SUBJETIVIDADE DOS MÉDICOS EM FORMAÇÃO E … · da Pediatria do Hospital Federal dos Servidores...
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE
INSTITUTO DE ESTUDOS DE SAÚDE COLETIVA
PAULO JORGE DICKSTEIN
SUBJETIVIDADE DOS MÉDICOS
EM FORMAÇÃO
E A PRÁTICA PEDIÁTRICA
Rio de Janeiro
2015
PAULO JORGE DICKSTEIN
SUBJETIVIDADE DOS MÉDICOS EM FORMAÇÃO E A PRÁTICA PEDIÁTRICA
Tese de Doutorado apresentada ao Instituto de
Epidemiologia e Saúde Coletiva, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, como requisito
parcial à obtenção do título de Doutor em
Saúde Pública.
Orientadora: Profª. Drª. Lígia Bahia
Coorientador: Prof. Dr. Julio Verztman
Rio de Janeiro
2015
D554 Dickstein, Paulo Jorge.
Subjetividade dos médicos em formação e a prática pediátrica / Paulo
Jorge Dickstein. – Rio de Janeiro: UFRJ / Instituto de Estudos em Saúde
Coletiva, 2015.
156 f.; 30 cm.
Orientador: Lígia Bahia.
Coorientador: Julio Verztman.
Tese (Doutorado) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de
Estudos em Saúde Coletiva, Programa de Pós-Graduação em Saúde
Coletiva, 2015.
Referências: f. 151-156.
1. Pediatria. 2. Cuidado da criança. 3. Internato e residência. 4. Terapia
Psicanalítica. I. Bahia, Ligia. II. Verztman, Julio. III. Universidade Federal
do Rio de Janeiro, Instituto de Estudos em Saúde Coletiva. IV. Título.
CDD 618.92
À Beatriz, que, desde que nos conhecemos,
enfeita o meu caminho.
Aos meus filhos André, Ricardo e Gabriel,
companheiros sempre.
AGRADECIMENTOS
Não poderia iniciar esses agradecimentos por outra pessoa que não Lígia Bahia. Desde
que nos conhecemos, Lígia sempre foi minha orientadora. Mais uma vez ela se apresenta para
mim com delicadeza, lucidez e amizade.
Se o trabalho teve méritos devo dividi-los com o meu coorientador Júlio Verztman e
sua esposa Daniela Romão. Júlio lapidou com generosidade e competência um material bruto
de um doutorando cru e um pouco teimoso. À Daniela, por sua expertise na área de
metodologia em pesquisa qualitativa, devo o arcabouço de toda a pesquisa.
Já dediquei a tese à minha querida esposa Beatriz Pinheiro de Andrade. Entretanto,
Beatriz ainda se dispôs a realizar as entrevistas. A fartura do material narrativo obtido se
deveu tão somente à sua lhaneza e afabilidade.
O trabalho que realizo com os residentes de pediatria teve o apoio do Chefe de Serviço
da Pediatria do Hospital Federal dos Servidores do Estado na época, Gil Simões Batista. Ao
invés de copiar um modelo, Gil, durante a sua gestão, optou por apostar nas pessoas que
tinham sonhos. Tive a sorte de encontrar esse espaço. A continuidade do trabalho com os
residentes conta hoje com o apoio da atual Chefe de Serviço, Glória Reis Velloso.
Agradeço aos residentes que se dispuseram a participar das entrevistas. Como será
descrito no trabalho, alguns modelos para trabalhar com os residentes foram tentados ao longo
dos anos. O seu modelo inicial foi baseado na Observação da Relação Mãe-Bebê, como
proposto por Esther Bick. Portanto, o “pontapé inicial” foi dado sob a generosa supervisão da
psicanalista Rosa Sender Lang e com o apoio do grupo de residentes que participou desses
encontros ainda no consultório de Rosa.
Os primeiros passos em direção à psicanálise foram estimulados e orientados por
Maria Ivone Accioly Lins, a quem muito agradeço.
Agradeço ao Jurandir Freire Costa, Benilton Bezerra Jr. e todo o grupo PEPAS pelo
acolhimento recebido. Muitos das referências dessa tese se devem às discussões com o grupo.
Agradeço a contribuição da Rachel Aisengart Menezes que participou da minha banca
de qualificação com zelo e carinho. Infelizmente não pode estar presente na defesa da tese.
Ao meu analista Orlando Galvão, que me ajuda a transformar certezas e dúvidas.
RESUMO
DICKSTEIN, Paulo Jorge. Subjetividade dos médicos em formação e a prática pediátrica. Rio
de Janeiro, 2015. Tese de Doutorado. Instituto de Epidemiologia e Saúde Coletiva,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.
