as fronteiras entre o exógeno e o
endógeno diferenciando entre grupos com
diversas realidades sociais. Como estratégia
para modificar seu olhar inevitavelmente
exógeno, o autor ensina aos detentos a utilizar
câmeras de vídeo para documentar o seu
cotidiano.
Este deslocamento do sujeito da enunciação resulta do reconhecimento por parte
do autor da distância que existe entre ele e a realidade a ser representada, até o ponto de
entregar o poder da câmera legitimando, assim, a autonomia narrativa dos personagens.
67
O filme procura um olhar que venha de um entendimento endógeno dessa realidade, a
partir do reconhecimento das limitações inerentes ao habitus do autor.
b. A intervenção do autor na narrativa
Geralmente, o autor documental interfere na realidade filmada no momento de
dar-lhe uma estrutura ao seu relato, ou seja, na hora de realizar a montagem.
A intenção a partir da qual o autor reconstrói a realidade pode ser classificada
em duas categorias: manifesta ou oculta.
A intervenção manifesta encontra-se em estruturas dramáticas que constroem
uma nova realidade fílmica, sem interessar-se pela representação fiel do mundo
histórico. As imagens se sucedem conforme as associações de um autor que reflete
sobre a realidade e explicita esta reflexão na sua obra. A presença do autor no texto é
uma forma de evidenciar o suporte fílmico, e estas marcas no filme caracterizam a
reflexividade na obra.
A intervenção oculta faz referência a estruturas que através da montagem
procuram representações similares às já existentes no mundo. O autor torna-se um
observador cuja intenção é revelar o observado, sem manipulações.
A intervenção manifesta aproxima-se da representação artística, porque
transforma a realidade deixando marcas de autoria. A intervenção oculta aproxima-se do
jornalismo “puro”, pela intenção de reproduzir a realidade evitando as interpretações
subjetivas.
Ainda que exista uma maioria de relatos nos que o autor opta pela intervenção
oculta, como os documentários de observação influenciados pelo Cinema Direto, muitas
das obras incluem seqüências que delatam o autor. A descontextualização de imagens, a
quebra das regras de raccord29 e a presença de jump cuts30 destroem a idéia de
29 A prática do raccord se refere a um tipo de montagem na qual as mudanças de planos são, tanto quanto possível, apagadas como tais, de maneira que o espectador possa concentrar toda sua atenção na continuidade da narrativa visual. Noel Burch (1969, p. 29-30) o define como elemento de continuidade entre dois o mais planos, que contribui para tornar imperceptíveis as mudanças de plano com continuidade ou proximidade espacial. Existem raccords no eixo, sobre um movimento, sobre um gesto ou sobre um olhar. Quando uma mudança de plano escapa à lógica da transparência se fala de falso-raccord. 30 O Jump Cut é um falso-raccord que consiste em montar dois planos que são fragmentos da mesma tomada de cena, eliminando uma parte dessa tomada e conservando o que vem logo antes e logo depois.
68
transparência, de negação da montagem. Deixa-se, então, em evidência o corte, a
“manipulação” do material.
Noticias de uma guerra particular (João Moreira Salles / Kátia Lund, Brasil,
1999) é um exemplo de intervenção oculta, sustentada na intenção do autor de registrar
uma realidade para que o público se enfrente diretamente com ela; o documentarista
abre mão de vários elementos que lhe dão o poder de intervir na história em troca de
alcançar uma veracidade maior.
Um exemplo de intervenção manifesta é o documentário Señorita extraviada
(Lourdes Portillo. México, 2001), que narra o caso de centenas de mulheres jovens
seqüestradas e assassinadas em Ciudad Juárez. As seqüências são compostas
principalmente por imagens em primeiro plano, nas quais o contexto perde importância.
São imagens isoladas, unidades únicas,
cuja organização seqüencial sugere apenas os
fatos acontecidos.
Señorita extraviada apropria-se de
imagens que, na primeira cena, fazem parte do
conteúdo temático da história, convertendo-as
em símbolos das cenas seguintes. No início do
filme, uma mãe conta que a sua filha
desaparecida trabalhava numa sapataria, a
imagem mostra um primeiro plano de sapatos
na vitrine de uma loja. Numa outra cena que
também inclui sapatos, informa-se que os
corpos das vítimas são reconhecidos pela vestimenta. O conceito desta imagem repete-
se adotando diversas formas: sapatos velhos abandonados, pés femininos calçando-se,
novamente os sapatos da vitrine etc. O conceito vira um símbolo que se associa à idéia
de mulher desaparecida. O filme volta a utilizar o recurso com outra imagens, às que
também atribui um papel simbólico.
Este empalme produz uma espécie de salto dos objetos que estão na imagem. O Jump Cut foi introduzido pela Nouvelle Vague francesa na década de 60, e é também considerado um raccord.
69
c. O lugar do autor na narração
O autor pode se manifestar na narração de duas maneiras: ausente ou presente.
Fala-se de um autor presente quando este narra na primeira pessoa, evidenciando a sua
presença no lugar dos fatos e se convertendo em parte integrante do relato. Já o autor
ausente não se manifesta como participante na elaboração do discurso.
A apreciação subjetiva dos acontecimentos por parte do autor fica em evidência
quando este se faz presente na narração. O autor torna-se presente pela narração na
primeira pessoa, que apela à sua presença no lugar dos acontecimentos. Esta presença
pode ser referencial, quando expõe sua opinião através de um texto em off, colocando
ênfase na sua apreciação subjetiva com frases como: “Quando cheguei aqui pela
primeira vez...”, ou “Depois de dezoito meses filmando este documentário...”; por outro
lado, o autor pode se envolver de um modo auto-referencial, neste caso além de
narrador, ele passa a ser também personagem central do relato.
Esse é o caso de Papá Iván (María
Inés Roque, México/Argentina, 2000),
testemunho de vida da filha do guerrilheiro
montonero Iván Roque, morto em combate,
o Iván do título e pai da realizadora. O
filme expõe o difícil relacionamento de uma
filha com seu pai heróico e mitificado, ao mesmo tempo em que revela a reflexão, não
só de uma filha, mas de toda uma geração, sobre o que significou o abandono, a
ausência, a tragédia, o exílio, a morte. Através da leitura da carta que Iván deixou aos
seus filhos – fio condutor do filme – e por meio de entrevistas com aqueles que
conviveram com ele, a autora se introduz no passado e nos sentimentos contraditórios
que a história lhe produz.
O relato, similar à estrutura de uma pesquisa jornalística, leva a
autora/personagem de um lugar ao outro em busca de testemunhas que possibilitem a
reconstrução da personalidade de seu pai, assim como também dos acontecimentos que
o levaram à morte.
70
A autora, como personagem central, assume a
narração da história de uma perspectiva auto-
referencial, manifestando-se de diferentes modos. A
voz off das suas reflexões íntimas sobre imagens
subjetivas, quase abstratas, é a mais evidente. Trata-se
de um narrador que se emociona, que embarga a voz:
“Meu pai morreu no dia 29 de maio de 1977”, se
escuta no inicio do documentário. Papá Iván faz do
autor tanto seu tema como a perspectiva de onde é
feita a narração: a experiência de vida da própria
realizadora.
Documentários auto-referenciais têm ocupado cada vez mais o cenário
documental contemporâneo. Na América Latina muitos destes filmes utilizam esta
narração subjetiva para tratar questões de memória, muitas vezes ligadas à experiência
coletiva de ditaduras militares que atingiram um bom número destes países. O uso do
testemunho para denunciar arbitrariedades e a valoração da experiência individual
servem nestes casos para criar redes e pensar a memória em termos não só coletivos
como históricos.
Los Rubios (Albertina Carri, Argentina, 2003), cuja temática dialoga com Papá
Ivan, vai além da auto-referência. No filme, a autora não só faz parte da narrativa, ela
também está representada ficcionalmente por uma atriz, enfatizando a reflexividade ao
evidenciar tanto a representação da atriz, como o processo de produção da obra. A auto-
representação no filme é utilizada por Albertina Carri para questionar não só o sistema
de representações em que está baseado o documentário, também se questionam aqui a
veracidade de depoimentos baseados nas lembranças fragmentadas, assim como a
memória, que quando suas fontes são diversas pode se tornar também enormemente
ficcional.
Quando o autor está ausente na história narrada, o relato pode estruturar-se com
ou sem narrador off. A narração off, neste caso, procura uma posição neutra, informativa
e distanciada emocionalmente dos conteúdos expostos. A voz off como recurso
narrativo foi utilizada durante muitos anos de uma maneira excessiva, saturando as
imagens com textos explicativos que dificultam o aprofundamento na leitura
71
interpretativa do espectador. Este recurso superou, nas últimas décadas, o abuso e
maneirismo a que fosse submetido durante tanto tempo. Muitos documentários o
eliminam por completo, ou o utilizam de maneira discreta como complemento ou
contraponto em passagens especificas.
Na ausência de uma voz off narradora, este lugar é freqüentemente cedido à voz
dos personagens: os entrevistados. A utilização de entrevistas no documentário é um
traço distintivo das produções contemporâneas.
2. O DOMÍNIO DA ENTREVISTA
Com a aparição do som direto a entrevista começou a ser utilizada
frequentemente. A escola de Cinéma Vérité, comandada por Jean Rouch, a utilizou
exaustivamente, sustentando a narrativa através de verdadeiros diálogos entre
entrevistados y realizador. Atualmente parece quase impensável uma estrutura
documentária sem entrevistas.
Nesta categoria, observam-se três formas de articular a entrevista:
a. Centrada num único personagem
b. Vários personagens em torno de uma temática comum
c. Centrada em personagens secundários
a. Entrevista centrada num único personagem
Existem documentários em que um dos personagens entrevistados destaca-se dos
outros. A entrevista, neste caso, será intercalada desde o principio até o final do filme.
A opção de centrar a entrevista num único personagem tem duas funções. A
primeira acontece quando o tema do documentário é a própria história de vida do
72
entrevistado, como no caso das biografias. A segunda origem se manifesta quando o
filme desenvolve um tema através da vivência particular de um personagem; a estrutura
narrativa se sustenta num personagem central, que servirá de fio condutor do tema. A
particularização de uma problemática através de um personagem específico dá uma
identidade ao problema exposto, sensibilizando o espectador com o tema através da
identificação emocional com o personagem.
As entrevistas centradas num personagem único, geralmente se desenvolvem
dentro da seqüência e do contexto de uma atividade. Eventualmente são registradas
entrevistas em espaços neutros, as que serão utilizadas pela montagem para separar uma
seqüência de outra.
O filme Gabriel Orozco: Un proyecto fílmico documental (Juan Carlos Martin,
México, 2002), que trata da vida e obra do reconhecido artista plástico, centra a
entrevista num único personagem.
A entrevista aqui adquire diferentes
formas, para evitar a repetição e a monotonia.
Distinguimos as seguintes figuras:
1) Depoimento em on quando o artista fala da
sua vida, depoimento em off quando fala de sua
obra.
2) Seqüência de entrevista única, de longa
duração e com jogos de tensão ao interior do
plano – como a tensão entre um Gabriel Orozco
em on e uma equipe técnica perguntando,
comentando e rindo sempre em off –.
3) A terceira figura se estabelece com relação
aos personagens secundários que comentam a
obra do artista. Por efeito da montagem, a entrevista em estilo “ping pong”, faz dialogar
personagens secundários com o artista plástico.
73
b. Vários personagens em torno de uma temática comum
Aqui o interesse da obra centra-se num determinado tema, num acontecimento
ou num determinado lugar. Os personagens entrevistados são organizados na
montagem, conforme o tratamento temático do documentário.
A entrevista se articula de duas maneiras, dependendo se a prioridade temática
está num personagem ou num assunto determinado.
A primeira consiste em adotar uma ordem sucessiva, isto é, um personagem é
apresentado em forma completa numa única seqüência, que virá a ser sucedida por uma
próxima, apresentando já um novo personagem.
A segunda é em ordem intercalada, caso em que a entrevista é dividida pelo seu
conteúdo temático e reagrupada, construindo seqüências nas quais diferentes
entrevistados falam de um mesmo tema. Quando as entrevistas se montam de acordo
com o conteúdo temático, geralmente, trata-se de testemunhos agrupados em torno de
um fato passado ou presente, que será ilustrado através da observação dos sujeitos
entrevistados.
Nesta categoria, uma figura de montagem recorrente é o efeito “coral”, espécie
de conversação entre pessoas que foram entrevistadas em momentos e lugares
diferentes. Priorizar pelo conteúdo na organização das entrevistas no documentário,
construindo na montagem seqüências temáticas, é uma estrutura bastante usual não só
nas produções latino-americanas.
Nos documentários de entrevistas em ordem sucessiva, o foco de atenção está na
observação dos próprios personagens entrevistados, como no caso de Edifício Master
(Eduardo Coutinho. Brasil, 2001), documentário sobre o cotidiano dos moradores de um
prédio em Copacabana. O relato organiza-se num ordenamento sucessivo dos
personagens, sem que exista uma interação entre eles. A intencionalidade está no
resgate da experiência de vida, da opção testemunhal, mantendo a individualidade de
cada um dentro de seqüências fechadas.
Edifício Master é um documentário construído na base de entrevistas, uma
opção pela palavra filmada: “Filmar o que existe – é filmar o encontro, a palavra em ato,
o presente dos acontecimentos e a singularidade dos personagens, sem propor
74
explicações ou soluções” (LINS, 2003, p. 234)31. A entrevista é um ato que acontece no
momento do registro, e é isso o que interessa resgatar ao filme, o resultado da interação
entre a equipe de filmagem e a realidade observada. A narrativa se concentra no
presente da filmagem para extrair desse momento todo o possível, deixando de lado
narrações em voice-over, música incidental e imagens ilustrativas ou de cobertura.
Edifício Master se desenvolve num lugar fisicamente restringido, numa única
locação. Todas as imagens correspondem ao prédio e seus moradores, sendo
praticamente todos os planos interiores. A primeira imagem mostra, a traves do registro
de uma câmara de vigilância, a equipe de filmagem entrando pela porta principal; o
segundo plano deixa ver a mesma equipe no elevador; um terceiro plano seqüência de
um corredor interno inclui a única narração em off de todo o filme, na voz do próprio
Coutinho:
Um edifico em Copacabana, a um quarteirão da praia. Duzentos e setenta apartamentos. Uns quinhentos habitantes. Doze andares. Vinte e três apartamentos por andar. Durante um mês alugamos um apartamento. Com três equipes filmamos a vida por uma semana.
O quarto plano é a primeira entrevista do filme. A partir deste momento o relato
geral se estrutura de um modo bastante rigoroso, onde os personagens entrevistados são
mostrados em forma única e sucessiva, separados uns dos outros por curtas seqüências
do cotidiano dos lugares comuns do edifício.
