Substancias Anfifilicas

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30 Biotecnologia CiŒncia & Desenvolvimento SUBST´NCIAS TENSOATIVAS PESQUISA Os fenômenos de autoconstruçªo e auto-organizaçªo de substâncias tensoativas e sua importância na agricultura e em biotecnologia MariØtte Sueli Baggio Brandªo Embrapa Meio Ambiente Ph.D. em Química pela Universidade de Leeds, Inglaterra, onde recebeu o prŒmio J.B. Cohen de 1996/1997 pela melhor tese de doutorado na escola de química daquele ano e devido a importante contribuiçªo ao conheci- mento na Ærea de físico-química. ubstâncias tensoativas sªo in- gredientes importantes em muitos produtos industriali- zados e possuem um papel de destaque em vÆrios pro- cessos industriais. AlØm de sua presença em produtos de limpeza (detergentes, sabıes, amaciantes de rou- pa, entre outros) e de higiene pessoal (shampoo, sabonete, pasta de dente, etc.), tensoativos naturais ou sintetizados pelo homem encontram uso em quase todos os ramos da produçªo industrial, como por exemplo: indœstrias de alimentos, quími- cas, tŒxteis, de corantes, de tintas, de fibras, de processamento mineral, de plÆs- ticos, de produtos farmacŒuticos e de agroquímicos. Substâncias tensoativas sªo tambØm vitais em muitos sistemas biológi- cos. Por exemplo, tensoativos conhecidos como lipídeos formam o principal compo- nente das membranas celulares, as quais devem a estes a sua estrutura. Estudos de autoconstruçªo e auto-or- ganizaçªo de molØculas tensoativas sªo importantes tanto do ponto de vista teóri- co quanto prÆtico, uma vez que os modos de açªo dessas substâncias dependem dos seus estados de agregaçªo, em vÆrias situ- açıes prÆticas, tais como: em detergŒncia, emulsificaçªo, na recuperaçªo de petró- leo, em biologia celular, entre outros. A busca da compreensªo do fenômeno de autoconstruçªo e auto-organizaçªo de substâncias tensoativas por meio de estu- dos a respeito do comportamento de fase, estrutura e dinâmica dessas substâncias tem sido objeto de estudo de diversos autores (Kunze et al., 1997; van der Linden et al., 1996; Bergenholtz e Wagner, 1996; Oberdisse et al., 1996; Jóhannesson et al., 1996; Fröba e Kalus, 1995; Petrov et al.,1995; Boden et al.,1995; Boden, 1994; Diat and Roux, 1993; Sein et al., 1993) nos œltimos anos. Esses estudos abrem perspectivas que permitem o desenho e a síntese de novos materiais (novos fluidos comple- xos) os quais se autoconstruam e se auto- organizem em fluidos funcionais previa- mente projetados, possibilitando o apare- cimento de novas aplicaçıes tecnológicas. O termo fluido complexo aqui utilizado abrange, alØm de soluçıes de tensoativos com estados altamente estruturados (mo- nocamadas, micelas, microemulsıes, cris- tais líquidos liotrópicos, membranas ou vesículas), tambØm soluçıes de polímeros de polieletrólitos ( proteínas e Æcidos nu- cleicos), cristais líquidos termotrópicos (tanto de baixo peso molecular quanto variedades polimØricas) e dispersıes co- loidais. Todos os materiais anteriormente citados constituem fluidos complexos, uma vez que apresentam uma estrutura nªo rígida, mas sim dinâmica, isto Ø, uma estrutura que evolui com o tempo ( Boden, 1994 e 1990). Nas Æreas agrícola e de biotecnologia, a compreensªo dos fenômenos de auto construçªo e auto-organizaçªo de subs- tâncias tensoativas Ø fundamental para a obtençªo de, por exemplo, formulaçıes adequadas de princípios ativos à base de produtos naturais, quer de origem vegetal, quer de origem microbiana, obtidos de processos fermentativos. Isto porque es- sas substâncias sªo ingredientes importan- tes em diversos tipos de formulaçªo (pó molhÆvel, concentrado emulsionÆvel, sus- pensªo concentrada, emulsıes do tipo óleo em Ægua ou Ægua em óleo, microe- mulsıes, entre outros), uma vez que inter- ferem em propriedades físico-químicas importantes do ponto de vista de armaze- namento e aplicaçªo do produto como: molhabilidade, suspensibilidade, capaci- dade de emulsificaçªo, etc. Os tensoativos interferem tambØm em propriedades bio- lógicas quando um microrganismo e/ou seus metabólitos sªo utilizados como in- gredientes ativos. Por exemplo, uma asso- ciaçªo química entre o tensoativo e a membrana do defensivo biológico deve ocorrer para que o organismo apresente uma maior molhabilidade em Ægua. Po- rØm, essa associaçªo química pode causar incompatibilidade e perda de viabilidade ou capacidade antagônica do microrganis- mo. No trabalho de Angus e Luthy (1971) sªo apresentadas revisıes bibliogrÆficas a respeito da compatibilidade de diversos microrganismos: vírus, fungos e bactØrias, frente a diferentes tensoativos em testes de laboratório e de campo. Diversos auto- res, destacando-se o trabalho de Rode e Foster (1960) demonstraram que tensoa- tivos catiônicos e aniônicos afetam de maneira negativa a viabilidade de diversos microrganismos, enquanto estes œltimos mostram-se indiferentes à presença de tensoativos nªo-iônicos. O objetivo deste trabalho Ø fornecer uma revisªo a respeito do comportamento de fase, estrutura e dinâmica dos princi- pais tipos de substâncias tensoativas usu- almente encontradas no mercado. Enfo- que especial serÆ dado à importância da geometria molecular e das interaçıes intra e intermoleculares no processo de auto- organizaçªo e auto-associaçªo de molØcu- las anfifílicas, fatores responsÆveis pela origem de uma grande variedade de estru- Figura 1. Representaçªo esquemÆtica de micelas do tipo: a) esfØricas, b) cilíndricas e c) discóticas. A B C