Esse estudo buscou refletir sobre o zelo apostólico entre pediatras em formação. Foram
realizadas duas entrevistas com oito residentes de pediatria com foco nas questões
relacionadas à puericultura. A primeira entrevista foi realizada antes de uma intervenção que
consistiu em reuniões individuais ou com dois residentes, diárias, durante o período de um
mês. Partindo das concepções teóricas de W.D. Winnicott, eram discutidas as questões
relacionadas à subjetividade envolvidas na prática pediátrica com um supervisor (autor do
trabalho). Quatro meses depois, uma segunda entrevista foi realizada para proporcionar
reflexões sobre modificações que pudessem ter ocorridas nos conceitos dos residentes sobre a
prática. Seguiu-se o Método de Explicitação do Discurso Subjacente (MEDS) no Campo da
Pesquisa Qualitativa em que as entrevistas são realizadas com uma mescla de perguntas
abertas e outras específicas. Foram utilizados os conceitos psicanalíticos ao campo
transferencial para análise do material. A pesquisa revelou que as idealizações dos residentes
em relação as mães, os bebês e a maternidade estão na origem do zelo apostólico nos
pediatras. Houve um grupo de residentes que imaginam que as mães comuns não falham.
Mesmo o grupo que podia conceber que as mães comuns falham, tinha dificuldades em
separar essas mães daquelas que colocam em risco a saúde e o desenvolvimento de seus filhos.
O trabalho na linha balintiana provocou reflexões sobre o zelo apostólico entre os
participantes da pesquisa. Em alguns casos, pode-se observar modificações nos discursos
sobre a prática, notando-se mais espaço para a subjetividade e uma maior disposição para uma
relação mais empática com as mães na consulta pediátrica.
Palavras-chave: Pediatria. Zelo apostólico. Balint.
ABSTRACT
DICKSTEIN, Paulo Jorge. Subjectivity of doctors in training and pediatric practice. Rio de
Janeiro, 2015. Tese de Doutorado. Instituto de Epidemiologia e Saúde Coletiva, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.
This study sought to reflect on the apostolic zeal among pediatricians in training. Two
interviews were done with eight pediatric residents focused on issues related to childcare. The
first interview was conducted prior to an intervention that consisted of individual or two
residents meetings, daily, for a period of one month. Starting from the theoretical concepts of
W.D. Winnicott, were discussed issues related to the subjectivity involved in pediatric practice
with a supervisor (author of the research). Four months later, a second interview was
conducted to provide reflections on changes that may have occurred in the concepts of
residents about the practice. This was followed by the Explanation Method Underlying
Discourse (MEDS) in the Field of Qualitative Research in which interviews are carried out
with a mixture of open and specific questions. Psychoanalytic concepts to the transference
field for analysis of the material were used. The survey revealed that the idealizations of
residents regarding the mothers , babies and motherhood are the source of apostolic zeal in
pediatricians. There was a group of residents who has difficulty imagining that ordinary
mothers do not fail. Even the group that could conceive that ordinary mothers do fail, had
difficulty separating these mothers of those who endanger the health and development of their
children. Work on balintian line provoked reflections on the apostolic zeal among survey
participants. In some cases, one could observe changes in the discourse about the practice,
noting more room for subjectivity and a greater willingness for a more empathic relationship
with their mothers in the pediatric consultation.