O processo de montagem é essencial para manter a singularidade do
personagem; assim como também para a imparcialidade com que é tratado, refletido na
equidade das seqüências, que não dão lugar a generalizações ou classificações. Sem
existir interação entre os entrevistados, a intencionalidade está em resgatar sua
experiência de vida mantendo a sua individualidade dentro de uma única seqüência.
A entrevista se transforma na única forma de aproximação e conhecimento dos
personagens. O que é contado não se ilustra, nem com a introdução de cenas em outros
31 LINS, Consuelo. “Eduardo Coutinho”. In: PARANAGUÁ, Paulo (Org.). Cine documental en América Latina. Madrid: Ediciones Cátedra, 2003.
75
lugares, nem com movimentos de câmera que acompanhem as descrições verbais.
Durante a entrevista sempre vemos ao entrevistado; as reconstruções visuais das
histórias contadas, por mínimas que sejam, ficam reservadas ao espectador.
Os personagens se constituem a partir do que eles contam sobre si mesmos, a
montagem esta em função da palavra, da entrevista em si, nela se encontra a história que
narra o documentário.
Assim, por exemplo, a seqüência de Henrique,
aposentado que comparte a sua solidão com as lembranças
de um duo que fez, anos atrás, junto a Frank Sinatra é um
retrato profundo e emotivo da vida de um dos habitantes
do Edifico Máster. Onze planos e oito perguntas são
suficientes para saber da sua biografia em geral, da sua
solidão, da saudade por tempos passados, além de
conhecer a anedota de quando junto a Sinatra cantou “My
way”.
As entrevistas delatam a presença do entrevistador,
cujas perguntas tornam-se um elemento importante na
condução narrativa. Percebe-se a intenção de mostrar que
o filme é o resultado de uma negociação entre o cineasta e os entrevistados, chegando a
ser incluída uma cena em que um entrevistado surpreende ao realizador com um pedido
de trabalho.
Eduardo Coutinho prioriza no filme pelo encontro que se produz entre
personagem e realizador no momento da filmagem. Neste sentido, prioriza a entrevista
mais que a iluminação, a posição de câmera ou os ruídos externos, fazendo da entrevista
o elemento central da estrutura da montagem.
c. Entrevista centrada em personagens secundários
Este caso se apresenta quando o protagonista da história é o autor. As entrevistas
aqui estão centradas nos personagens que o rodeiam, ajudando-o na construção da sua
história particular.
76
O autor, tanto protagonista quanto narrador auto-referencial, pode ser parte de
algumas cenas, estabelecendo diálogos com outros sujeitos, ou manifestando-se desde
uma narração em voice-over.
O relato geralmente toma a forma de uma investigação. Os entrevistados são
pessoas próximas, familiares ou amigos que acrescentam indícios não só reveladores da
história, como também inesperados para o próprio autor e condutor do relato. Este
caráter revelador faz os depoimentos determinantes para o seu ordenamento narrativo e
a maneira como estas revelações afetam o autor decidirá seus próximos movimentos.
As entrevistas são geralmente “situativas”, ou seja, aparentemente desenvolvidas
nos espaços naturais dos personagens, num ambiente espontâneo e coloquial. O
entrevistador se faz presente na tanto na imagem como com perguntas ou comentários
em voz off.
Encontramos aqui o documentário de busca definido por Jean Claude Bernardet.
Um certo tipo de projeto cinematográfico com um alvo bastante determinado mas
incerto:
Os cineastas não sabem se esse alvo será ou não atingido e não sabem de que forma será atingido. Portanto, a filmagem tende a se tornar a documentação do processo. Não há uma preparação do filme (a preparação é a própria filmagem), não há uma pesquisa previa; a pesquisa, que freqüentemente no documentário é anterior à filmagem, é a própria filmagem (BERNARDET, 2005, p.144)32 .
Os filmes 33 (Kiko Goifman. Brasil, 2004), projeto de um filho adotivo que se
propõe achar a sua mãe biológica, e Passaporte Húngaro (Sandra Kogut, Brasil, 2003),
projeto de uma brasileira descendente de húngaros que tenta obter a nacionalidade e o
passaporte húngaro, são dois documentários de busca em que as entrevistas estão
centradas nos personagens secundários.
Neste tipo de filmes todos os entrevistados têm a função em comum de
acrescentar informações que contribuam ao desenvolvimento da investigação. A
revelação das entrevistas pode mudar o rumo do filme, seja porque se entrega uma pista
completamente nova, ou seja, porque acontece justamente o contrário, se chega a uma
rua sem saída.
32 BERNARDET, Jean-Claude. “Documentários de busca: 33 e Passaporte Húngaro”. In: LABAKI, Amir & MOURÃO, Maria Dora (Orgs.). O Cinema do Real. São Paulo: Cosac & Naif, 2005.
77
Tanto no Passaporte Húngaro como no 33 as entrevistas são encontros, que
geralmente não voltarão a acontecer no decorrer do filme. Quando os encontros se
tornam reiterativos, como no caso da Avó de Sandra Kogut ou da mãe adotiva de Kiko
Goifman, se apresentam como um retorno, ou seja, um reencontro que acontece numa
nova situação com novos antecedentes.
Nestes filmes os entrevistados sempre se mantêm num papel secundário na
narrativa, embora sejam determinantes para o desenrolar da historia. Não só pelas novas
informações que entregam, mas também pelo valor dramático que estas informações
podem acrescentar em termos narrativos.
3. A NATUREZA DO MATERIAL E SUAS POSSIBILIDADES
O material classifica-se segundo a sua natureza em três subcategorias:
a. Registrado para a obra
b. Registrado para outros fins
c. Construído para registro
a. Material registrado para a obra
Trata-se de material registrado da realidade, gerado com o propósito de ser
utilizado no mesmo documentário em que o encontramos.
Existem obras feitas só com este tipo de material. Muitos destes documentários
estruturam-se como uma reportagem, na qual realizador e espectador transitam juntos
descobrindo os acontecimentos. A ordem narrativa é cronológica e a montagem confere
ritmo à revelação dos fatos, respeitando a ordem especial. Qualquer tipo de mise-en-
scène é evitada já que o que se procura é transmitir uma visão o mais neutra possível do
mundo.
Os filmes latino-americanos influenciados pelo cinema direto correspondem a
este tipo de registro. Uma boa parte da produção chilena dos últimos anos, como Um
78
homem aparte (Perut e Osnovikoff, 2002), Trago dulce, trago amargo (Daniel Evans,
2003) Este año no hay cosecha (Vergara e Lavanderos, 2000), entre outros, fazem uso
de uma câmera leve que acompanha os personagens no seu cotidiano para realizar “um
cinema do presente dos indivíduos, vistos como personagens sociais” afirma Andréa
Molfetta, e continua “Para além da entrevista e sua interação, temos um incremento, o
seguimento observacional de horas. Os filmes se referem indiretamente ao formato
jornalístico do informe especial, ou reportagem em profundidade” (Informação verbal)33
Outro exemplo é Nema Problema (Foxley e Leighton, Chile, 2001),
documentário que acompanha a um grupo de refugiados da ex Iugoslávia na tentativa de
refazer suas vidas no Chile. A intenção dos autores é observar o processo de adaptação
desde seu inicio; sem emitir juízos relata os detalhes cotidianos do grupo, com o único
objetivo de reconstruir esse período das suas vidas.
No Brasil, algumas das produções do documentarista João Moreira Salles, como
Notícias de uma guerra particular (1999), Nelson Freire (2003) e Entreatos (2004)
também têm uma forte influência do direto.
As técnicas de “não intervenção” foram e continuam sendo bastante aplicadas
nas produções do continente, porém, existem casos em que o material é submetido a
processos de manipulação de imagem com uma intencionalidade conotativa. Observam-
se principalmente variações de velocidade das imagens, manipulação de textura e
modificação da cor.
b. Material registrado para outros fins
Um recurso muito utilizado nas produções documentais é a incorporação de
material de arquivo em movimento ou fixo. Sua procedência, geralmente, são
noticiários ou outras formas similares, como material jornalístico ou documento
histórico. Quando o material de arquivo corresponde a um conjunto de imagens
desconexas apresenta dificuldades de montagem, o que faz indispensável a presença de
um texto explicativo – seja a maneira de comentário falado ou de texto escrito na
33 MOLFETTA, Andréa. O Documentário Chileno da atual democracia. Comunicação apresentada no XI Encontro Internacional da SOCINE / PUC-RIO DE JANEIRO / 2007.
79
imagem – para o entendimento da cena. A incorporação de uma trilha sonora também
contribui à unificação de cenas feitas a partir de material de arquivo.
O material de arquivo que representa a realidade é utilizado como prova
testemunhal de um fato, enquanto que o material ficcional se introduz como uma
interpretação metafórica do autor.
A introdução de material de arquivo é uma constante no documentário latino-
americano. Existe a tradição de misturar diversos suportes, muitas vezes conseqüência
da falta de recursos que afeta os documentaristas. Isto gera, ao mesmo tempo, uma
enorme criatividade, já que tudo é válido: mistura de jornais, revistas, fotos, pinturas,
imagens em movimento de telejornais, documentários ou filmes de ficção.
No documentário latino-americano predominam duas figuras de montagem que
incluem material de arquivo. Ambas se estruturam em combinação com a entrevista. Na
primeira, a narração sustenta-se nas imagens de arquivo e as entrevistas são
testemunhos ou informações factuais que complementam as imagens; um exemplo desta
estrutura é o documentário A negação do Brasil (Joel Zito Araújo, Brasil, 2001) análise
sobre o papel do ator negro nas novelas brasileiras, que usa as cenas televisivas como
sustentação da análise e recorre às entrevistas como uma complementação de casos
específicos.
Na segunda figura de montagem, quem narra são os personagens entrevistados e
as imagens de arquivo fortalecem a informação do testemunho; Historias cotidianas
(Andrés Habegger, Argentina, 2000) narra a história de vida de seis filhos de pessoas
desaparecidas durante a última ditadura militar argentina; o relato destaca aqui o
testemunho dos personagens entrevistados e se apóia em imagens de arquivo para
documentar os detalhes da vida pessoal e os períodos históricos aos que faz referência.
Muita da produção latino-americana da década de 70 justificou nas suas
carências a mistura de suportes diversos em prol da construção de um discurso claro e
definido. La hora de los hornos, assim como uma boa parte da obra documental de
Santiago Alvarez – Now (1965), LBJ (1968), 79 primaveras (1969), El sueño del pongo
(1970), etc. – são exemplos de um minucioso trabalho de manipulação e
homogeneização de material de arquivo das mais variadas origens.
Nas últimas décadas, o documentarista brasileiro Silvio Tendler tem
desenvolvido sua obra de reconstrução histórica baseada na montagem de material de
arquivo. No só os premiados documentários Os anos JK, Uma Trajetória Política
80
(1980) e Jango (1984), também os contemporâneos Glauber O Filme, Labirinto do
Brasil (2004) e Milton Santos e o Mundo Global visto do lado de Cá (2006), fazem uso
de técnicas de montagem para estruturar o relato a partir de material registrado
originalmente para outros fins.
No Mundo Global Visto do Lado de Cá
intervenções gráficas, animações, comics,
publicidade televisiva, material de arquivo de
origens diversas, todos eles são recursos utilizados
como unidades de construção filmica e articulados
com o objetivo didático de transmitir conceitos
abstratos. Como, por exemplo, a desigualdade na
repartição das riquezas, se gráfica com um mapa que
mostra a distribuição de luz elétrica no mundo.
A diversidade na forma, dentro do mesmo filme, transforma-se numa opção
estética caracterizada justamente pela própria mistura.
O documentário de Tendler evidencia a escassez – como estética de resistência –
na própria narrativa, que se manifesta em duas frentes: Uma, política, sustentada na
denúncia do abismo existente entre o mundo do norte e o mundo do sul; e uma outra,
estética, que se apropria de material de arquivo das fontes mais diversas, rearticulando-o
numa nova leitura.. A utilização de material de arquivo fora de seu contexto original,
permite estabelecer novas relações, agora num novo contexto. Acontece um processo de
revalorização das representações impressas no material, onde a conotação da imagem se
modifica.
Esta operação de revalorização do material revela não apenas a influência de
Eisenstein e Vertov no entendimento da função da montagem, mas também da
linguagem publicitária, assim como da própria experiência cinematográfica latino-
americana:
As formas de composição que surgem na América Latina da relação entre as vontades das pessoas – pensar o cinema como modo de agir na realidade, agir no cinema como modo de pensar a realidade – e as quase inexistentes condições materiais propõem uma representação obtida através da montagem de
81
representações: reúnem numa imagem só o desejo de nos revelar através de um documento informado pela experiência neo-realista – as coisas estão ali, por que manipulá-las? – e o desejo de nos revelar através de uma ficção informada pela montagem – as coisas estão ali manipuladas, por que não desmontá-las? (AVELLAR, 1995, p. 34).
O documentário Imágenes de una dictadura
(Patricio Henríquez, Canadá / Chile, 1999), sobre os
conflitos sociais durante o período da ditadura militar no
Chile, foi montado só com material de arquivo. Sem
narração em off e sem destacar personagens, o
documentário estrutura-se em breves seqüências
temáticas identificadas por títulos de abertura, sempre
sintéticos e emblemáticos: “Plebiscito”, “El vals del no”,
“La tarde de la victoria”, “No toquen a mi ejército”,
“Aceptado”. As seqüências se sucedem em ordem
cronológica, destacando acontecimentos significativos do
período histórico.
A estrutura dramática é alcançada através da articulação
destas histórias em forma sucessiva. A montagem no
interior das seqüências procura organizar os planos em
cenas que dêem conta visualmente do relato sem precisar
do apoio de outros recursos. Em algumas seqüências, o
texto impresso sobre a imagem adquire uma função
informativa, assim como a musica incidental servem de
apoio para unificar a seqüência.
Plesbicito
El vals del no
La tarde de la victoria
No toquen a mi ejército
Aceptado
A recusa de uma narração em off, didático-explicativa, leva a resgatar do cinema
mudo o recurso dramático do intertítulo, quando comentários ou explicações se fazem
necessárias.
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Ônibus 174 (José Padilha, Felipe Lacerda.
Brasil, 2002) sustenta sua história a partir do
material de arquivo de um seqüestro filmado e
televisionado ao vivo durante quatro horas pelas
emissoras locais. A reconstituição do episódio do seqüestro, a partir de material de
arquivo, funciona como espinha dorsal do filme, da qual se estendem ramificações que
mergulham no específico, intercalando cenas tanto da cobertura jornalística, como
também de um arquivo anterior ao seqüestro, entrevistas e documentos oficiais.