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30 Biotecnologia Ciência & Desenvolvimento

SUBSTÂNCIASTENSOATIVASPESQUISA

Os fenômenos de autoconstrução e auto-organização de substâncias tensoativas e sua importância na agricultura e em biotecnologia

Mariétte Sueli Baggio BrandãoEmbrapa Meio Ambiente

Ph.D. em Química pela Universidadede Leeds, Inglaterra, onde recebeu o

prêmio J.B. Cohen de 1996/1997 pelamelhor tese de doutorado na escola de

química daquele ano e devido aimportante contribuição ao conheci-

mento na área de físico-química.

ubstâncias tensoativas são in-gredientes importantes emmuitos produtos industriali-zados e possuem um papelde destaque em vários pro-cessos industriais. Além de

sua presença em produtos de limpeza(detergentes, sabões, amaciantes de rou-pa, entre outros) e de higiene pessoal(shampoo, sabonete, pasta de dente, etc.),tensoativos naturais ou sintetizados pelohomem encontram uso em quase todos osramos da produção industrial, como porexemplo: indústrias de alimentos, quími-cas, têxteis, de corantes, de tintas, defibras, de processamento mineral, de plás-ticos, de produtos farmacêuticos e deagroquímicos. Substâncias tensoativas sãotambém vitais em muitos sistemas biológi-cos. Por exemplo, tensoativos conhecidoscomo lipídeos formam o principal compo-nente das membranas celulares, as quaisdevem a estes a sua estrutura.

Estudos de autoconstrução e auto-or-ganização de moléculas tensoativas sãoimportantes tanto do ponto de vista teóri-co quanto prático, uma vez que os modosde ação dessas substâncias dependem dosseus estados de agregação, em várias situ-ações práticas, tais como: em detergência,emulsificação, na recuperação de petró-leo, em biologia celular, entre outros. Abusca da compreensão do fenômeno deautoconstrução e auto-organização desubstâncias tensoativas por meio de estu-dos a respeito do comportamento de fase,estrutura e dinâmica dessas substânciastem sido objeto de estudo de diversosautores (Kunze et al., 1997; van der Lindenet al., 1996; Bergenholtz e Wagner, 1996;Oberdisse et al., 1996; Jóhannesson et al.,1996; Fröba e Kalus, 1995; Petrov et al.,1995;Boden et al.,1995; Boden, 1994; Diat andRoux, 1993; Sein et al., 1993) nos últimosanos. Esses estudos abrem perspectivasque permitem o desenho e a síntese denovos materiais (novos fluidos comple-