Keywords: Pediatrics. Apostolic zeal. Balint.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 8 1.1 ESTRANHOS EM UMA ENFERMARIA DE PEDIATRIA ......................................................... 8 1.2 INTERESSE POR ASPECTOS DA SUBJETIVIDADE NA PRÁTICA PEDIÁTRICA .......... 10 1.3 PREOCUPAÇÃO MATERNA PRIMÁRIA E A PEDIATRIA ................................................... 11 1.4 PRIMEIRA EXPERIÊNCIA DA PSICANÁLISE ENTRE MÉDICOS PEDIATRAS EM FORMAÇÃO ................................................................................................................................................... 13 1.5 SEGUNDA EXPERIÊNCIA DA PSICANÁLISE ENTRE MÉDICOS PEDIATRAS EM FORMAÇÃO ................................................................................................................................................... 16
1.5.1 A RESIDÊNCIA DE PEDIATRIA NO HSFE .......................................................................................... 16 1.5.2 CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS QUE FORMARAM A ESTRUTURA E A DINÂMICA DA ATIVIDADE COM OS RESIDENTES ................................................................................................................. 18 1.5.3 O SETTING ..................................................................................................................................................... 22 1.5.4 A DINÂMICA ................................................................................................................................................. 22
1.6 DA PSICOSSOMÁTICA AOS ESTUDOS DE BALINT .................................................................... 32 1.7 MICHAEL BALINT, MÉDICO, PSICANALISTA REVOLUCIONÁRIO OU EDUCADOR?........ 34
2 AS HIPÓTESES ......................................................................................................................... 45 2.1 BREVE HISTÓRICO DA PUERICULTURA: DA DEMANDA SOCIAL E POLÍTICA À ORDEM MÉDICA .......................................................................................................................................................... 45 2.2 O ESTADO DA ARTE DA PUERICULURA....................................................................................... 47 2.3 O ZELO APOSTÓLICO DE BALINT NA PRÁTICA PEDIÁTRICA ............................................... 48 2.4 FORMULAÇÃO DAS HIPÓTESES ..................................................................................................... 49
3 OBJETIVOS .................................................................................................................................... 50 3.1 OBJETIVO GERAL ................................................................................................................................ 50 3.2 OBJETIVOS ESPECÍFICOS .................................................................................................................. 50
4 METODOLOGIA ............................................................................................................................ 51 4.1 MÉTODO DE COLETA DE DADOS E ANÁLISE .............................................................................. 51 4.2 PERGUNTAS PREPARADAS PARA A PRIMEIRA ENTREVISTA ............................................. 52 4.3 PERGUNTAS PREPARADAS PARA A SEGUNDA ENTREVISTA .............................................. 54 4.4 ANÁLISE DO MATERIAL DAS ENTREVISTAS .............................................................................. 55
5 RESULTADOS ............................................................................................................................... 56 5.1 PRIMEIRA ENTREVISTA.................................................................................................................... 56
5.1.1 PERGUNTAS 1 E 2: A ESCOLHA PROFISSIONAL ........................................................................... 56 5.1.2 PERGUNTAS 3 E 4: A EXPERIÊNCIA PROFISSIONAL .................................................................. 58 5.1.3 PERGUNTAS 5 E 6: POSSÍVEIS ORIGENS DO ZELO APOSTÓLICO – DO QUE GOSTA E DO QUE NÃO GOSTA NA PEDIATRIA ................................................................................................................... 59 5.1.4 PERGUNTAS 7 E 8: CONCEPÇÕES À RESPEITO DA PUERICULTURA ................................... 63 5.1.5 PERGUNTAS 9 E 10: A PRÁTICA E O ZELO APOSTÓLICO ......................................................... 68 5.1.6 PERGUNTA 11: RELAÇÃO DE CONFIANÇA ..................................................................................... 77 5.1.7 PERGUNTA 12: CONHECER A VIDA ÍNTIMA DA FAMÍLIA ........................................................ 81 5.1.8 PERGUNTA 13: RELAÇÃO ENTRE DOENÇAS ORGÂNICAS E VIDA AFETIVA .................... 87 5.1.9 PERGUNTA 14: ENCAMINHAMENTO AOS MÉDICOS DA ÁREA “PSI” .................................. 89 5.1.10 PERGUNTA 15, 16 E 17: MÉDICOS COMO PACIENTES ............................................................ 95 5.1.11 PERGUNTA 18: O PEDIATRA QUE DESEJARIAM SE TORNAR ............................................ 101
5.2 SEGUNDA ENTREVISTA .................................................................................................................. 105 5.2.1 PERGUNTAS 1, 2, 3 E 4: REFLEXÕES, MUDANÇAS NA POSIÇÃO DO MÉDICO FRENTE ÀS MÃES E CRÍTICAS À INTERVENÇÃO ..................................................................................................... 106
6 DISCUSSÃO ................................................................................................................................. 127 6.1 A FUNÇÃO APOSTÓLICA................................................................................................................. 127 6.2 A FUNÇÃO APOSTÓLICA E OS PEDIATRAS .............................................................................. 130
6.3 O AMBIENTE TERAPÊUTICO E A AUSÊNCIA DO ZELO APOSTÓLICO: A SEGUNDA FASE DAS PESQUISAS BALINTIANAS E AS SEGUNDAS ENTREVISTAS .............................................. 136 6.4 OS LIMITES DA PESQUISA ............................................................................................................. 141 6.5 RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE E A RELAÇÃO ENTRE PSICANÁLISE E MEDICINA HOJE ....................................................................................................................................................................... 142 6.6 UM CAMINHO PARA AS PESQUISAS BALINTIANAS .............................................................. 148
7 CONCLUSÃO ............................................................................................................................... 148
8 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................................... 151
8
No entanto, ó, sombras, sois mais presságios do que
advertências! E, mesmo, assim, menos presságios exteriores do
que confirmações de coisas precedentes que se passam dentro
de nós. Porque, com poucas coisas externas a nos compelir, são
as necessidades íntimas de nosso ser que continuam a nos
guiar.