O fato de o seqüestro ter sido registrado por um número considerável de meios
de imprensa, possibilitou a acumulação de grandes quantidades de material de arquivo,
filmado simultaneamente de diferentes ângulos e com diversos enquadramentos. Isto
significa para a montagem um ponto de partida bastante incomum com respeito ao uso e
produção de sentido a partir de material de arquivo. A abundância desse tipo de material
permitiu reconstruir o fato com uma montagem dinâmica de grande variedade de
planos, semelhante às figuras encontradas em filmes de ficção. Estas cenas acentuam
sua dramaticidade ao incorporar recursos de manipulação de imagem, como câmara
lenta e repetições nos momentos mais críticos do seqüestro; assim como com a
incorporação de música incidental para aumentar a emotividade da cena.
O desenlace da última cena exemplifica o
exposto: O seqüestrador Sandro ao descer com uma
refém do ônibus, é atacado por um policial que
dispara nele; Sandro dispara na refém e ambos caem
ao chão; esta cena, numa câmera lenta, quase quadro
a quadro, é repetida varias vezes por planos tomados
desde diferentes ângulos; escutamos os tiros
intensificados e uma música no fundo, além de
curtos depoimentos que, em off,comentam os fatos.
Uma mudança de ritmo repentino retoma a
montagem de planos curtos que mostram policiais e
transeuntes se jogando em cima do seqüestrador; a
refém é resgatada morta e Sandro, ferido, arrastado
ao interior de um carro policial.
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O resto dos reféns é libertado. Como último plano vemos uma longa imagem,
filmada do alto, em que o ônibus começa a se deslocar pela avenida onde permaneceu
detido durante quatro horas.
Ônibus 174 é um documentário que sustenta sua historia a partir de um material
que foi registrado para outros fins, material de arquivo que por meio da montagem
consegue articular uma nova história crítica acerca da tragédia social vivida nas ruas
brasileiras.
c. Material construído para o registro
Trata-se de material que não constitui um registro direto do mundo, mas uma
representação deste. Entre o material construído para o registro destaca-se o uso de
caracteres, encenações e animações.
Os caracteres são utilizados como elementos de pontuação, em forma de título,
comentário, informação factual ou citação. Também se sobrepõem textos ou palavras a
fotos fixas, variando tamanho, tempo e duração.
Alguns documentários fazem uso de animações, como uma maneira leve de
ilustrar acontecimentos passados. Em alguns casos, como parte integral da seqüência,
em outros, sucedendo uma opinião já exposta.
Caracteres e animações são também característicos do trabalho dos
documentaristas cubanos dos anos sessenta, que fizeram uso destes meios para
documentar situações que, devido ao bloqueio econômico e às dificuldades financeiras
pós-revolução, não podiam filmar diretamente. Tal recurso, depois transformado numa
opção estética, continua sendo usado por documentaristas da escola cubana, como Erik
Rocha em Rocha que Voa (Brasil, 2000).
As encenações fazem parte principalmente dos “docudramas” ou “docu-ficções”
e são utilizadas, geralmente, pela impossibilidade de captar a imagem no presente no
momento que acontece e a vontade de que o discurso a mostre como se a câmera à
tivesse captado no momento em que se produzia. As seqüências ficcionais podem
recriar lembranças do passado, ou ser utilizadas para introduzir o tema do filme, assim
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como também ilustrar fatos históricos, misturando sempre cenas documentais como
provas do mundo histórico que dão validade às reconstruções ficcionais.
As encenações no documentário são de tendência evocativa, não buscam a
semelhança com a realidade, e sim com o seu significado. Seu caráter simbólico ou
alegórico permite que o espectador as reconheça como imitações, evitando que sejam
confundidas com representações do mundo histórico (VALLEJO, 2007).
Esta primeira análise permite concluir algumas questões.
Na busca por identificar na produção documentária latino-americana
contemporânea estruturas de caráter formal, a partir das quais seja possível estabelecer
padrões de produção de sentido aplicáveis a um corpo considerável de obras existentes,
pode-se concluir que as figuras de montagem encontradas são tão heterogêneas que não
é possível construir categorias capazes de sustentar uma análise comparativa.
As estruturas narrativas nascem geralmente da interação pessoal do autor com o
tema da obra. As opções realizadas pelo autor dependem de como este descobre, se
aproxima e reflete sobre a realidade. As figuras de montagem, produto deste exercício,
são originais, criadas do intercâmbio entre os interesses do autor, a história real a
representar e as possibilidades concretas de produção. O reconhecimento de elementos
estilísticos num conjunto de obras está sempre em relação com a marca que deixa seu
autor, desenvolvendo-se assim mais uma tendência ao trabalho autoral do que
organizado em movimentos ou escolas.
Encontra-se nos documentários latino-americanos contemporâneos um conjunto
de elementos comuns que, em suas combinações, dão forma à montagem. É notório um
predomínio de obras que buscam reconstruir a realidade a partir de um olhar interior,
subjetivo, no qual se vislumbra não só uma busca por criar um estilo próprio, ou seja,
uma intenção de realizar documentários de autor, mas também um interesse pelo
entendimento afetivo da realidade por parte do documentarista. Por outro lado, é clara a
tendência a suprimir o narrador em “off” alheio à historia; o ato narrativo é deslocado
aos personagens, adquirindo a entrevista testemunhal um grande peso. Observa-se nos
documentários a presença de materiais de origens diversas que se articulam, durante a
85
montagem, com o material registrado para a obra. O material de arquivo é o recurso
mais freqüente, usado como prova argumentativa. Por último, a manipulação de
imagens por meio de efeitos visuais, é utilizada com bastante cautela.
Em geral, o documentarista latino-americano se interessa por reconstruir a
realidade desde seu ponto de vista, elaborando obras reflexivas, de observação ou
performativas.
Existe una tendência a contar histórias cotidianas, a criar um espaço de reflexão
a partir da observação de situações comuns aos próprios realizadores, a um personagem
ou a um grupo específico. Trata-se de filmes que expõem problemas individuais que
formam parte da realidade específica de um grupo. Num contexto político mundial de
enorme insatisfação com os grandes modelos socioeconômicos vigentes, de falta de
espaços para o debate ideológico e de falta de força nas propostas que permitam intervir
nas estruturas maiores, estas pequenas reflexões locais sobre problemas de pequenos
grupos podem se constituir como atos políticos e representar um ponto de partida na
busca de perspectivas abrangentes e sistêmicas.
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Agora eu, uma câmera, me aventuro ao longo do seu resultante caminho, manobrando no caos do movimento, registrando o movimento, iniciando com movimentos compostos das mais complexas combinações. Livre da regra das dizeseis, dezessete imagens por segundo, livre dos limites do tempo e do espaço, uno quaisquer pontos do universo, não importa onde os tenha registrado. Meu caminho conduz à criação de uma percepção do mundo. Decifro de uma nova maneira um mundo desconhecido para você. Dziga Vertov – Cine-Olho – 1924
III.
GIRO SUBJETIVO:
EU TE DIGO QUE O MUNDO É ASSIM
A dimensão subjetiva que o documentário tem desenvolvido desde a década de
1990, embora não seja dominante em termos quantitativos, traz consigo um
reposicionamento significativo em relação à linguagem, em que as relações autor -
representação do real - espectador se modificam.
A valoração da produção de significado simbólico subjetivo é uma tendência
mundial que, na área dos estudos culturais, se observa como resultado de mudanças que
têm atingido tanto às estruturas sociais como às instituições na sua relação com os
indivíduos.
Se observa um deslocamento das instancias que regulam o fornecimento de
fontes culturais na sociedade, do Estado para uma grande oferta – privada e semi-
privada – que circula num mercado de bens simbólicos em disputa por um espaço de
legitimação. A relação cidadão/Estado ao ficar debilitada, faz que os indivíduos se
identifiquem, em menor grão, como parte de uma estrutura social, ou seja, que se
definam como sujeitos sociológicos. A multiplicação dos sistemas de significação e
representação no âmbito da cultura, segundo Stuart Hall (2006, p. 13), leva a que o
sujeito da modernidade tardia não tenha mais “uma identidade fixa, essencial o
permanente. A identidade torna-se uma “celebração móvil”: formada e transformada
continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados
nos sistemas culturais que nos rodeiam”.
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Esse sujeito, caracterizado pela sua fragmentação, assume identidades múltiplas,
muitas vezes contraditórias e vulneráveis a deslocamentos. O sujeito não se unifica ao
redor de um “eu” coerente e, em definitiva, o que será determinante para gerar o
sentimento de identidade unificada ao longo de uma vida é a percepção subjetiva da
própria historia pessoal.
Neste sentido, as “narrativas do eu” se multiplicam adquirindo um lugar
relevante no campo dos sistemas de significação ligados a regimes de verdade. Entre os
historiadores a narrativa subjetiva do passado adquiriu um lugar de destaque. Nas
ultimas décadas, o estudo da oralidade ultrapassou o campo específico da antropologia
tornando-se, também, objeto de estudo da corrente historiográfica denominada “historia
oral”. A historia interessou-se pela “oralidade” na medida em que ela permite preencher
certas lacunas do passado e fundamentar análises históricas com base na criação de
fontes inéditas ou novas.
Essas fontes, muitas vezes, fazem parte do cenário contemporâneo, como por
exemplo, os arquivos de filmes de família. O desenvolvimento tecnológico dos
equipamentos de filmagem – câmeras baratas e de fácil operação – trousse o aumento
dos registros familiares e a acumulação destes nos lares. Os historiadores descobriram
que nestes filmes podem ser encontradas marcas importantes para reconstruir a historia.
Porém a historia oral tem por natureza um caráter individual; não se fala em nome de
um grupo, mas em seu próprio nome. Para as disciplinas acadêmicas de escritura,
sujeitas a regulamentações metodológicas, é importante que a valoração do testemunho,
em quanto as suas qualidades como documento histórico, mantenha seu lugar de fonte
no espaço da memória, sem se transformar em argumentação.
Existe um certo receio por parte de alguns teóricos, que apelam a um transfundo
ideológico nessa tendência:
reconstruir a textura da vida e da verdade albergadas na rememoração da experiência. A revalorização da primeira pessoa como ponto de vista, a reivindicação de uma dimensão subjetiva, que hoje se expande sobre os estudos do passado e os estudos culturais do presente não resultam surpreendentes. São passos de um programa que se faz explícito, porque á condições ideológicas que o sustentam. Contemporâneo a o que foi chamado nos anos setenta e oitenta de “giro lingüístico”, o acompanhando-lo muitas vezes como sua sombra, se há imposto o giro subjetivo34 (SARLO, 2005, p. 22).
34 Tradução ao português da autora (original em espanhol).
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Numa época de forte subjetividade, o discurso testemunhal cresse como forma
privilegiada ocupando espaços dos que em outras épocas se manteve ausente. A
memória se torna importante para falar de questões referentes à história recente; se
expandindo na esfera pública tanto no âmbito comunicacional como no político.
No território dos meios audiovisuais, especificamente das representações
documentais, a utilização do testemunho como recurso narrativo está presente desde que
se começou a filmar com som direto. Entretanto, a hegemonia da oralidade no mundo
das representações simbólicas reflete, no documentário, numa valoração maior de
historias narradas a través de personagens, ou seja, de uma experiência individual que se
expressa através da palavra falada. Se na modalidade expositiva, a voz do
documentário se manifesta no texto de um narrador onipresente, quando este narrador
desaparece a voz se desloca para os entrevistados, personagens do filme. O abandono,
por parte do autor, do lugar da “voz de deus”, modifica seu vinculo com a voz
testemunhal. Na modalidade expositiva os depoimentos complementam os argumentos
expostos no texto em voice-over; na sua ausência, a intervenção do autor como
“organizador” dos testemunhos, possibilita que se estreitem os laços entre espectador e
personagens, aumentando o poder narrativo dos últimos.
A subjetivação no documentário se manifesta com o retorno do autor ao filme,
mais desde um novo lugar; cativado pela narrativa através de personagens, o autor se
desloca também para o centro da narrativa, para falar, desde o lugar da experiência
testemunhal, tanto pessoal como filmica.
Por outro lado, no espectador contemporâneo ou “consumidor audiovisual”
encontramos um desejo por se alimentar de historias baseadas no mundo do real, que
fazem referencia ao privado incorporando uma narrativa a través da personificação das
questões tratadas. Esta contextualização temática por meio do testemunho dos
personagens oferece ao seu interlocutor uma identificação direta e rápida com as
problemáticas apresentadas. A subjetivação no relato permite incorporar aos filmes a
carga dramática necessária para que aconteça, também, uma identificação afetiva. Desta
maneira, o espectador, a través de um entendimento simples – sustentado na
exemplificação – e de uma aproximação emotiva, se sente parte da “experiência
fílmica” ao mesmo tempo em que se mostra satisfeito por poder incorporar o
conhecimento adquirido a sua própria experiência de vida.
89
O convite para “compartilhar a experiência” que as narrativas do “eu” fazem ao
espectador se entronca com o fato de que estes relatos também têm sua origem na
Erlebnis, ou seja, na intensidade da própria experiência do vivido. As narrações da
experiência são possíveis na medida em que existe um corpo que vivencia e uma voz
capaz de narrar à lembrança da vivencia. No documentário, estes relatos da experiência
apresentam o corpo físico das testemunhas no filme. As testemunhas viram personagens
que unificam a lembrança de uma experiência passada com a vivencia do depoimento
no momento do registro fílmico.
Segundo Benjamin, o contexto em que é desenvolvido um texto tem a mesma
importância que o texto em si. A visibilidade deste contexto se dá através dos
instantâneos: Imagens mentais que dizem respeito a índices históricos ou experiências
sociais; ou seja, mostram a época e só podem ser compreendidas (“tornam-se legíveis”)
nessa época determinada. Os instantâneos são fotografias do momento de um processo,
imagens onde o passado se junta com o agora. O objetivo da sua análise é o presente, o
agora do reconhecimento dos acontecimentos passados, contribuindo assim ao
entendimento do tempo presente. O processo pelo qual passado e presente geram uma
imagem é o que Benjamim denominou dialética da paralisação.
A dialética da paralisação trata da mediação entre o mundo do escritor e do
leitor, permitindo explicar o imaginário social de uma época. Benjamin pensou este
processo como forma de entender as marcas do real impressas nos relatos de ficção.
No caso do documentário as marcas do momento e as circunstancias do registro
são muito mais evidentes e muitas vezes explícitas. Contudo resulta interessante pensar
a idéia dos instantâneos como mediação entre a vivencia da experiência e o momento
do depoimento testemunhal. O sujeito, em quanto testemunha, se apresenta motivado
por direitos reprimidos que precisam se libertar; já o depoimento como parte de uma
estrutura textual se torna relevante pelos efeitos morais que possa ter o seu discurso, o
seja, o depoimento se torna no filme um instrumento de verdade. O discurso pessoal da
experiência de vida permite mediante este mecanismo de valoração criar uma ligação
com questões não apenas da memória coletiva como também com questões morais,
políticas e até de interpretação da história.