xos) os quais se autoconstruam e se auto-organizem em fluidos funcionais previa-mente projetados, possibilitando o apare-cimento de novas aplicações tecnológicas.O termo fluido complexo aqui utilizadoabrange, além de soluções de tensoativoscom estados altamente estruturados (mo-nocamadas, micelas, microemulsões, cris-tais líquidos liotrópicos, membranas ouvesículas), também soluções de polímerosde polieletrólitos ( proteínas e ácidos nu-cleicos), cristais líquidos termotrópicos

(tanto de baixo peso molecular quantovariedades poliméricas) e dispersões co-loidais. Todos os materiais anteriormentecitados constituem fluidos complexos,uma vez que apresentam uma estruturanão rígida, mas sim dinâmica, isto é, umaestrutura que evolui com o tempo ( Boden,1994 e 1990).

Nas áreas agrícola e de biotecnologia,a compreensão dos fenômenos de autoconstrução e auto-organização de subs-tâncias tensoativas é fundamental para aobtenção de, por exemplo, formulaçõesadequadas de princípios ativos à base deprodutos naturais, quer de origem vegetal,quer de origem microbiana, obtidos de

processos fermentativos. Isto porque es-sas substâncias são ingredientes importan-tes em diversos tipos de formulação (pómolhável, concentrado emulsionável, sus-pensão concentrada, emulsões do tipoóleo em água ou água em óleo, microe-mulsões, entre outros), uma vez que inter-ferem em propriedades físico-químicasimportantes do ponto de vista de armaze-namento e aplicação do produto como:molhabilidade, suspensibilidade, capaci-dade de emulsificação, etc. Os tensoativosinterferem também em propriedades bio-lógicas quando um microrganismo e/ouseus metabólitos são utilizados como in-gredientes ativos. Por exemplo, uma asso-ciação química entre o tensoativo e amembrana do defensivo biológico deveocorrer para que o organismo apresenteuma maior molhabilidade em água. Po-rém, essa associação química pode causarincompatibilidade e perda de viabilidadeou capacidade antagônica do microrganis-mo. No trabalho de Angus e Luthy (1971)são apresentadas revisões bibliográficas arespeito da compatibilidade de diversosmicrorganismos: vírus, fungos e bactérias,frente a diferentes tensoativos em testes delaboratório e de campo. Diversos auto-res, destacando-se o trabalho de Rode eFoster (1960) demonstraram que tensoa-tivos catiônicos e aniônicos afetam demaneira negativa a viabilidade de diversosmicrorganismos, enquanto estes últimosmostram-se indiferentes à presença detensoativos não-iônicos.

O objetivo deste trabalho é forneceruma revisão a respeito do comportamentode fase, estrutura e dinâmica dos princi-pais tipos de substâncias tensoativas usu-almente encontradas no mercado. Enfo-que especial será dado à importância dageometria molecular e das interações intrae intermoleculares no processo de auto-organização e auto-associação de molécu-las anfifílicas, fatores responsáveis pelaorigem de uma grande variedade de estru-

Figura 1.Representaçãoesquemática demicelas do tipo:a) esféricas,b) cilíndricas ec) discóticas.

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turas dessas moléculas em soluções aquo-sas, de potencial interesse tecnológico.Entre essas estruturas, especial atençãoserá dada às perspectivas de uso de vesí-culas anfifílicas nas áreas agrícola e debiotecnologia, entre outras.

Sabões convencionais e substânciastensoativas do tipo sabão, como todas asmoléculas anfifílicas, consistem tipicamentede uma porção hidrofílica polar (iônica ounão-iônica), conhecida como �cabeça po-lar�, ligada a uma cadeia hidrocarbônicahidrofóbica. Algumas substâncias anfifíli-cas utilizadas como tensoativos estão indi-cadas na tabela 1. Essas características�opostas� associadas a uma mesma molé-cula conduzem a um fenômeno de autoconstrução das moléculas em soluçõesaquosas diluídas, de maneira a blindar aporção hidrofóbica do meio aquoso aomesmo tempo que expõe a porção polarhidrofilica à água.