Herman Meville
O diabo não há! (...) Existe é homem humano.
Guimarães Rosa
1 INTRODUÇÃO
1.1 ESTRANHOS EM UMA ENFERMARIA DE PEDIATRIA
Toda pesquisa parte da formulação de perguntas que devem ser respondidas. Antes da
elaboração das perguntas, porém, esse trabalho se iniciou a partir de conflitos internos
experimentados na prática médica. Ao longo de minha atividade clínica como pediatra tomei
consciência do desconforto que a atividade profissional de consultório me gerava. As queixas
das mães me pareciam inapropriadas e eram quase sempre sentidas como fora de hora e de
lugar. Como conciliar a ideia de ser médico e querer ajudar o próximo com as dificuldades de
tolerá-lo? Essas questões foram elaboradas durante um longo tempo. E, porque não dizer,
ainda estão em processo de elaboração.
Trabalhando diariamente numa enfermaria de pediatria ao lado de muitos colegas e
residentes, fui me dando conta que esses conflitos não eram um assunto que dizia respeito
apenas a mim, mas se estendia a quase toda a equipe. Ouve-se reclamações das mães; muitas
são estigmatizadas de uma maneira constrangedora para o observador de fora. Não se poderia
simplesmente dizer que os médicos são ruins e preconceituosos, mas era preciso compreender
esse fenômeno – um conflito entre pediatras e mães – de maneira mais profunda. Dei-me
conta que poderia ocupar a posição de um observador privilegiado dentro de uma enfermaria
de pediatria.
Comecei então a observar o meu entorno. Chamava a atenção a decoração dos
corredores. São fotos bastante conhecidas de bebês saudáveis e sorridentes em vasos de flores.
Eram fotos bonitas, mas não expressavam também uma idealização do bebê? Por trás de um
9
bebê ideal não deveria haver uma mãe ideal? Andando pelos corredores e chegando aos
aposentos dos residentes as decorações não se modificavam. Os escaninhos eram preenchidos
pelos mesmos tipos de representações. Eram fotos das crianças e das mães que poderiam ser
comparadas às representações iconográficas de Nossa Senhora e o menino Jesus. Estavam ali
também presentes, na intimidade dos residentes, a busca de uma mãe e um bebê idealizados e
a própria idealização da pediatria. Trinta passos adiante: a realidade. Os choros e as doenças.
As injeções, os medos. Mas não apenas isso, o desgaste, a desesperança e o vazio também
podiam ser observados. Eram crianças chorando sem as mães presentes; ou presentes, mas já
sem que se pudesse notar em suas faces a angústia esperada de uma mãe que vê seu filho
chorando. Ocasionalmente, as grades dos leitos são esquecidas abaixadas, talvez por médicos,
talvez pelas enfermeiras ou pelas próprias mães. E passavam desapercebidas por todos. Enfim,
era evidente um contraste entre a maternidade idealizada e a maternidade como ela se
apresentava de fato.
O contraste mencionado nos aspectos visuais dentro e fora das enfermarias também
podia ser notado nas conversas dentro e fora das enfermarias. Nos locais reservados para os
residentes, as mães eram, com frequência, fartamente depreciadas, ficando muito distantes de
uma maternidade idealizada.
Nessa época ocorria um convênio entre o grupo dos Doutores da Alegria e o Serviço de
pediatria que passou a chamar a minha atenção. Os Doutores da Alegria são palhaços que vêm
trazer alegria para as crianças internadas. Errado! Ao observar dois profissionais excepcionais
que trabalhavam nessa ocasião pude perceber quão limitada era essa definição. Esses
profissionais não traziam alegria, mas interagiam com a parte alegre e saudável das crianças.
As crianças e as mães não eram apenas pacientes, eram crianças que estavam doentes e eram
também cheias de esperança e alegria. Eram cheias de vida.