Observa-se no documentário atual um interesse pela forma do testemunho no
filme. A peculiar relação que se estabelece entre o entrevistado e o entrevistador afetam
sobremaneira a produção e o caráter do depoimento; a entrevista pode ser um meio de
90
estabelecer relações de maior qualidade e profundidade, assim como uma provocação de
situações que não existiam em forma previa. A relevância dos fatores em jogo em torno
ao depoimento faz que, tanto a situação da filmagem como os receptores no momento
do registro, quando evidenciados no filme, modifiquem a caracterização do testemunho.
Mas além da integração do contexto, se destaca a ação do autor, sublinhando o
momento do encontro entre quem filma e quem é filmado. O documentarista, como
interlocutor dos personagens no filme se coloca, junto a eles, no centro da narrativa,
adquirindo um lugar de relevância no desenrolar da historia. Fazendo uso do passado
como uma referencia da memória no presente do registro acontecem os fatos, tornando,
por um lado, a narrativa subjetiva, e por outro, o filme uma experiência.
Esses documentários manifestam uma preocupação pela escrita, pelas marcas
que a expressão da linguagem deixa impressas na obra. São filmes cujo distanciamento
reflexivo os afasta da disputa pelo espaço da verdade e os aproxima aos sistemas de
representações vinculados às artes. Neste sentido, quando o olhar para fora do
documentarista, que tradicionalmente observa os acontecimentos do mundo, começa a
olhar para dentro, mostrando uma preocupação pelas formas de representação, se afasta
do jornalismo e se aproxima, em termos da sua gramática, dos filmes de ficção:
Quando os documentaristas tentam se desprender dos códigos limitados do noticiário, desenvolvem a narrativa com recursos especificamente cinematográficos e se aproximam desta forma inevitavelmente à dramaturgia da ficção. No obstante, a contaminação recíproca e a hibridação usufruem de crescente fortuna, suscitando una autorreflexividade até então inédita nos próprios filmes. As fronteiras adquirem uma porosidade ou fluidez absoluta. (PARANAGUÁ, 2003, P.65)
Porém, a representação da experiência nestes novos documentários não se
apresenta para o espectador da mesma forma que nos filmes de ficção. Na ficção
narrativa, a experiência fica dentro do conjunto das reconstituições. No caso da
experiência no documentário, assistimos ao registro de um processo, que vem
acompanhado de uma ruptura reflexiva do imediato das percepções. À maneira do teatro
épico de Brecht acontece uma revelação do que permanece oculto, devido à própria
proximidade e familiaridade com que são tratados os conteúdos. Para Brecht o teatro
épico mais que reproduzir estados de coisas, ou seja, desenvolver ações deve representar
estados de coisas, para assim poder revelar a partir da percepção do cotidiano. Essa
91
revelação acontece na interrupção das seqüências de ações, que possibilitaram um novo
entendimento do curso da ação. O princípio de interrupção do teatro épico produz um
efeito de estranhamento presente também nos documentários que evidenciam na obra
seu processo de construção.
O documentário, em todas suas manifestações, tem como motivação principal
um imperativo ético. E estes novos filmes, que por um lado, se mostram céticos em
relação às metas-narrativas de libertação, por outro, não abandonam necessariamente a
noção de luta pela emancipação. No entanto, os mecanismos desta luta se constituem
em base a outros princípios. As “narrativas do eu” transitam pelo território do real nos
espaços domésticos e pessoais, estruturando discursos que não são vistos como
expressões de uma verdade única, mas como formas políticas e estéticas de construção
do coletivo.
Mais do que defender certezas, de fatos do passado ou promessas futuras, esses
filmes insistem na dúvida do tempo presente, do momento da realização filmica, sendo
expressão, muitas vezes, de momentos de crise; uma crise que faz parte do processo
criativo do autor, necessária para a gestação do filme. O dispositivo da crise se torna
parte da narrativa do documentário na personificação, na obra, de seu próprio autor.
1. VARIAÇÕES SOBRE O MESMO
O AUTOR-PERSONAGEM NO DOCUMENTÁRIO
Essa nova tendência levou muitos teóricos do campo a discutir sobre a
subjetividade presente nas narrativas do documentário contemporâneo. Um dos
principais interlocutores é Michael Renov (2004). O autor parte do pressuposto de que
das mudanças da relação entre o pessoal e o social surge uma nova identidade, fluida e
múltipla; e da valoração do colocar-se subjetivamente como marca de autenticidade
surge no documentário uma atitude vinculada a uma nova subjetividade.
A new subjetivity vai ser definida por Renov como uma nova face da
autobiografia, uma forma de auto-representação bastante desenvolvida pelo formato
documental, na que existe uma intervenção transparente do diretor no filme, a qual vai
92
desde a sua presença assumida na instancia da negociação com os personagens e na
organização do argumento, à afirmação de si como o próprio argumento. O sujeito da
enunciação é objeto da enunciação ao mesmo tempo.
A nova subjetividade pode ser social – expressão de como a sociedade interfere
no individuo –definida em relação à luta política ou ao trauma histórico. Ou pode ser
uma subjetividade psicológica/psicoanalítica – expressão de como o individuo interfere
na sociedade – definida em relação ao inconsciente e a seus processos. Questões
tradicionalmente ligadas aos relatos de ficção como desejo, fascinação, terror e fantasia
começam a ser parte do mundo do documentário..
Numa linha similar à de Renov, Bill Nichols, na sua classificação de
modalidades de representação, descreve estes filmes a partir do vínculo
primordialmente afetivo que estabelecem com o mundo histórico. Destaca-se aqui a
qualidade subjetiva da representação do autor/personagem, categorizando estes filmes
como performáticos, para alguns autores, ou performativos, para outros.
Para a pesquisadora Andréa Molfetta o termo performativo mostra-se mais
preciso quando se faz referência à função que cumpre a performance no documentário.
A denominação “documentário performativo” refere-se à maneira como o filme foi
realizado, isto é, caracteriza o processo, o registro do ato da performance. Já
“documentário performático”, enfatiza o ato de realização de dita performance,
denotando uma característica qualificativa do filme em si. Será utilizado aqui o termo
“performativo” por considerá-lo mais próximo dos aspectos narrativos – do
documentário em primeira pessoa – que interessa ressaltar aqui.
Todo discurso documentário reflete o ponto de vista do autor, que estabelece
uma relação individual e única com o tema, ao mesmo tempo em que se responsabiliza
moralmente frente à realidade filmada. Mas nem todo documentário evidencia este
vínculo. O modo performativo, segundo Nichols, não propõe apenas que o realizador
participe da realidade, que a provoque, mas que vá além, impregnando de subjetividade
o discurso. Daí que sua forma enunciativa pode definir-se como eu te digo que o mundo
é assim. O realizador performativo observa o mundo histórico e o interpreta, tornando
singular a organização fílmica. A subjetividade da obra é intencional e evidente.
Os documentários performativos trazem o próprio documentarista e seus
questionamentos mais particulares para o centro do filme. O autor, personagem de seu
próprio filme, produz uma aproximação afetiva entre ele e seu objeto de filmagem. São
93
documentários permeados por uma experiência de vida, narrada necessariamente na
primeira pessoa. O documentário performativo define sua forma no resgate da
experiência da autonarração, destacando a qualidade referencial da reflexividade
presente no filme (NICHOLS, 2005).
O documentarista faz do método de conhecimento de seu objeto o tema do filme.
Estabelece-se assim um jogo e o espectador, consciente deste jogo, enxerga a sua
própria participação desde um lugar em que não sabe onde surge a atuação ou onde
termina a encenação. O autor-personagem, em seu rol de protagonista, por um lado
aumenta o seu poder de controle da cena, mas ao mesmo tempo fica à mercê do que
possa encontrar ou deixar de encontrar durante este processo filmado.
Estes filmes apresentam uma estrutura narrativa fragmentaria que articula
materiais de origens diversas a partir da interpretação particular do autor, similar a uma
estrutura poética. Registros do mundo histórico se combinam com reconstruções
ficcionais, material de arquivo, fotos e documentos. Misturam-se, também, diferentes
técnicas expressivas que dão textura e densidade à ficção (planos de pontos de vista,
recorrência à música, transmissão de estados de espírito subjetivos, flashbacks, freeze
frames, etc.).
O documentário performativo centra-se antes na emoção e expressividade, ou
seja, compromete-se pouco com os comandos retóricos ou imperativos para dar antes
destaque à vivência de um evento. Esta subjetividade pode juntar elementos discursivos
que, inicialmente, parecem ser antagônicos: o geral com o particular, o individual com o
coletivo e o político com o pessoal, ou seja, embora a dimensão expressiva assente em
indivíduos particulares, estende-se também a uma dimensão social que funciona
enquanto uma resposta subjetiva. Temáticas sociais e políticas serão tratadas desde uma
perspectiva privada e individual.
Os filmes performativos remetem à própria idéia do encontro; são
acontecimentos íntimos, discretos, que marcam um momento único, determinado pelo
encontro, num certo tempo e espaço, na vida de quem filma e de quem (ou o que) é
filmado. O documentário performativo é justamente o produto desse cruzamento de
contextos; uma forma de articulação do público e do privado na produção de sentido.
Cria-se entre o espectador e o filme uma dimensão afetiva inédita enquanto
lógica dominante da linguagem documentária. A subjetividade, segundo Nichols,
sempre esteve presente no documentário, mas nunca como lógica dominante. As
94
qualidades subjetivas da experiência e da memória que provêm do ato de contar um fato
são enfatizadas.
Os quatro modos prévios definidos por Nichols estão representados nos rasgos
estilísticos do documentário performativo. O uso da voz expositiva e de uma câmera
observacional, assim como as técnicas interativas e reflexivas se integram a este novo
modo desviadas da sua função originaria.
Nichols destaca as influências do cinema-verdade representado por Jean Rouch.
No cinema-verdade parte-se do princípio de que um documentário não é mais do que o
encontro entre aqueles que filmam e os que são filmados. O que um documentário
revela não é “a realidade” em si, mas a realidade de um tipo de jogo que se produz entre
as pessoas que estão à frente e atrás da câmera. A intenção dos documentaristas do
cinema-verdade era a produção de uma crise no momento da filmagem, na qual o
documentarista não só participa como também é provocador declarado da ação. Se bem,
ambos modos inscrevem o sujeito em seu percurso participativo, as diferenças dizem
respeito à interação do documentarista com o objeto filmado: ao contrário do que ocorre
nos filmes interativos, o ponto central no documentário performativo não é a relação
produzida no encontro. O encontro está subjugado à argumentação-base do
documentarista. As entrevistas aqui visam testemunhar (e às vezes reafirmar) o
conteúdo da fala do realizador, ou seja, se sublinha o aspecto afetivo da comunicação.
Para a autora Stella Bruzzi35, o tratamento da realidade das “narrativas do eu”,
no documentário, não determina uma nova forma da linguagem, como afirma Nichols.
Bruzzi identifica nestes filmes uma tensão que sublinha a negociação entre o real e a
representação – como uma necessidade de relativização frente às diversas formas em
que a imagem se faz presente no cotidiano –, e define este tratamento subjetivo como
um tratamento fictício da realidade.
O sentido da performance, segundo a autora, se vincula a um movimento de
incorporação do documentarista na situação filmada, e a sua auto-consciência da
artificialidade na construção de conceitos de verdade. Produz-se nestes filmes uma
relação inversa entre estilo e autenticidade: quanto mais amadores, mais credibilidade
eles adquirem enquanto registro pessoal.
O documentário descrito por Bruzzi se aproxima ao sentido de “performático”,
por estar mais em função do ato de realização, onde a performance se manifesta para
35 Professora de Filme e Televisão no Royal Holloway College, em Londres.
95
sublinhar a impossibilidade de uma representação autenticamente documental. Ligado a
uma concepção de registro do improviso, do momento, da ocasião; “o papel que a
performance adquire (...) se tornou, em inúmeras instâncias, não a morte do
documentário, mas uma forma crucial de estabelecer credibilidade” (BRUZZI, 2000, p.7).
Para Bruzzi, a questão da performance está diretamente relacionada à atuação do
documentarista frente à câmera – sua própria auto-representação enquanto personagem.
Assim, a auto-inscrição do autor substitui ao ato de reflexão; e os filmes, que
inexoravelmente são construídos a partir de uma teoria, revelam uma desconexão entre
forma e conteúdo.
A incorporação na imagem da identidade do realizador constitui, para Andréa
Molfetta, uma mediação. Os documentários não são performativos apenas por que
utilizam à primeira pessoa ou incorporam a auto-representação do autor. Essa identidade
é incorporada de maneira abstrata e paradoxal, “isto porque esses relatos não querem ser
verdadeiros nem falsos; atravessam esse eixo para direcionar sua experiência à captura
(falsa) do real” (MOLFETTA, 2002, p.75). O deslocamento do sujeito da enunciação para
o fílmico, mantendo sua significação em quanto autor do discurso, faz que a sua função
não só seja fluida, mas também dupla: “o realizador faz aquilo ao que se refere, supera a
simples subjetividade transcendental” (idem, 2003, p. 44). Quando, além das fronteiras
da autobiografia, se incorpora o autor no relato acontece uma experiência que deixa
marcas de reflexividade na obra. Porém, esta reflexividade não se manifesta numa
estética que questiona os sistemas de representação, e si numa estética “que destaca a
incompletude (e já não mais a impossibilidade) do sujeito e seus sentidos, ambos
constituídos na trama da comunicação, sentidos abertos que necessitam da
interpretação” (idem, 2006, p. 203). Enfatizar no ato comunicativo entre autor e obra,
entre realidade e representação no documentário performativo, não só sublinha a
interação como mediação, também faz referencia a um novo reposicionamento de
forças, significativo para o espectador: “a interação é usada para mostrar o aspecto
afetivo da comunicação, a autoridade textual se desloca ao espectador; a referência está
subordinada à enunciação subjetiva” (idem, 2003, p. 52). A autora entende “o sujeito
fílmico desta representação como um ser-aí (dasein), cuja estrutura de compreensão do
mundo se apóia no trabalho do filme e, especialmente, na sua performance, através da
qual observa, dedica-se e cuida do mundo do qual participa filmando” (idem, 2006, p.
202).
96
Andrea Molfetta utiliza conceitos da filosofia hermenêutica, desenvolvidos por
Heidegger e Gadamer, para estudar os processos de interpretação dos discursos
performativos. O ato da compreensão se apresenta na hermenêutica como uma
“estrutura circular” entre interpretação e compreensão. No documentário mediado pela
experiência de quem elabora o discurso “o mesmo trabalho de interpretar pode ser
compreendido progressivamente como auto-compreensão de quem interpreta”.
Jean-Claude Bernardet (2005)36, na análise de filmes brasileiros contemporâneos,
introduz o termo “documentários de busca” para falar, também, desta nova tendência.
Os filmes se definem por uma escrita que se manifesta como o registro de uma busca,
na qual o autor, em quanto personagem, realiza movimentos frente à câmera para que os
fatos aconteçam, tanto no terreno do real como no filme. Os filmes de busca se
caracterizam por não ter uma preparação previa, já que o processo de pesquisa é parte
do filme. A pesquisa, que tradicionalmente no documentário é anterior à filmagem,
acontece, neste caso, durante o próprio registro.