A formação de agregados por molécu-las anfifílicas, tais como tensoativos em ummeio aquoso, é favorecida pelo efeitohidrofóbico, enquanto várias outras inte-rações se opõem a isso, o que gera oconceito de forças opostas (Tanford, 1980;Israelachvili, 1992), que agem principal-mente na região interfacial ( interfaceágua-cadeia hidrocarbônica) do agrega-do. Uma força - o efeito hidrofóbico -tende a diminuir a área interfacial pormolécula (a área da cabeça polar) e a outraforça tende a aumentar essa área (sendoesta última muito mais complicada já queresulta de vários tipos de interações, inclu-indo repulsão de hidratação, repulsão ele-trostática entre cabeças polares e intera-ções de impedimento estérico entre asporções polares ou hidrocarbônicas damolécula). Esse conceito sugere que há,nas condições de equilíbrio termodinâmi-co, uma área superficial ótima a

o, em que

a energia de interação por moléculaanfifílica atinge um mínimo. Assumindo-se que cadeias hidrocarbônicas compor-tam-se como fluidos incompressíveis (ouseja, que seu volume v é constante a umatemperatura fixa), então é possível sedefinir um parâmetro adimensional deno-minado �parâmetro de empacotamentocrítico� como v/a

0lc, onde l

c é o compri-

mento efetivo máximo da cadeia, tambémconhecido como comprimento crítico. Umavez especificado o valor desse parâmetropara uma dada molécula anfifílica, épossível se determinar os tipos de agrega-dos nos quais ela poderá se organizar. Atabela 2 ilustra as estruturas usualmenteformadas por sabões, detergentes e fosfo-lipídeos para vários valores de parâmetrosde empacotamento críticos.

Substâncias tensoativas, quando diluí-

das em água, inicialmente tendem a for-mar pequenos agregados denominadosmicelas, acima de uma certa temperatura(ponto �Krafft�), e concentração (concen-tração micelar crítica, cmc). Esses agrega-dos podem assumir diferentes formas, taiscomo: esférica, cilíndrica (também deno-minada bastonete) ou discótica (videfigura 1). A topologia dos agregados de-pende, além da natureza da moléculaanfifílica (conforme ilustra a tabela 2), dascondições da solução (concentração, tem-

peratura, pH, salinidade, entre outras).Essas estruturas são freqüentemente for-madas pela mesma molécula anfifilica,sendo que uma transição de uma formapara outra é muitas vezes induzida poruma simples mudança na concentração dotensoativo em solução. Com o crescenteaumento da concentração de tensoativoem solução, as micelas formadas tendem ase auto-organizarem, dando origem a dife-rentes fases líquido-cristalinas (tambémdenominadas mesofases). Um aumento da

Tabela 1: Exemplos de algumas substâncias tensoativas.

Tensoativos de cadeia simples carga fórmula nomeaniônico C12H25 OSO3

-Na+ Docecilsulfato de sódio (SDS)aniônico C7F15 COO-NH4

+ Pentadecafluorooctanoato de amôniacatiônico C12H25 N+(CH3)3Cl- Cloreto de dodeciltrimetilamôniocatiônico C16H33 N+(CH3)3Br- Brometo de hexadeciltrimetilamônioNão-iônico C12H25 (OCH2CH2)5OH Dodeciléter de pentaoxietileno

Fosfolipídios de cadeias duplas

cabeça polar Cadeia hidrocarbônica nome do fosfolipídio

zwiteriônico (CH2)2N+(CH3)3 diC14: dimeristoil Fosfatidilcolina (lecitina)zwiteriônico (CH2)2NH3

+ diC12: dilauroil FosfatidiletanolaminaOutros tensoativos de cadeia dupla

aniônico C4H9 CH(C2H5)CH2COOCH2

C4H9 CH(C2H5)CH2COOCHSO3-Na+ Aerosol OT

catiônico C16H33

N+(CH3)2Br - Brometo deC16H33 dihexadecildimetilamônio

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concentração de tensoativo no sistemasabão convencional/água conduz a umdiagrama de fase essencialmente univer-sal, o qual é ilustrado esquematicamentena figura 2, em termos de temperatura (T)em função de fração de volume de tenso-ativo (φA). Esse diagrama de fase genéricoindepende da estrutura da cabeça polar damolécula. Mesofases com ordemtranslacional unidimensional (la-melar), bidimensional (hexagonalou retangular) e tridimensional (cú-bica) são formadas, porém fasesnemáticas estão ausentes. A caracte-rística dominante é que a transiçãode uma mesofase para a próximaestá associada a uma mudança dra-mática na topologia do agregado,conforme indica a figura 2.