Exemplifico com um caso. Passávamos pela enfermaria os dois “colegas” e eu. Era por
volta de meio-dia. A essa hora os “rounds” já estão terminados e já não há mais quase
médicos circulando pelos corredores. Eles estão terminando de preencher as prescrições,
exames e prontuários em uma sala distante e se preparam para a hora do almoço antes das
atividades da tarde. As enfermarias estavam vazia. Já no final do corredor um quadro
tenebroso: uma adolescente esguia, muito magra e cega das duas vistas estava deitada,
desacompanhada, em seu quarto. A adolescente estava em tratamento para um câncer e tinha
perdido a visão em função da doença. Ela estava no soro e a bomba de infusão apitava
continuamente e não havia ninguém para lhe socorrer. O barulho agudo e repetitivo era
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enlouquecedor, pois denunciava toda a desesperança e a solidão que ela se encontrava. Se eu
estivesse sozinho, talvez me desviasse e fingisse que não ouvia esse chamado, já cansado de
tanto sofrimento; afinal isso era problema da enfermagem. Mas eu estava bem acompanhado.
Os “colegas” portavam seus instrumentos. Não eram instrumentos médicos, levavam uma
flauta e um bandolim. Entraram no quarto e disseram um para o outro:
- Dr. Socó, você está ouvindo que tem uma música aqui?
- É mesmo, parece que a moça gosta de música, né?
- Parece mesmo! Pois então, Dr., vamos fazer um pagode, e é aqui mesmo!
Eles deram um ganzá para a menina e criaram uma melodia a partir do “ritmo” do
alarme da bomba. Nesse momento começou um pagode. A moça era bastante musical e
entrou na brincadeira e ria, revirando o corpo e o seu instrumento com graça e harmonia.
Ninguém curou nada, ninguém consertou nada, mas foi um momento divino. Os “colegas”
não tinham medo da doença e da morte como eu. Não estavam preocupados com a saúde, mas
com a vida que estava bem ali em frente. Dali foram para outros leitos e em cada encontro o
mesmo se repetia. A vida e a alegria jorravam com uma força desconcertante.
Esses palhaços não conheciam apenas os pacientes internados melhores do que a gente.
Conheciam-nos também. Os palhaços, como bons artistas, nos representavam em seus
esquetes para o riso e o gozo dos pacientes. E eu pude me ver e ver a todos nós médicos em
papéis ridículos, mais sérios do que o necessário, mais dramáticos do que o necessário, mais
assustadores do que o necessário, mais tristes, mais agourentos, mais exigentes do que o
necessário.
1.2 INTERESSE POR ASPECTOS DA SUBJETIVIDADE NA PRÁTICA
PEDIÁTRICA
O Hospital Federal dos Servidores do Estado (HFSE) teve um papel pioneiro na
implantação da residência médica no Brasil. O Serviço de Pediatria desse hospital foi
precursor na formação do médico residente na especialidade e manteve-se desde então
identificado com a formação do pediatra. Desde 1980 trabalho como médico pediatra nesse
Serviço. Durante muitos anos trabalhei como pneumologista pediátrico e mantive-me sempre
próximo às funções da preceptoria da residência médica. A residência em pediatria no HFSE,
assim como na maioria dos hospitais, privilegia os pacientes internados sobre os
11
ambulatoriais. Os chefes de setores de subespecialidade, por exemplo, estão todos os dias nas
enfermarias e atendem no ambulatório uma a duas vezes na semana. É notória a mobilização
de funcionários, recursos materiais e tecnológicos nas enfermarias enquanto os ambulatórios
são pouco frequentados pelo “staff”. Deve ser significativo que a sala da chefia do Serviço, as
salas de reunião onde ocorrem todas as atividades científicas se situem no terceiro andar
junto às enfermarias. Os ambulatórios funcionam em um prédio anexo.
A vida hospitalar, as atividades clínicas e de ensino me entusiasmavam. Sentia-me bem
adaptado, satisfeito no exercício de minhas funções profissionais. Eu também privilegiava os
pacientes internados e os “rounds” com as discussões clínicas que ocorriam à beira de leito.
Porém, o mesmo não acontecia em minha atividade privada, no consultório. Sentia-me
incomodado com as queixas e os sofrimentos expressos pelas mães que tinham filhos, em
geral, absolutamente saudáveis. Parecia então que eu lidava com duas medicinas distintas.
Em uma eu me sentia apto a lidar com os desafios. Na outra, no consultório eram trazidas
questões que eu lidava de forma intuitiva, pois me faltavam as bases teóricas. Aos poucos,
esses pensamentos foram me causando desconforto, a tal ponto que iniciei alguns estudos
sobre o desenvolvimento emocional do bebê. Ao me deparar com os escritos de Winnicott
senti necessidade de entrar em contato com alguém que pudesse me ajudar a compreender o
autor. Assim comecei a participar de grupos de estudo com Dra. Maria Ivone Accioly Lins,
psicanalista, membro fundadora do já extinto Espaço Winnicott. O grupo era composto por
psicólogos e psicanalistas experientes que abordavam temas distantes da pediatria. Propus a
Ivone que fizéssemos alguns encontros sobre os meus atendimentos pediátricos, que ela
prontamente aceitou. Esses encontros foram de grande auxílio para que eu pudesse voltar às
leituras dos trabalhos de Winnicott por conta própria, além de me servir de inspiração para
construir um trabalho junto aos residentes de pediatria.