O AUTOR-PERSONAGEM É SUJEITO-CÂMERA E SUJEITO DA ENUNCIAÇÃO
A incorporação do autor no relato o torna um personagem e quando o
personagem se torna narrador o filme adquire marcas auto-referenciais. A tendência de
uma escrita na primeira pessoa se manifesta – através do sujeito-câmera – como
estratégia para intervir no mundo que será relatado. Surge a idéia da “câmera/caneta”,
da câmera como um objeto do cotidiano do autor; uma câmera que está sempre presente
e que de tão pressente perde sua estranheza e se torna quase transparente. O autor,
geralmente, faz o próprio registro fílmico, à maneira de “quem faz anotações num bloco
de notas”; esta variante da escrita tornou-se mais freqüente devido ao desenvolvimento
tecnológico de novos equipamentos simples de operar, assim como de maiores
possibilidades de correção de imagem na pós-produção.
O autor-personagem na narrativa documentária lida com projetos
cinematográficos de auto-representação e auto-referência. São filmes que se planeiam
como um projeto pessoal do realizador. O projeto tem um objetivo determinado, mas
36 BERNARDET, Jean-Claude. “Documentários de Busca: 33 e Passaporte Húngaro”. In:LABAKI, Amir & MOURÃO, Maria Dora (Orgs.). O Cinema do Real. São Paulo: Cosac & Naif, 2005.
97
durante a filmagem o realizador não sabe se este objetivo será alcançado e de que
forma. Portanto a filmagem tende a se tornar a documentação do próprio processo de
pesquisa, como se a preparação do filme fosse o principal motivo de registro de uma
câmera atenta a sua própria função no ato do registro. Trabalha-se, então, durante o
registro, com a imprevisibilidade como fator narrativo, tornando o filme uma
experiência que vai se desenrolado na filmagem.
O sujeito realiza um percurso do pro-fílmico para o fílmico, do lugar da
extradiegese para o interior da diegese. A preocupação com o resgate do olhar subjetivo
do documentarista se evidencia no registro dos fatos que só existem a partir do
momento do encontro do documentarista – sujeito da enunciação – com o seu objeto. A
construção da realidade fílmica determinada pelos movimentos do personagem no filme
se caracteriza como registro único através de um discurso que descobre – na diegese – e
reage – na extradiegese – em quanto sujeito da enunciação. O autor-personagem é o
sujeito da experiência, e a transformação que esta experiência provoca, afeta a sua vez,
o desenrolar do filme: Um processo que vai e volta.
O registro do “desempenho” no ato fílmico ressalta o caráter performático deste
processo de representação. Quatro elementos básicos da performance fazem parte deste momento:
um determinado aqui, um agora, a presença do autor-personagem no registro e a relação entre ele e o
espectador. Esta relação, na qual o autor-personagem encontra o mundo, faz dele uma mediação
explícita a partir da qual o espectador toma conhecimento desse mundo.
O sujeito da enunciação, enquanto sujeito-câmera personificado num autor-personagem, se
movimenta entre o documentário e o ficcional, entre ser no momento e representar o personagem
fílmico. A encenação como dispositivo leva a uma espécie de espetacularização da vida pessoal.
Entretanto, a partir do momento em que os artifícios da representação são desmascarados, a evidencia
da câmera, do autor e da representação em si torna o conjunto desta “mise-en-scène” mais verdadeira.
Estamos aqui, então, frente a um discurso do mundo histórico subjetivo ou frente à evidencia de que
toda representação está inevitavelmente permeada pela interpretação de seu autor?
Sem duvida trata-se de um discurso feito a partir do entendimento afetivo da realidade, de uma
compreensão particular, mas a partir deste entendimento parece possível estabelecer nexos de maior
abrangência, referentes à uma expressão coletiva, num tempo e num lugar específico.
Este mecanismo de correspondências entre um discurso particular que fale do coletivo, abre
brechas para representações da memória social, política e inclusive histórica, se afastando assim, desta
forte marca vinculada só à subjetividade.
O AUTOR-PERSONAGEM É O SUJEITO-NARRADOR E O SUJEITO DO ENUNCIADO
98
O autor-personagem realiza um percurso do fílmico para o pro-fílmico, do
interior da diegese para o lugar da extra-diegese.
Quando termina o processo de filmagem a pesquisa se da por encerrada e, o que
aconteceria num documentário durante a pesquisa previa, ou seja, a seleção do que será
registrado, acontece nestes filmes, geralmente, no processo de montagem. Só nesta fase
que aparecerá o roteiro, ausente até então neste tipo de filmes. Grandes quantidades de
material rodado serão visionadas, para numa espécie de segunda pesquisa procurar uma
possível narrativa dentro do registro da experiência. A imprevisibilidade termina
quando termina o processo de filmagem.
A montagem se apresenta como a continuação do processo de produção de
sentido fílmico, que possibilita o entendimento de uma experiência, que acontece e se
estrutura assim pela primeira vez. A discussão sobre como representar o mundo
histórico é substituída pela intenção de construir uma visão particular deste. As teorias
cinematográficas dos formalistas russos separam o cinema da realidade e das outras
artes, conseguindo assim definir sua estrutura discursiva, seu regime associativo ou
seqüencial; concebem a montagem como o principio teórico que está na base de dita
capacidade discursiva, seja no sentido associativo, sucessivo ou narrativo. A montagem
é considerada a forma mais importante de transformação da dinâmica cinematográfica
que permite a desconstrução do mundo histórico em prol da criação de uma nova
realidade fílmica.
As regras de transparência da montagem desenvolvidas pelo cinema clássico não
são mais levadas em consideração; assim como também a teoria de André Bazin, de
grande influência tanto no documentário como em toda a cinematografia latino-
americana, sobre uma montagem subordinada à reprodução do mundo real na sua
continuidade física e de acontecimentos, não é dominante como figura de montagem
nestes filmes.
O interesse deste modo de representação não está em mostrar as verdades do
mundo do real, ou seja, a reprodução do mundo histórico. O apagamento da montagem
em favor de sublinhar a significação dos fatos no seu desenrolar natural no ato em que
são filmados, não apresenta um valor significativo. O interesse dos novos
documentaristas passa, nos filmes objeto deste estudo, pelo modo particular e único de
expressar o momento do olhar, um olhar pessoal, quase interior, que parece disposto à
experimentação de associações e justaposições fora dos cânones de montagem
99
estabelecidos. Com o autor como personagem no filme a função da montagem envolve a
representação de um processo interno que se materializa só no momento da realização
do filme. As associações que se estabelecem são completamente livres, correspondem a
relações poéticas, já que reconstroem experiências subjetivas.
Contudo, Bill Nichols reconhece na modalidade performativa, influências do
cinema soviético do início do século XX – um cinema-manifesto, cujo principal
objetivo era a criação de um estranhamento na percepção do cotidiano, ao mesmo tempo
em que demandava do espectador a manutenção de uma consciência histórica. As
construções do cinema de Eisenstein, as experiências de Dovzhenko e o Cine-Olho de
Vertov são as melhores e mais notórias referências.
Os formalistas russos consideravam a montagem como a forma mais importante
de transformação da dinâmica cinematográfica. O cinema soviético praticava a
desconstrução do mundo histórico para, através da montagem elaborar uma construção
meramente cinematográfica. O documentário performativo, pela sua parte, apela à
construção de uma realidade que se faz possível só no ato da intervenção da câmera.
O Cine-Olho pretendia a representação da vida “como ela é”, o que incluía a
evidencia do suporte, ou seja, da representação. Eles postulavam uma nova linguagem
capaz de atingir níveis de compreensão exclusivos do suporte, ou seja, onde a câmera
fragmenta a realidade – levando-nos ao inconsciente óptico – e a montagem articula
uma representação da realidade definida pela própria natureza fílmica. Fascinado pelas
possibilidades que a técnica oferecia para “revelar” o mundo, Vertov fez – no Homem
com a câmera – do cinegrafista o personagem e do processo de construção a narrativa
do próprio filme, criando o enunciado Eu vejo o mundo assim. O documentário
performativo motivado, também, em estreitar o vinculo entre autor e receptor afirma: Eu
te digo que o mundo é assim.
Vertov considerava que a verdadeira estrutura de um filme elabora-se a partir de
um longo processo de montagem que exclui qualquer possibilidade de estabelecer um
relato cronológico linear. Nesta etapa do trabalho estabelecem-se relações entre temas,
ações, personagens e objetos, sempre sob o prisma reflexivo da linguagem e da
tecnologia fílmica. Na teoria do Cine-Olho a montagem se realiza em três etapas:
1) Cine-eu vejo (eu vejo com a câmera). Concepção e planejamento do filme.
2) Cine-eu escrevo (eu gravo com a câmera sobre a película). Filmagem em si.
100
3) Cine-eu organizo (eu monto). Estrutura cinematográfica.
Todos os meios de montagem são permitidos, justapondo e ligando entre si
qualquer ponto do universo em qualquer ordem temporal. O Cine Olho era entendido
como instrumento para registrar a vida de improviso, mas também para organizar esses
registros na montagem. A verdadeira estrutura fílmica elabora-se, então, ao estabelecer
relações entre temas, ações, personagens e objetos sob o prisma reflexivo da linguagem
e da tecnologia cinematográfica. Alcançar a fórmula visual, na concentração e na
decomposição temporal que melhor expressa o tema essencial do filme é a tarefa
fundamental da montagem: “Minha missão consiste em criar uma nova percepção do
mundo. Decifro, assim, de uma maneira nova um mundo desconhecido para vocês.”
(VERTOV, 1973, p.75).
Neste sentido, a evidência do ponto de vista na tela, no documentário
performativo, pode significar em termos de montagem a possibilidade de alcançar uma
verdade fílmica objetiva, ou seja, o real da representação. Na objetividade da montagem
está o principio de que qualquer representação da realidade é subjetiva. Para o
documentarista Andés Di Tella37 a natureza da montagem é o que permite alcançar a
objetividade no documentário:
É certo que cada plano é um recorte da realidade, que sempre há um fora de quadro e um ponto de vista. Mas na combinação desses planos parciais e subjetivos, ou seja, na montagem, o documentário pode recuperar a sua objetividade. Multiplicando, justapondo e inclusive subtraindo os distintos planos filmados, a montagem torna relativo o ponto de vista parcial de cada plano. E ao mesmo tempo, o coloca em relação com todos os demais planos do documentário. Deste modo, a montagem faz retornar, de alguma forma, ao todo – ou seja, ao documentário como soma de todas as tomas da realidade - uma certa objetividade. Ou pelo menos uma representação de objetividade. A montagem não seria então o secreto vergonhoso do documentário, como às vezes se fala, mas justamente sua grande virtude. A montagem só é sinônimo de mentira quando se acredita que no plano está a verdade, a pegada objetiva da realidade, a “prova” e quando se acredita que reproduzir o real “tal qual é” é possível e suficiente (DI TELLA, 2004, on-line)38.
37 Documentarista argentino autor de El país del diablo (2008), Fotografias (2007), La televisión y yo (2002) y Montoneros, una historia (1994) entre outras. Também é diretor do Princeton Documentary Festival Festival-USA 38 Tradução ao português da autora (original em espanhol).
101
Para o cineasta Jean-Louis Comolli (2004, p. 45-72)39 a busca da verdade
ontológica no interior do plano não faz mais parte da compreensão audiovisual
contemporânea. As amalgamas entre documentário e ficção, nas que fatos são recebidos
como relatos e relatos como fatos, exige à produção documentaria novas provas de
autenticidade. Com este objetivo se ressalta a presença do corpo do documentarista na
cena: o realizador em quanto “homem filmado” – em quadro como fora de quadro – se
torna um novo objeto de conhecimento e uma prova da essência documental no filme.
Comolli destaca os efeitos que isto provoca no espectador, deslocado do seu
lugar habitual de compartir a experiência cinematográfica. O filme já não é mais “o que
acontece com o espectador” em função dos artifícios do autor. Tanto autor como
personagem são afetados no transcurso da experiência filmada que acontece entre eles;
experiência que não se projeta no espectador, quem, desde um outro lugar, assume a
autoridade textual. O filme agora é “o que acontece como o ator”; a implicação do
autor-personagem na experiência da filmagem o afasta do espectador, quem se torna
testemunha de um documento, das “provas vividas pelos corpos filmados durante sua
filmagem” (idem, p. 67).
Nesta nova forma documentária, que Comolli denomina de “filmes mutantes”, o
espectador se enfrenta a um relato de fatos, que se consideram uma verdade
indiscutível: “Este é o papel da prosopopéia no cinema: desdobrar a cena, duplicar o
relato por aquilo que é da ordem do fato: o ato da enunciação” (idem, p. 59).
O espectador deslocado do seu lugar habitual e afastado do estímulo do autor se
vê obrigado a reorganizar o dispositivo do seu olhar:
Se me pede que aceite ser excluído da cena porque o ator-personagem está incluído mais do que nunca, e porque no sou ele, porque não posso ser ele, porque o filme não me dá os meios para ser-lo. Se me pede que enfrente a radical idade do outro filmado, sua exterioridade, sua alteridade não redutível através dos recursos habituais do cinema. No fundo, o que aqui está em jogo é a impossibilidade da projeção sobre um personagem (a impossibilidade da ficção) 40(idem, p. 72).
Esta reorganização vai originar no espectador um forte sentimento de estranheza,
um desconforto, que segundo Comolli, o cinema não produzia há muito tempo. 39 COMOLLI, Jean-Louis. “El anti-espectador, sobre cuatro filmes mutantes”.In: YOEL, Gerardo (Org.). Pensar el cine 2. Cuerpo(s), temporalidad y nuevas tecnologias. Buenos Aires: Manantial, 2004. 40 Tradução ao português da autora (original em espanhol).
102
Lembrando o efeito de estranhamento brechtiano que permite ver na ficção a
representação; esse efeito de estranhamento no caso do documentário permite ao
espectador enxergar o próprio ato da enunciação.
2. A “EXPERIÊNCIA” REPRESENTADA POR AUTORES LATINOAMERICANOS
Inicialmente o documentário performativo se esboça nos Estados Unidos e na
Europa, a partir de meados dos anos 70, e tem suas linhas básicas desenhadas durante os
anos 80 e 90. Seu surgimento está fortemente enraizado em trabalhos de vídeo de
grupos de minoria (homossexuais, portadores do HIV, negros, mulheres), nos quais o
crescimento da articulação de um senso de comunidade foi significativo no início da
década de 90, como resultado de uma política de identidade que afirmava a relativa
autonomia e a característica social distintiva de grupos marginalizados. Existe, também,
uma conexão com as autobiografias que surgem da experiência de emigrantes como o
lituano Jonas Mekas41.