Diferentemente do que ocorrecom os sabões convencionais, quan-do fosfolipídios (ou outros tensoati-vos iônicos de cadeia hidrocarbôni-ca dupla) são misturados com água,estruturas lamelares organizadas sãoformadas - muitas vezes denomina-das �figuras de mielina� - mesmo abaixas concentrações de tensoativo emágua. Os lipossomas de Bangham são umaforma particular de figuras de mielina, aqual corresponde a sistemas fechados

compostos de bicamadas esferoidais con-cêntricas e coerentes (vide figura 3a).Quando tais estruturas são obtidas pormeio de moléculas anfifílicas sintéticas,usualmente elas são denominadas de �ve-sículas multilamelares� ou �estruturas dotipo cebola�. Além de sistemas vesicula-res multilamelares, vesículas unilamelares

também podem serobtidas. Uma vesícu-la unilamelar clássicaé formada quandouma única bicamadalipídica forma uma es-trutura mais ou me-nos esférica comple-tamente fechada,conforme indica a fi-gura 3b. Um diagra-ma de fase típico ob-servado para molé-culas anfifílicas zwit-teriônicas de cadeiadupla, tais como osfosfolipídios, estáilustrado na figura 4.No caso, essa figurarepresenta o diagra-ma de fase parcial ob-tido para o sistemadimeristoilfosfatidil-colina/água (DMPC/água). A partir dessafigura, observa-seque a altas concen-trações de DMPC,uma fase lamelar pura- Lα - é formada, naqual as cadeias hi-drocarbônicas ado-tam uma conforma-

ção fluida (semelhante a um líquido). Àmedida que se aumenta o conteúdo deágua no sistema, mais água é incorporadaentre as lamelas a fim de reduzir a repulsãoentre as porções polares das bicamadas.Esse entumescimento continua até que asbicamadas lipídicas atinjam uma certa dis-tância entre si, que permite a ocorrência de

um balanço entre suas forças atrati-vas e repulsivas. Além do chamado�limite de hidratação�, o excesso deágua introduzido no sistema não podemais ser incorporado entre as cama-das lamelares e uma solução isotrópi-ca se forma ( a qual contém o excessode água introduzido no sistema) emequilíbrio com a fase lamelar, dandoorigem a uma região bifásica nosistema, aqui representada por: Lα +água . A presença de uma regiãobifásica - solução isotrópica/fase la-melar - em uma grande faixa deconcentração e temperatura , é carac-terística dessas substâncias anfifilicas(fosfolipídios), onde a geometria doagregado é controlada por conside-rações sobre seu empacotamento e a

transição para uma fase lamelar pura édeterminada por interações interagrega-dos. Conforme indicado na figura 4, fos-folipídios como DMPC formam vesículas

Tensoativos de cadeia simples comáreas de cabeça polar pequenas(ex.: SDS em presença de altos teoresde sal)

Tensoativos de cadeias duplas comáreas de cabeça polar pequenas(ex.: fosfatidiletanolamina)

Tensoativos de cadeia simples comáreas de cabeça polar grandes(ex.: SDS em presença de baixos teoresde sal)

Tensoativos de cadeias duplas comáreas de cabeça polar grandes(ex.: fosfatidilcolina)

Tensoativos de cadeias duplas comáreas de cabeça polar pequenas(ex.: fosfatidiletanolamina)

Tabela 2. Formas de empacotamento possíveis para moléculas de substâncias tensoativas em função de diferen-tes valores do parâmetro de empacotamento crítico. Adaptado de Israelachvili, 1992.