1.3 PREOCUPAÇÃO MATERNA PRIMÁRIA E A PEDIATRIA
As leituras da obra de Winnicott se iniciaram pelo livro A mãe e seus bebês.
Exemplifico com um pequeno trecho retirado de uma de suas conferências para que se possa
apreciar o discurso simples e direto do autor que causa surpresa para o pediatra:
Trata-se de levar médicos e enfermeiras a compreenderem que, se por um lado são
necessários, e muito, quando as coisas vão mal do ponto de vista físico, por outro
eles não são especialistas nas questões relativas à intimidade, que são vitais tanto
para a mãe quanto para o bebê. Se começarem a dar conselhos sobre essa
12
intimidade, estarão pisando em solo perigoso, pois nem a mãe, nem o bebê,
precisam de conselhos (WINNICOTT, 1999, p. 22).
Porém, foi o conceito da preocupação materna primária que abriu um novo campo de
conhecimento e causou-me grande impacto. A preocupação materna seria a etapa inaugural
do desenvolvimentos biopsíquico do bebê. Podemos apreciar que já não estamos falando
mais de um desenvolvimento biológico. Se para a biologia o inaugural é o desenvolvimento
do embrião, na visão winnicottiana deveria haver uma concomitância entre esse evento
biológico e o desenvolvimento de um estado psicológico na mãe. Em seu artigo A
preocupação materna primária, de 1956, o autor descreve esse estado:
Gradualmente, esse estado passa a ser o de uma sensibilidade exacerbada durante e
principalmente ao final da gravidez.
Sua duração é de algumas semanas após o nascimento do bebê.
Dificilmente as mães o recordam depois que o ultrapassaram.
Eu daria um passo a mais e diria que a memória das mães a esse respeito tende a ser
reprimida (WINNICOTT, 2000, p. 401).
Essa condição seria como se estivesse ocorrendo uma doença na mãe, uma vez que ela
passa a se retrair e se retirar do mundo. Isso se dá para que ela possa abrir espaço subjetivo
em sua vida para a chegada desse bebê. Diz o autor que esse estado seria uma doença caso
não houvesse um bebê em sua barriga. Naturalmente, isso resultará em ações concretas e a
preparação para a chegada do bebê. Winnicott descreve assim uma sintonia entre
subjetividade e objetividade inaugural que resultará no bom desenvolvimento do bebê.
Não acredito que seja possível compreender o funcionamento da mãe no início
mesmo da vida do bebê sem perceber que ela deve alcançar esse estado de
sensibilidade exacerbada, quase uma doença, e recuperar-se dele (WINNICOTT,
2000, p. 401).
O autor explica porque alcançar essa condição é fundamental: “Somente no caso de a
mãe estar sensível do modo como descrevi poderá ela sentir-se no lugar do bebê, e assim
corresponder às suas necessidades” (WINNICOTT, 2000, p. 403).
Começou a ficar compreensível porque as informações dadas por algumas mães eram
absolutamente confiáveis. Qualquer pediatra já teve a experiência de atender uma criança
cuja mãe é capaz de antecipar que o filho está doente, mesmo quando ainda não há sinais
clínicos perceptíveis. São aforismas transmitidos na especialidade: “é melhor acreditar na
mãe!” Outras mães, porém, não sabem por que seus filhos choram, não sabem se estão
doentes, com fome ou se é manha. Amamentam e não sabem que não há produção de leite
suficiente, podendo chegar a um quadro de desnutrição da criança sem que as mães sejam
capazes de perceber o que está se passando. O conceito winnicottiano trazia uma luz para
explicar essas disparidades vividas pelos pediatras todos os dias em seus consultórios. A mãe
13
que experimentava a preocupação materna primária alcançava um estado de regressão1 e uma
conexão sensível e profunda com o seu corpo e com o seu bebê. Uma conexão de natureza
subjetiva. Aquelas que não conseguiam essa regressão não poderiam saber o que se passava
com o seu corpo e com seus filhos e, portanto, não saberiam como atuar. Para essas mães, os
encontros com seus filhos eram de natureza mais racional e toda a maternidade era uma
experiência mais angustiante.