Já na América Latina, mais especificamente no caso da América do Sul, “as
primeiras manifestações destes trabalhos coincidiram com um clima geral de aberturas
democráticas do nosso continente (Argentina, 1983; Chile, 1989; Brasil, 1984)” diz
Andrea Molfetta (2003, p.51), a autora acredita que “esse ambiente político também foi
um importante estímulo criativo”.
Em torno ao festival Franco-Latino-Americano de Vídeo-Arte, nos anos 90, se
desenvolveu um trabalho voltado à produção autoral. Os vencedores destas edições
realizaram “Diários de Viagem” na França, aparecendo uma produção de filmes auto-
reflexivos, narrados – em alguns casos – na primeira pessoa, que ressaltam o vinculo
afetivo, e se diferenciam de toda a produção que estava sendo feita nesses paises na
época.
41 Mekas emigrou a USA no final da Segunda Guerra Mundial, comprou uma câmara e começou a documentar sua vida e seu processo de adaptação, utilizando uma narração na primeira pessoa. Sua obra se incerta numa linha denominada documentário de diário (Diary Films).
103
A representação performativa do real cresceu no continente e “modificou
profundamente o modo de representar a história política e cultural do Conesul”
(MOLFETTA, 2007, CD-ROM). Em países que foram vitimas de períodos autoritários,
este cinema funciona como “mecanismo de re-apropriação das tradições culturais e
políticas”, onde se “restituem compromissos e laços fundamentais com a identidade”,
como estratégia para “se reapoderar do próprio país” (idem). Para que isso aconteça se
torna fundamental, não só interrogar o mundo, mas também participar dele.
Esses filmes, que frequentemente tratam temáticas vinculadas à memória, abrem
a discussão sobre o que deve ser preservado na memória coletiva, levando o discurso ao
terreno da disputa pela legitimação de uma memória especifica sobre uma época
determinante na história social contemporânea.
Andrea Molfetta identifica o documentário performativo produzido nas últimas
duas décadas no Cone Sul como uma técnica de si relacionada com o conceito de
micropolíticas desenvolvido por Foucault. A partir das críticas a um humanismo que
desenvolvera políticas normatizadoras dos indivíduos da sociedade, surge a estética da
existência de Foucault, que influencia a muitos dos realizadores destas obras, na sua
maioria com estudos de filosofia, antropologia e letras.
A estética do documentário performativo, em quanto estética da existência, da relação do Eu com o Outro, vive uma revitalização dentro do cinema por ser um modo de resistência frente a este contexto generalizado de individualização. Acredito que esse cinema responde com a herança filosófica do anti-humanismo dentro de um setor do Campo Intelectual marcado historicamente pelas políticas humanistas, e se colocándo assim no centro do debate, no meio de varias disputas. Á antes que nada, e como já fundamentamos, um objetivo político na constituição destas subjetividades no audiovisual do sul: produzir nossa diferencia (MOLFETTA, 2007, CD-ROM).
A modalidade performativa representa – em Argentina, Chile e Brasil – uma
tendência de realização independente de documentários que, apesar de no ser dominante
em termos de produção, é enormemente inovadora em matéria de linguagem.
Na Argentina, a produtora Cine-Ojo incentiva o documentário de autor e a
discussão sobre os diversos discursos do real, definindo nos últimos anos opções de
índole estética e ética que vinculam a pesquisa na forma com o compromisso temático.
Desde os anos noventa, cada vez mais suas produções destacam no relato o ponto de
vista do autor, tornando visível a subjetividade do discurso, o que não necessariamente
104
faz destes relatos, discursos menos sociais ou menos políticos: “Quando se assome o
discurso cinematográfico como um elemento que permite construir uma mensagem
sobre o mundo”, diz Carmen Guarini, co-diretora de Cine-Ojo, “a obra joga um rol
importante na luta incansável de sentidos que agita qualquer sociedade” (informação
verbal)42. Fotografias (Andrés Di Tella, 2007), Los Rubios (Albertina Carri, 2003) e Yo
no se que me han hecho tus ojos (Sergio Wolf e Lorena Muñoz, 2003) são só alguns dos
títulos de obras performativas produzidas por Cine-Ojo, cujas temáticas variadas, nem
sempre políticas, assomem o discurso cinematográfico como uma falta de verdade
absoluta, como uma mensagem relativa que obriga ao espectador, em certa medida, a
deixar seu lugar de observador para passar a ser alguém ativo dentro desse discurso.
No caso chileno, esta modalidade se preocupa com a memória histórica do país,
questão necessariamente vinculada à experiência de quase vinte anos de ditadura
militar. Tanto as gerações que vivenciaram estes anos – no país ou desde o exílio –
como as gerações que lhes sucederam, em muitos casos os filhos das vitimas da
ditadura, estão hoje revisando sua própria história. Chile-La memoria obstinada
(Patricio Guzmán, 1997), En un lugar del cielo (Alejandra Carmona, 2003), Calle Santa
Fe (Carmen Castillo, 2007) são três obras de recorte autobiográfico que formam parte
dessa nova tendência documental.
No Brasil, o documentário em primeira pessoa da última década se destaca, entre
outras, em obras como Un Pasaporte Húngaro (Sandra Kogut, 2001), 33 (Kiko
Goifman, 2001) e, Santiago (João Moreira Salles, 2007), todas elas auto-referentes.
Para Molfetta, esses filmes, preocupados em extremo com a forma da representação,
“trabalham dentro de uma visão subjetiva de nação, de povo e de cidade” em que a
representação da história, do povo e da nação brasileira “passam pelo coração da
subjetividade do autor” (MOLFETTA, 2007, CD-ROM).
TRÊS OBRAS CONTEMPORÂNEAS LATINO-AMERICANAS
Yo no sé que me han hecho tus ojos (Sergio Wolf e Lorena Muñoz, Argentina,
2003), Calle Santa Fe (Carmen Castillo, Chile, 2007), e Santiago (João Moreira Salles,
Brasil, 2007), são documentários ligados a questões de identidade nacional, tanto
cultural como social. Suas temáticas, de origem endógena, percorrem a historia privada
42 Entrevista a Carmen Guarini, Buenos Aires, Dezembro 2007
105
e coletiva de seus respectivos países, evidenciando as pugnas da memória e tocando
questões comuns à América Latina contemporânea como migrações e territorialidade.
Os filmes trafegam pelo espírito do tango encarnado no drama da vida de uma
cancionista argentina, pelo lugar que ocupa na memória dos chilenos o trauma da
ditadura militar, e pelas relações entre patrão e mordomo emigrante num Brasil de forte
tradição serviçal.
Esses documentários partem de uma interrogação e utilizam como estratégia
narrativa o processo em que o realizador, em quanto corpo presente no filme, se
comunica em forma afetiva com o mundo do real. Yo no se que me han hecho tus ojos
mergulha no desejo do autor por investigar o enigma do desaparecimento de Ada
Falcón, que com o passar do tempo ficou esquecido sem esclarecimento. Calle Santa Fe
parte da decisão de enfrentar o acontecimento mais doloroso da vida da autora na busca
por reconstruir a história que ficou na memória coletiva sobre um movimento político
silenciado e dispersado pelas forças repressivas da época. Santiago é o confronto do
autor com o material bruto do seu único filme inconcluso.
Os três documentários, narrados na primeira pessoa, fazem uso da vivencia do
autor-personagem como estratégia narrativa. A auto-representação dos autores, nos três
filmes, é ao mesmo tempo o método de conhecimento do objeto; porém o vínculo que
se estabelece entre autor e objeto está originado em motivações diferentes. No caso de
Yo no se que me han hecho tus ojos trata-se de um “autor-ator”, que à maneira de um
detetive de filme noir, procura esclarecer um assunto externo à sua história pessoal,
motivado pela fascinação que o tema desperta nele. Em Calle Santa Fe, a autora reflete
sobre a sua própria experiência de vida, fazendo do filme uma busca pela reconstrução
do passado nas lembranças do presente; a confrontação com sua memória e a dos
outros, procura atingir a memória coletiva de uma época determinante na história social
do Chile contemporâneo; a reconstrução de acontecimentos a partir das lembranças
pessoais do autor-personagem faz que este seja representado no filme como um “autor-
pessoa”. E por último, no documentário Santiago o vínculo entre autor e objeto se dá no
nível fílmico. O autor, ao mesmo tempo em que se questiona como documentarista,
reflete sobre questões do sistema de representações, tornando a própria reflexão parte
importante do argumento. Nesse sentido, o realizador assume um rol determinado pelo
seu próprio oficio, trata-se aqui de um “autor-diretor”.
106
Comum aos três filmes é a crise interna do realizador como impulso do
acontecer das ações. Existe uma decisão consciente por parte do autor-personagem de
enfrentar a catarse que as movimentações na diegese possam produzir. A crise se
manifesta, como desencadeador do processo fílmico, em direções diversas. Em Yo no se
que me han hecho tus ojos se internaliza uma problemática originalmente alheia à vida
do autor; a crise se produz na medida em que se apresentam obstáculos para alcançar o
objetivo de uma pesquisa que vai se tornando uma obsessão do realizador: o processo
fílmico gera a crise. Em Calle Santa Fé o processo é o inverso; existe no realizador a
necessidade de exteriorizar questões da sua vida particular, anteriores à existência do
filme; a crise, neste caso, é a que gera o processo fílmico. Já no caso de Santiago, como
o material fílmico é uma precondição ao processo, a crise se manifesta quando o autor
se enfrenta aos seus próprios arquivos; é uma crise que surge no dialogo entre o material
e a reflexão do autor.
O “ser no filme” do realizador, exposto a crises, produz um certo incomodo no
espectador, o como diz Comolli, um forte sentimento de estranheza; que aumenta na
medida em que aumentam os antecedentes autobiográficos dos autores, no caso de
Carmen Castillo e de João Moreira Salles. Nestes casos, a crise além de movimentar as
ações no interior do processo fílmico, é a motivação principal da sua gestação: os filmes
surgem da decisão do autor de enfrentar a crise.
Vê-se aqui uma linha na direção de ficar mais perto do real, já que busca o
registro no presente do momento da experiência, experiência que modifica o real que
vem a continuação. O “ser-aí” e o “estar-aí” como formas de conhecimento. Mesmo que
a expressão disso seja sempre uma aproximação, ela se diferencia da ficçionalização da
realidade, bastante presente nos meios atualmente.
As marcas de autoria, os usos da entrevista e a organização do material de
arquivo fazem parte das categorias de analise estudadas no segundo capítulo. A
observação nestes filmes da sua organização, assim como da função de uma categoria
em relação à outra, permite observar uma articulação da montagem que passa
necessariamente pelo paradigma de possibilidades de argumentação do autor, em quanto
autor-personagem do filme.
Os três documentários são filmes de busca, segundo a definição de Bernardet,
filmes que documentam o processo de pesquisa. Uma busca do realizador que em Yo no
se que me han hecho tus ojos e Calle Santa Fé se manifesta como um processo que
107
acontece durante a filmagem. No caso de Santiago, esta busca faz parte do processo de
montagem, já que o material do filme são os arquivos do próprio realizador, a pesquisa
acontece aqui na sala de edição.
Quando a pesquisa é feita através da filmagem e o roteiro se escreve durante a
montagem, em ambos os casos o processo de elaboração filmica fica mediado por um
sistema de aproximação ao real elaborado, originalmente, para acontecer em forma
separada, sucessivamente. Isso faz que, durante o processo de filmagem e de montagem
a representação como tal seja um fato mais consciente, sublinhando que se lida mais
perto dos sistemas de representações do que do mundo do real.
Os documentários, se diz, são geralmente feitos na sala de edição, onde o
montador, primeiro espectador do filme, pesquisa o material filmado na intenção de
descobrir o filme que tem dentro dele. Começar a estruturar o roteiro só a partir deste
ponto da produção, quando se acabou de filmar, não é exclusivo da modalidade
performativa. O que aqui muda está em relação com a função da montagem, que nem
atende a uma lógica narrativa interna das seqüências própria da ficção, como também
não se coloca ao serviço de construir um discurso sobre a realidade baseado em provas
argumentativas. O discurso nestes filmes se torna mais subjetivo, graças a uma
montagem que estabelece associações em função de uma construção de sentido mais
poética.
A partir de uma analise da estrutura narrativa nos três filmes poderá ser
observado como se constrói esse novo sentido fílmico através de um autor-personagem
e o que isso significa para o espectador.
YO NO SÉ QUE ME HAN HECHO TUS OJOS , O AUTOR-ATOR E SUAS INQUIETUDES
Filmes de busca partem de uma interrogação que, geralmente, a maneira de uma
introdução, se expõe no inicio do documentário. Numa narração na primeira pessoa o
cineasta explica a sua razão no filme e o impulso que o levou até esse lugar. As
motivações são internas e o percurso a recorrer não tem um destino definido.
Antes que apareça o titulo do filme Yo no se que me han hecho tus ojos, sobre
um fundo preto imitando a projeção de um filme antigo, o autor-personagem, Sergio
108
Wolf, reconstrói o momento em que a historia do filme começou a entrar na sua vida.
Desde uma narração em off ele conta:
Foi Aníbal Ford, um antigo sábio do tango que me abriu as portas para os distintos estilos das cancionistas. A emoção com que falou de Ada Falcón me contagiou (...) No final da noite me contou em forma breve a história de Ada: -Ela era uma diva. Uma mina que ganhou muita grana. Tinha uma Bugatti, um Mercedez Benz, ela tinha tudo (...) Ela sentia as letras, cantava as letras como si lhe houvessem passado a ela. Essa pista que Aníbal deixou cair como de passada foi o rastro. Tempo depois, num papelzinho que vinha num cd de Ada Falcón esse rastro desenho um percurso.
O impulso necessário para que o filme aconteça se manifesta no desenho de um
possível percurso, sendo a intriga o que movimenta a narrativa e não os fatos em si.
Sergio Wolf na imagem, sozinho, procurando, conta desde uma narração em off o
mistério de Ada, quem no inicio da década de 40, na cima da fama, abandona todo para
se dedicar à devoção católica: “Deixar tudo por uma convicção, isso é o que me
obsessiona. Ir ao contrario do que diz a época, é isso o que me une a Ada”, e continua,
“é a historia a que não me deixa, não sou eu quem no pode deixa-la”. O espectador
sabe agora que não assistira à história de uma cancionista contada por um
documentarista e sim através dele, que o filme não está aí para reconstituir os fatos e
sim para homenagear o mito.
O documentarista é o detetive do filme, o autor-personagem que mergulha numa
estrutura dramática que pouco se importa em misturar registro documental com
encenação ficcional. O primeiro plano do filme é em preto e branco, um plano
seqüência, subjetivo, que começa num PP de dois relógios na parede, desce e chega a
um PM de um grupo de homens, atrás de um vidro isolante, olhando em direção à
câmera: estamos dentro da cabine de uma emissora de radio; o foco muda e num PPP
aparece um microfone; mais em vez de escutar a voz da diva começando a cantar, se
escuta o autor desde o off iniciando sua narração. O plano seqüência pertence a um
filme antigo, um de aqueles que poderia ter protagonizado Ada Falcón. Wolf querendo
entrar no filme, fala pelo microfone, desde o lugar do olhar de Ada, deixando claro que
o que busca é falar através dela.