Tensoativo Parâmetro de Forma do Estruturas formadasempacotamento empacotamentoCrítico (v/a01c) Crítico

< 1/3

1/3-1/2

1/2-1

≈1

>1

Cone

Cone truncado

Cone truncado

Cilindro

Cone truncado invertido

Micelas esféricas

Micelas cilíndricas

Bicamadas flexíveis, vesículas

Bicamadas planares

Micelas inversas

Figura 2. Diagrama de fase esquemático(Fração de volume de tensoativo φAversus Temperatura T) para umtensoativo do tipo sabão em água.

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na região bifásica (Lα + água) quando afase lamelar clássica Lα é dispersa nasolução isotrópica diluída de DMPC. Ain-da se considerando o diagrama de fase dosistema DMPC/água, observa-se que umaestrutura lamelar com cadeias hidrocarbô-nicas mais rígidas (com uma conformaçãodo tipo sólida), denominada Lβ

c, ocorre a

baixas temperaturas e altas concentraçõesde DMPC . Essa estrutura é muitas vezesdenominada gel, a qual tem uma organiza-ção de bicamadas lipídicas paralelas entresi, onde as cadeias hidrocarbônicas seencontram completamente estendidas,porém inclinadas com relação ao planonormal da bicamada, mas empacotadasem um retículo quase hexagonal distorci-do. A estrutura Pβ

c, indicada na figura 4,

consiste de lamelas (formadas por bicama-das lipídicas) distorcidas por uma ondula-ção periódica no plano das lamelas, ondeas cadeias hidrocarbônicas são rígidas einclinadas porém parecem estar empaco-tadas em um retículo hexagonal regular,de acordo com Turnbull (1990).

Uma característica interessante dos fos-folipídios, que merece atenção, é que aose reduzir o comprimento da cadeiahidrocarbônica de tais moléculas, es-truturas vesiculares estáveis passam anão ser mais obtidas no sistema. Noseu lugar, micelas cilíndricas ou esfé-ricas passam a ser as estruturas prefe-ridas, conforme observado, para leci-tinas de cadeia dupla com 12 oumenos átomos de carbono por ca-deia. Isso pode ser racionalizado emtermos do efeito da cadeia hidrocar-bônica no �modulus de curvatura� daestrutura da bicamada ( Israelachvili,1992). Por exemplo, as micelas para osistema binário C8-lecitina/água fo-ram identificadas como sendo do tipocilíndrico por Tausk et al. (1974), e foiobservada a ocorrência de uma sepa-ração de fase líquido-líquido (muitasvezes denominada ponto de névoa -�cloud-point�) exibindo um pontocrítico superior, ao ser construído odiagrama de fase deste sistema.

Grande número de pesquisadores tem-se dedicado ao estudo das propriedadesfísico-químicas de lipossomos desde a suadescoberta em 1965 (Bangham, 1983).Desde aquela data até os dias de hoje, odesenvolvimento e a diversificação demodelos de membrana a partir de liposso-mos têm sido fascinantes. Eles têm sidoutilizados como membranas- modelo paraação anestésica, �leitos- teste� para enzi-mas de membranas, carregadores de mate-riais encapsulados para o interior de célu-las, como barreiras contra invasões devírus e bactérias, antígenos para serem

atacados por anticorpos anti-lipídios, li-gantes para drogas, substratos para testarcanais iônicos, sistemas para liberação dedrogas na área médica ou veterinária(Carmona-Ribeiro, 1992).

A partir de 1976, sistemas compostos

de moléculas anfifílicas sintéticas iônicascom cadeias hidrocarbônicas duplas e lon-gas, que imitam membranas, foram pro-postos dando origem a vesículas anfifílicassintéticas. De acordo com suas dimensõesas vesículas podem ser classificadas como:a) pequenas: cujo tamanho varia de 0,02 a