Esse conceito poderia modificar os paradigmas da puericultura. Primeiro porque agora
os cuidados efetivos da maternidade poderiam ser entendidos em conjunto com a
subjetividade. Em segundo lugar, o foco da puericultura não poderia mais ser a criança, mas a
mãe e o binômio mãe-bebê. Seria ainda necessário analisar toda a especialidade à luz dessa
mudança paradigmática. A subjetividade materna era um assunto pertinente à puericultura e
deveria ser acessada e abordada. Nada disso era ensinado na pediatria. Para o médico o
espaço subjetivo que a mãe dispõe para a criança é aferido e trabalhado de forma intuitiva.
Passou a ser um projeto pessoal introduzir esses conceitos no Serviço e capacitar o
residente para um novo olhar sobre a puericultura e toda a especialidade.
1.4 PRIMEIRA EXPERIÊNCIA DA PSICANÁLISE ENTRE MÉDICOS
PEDIATRAS EM FORMAÇÃO
É interessante notar que o Serviço de Pediatria do HFSE foi pioneiro em trazer
psicólogas para dentro das enfermarias. Elas eram lotadas no Serviço e participavam
ativamente das atividades clínicas, dos “rounds” e das sessões clínicas2. Toda essa intimidade
e valorização não parecia afetar significativamente a maneira dos médicos pensar. Parecia
haver uma cisão entre o campo da medicina e da psicologia que nem o Serviço de pediatria e
nem o de psicologia tinham conseguido integrar. Passei a observar que o Serviço de
psicologia, embora muito atuante, era utilizado pelos médicos para protegê-los do contato
com as questões subjetivas no exercício da profissão. Em outras palavras, as psicólogas eram
1 O termo regressão pode tem dois significados bastante distintos. Pode ser utilizado como sinal de saúde mental
ao mostrar uma flexibilidade e uma capacidade empática. Há também um sentido patológico, ou seja, uma
dificuldade em manter um posições mais amadurecidas. Ao longo do texto, o termo poderá ter um ou outro
sentido, de acordo com o contexto.
2 Essa não é mais a realidade e não há mais psicólogas lotadas no Serviço.
14
acionadas sempre que as mães “davam trabalho”, ou seja, quando incomodavam o
funcionamento do Serviço. A meu ver, a psicologia exercia, assim, uma dupla função de
ajudar as mães e as crianças, mas também de poupar os médicos e protegê-los de certos
enfrentamentos para os quais não se sentiam preparados.
Estava interessado que o profissional médico pudesse integrar essas duas visões e a
base teórica era a teoria do desenvolvimento emocional de Winnicott: “Para realizar o meu
trabalho, preciso de uma teoria do desenvolvimento emocional e físico da criança no
ambiente em que ela vive, e uma teoria precisa abranger todo o espectro daquilo por que se
pode esperar” (WINNICOTT, 1999, p. 19).
Na posição de preceptor achei que deveria propor uma intervenção na formação dos
residentes. Da literatura conhecia o método de observações de bebê, desenvolvido pela
psicanalista inglesa Esther Bick. O método consiste em visitas semanais com duração de uma
hora, durante os dois primeiros anos de vida do bebê. O profissional de saúde tem a
oportunidade de observar a comunicação primitiva que ocorre entre a mãe e o bebê desde as
fases mais precoces (CARON, 2000; OLIVEIRA-MENEGOTTO et al, 2006). Os
observadores preparam um relatório do que presenciaram que é lido em uma reunião com os
outros integrantes do grupo. Discute-se essas observações a partir dos sentimentos gerados no
observador e no grupo, sob a supervisão de um psicanalista treinado no método. Há também
um exercício de especulação: como o desenvolvimento do bebê se dará a partir da relação da
mãe com o seu bebê? Com a progressão do acompanhamento é possível perceber que muitas
das especulações são confirmadas ou são atualizadas na medida que a relação mãe-bebê se
modifica. Imaginei que essa experiência teria o benefício de trazer o residente para a
realidade da maternidade sem a proteção da autoridade médica e de todo o aparato que
acompanha essa autoridade. Procurei então a psicanalista Rosa Sender Lang, da Sociedade de
Psicanálise do Rio de Janeiro e com reconhecida experiência no método Bick, que se
prontificou a liderar um grupo de residentes em pediatria. Essa experiência funcionou durante
dois anos. As observações eram feitas fora do horário da residência e as reuniões semanais
eram realizadas no consultório da psicanalista. Embora contasse com o apoio da chefia do
Serviço, é fácil imaginar as dificuldades práticas em manter uma atividade dessa
complexidade em funcionamento após o horário da residência. Não foi realizada uma
pesquisa formal para avaliação do aproveitamento e satisfação desse modelo, mas a
impressão é que a experiência foi ao mesmo tempo penosa e rica. Creio ainda hoje que essa
seria uma experiência que agregaria muito à formação do residente em pediatria, mas por
15
questões práticas esse modelo precisaria ser reformulado para atender a dinâmica de uma
residência médica.