O corpo do autor se incorpora ao quadro registrando o percurso da sua pesquisa.
Sempre calado, com as mãos nos bolsos do sobretudo, o autor caminha pela cidade, no
109
dia e na noite, buscando. Ligações telefônicas e interrogatórios a testemunhas
completam a caracterização de investigador de um autor-personagem que raramente se
emociona frente à câmera. O lugar das emoções do autor está na narração em off, é aqui
onde confessa as suas paixões, suas decepções e temores em relação aos desafios da sua
empresa documental.
Com um texto intimista e emotivo o autor desperta no espectador não só o
interesse pelo mistério da diva, mas também o desejo de que o documentarista logre
concretizar o seu desafio. A procura, quase obsessiva, do autor por desenterrar a
história, por conseguir indícios, por avançar na investigação, cria no espectador o desejo
de acompanhar de perto tanto o mistério como a pessoa que o suscita, tanto a Ada como
a Sergio Wolf.
Os testemunhos no filme são parte das pistas. Trata-se de personagens
secundários chamados unicamente para entregar informações sobre a personagem
central do filme. Eles fazem parte dos diferentes lugares por onde passou a vida de Ada
e serão abandonados na medida em que esses momentos sejam narrados. A montagem
paralela de alguns destes depoimentos ressalta mais ainda sua valoração em quanto ao
fato da informação e menos pelo interes em relação a quem fala e à maneira em que se
comunica. Aparições curtas que como peças de um quebra-cabeça traçam o percurso do
filme e do autor.
Um grupo de pessoas, mais próximas ao mundo do tango da década de 1930 e
1940, é convocado para conversar sobre Ada Falcón. Sentadas em circulo discutem as
historias de vida e a personalidade da artista. Estão no estúdio de uma emissora de
radio, fundada em 1937, e a conversa acalorada se assemelha com um programa de
opinião da época. De pronto, os rostos dos entrevistados são substituídos por primeiros
planos em preto e branco de rádios antigas, extraídos de filmes antigos; a voz do
depoimento continua, destorcida, simulando sair dos aparelhos radio transistores. As
rádios se misturam com microfones, novos e antigos. O autor-personagem, sentado
junto a eles, faz comentários para o espectador desde o off: “Todos se apaixonam e
falam de Ada e Canaro como se sua história estivesse acontecendo agora, nesse mesmo
instante”.
Misturar duas épocas na montagem, fazendo uso da prática do raccord para
apagar a distancia que às separa, é uma constante no filme. Alguns deslocamentos do
autor pelas ruas de Buenos Aires utilizam este recurso criando um continuum de
110
imagens coloridas e P/B, de imagens atuais com imagens de sessenta anos atrás,
material filmado para a obra com material de arquivo, minuciosamente selecionado de
quase 30 filmes da época.
O tratamento de uma temática do passado é trazido pela montagem ao tempo
presente através do uso de uma estética realista, ao estilo dos filmes de ficção; a
narração entre essas duas temporalidades se faz mais fluida, reforçando o propósito da
busca do autor: encontrar no pressente os rastos do passado.
Mas existe também um outro uso do arquivo que em vez de aproxima-lo ao
espectador, pede para ser observado com um certo receio: sobre uma seqüência de
época de um teatro de revista, a voz off narra os inícios da carreira artística de Ada. A
imagem mostra uma dançarina cantando no palco, mas a voz em off num ato reflexivo
nos alerta: “Essa que vemos não é Ada Falcón, pero se houvessem imagens
documentais desse momento, seguramente se pareceriam a essas”.
Essa cena é seguida por uma seqüência que inclui um outro elemento da
representação: as reconstruções. Sejam evocativas, para representar estados de animo ou
anedóticas, para ilustrar algo acontecido, nas reconstruções toda a informação
audiovisual é lida em clave de ficção; centrando a atenção do espectador no universo do
pro-fílmico, e não de um referente do mundo histórico. Assim, as fronteiras entre o
documentário e a ficção, são constantemente apagadas.
A incorporação no filme de materiais de origens diversos, com texturas
diferentes, contribui à articulação de relações poéticas na linguagem. Fotos e imagens
em movimento da diva e da sua época se entrelaçam com registros do mundo atual e
com reconstruções ficcionais. O resultado é uma montagem onde presente, passado,
imaginário e realidade se misturam constituindo uma unidade continua.
O plano longo de uma estrada reta que atravessa um campo árido ao ritmo de um
tango é a linha divisória entre as duas etapas da vida de Ada Falcón. A estrada conduz a
Salsipuedes, cidade do interior de Córdoba onde Ada se muda, em 1942, para se dedicar
por completo à vida espiritual, abandonando sua vida de artista e praticamente toda sua
vida pública. Estamos exatamente na metade do filme. Em contraste com a primeira
parte do documentário, nesta segunda dominam planos mais abertos, imagens diurnas e
luz natural; sem reconstruções e quase sem material de arquivo, o único que fica de
aquela época são os tangos cantados por Ada, que colocados incidentalmente sobre
imagens triviais da cidade Salsipuedes, parecem a voz de um fantasma.
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O filme se transforma. O autor-personagem é menos o detetive de um filme noir
e mais o repórter em ação. Os rastos do passado, representados na primeira parte do
filme por imagens de arquivo, tanto da própria Ada como de outros filmes da época, são
agora os personagens vivos que contam, na imagem, o momento em que Ada, na face da
sua reclusão, se lhes cruzou no caminho.
O último personagem que aparece no filme é a própria Ada. O autor, na busca
por estabelecer um diálogo, observa-a discreto, distanciado e com respeito. A presença
do autor na cena o delata como personagem admirado e apaixonado por um mito; é a
única cena do filme em que ele deixa ver a sua emoção. O vinculo que se cria entre
entrevistador e entrevistado, nesse encontro, que acontece – no filme – por vez primeira,
é de uma grande intimidade. A cena recria um clima familiar onde o autor-personagem
conhece tudo de Ada, como se ela fosse um ser da sua imaginação, uma personagem da
sua fantasias, que decidiu se materializar pela última vez para conceder-lhe um
momento de fortuna a quem um dia sonhou com ressuscitá-la.
Esse é o encontro mais importante do filme entre quem filma e quem é filmado.
Construído cuidadosamente na montagem, o encontro toma a forma da observação de
um no outro: é através de um plano subjetivo do olhar de Wolf que vemos a primeira
imagem de Ada na época atual. Os planos deste encontro são longos, a câmera observa
a Ada de perto, enquanto se escuta a letra de um tango que fala de amor, dor e perda. O
autor em quadro, também observa; suas intervenções desde o off são poucas. Ao
espectador se lhe da a oportunidade de observa-la mais de perto.
O momento em que Sergio Wolf encontra a Ada no corresponde aos últimos
dias de filmagem do filme. A equipe esteve com ela duas vezes, a primeira em 1998 e a
segunda no ano 2000. A frase “Dizem que Ada era especial por conta de seus olhos
verdes. Todos os registros que tenho dela são em preto e branco. Nunca poderei ver
esses olhos”, foi colocada no filme depois de finalizar a filmagem, ou seja, depois de
que Wolf encontrou a Ada. Por último, o filme inclui, no final, uma cena do cemitério
em que a cancionista está enterrada.
A lógica narrativa aqui não está preocupada por manter uma correspondência
com a ordem em que aconteceram os fatos no mundo histórico na hora de filmar.
Entretanto o relato é cronológico, porém trata-se de uma cronologia que não
corresponde à “pesquisa filmica” é sim a busca do autor-personagem. Uma lógica
interna ao filme, mais relacionada com as narrativas de ficção.
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Na medida em que o discurso se torna mais subjetivo, o documentário adquire
procedimentos técnicos e estratégias narrativas próprias dos filmes de ficção. A
montagem em Yo no se que me han hecho tus ojos recria uma suposta sucessão de fatos
que aconteceram durante o processo de filmagem. Uma busca que chega a um final
quando acaba o registro e que deve ser recriada na hora de montar.
Assim se revela uma filmagem que busca a “construção do improviso”, para que
seja possível sua manipulação durante a montagem. Artifícios narrativos de
reconstrução de uma suposta improvisação no momento de filmar dão a aparência, na
tela, de que os acontecimentos simplesmente tivessem acontecido, quando, na verdade,
foram construídos para ter exatamente aquela aparência.
CALLE SANTA FÉ, O AUTOR-PESSOA E SEU PASSADO
O filme de corte autobiográfico, não está preocupado com representar a
realidade unicamente no seu tempo presente. Aqui, o que interessa é reconstituir o que
ficou na memória coletiva sobre acontecimentos passados, como uma forma de faze-
lhes um lugar no futuro. Uma narrativa alternativa sobre a historia, diferente daquelas
fornecidas pela memória oficial, que parece querer proteger o passado e impedir o seu
desaparecimento. Uma historia sóbria, que torna evidente a multiplicidade e a
complexidade da interpretação da história.
O filme parte de um fato: a morte em combate de Miguel Enriquez, dirigente
máximo do MIR, no dia 5 de outubro de 1974, numa casa da Rua Santa Fe, onde
morava clandestinamente com Carmen Castillo e as duas filhas do casal. Carmen é
ferida durante o enfrentamento e trasladada a um hospital, desde onde se negocia a sua
expulsão do país; foge com destino a França. Mais de trinta anos de exílio se passaram
antes que ela decida voltar à casa de Santa Fe, onde vivera os momentos mais plenos da
sua vida privada. Essas são algumas das informações incluídas na “introdução” do
documentário, compactadas numa seqüência que inclui textos explicativos na tela,
material de arquivo jornalístico, fotos de família, até chegar à decisão no presente da
autora de retornar os lugares de seu passado, a casa de Santa Fé: “terá algum sentido
isto para uma outra pessoa que não seja eu”, diz desde uma narração em off sobre um
plano subjetivo que se aproxima ao portão da casa. A interrogação como dispositivo
113
inicial é também uma dúvida íntima da autora que leva o filme a percorrer um caminho
de relações entre o pessoal e o coletivo.
Não é o passado como lugar de conflito entre a historia e a memória o que
movimenta o filme. É no terreno exclusivo da memória que estão os questionamentos
principais de um documentário que pretende contribuir à construção da memória
coletiva. Explorar fatos do passado numa realidade em que só ficam rastros, sempre
distintos em função da subjetividade da memória de cada individuo, faz do gênero
documentário um suporte privilegiado para abordar esses temas. Um espaço que permite
a partir de um engajamento emocional conectar as esferas privadas e públicas,
produzindo entre ambas uma fricção, que é onde se encontra a memória coletiva. Assim
como nos museus e nos monumentos, também no documentário podem ser encontrados
rastros de legitimação de uma determinada memória coletiva – como uma evidencia
visível de uma memória, que de outro modo seria efêmera.
A autora de Calle Santa Fe, enquanto autor-personagem, confronta sua memória
com a memória de outros, outros que como ela, foram vitimas ou testemunhas do golpe
militar e suas conseqüências. O filme transita pelo terreno de uma fina disputa pela
legitimação da memória de uma época determinante na história social do Chile
contemporâneo.
O corpo do autor na tela, neste filme, representa uma historia autobiográfica. A
história narrada é a autobiografia de quem filma, o que permite uma aproximação que,
apesar de estar mediada por uma câmera, não está mediada por toda uma equipe de
filmagem. Isso significa que quem está atrás da câmera forma parte de esse universo
que se mostra, desse mundo fílmico. O aceso a realidade parecera “mais direto”, quase
observacional, embora dispositivo do registro esteja sempre presente.
Varias linhas narrativas se entrelaçam em forma paralela, na montagem do filme.
No presente, os encontros – com familiares, camaradas e vizinhos de Santa Fé, são
tentativas por reconstruir o privado e o público da situação familiar, da luta política do
movimento e do acontecido no dia da morte de Miguel Enriquez. No passado, o
material de arquivo, poucas vezes comentado pela voz off da autora, contribui à
generalização dos depoimentos pessoais. Uma terceira linha narrativa de primeiros
planos subjetivos, imagens em câmera lenta, texturas manipuladas e musica incidental
expressa a reflexão mais intima da autora.
114
Utiliza-se aqui uma forma de introspecção que mistura intimamente “novela
familiar” e historia social. Seguindo essa linha, o filme desenvolve um relato em que
esses dois campos são colocados um do lado do outro, em cenas montadas
seqüencialmente fazendo referencia a assuntos da vida da autora e a assuntos da vida
dos outros. Desta maneira se estabelece um mecanismo de reciprocidade comparativa ao
longo do filme, em que o privado com o público se espelham: a autora e seus familiares
conversam sobre as fissuras que se produzem na família como conseqüência do golpe
de estado, a seqüência seguinte mostra imagens do bombardeio ao palácio presidencial;
Carmen Castillo lembra de como, ferida e pressa foi socorrida por anônimos sem os
quais não houvesse podido sair com vida do país, a cena seguinte mostra mulheres da
Organização de Familiares de Detidos Desaparecidos falando a câmera dos familiares
aos que buscam; a autora confessa que no exílio não teve força para assumir as suas
responsabilidades de madre tendo que renunciar à filha para que outros, em Cuba,
cuidassem dela, a seguir uma longa seqüência da conta sobre o conflito de mães e filhas
separadas pela prioridade que significava na época a vida de militante.
As fronteiras entre o pessoal e o coletivo são constantemente apagadas. A forma
do diário, o comentário em voice-over, o texto escrito em tom confessional, todos
oferecem evidencias de uma memória coletiva reprimida por uma experiência
traumática, também coletiva.
É através das entrevistas do filme que se resgata essa experiência. Os
testemunhos aqui são modos de reconstrução e de reflexão do passado, num terreno
onde outras fontes foram destruídas pelos responsáveis. É comum a documentários que
tratam de temas similares, resgatar a propriedade do testemunho de ser utilizado como
instrumento de condena ao terrorismo de estado. Principalmente na América Latina, os
atos da memória foram uma peça central dentro dos processos de transição democrática.
A função do testemunho de denunciar arbitrariedades é, em Calle Santa Fé,
quase uma obviedade. Embora em cada um dos entrevistados existam experiências a
serem denunciadas; o resgate da experiência passa no filme pela tentativa de esclarecer
o que significou, na vida de cada um, essa vivencia. O filme lida com um momento
dessa historia posterior à denuncia, um momento mais preocupado com a reflexão. O
discurso que se produz, carregado de subjetividade, precisará revelar suas condiciones,
tanto de produção, como culturais e políticas, para encontrar seus referentes no mundo
histórico.