0,1 µm, b) grandes : com diâmetro varian-do de 0,1 a 1 µm e c) gigantes: comdiâmetro de até 50 µm (Lasic, 1988). Aocorrência de vesículas grandes é relatadana literatura para uma grande variedade desubstâncias tensoativas; contudo, usual-mente, métodos mais sofisticados que ométodo convencional, baseado na sonifi-

cação ou dispersão de uma fase lamelar Lαnuma solução isotrópica diluída de tenso-ativo, são aplicados para originar essasestruturas em solução, tais como o métodode injeção ( Lasic, 1988; Carmona e Chai-movich, 1983) e o método e depleção dedetergente ( Lasic, 1988; Nozaki et al.,1982). A formação espontânea de estrutu-ras vesiculares é também relatada naliteratura por diversos autores ( Talmon,1983; Ninham et al., 1983; Hoffmann et al.,1992) para certos lipídios biológicos, bemcomo para tensoativos sintéticos e suasmisturas. De acordo com Talmon (1983) eNinham et al.(1983), o tensoativo sintéticocom cabeça polar carregada � hidróxidode didodecildimetilamônio � organiza-seespontaneamente em vesículas unilamela-res termodinamicamente estáveis em água,as quais são monodispersas e pequenascom um diâmetro médio de 300 Å. Atribui-se a espontaneidade à formação de vesí-culas por este último tensoativo, ao fato deque seus grupos OH

- encontram-se extre-

mamente solvatados, dando origem a gran-des áreas de cabeça polar em comparaçãocom outros grupos, como brometo ou

cloreto, e isso favorece a curvatura dabicamada e conduz à formação devesículas. Kaler et al.(1989) relatarama ocorrência de formação espontâ-nea de vesículas em misturas aquo-sas de tensoativos de cadeias simplesaniônicos e catiônicos ( por exem-plo: dodecilbenzenosulfonato de só-dio e tosilato de cetiltrimetilamônio).Acredita-se que a estabilidade de taisestruturas, nesse caso, é causada poruma diferença na razão de misturados dois surfactantes em cada mono-camada da bicamada lipídica, o queproporciona um modo de controlar acurvatura dessa bicamada de maneiraque a fase vesicular tenha uma menorenergia livre que a fase lamelar(Safran et al., 1990).

Um exemplo interessante do usode tensoativos estruturados na formade vesículas é encontrado na área de

pesquisa de pesticidas. A pressão de gru-pos de ecólogos em prol do ambiente emque vivemos tem demandado a remoçãode alguns solventes prejudiciais à saúdehumana e ao ambiente de certas formula-ções de alguns pesticidas (sobretudo aque-las do tipo concentrado emulsionável).Porém, muitas formulações convencio-nais à base de água para princípios ativosinsolúveis ou pouco solúveis nesse meio,têm se mostrado ineficientes, exibindobaixa atividade, tempo de armazenamentonão adequado para fins de comercializa-ção dos produtos (vida de prateleira ruim)e/ou alta viscosidade. Para contornar

Figura 3. Ilustração esquemática de:a) uma vesícula multilamelar eb) uma vesícula unilamelar.

Figura 4. Diagrama de fase parcialdo sistema dimeristoilfosfatidilcolina/água (DMPC/água). Adaptado deJaniak et al. (1979) e Turnbull(1990).

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esses problemas, uma formulação à basede tensoativos estruturados é citada naliteratura ( Newton et al., 1993), e consisteem uma suspensão de um pesticida sólidoinsolúvel em uma solução aquosa quecontenha um tensoativo estruturado. Nessetipo de formulação, estão presentes vesícu-las multilamelares (algumas vezes tambémdenominadas de esferulitos) (vide figura5). De acordo com Newton et al. (1993), aspartículas de pesticidas estão suspensasentre os esferulitos (vide figura 5) e sãoassim impedidas de sedimentar. Desde queos esferulitos (ou vesículas) são deformá-veis, a formulação escoa facilmente. Por-tanto, formulações à base de tensoativosestruturados têm propriedades reológicasexcepcionais, combinando baixa viscosi-dade com boa estabilidade e longa vida deprateleira. Quando possível, os tensoativossão escolhidos para aumentar a molhabili-dade e penetração dos pesticidas nos seusalvos, assim melhorando sobremaneira suaatividade biológica. Formulações à base detensoativos estruturados são aplicáveis auma grande variedade de herbicidas, fun-gicidas e inseticidas.

Agradecimentos:

A autora deste trabalho agradece abolsa de estudos, modalidade: Doutoradono Exterior, concedida pelo CNPq (Subprograma Biotecnologia-RHAE), que per-mitiu a pesquisa que deu origem a esteartigo.

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Figura 5. (a) esferulito, (b) formula-ção contendo um tensoativo estrutu-rado (adaptado de Newton etal.,1993).