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As entrevistas em cena se materializam em forma de encontros, sempre na
presença em quadro do autor-personagem. Grupos de três, quatro ou mais pessoas
estabelecem trocas de detalhes que traçam o percurso da reflexão. Dados valiosos são
descobertos durante a filmagem, como a identidade do vizinho que pede uma
ambulância e acompanha a Carmen até o hospital no dia do enfrentamento; ele descreve
o tiroteio e detalhes sobre o comportamento de Miguel; Carmen afetada pede para se
retirar, a câmara a abandona e observa ao vizinho se afastando pela rua.
Esta contenção é constante no filme. Embora muitos depoimentos signifiquem
para quem fala momentos de grande dor, sempre que estamos a ponto de presenciar o
desmoronamento, a câmara faz um movimento ou a cena se corta. Ninguém chora no
filme. É como se o familiar do assunto para todos não desse lugar para manifestações
dramáticas. Uma contenção que faz o filme mais intimo ainda.
O questionamento da documentarista, no decorrer do filme, sobre o que é
importante lembrar ou esquecer gera um espaço para falar do social e do político: o
espaço dos mundos particulares, ou seja, das micro-políticas. Para o autor-personagem o
passado é um fato inevitável – além da vontade e da razão; contudo, no terreno da
memória, desorientações e contradições no discurso levam a pensar que ainda mais
importante do que relembrar é entender, embora, para entender seja preciso também
lembrar. Para o espectador, essa construção do discurso produz um efeito de
estranhamento capaz de contribuir na discussão acerca da representação da fragmentada
sociedade contemporânea.
O filme é construído como um processo moldado no presente que faz uso do
material de arquivo – noticiários, documentários e arquivo familiar – não em forma
ilustrativa ou provatoria, e sim para confrontar esse registro do passado com o agora de
estar no filme. Essa junção de planos constrói, através da montagem, um significado na
mente do espectador que só aparece na articulação destas duas temporalidades. Os fatos
invisíveis de Patrício Guzmán, assim como os instantâneos de Benjamin, se apresentam
aqui como possibilidades de entender o futuro posterior ao filme, ou seja, o presente, já
que o que está no filme sempre será passado. Esta estrutura de montagem tem um
grande apelo ao espectador, já que estamos frente a uma narrativa em função de disputar
um espaço no âmbito da memória coletiva.
A autora se mobiliza, durante o processo de filmagem, entre o presente da
experiência na que se embarca voluntariamente e a vontade de que essa experiência
116
interfira no seu futuro. Na medida em que procura uma história da qual só conhece uma
parte, procura extrair algo que lhe permita não só reconstituir a sua identidade presente,
senão também a identidade coletiva de um grupo e a memória histórica de um povo.
Calle Santa Fé não é o primeiro filme de Carmen Castillo na linha
autobiográfica. A autora desenvolve trabalhos performativos que envolvem tanto seu
mundo familiar, como no filme O país de mi padre (Chile/França, 2004), como o seu
passado político, como em La flaca Alejandra (Chile/França, 1994).
SANTIAGO, O AUTOR-DIRETOR E SEU MATERIAL FÍLMICO
O filme é um exercício reflexivo sobre o processo cinematográfico, no qual além
de evidenciar o suporte, questionam-se os caminhos possíveis da representação
envolvidos no processo de fazer um documentário.
A identidade do autor-personagem no filme é fragmentada. A primeira
representada pelo documentarista, a segunda representada pelo filho de uma família de
costumes aristocratas e a sua relação com o mordomo da casa.
O filme, por sua vez, também é fragmentado, representado em dois tempos. O
primeiro quando se filma um filme que nunca se concretiza. E o segundo quando se
monta um filme a partir dos arquivos do primeiro.
O autor-personagem está representado, na primeira parte, como o diretor do
filme no passado que, sem a consciência de que foi registrado pela câmera, se estrutura
num personagem representado no fora de campo. Na segunda parte, o mesmo diretor no
presente, desta vez consciente de seu rol como personagem, se materializa através de
um comentário em voice-over, na primeira pessoa.
Ao longo do filme deixam-se traspassar as fraquezas, as dúvidas, fazendo da
obra um processo introspectivo que circula num território de incertezas onde tudo é
suspeito, até o próprio sistema de representação.
O processo de busca neste filme não acontece no momento do registro. E os
encontros e experiências filmadas nas são registros do mundo histórico.
O processo aqui tem um dispositivo fílmico que acontece no mundo das
representações. É o processo da reflexão do autor ao se enfrentar ao material filmado o
que está sendo documentado.
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João Moreira Salles explica este processo da seguinte maneira:
Esse filme preciso de 13 anos, para nascer, surgir.... O tempo de um filme. Muitas vezes não se sabe o que está filmado. Ou seja, você acha que é um filme e, quando olha no material bruto, esse filme é impossível com o material que você tem. Então, a primeira responsabilidade de um documentarista é entender a natureza do material bruto e aí você tem todas as preocupações que um filme deve ter.
Santiago é uma reincidência: retomar imagens filmadas num passado pelo
próprio autor para fazer um filme pessoal, familiar.
CONCLUINDO À ANALISE
O autor-personagem constrói uma representação do mundo histórico permeada
pelas suas motivações mais íntimas. Tanto a narração quanto a montagem estão
condicionadas às individualidades da lógica do sujeito da enunciação. A incorporação
do autor como personagem que participa no processo de fazer o filme, permite que o
paradigma das associações possíveis na montagem destes documentários corresponda a
argumentos próprios do desenrolar narrativo no interior do filme. No documentário
clássico os argumentos construídos funcionam como provas cuja referência faz parte do
mundo histórico. A dupla função do autor-personagem, no filme, permite que as
associações estabelecidas na montagem correspondam a argumentações tanto subjetivas
como objetivas. A função da montagem também se torna dupla atendendo, por um lado,
às associações de idéias de um documentarista que lida com fatos do mundo histórico, e
por outro, o raciocínio emocional de um personagem que se permite todo tipo de
associações poéticas.
A montagem está condicionada, também, pela narração em voice-over. Esse
comentário que se manifesta na extra-diegese, está presente nos três documentários
analisados, ocupando um lugar fundamental para o desenrolar narrativo.
Se bem estes filmes se aproximam ao mundo histórico no nível dos afetos, esta
afetividade se manifesta, geralmente, no texto em voice-over do autor-personagem.
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Quando o corpo do autor-personagem se faz presente na imagem, seu comportamento é
distanciado, nunca se quebra o se emociona. Existe um distanciamento.
No documentário expositivo: ter um objetivo definido de discurso, uma opinião
clara a ser emitida, seja em forma direta ou através da “voz de deus”, faz que as
possibilidades de montagem aumentem, já que se tornam argumentativas. As regras da
montagem clássica não têm valor, em prol de manipular o material como forma de
construir argumentos sobre o mundo histórico.
Os documentários interessados pela não manipulação da realidade, se
apresentam cheios de regras de montagem, que não permitem certos tipos de tratamento
fílmico O olhar do documentarista se assemelha às possibilidades do olho humano. A
montagem esta em função de manter uma fidelidade com a realidade, ao mesmo tempo
em que assume uma lógica de montagem da ficção narrativa.
A montagem no documentário performativo é poética.
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CONCLUSÕES
As imagens audiovisuais têm sido fundamentais na construção de imaginários e
identidades na América Latina, entendida aqui como um espaço de circulação constante
de idéias estéticas, políticas e culturais que não ficaram restringidas aos âmbitos
nacionais, senão que transcenderam fronteiras, barreiras culturais e políticas.
O documentário latino-americano se constituiu, ao longo da sua historia, como
um espaço para as contra-narrativas; para dar voz às vozes sociais que raramente são
representadas pelos discursos de outros meios de comunicação.
Esse documentário, influenciado pelo desenvolvimento tecnológico, os
acontecimentos históricos e o Zeitgeist dominante da época, tem modificado a forma da
sua escrita no transcurso do tempo. Assim o documentário latino-americano passou de
uma câmera-punho a uma câmera- espelho, para logo se transformar no que agora se
denomina uma câmera- caneta, ou seja, em termos mais precisos: um sujeito- câmera.
O cinema militante dos anos sessenta – de influencia construtivista, convívio nas
suas origens, com um documentário de linha testemunhal – de influencia neo-realista,
que continuou se produzindo por varias décadas. Atualmente, o documentário no
continente apresenta fortes marcas de reflexividade, presentes também na evidencia no
texto da subjetividade dos discursos que constrói. A representação de um aspecto do
mundo histórico se desenvolve como argumento e o documentário se reconhece mais
como um modo de representação e menos como um discurso da realidade.
O sujeito contemporâneo, frente aos desafios das ideologias totalizadoras e dos
discursos normalizadores, retoma a narrativa subjetiva do passado, e se interessa pelos
discursos da memória. O sujeito fragmentado, de identidades diversas, valoriza a
experiência, o dasein (ser-aí), como a forma mais legítima de produzir discursos. A
intervenção do autor no relato permite estruturar essas identidades distintas.
Na América Latina, assim como o cinema militante falou das revoluções que
estavam por vir, hoje é o documentário performativo que tenta revisar o que aconteceu
no continente nas últimas décadas, no social, no político e no cultural. A forma
performativa é apropriada para falar de memória porque permite revisar historias
pessoais. Com um estilo pessoal são tratados temas em torno a revisão e reconstrução da
memória, como um processo de busca de identidade. Estes questionamentos são
pertinentes ao momento sóciopolítico que estamos vivendo e a toda a historia de
120
América Latina. É isso que faz que este cinema continue sendo muito político, um
cinema que pelo lado temático é mais de exploração e pelo lado cinematográfico uma
busca, uma exploração que não há sido finalizada.
A produção cinematográfica, entendida como um processo de desconstrução
permite colocar a tecnologia ao serviço da política. A montagem oferece a possibilidade
de reformular o mundo e observa-lo desde um angulo divergente ao estabelecido pelos
modelos dominantes. O cine-olho contribuiu para a construção de uma nova sociedade
ao demonstrar como a matéria-prima da vida cotidiana, da forma como é captada pela
câmera podia ser, artificialmente, reconstruída em uma nova ordem.
A percepção social mudou a partir das possibilidades de interação social que
aparecem com o desenvolvimento técnico dos últimos 20 anos: “A grande novidade dos
nossos tempos é a possibilidade de, sem deixar de ser o que somos, tornar-nos
completamente universais”, diz Milton Santos.
A consciência de estar no mundo, num mundo misturado, com indivíduos
diferentes de interpretações variadas, permite que o cotidiano de cada um se enriqueça,
pela experiência própria e pela do vizinho, assim como pelas realizações atuais e pelas
perspectivas de futuro.
Neste contexto, segundo Santos, o “efeito de vizinhanza” pode levar ao
individuo à elaborações de visões abrangentes e sistêmicas, onde a busca da cidadania
apontará para a reforma das práticas e das instituições políticas (SANTOS, 2004).
Este “efeito de vizinhanza” no documentário é o que permite que a partir de algo
particular se fale de algo geral, que os fatos que se contam permitam entender outros
invisíveis, e quem sabe, construir um cinema que nos permita, alem de sustentar nossas
identidades, pensar o futuro.
Quem sabe, de aqui a vinte anos, poderemos juntar todos esses filmes e ver um
grande Fresco.
Espera-se, com este trabalho, ter poder alimentar a discussão formal e estética,
cuja presença é fundamental para a consolidação de um desenvolvimento reflexivo do
documentário latino-americano.
121
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Santiago (Brasil, 2007) dir.: João Moreira Salles. Señorita Extraviada (México, 2001) dir.: Lourdes Portillo. Yo no sé que me han hecho tus ojos (Argentina, 2003) dir.: Sergio Wolf e Lorena Muñoz.
SINOPSIS DOS FILMES ANALISADOS YO NO SÉ QUE ME HAN HECHO TUS OJOS FICHA TÉCNICA Argentina, 2003. 64m. Direção e Roteiro: Sergio Wolf y Lorena Muñoz Produção: Marcelo Céspedes y Carmen Guarini Montagem: Alejandra Almirón Fotografia: Segundo Cerrato, Federico Ransenberg, Marcelo Levintman Som: Alejandro Alonso, Cote Álvarez, Gaspar Scheuer, Diego Bernaud Participan: Ada Falcón, Aníbal Ford, Rolando Goyaud, José A. Martínez Suárez, Miguel Ciacci, Sergio Wolf Produtora e distribuidora: Cine Ojo
SINOPSE História de uma busca. A busca por Ada Falcón, cantora que na sua juventude brilhou como uma das maiores referências do tango. Ada interrompeu sua carreira para se tornar freira franciscana. Seis décadas depois, Sergio Wolf realiza um trabalho de detetive para encontrar pistas que possam esclarecer os mistérios dessa mulher. O autor, através de uma narração em off em primeira pessoa, revela suas paixões, decepções e medos em relação à Ada e aos desafios do seu empreendimento documentário.
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CALLE SANTA FÉ FICHA TÉCNICA Chile/França, 2007. 167 min. Direção e Roteiro: Carmen Castillo Echeverría Produção: Sergio Gándara,Serge Laliou, Sophie de Hijes (Francia), Christine Potreaux (Bélgica) Diretor de Produção: Eduardo Lobos Montagem: Eva Felgeles Almé Fotografia: Ned Burgess, Sebastián Moreno, Arnaldo Rodríguez Som direto: Jean Jaques Quinet, Boris Herrera Produtora e distribuidora Parox (Chile), Les Film D`Ici (Francia), Les Films de la Passarelle (Bélgica)
SINOPSE 5 de outubro de 1974, na rua Santa Fé, nos subúrbios de Santiago de Chile, Carmen Castillo é ferida e seu companheiro, Miguel Henríquez, líder do Movimento de Esquerda Revolucionaria, more em combate. Calle Santa Fé é a viagem desta mulher pela sua história, a história deste movimento e a história de seu país. Uma busca no presente, travessada pela obsessão de saber se valeram ou não a pena os atos de resistência dos seus companheiro do MIR, se teve sentido a morte de Miguel. SANTIAGO Ficha Técnica Brasil, 2006. 80 min. Direção e Roteiro: João Moreira Salles Produção: Mauricio Ramos e Raquel Zangrandi Montagem: Eduardo Escorel e Lívia Serpa Fotografia: Alberto Bellezia e Walter Carvalho Som: Jorge Saldanha Produtora e distribuidora: Vídeofilmes
SINOPSE Santiago Badariotti Merlo, ou apenas Santiago, foi durante anos o mordomo na mansão da família Moreira Salles em Rio de Janeiro. Em 1992, o diretor João Moreira Salles iniciou um documentário sobre a vida daquele homem especial - um argentino com grande conhecimento sobre famílias aristocratas e gosto pela música erudita - e suas lembranças. O autor filma durante cinco dias, mais não concretiza o projeto. Apenas em 2005, 13 anos mais tarde, retoma o filme, desta vez como uma reflexão autocrítica na que o próprio documentarista indaga sobre formas de representação e ética do documentário.
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