A atividade teria que ocorrer dentro do horário da residência e no próprio hospital.
Entretanto, a experiência serviu para que o Serviço de Pediatria compreendesse o meu
interesse e empenho nesses aspectos da formação do residente e me autorizasse uma segunda
experiência. Foi então que me lembrei do tempo das supervisões das minhas consultas
pediátricas com Ivone Lins e pensei em reproduzir esse modelo com os residentes. Conhecia
o modelo em grupo realizado por Balint. Mesmo sem a presença de uma grupo, poderiam ser
mantidas as mesmas intenções: criar-se-ia um ambiente propício para que os médicos
pudessem falar de seus sentimentos e se rediscutiria os casos apresentados a partir da
perspectiva do paciente. Foi criado o setor de Psicossomática, e todos os quatorze residentes
teriam durante um mês atividade obrigatória no setor. Ao final de um ano dessa experiência a
chefia do Serviço avaliaria se a atividade deveria ter continuidade ou não.
Embora muito diferente do método Bick, o modelo de intervenção proposto teria em
comum com os grupos Balint a ideia do trabalho focado na contratransferência3. Estamos no
referindo aos sentimentos geralmente inconscientes e que determinam ações automáticas. Ao
trazer esses sentimentos e as fantasias relacionadas a esses sentimentos para a consciência as
reações perdem a urgência. No caso dos grupos Balint, os encontros com o paciente ganham
um novo significado e outros tipos de atuação podem ser concebidas. O método Bick não
privilegia a ação, ao contrário, deve-se apenas fazer contato com a comunicação inconsciente
que mobiliza o sujeito e que é a fonte da contratransferência nos processos analíticos. Tanto
no modelo de Esther Bick como no de Balint o grupo serviria de apoio psíquico para cada
participante e também para o enriquecimento das discussões, pois novos pontos de vista são
trazidos para as reuniões. Nas palavras de Balint o grupo teria a principal função de servir
para que cada participante pudesse não temer a “própria estupidez” (BALINT, 2005) e,
3 Como os conceitos de transferência e contratransferência serão utilizados ao longo do trabalho, faremos uma
breve explanação a seguir. Logo nos primeiros casos tratados, Freud percebe que os pacientes formavam “falsos
enlaces” com o terapeuta (FREUD, 1893). Posteriormente o criador da psicanálise se dá conta que os pacientes
transferem para os seus médicos representações de seus pais e a própria neurose para o terapeuta. Essa relação
transferencial prejudicaria a construção de uma relação mais real com o terapeuta (FREUD, 1905, p. 111). Ao
contrário, a contratransferência seria uma relação transferencial do terapeuta para o analista. Segundo Freud, isso
se daria por falhas do analista em sua própria análise. Esse movimento contratransferencial torna-se um
obstáculo para a relação transferencial plena (FREUD, 1910, p.150-1). Posteriormente, a contratransferência foi
reconhecida também como instrumento para acessar sentimentos dos pacientes depositados no terapeuta
(ETCHEGOYEN, 2004).
16
assim, comunicar mais livremente os seus sentimentos. No modelo de intervenção proposto
para o setor de Psicossomática seria preciso confiar que “a própria estupidez” poderia ser
compartilhada apenas com o supervisor, sem o apoio do grupo.
1.5 SEGUNDA EXPERIÊNCIA DA PSICANÁLISE ENTRE MÉDICOS
PEDIATRAS EM FORMAÇÃO
O programa consistiria em reuniões de aproximadamente 1 hora e 30 minutos durante
as manhãs, de segunda à sexta-feira. O residente “rodaria” sozinho, porém em algumas
ocasiões o rodízio teria que ser feito em dupla. Os encontros seriam reservados e estariam
presentes apenas o residente ou os dois residentes, quando fosse o caso, e eu, como preceptor.
O objetivo seria fazer discussões livres sobre os casos ambulatoriais dos próprios
atendimentos dos residentes. Seria dada ênfase aos atendimentos do ambulatório de
puericultura. Com isso pensávamos em afastar das discussões as angústias relacionadas à
doença e, assim, estaríamos mais livres para trazer para os encontros as angústias
relacionadas à relação mãe-bebê.
Tentaremos descrever como se dava essa dinâmica a partir de casos relatados. Para que
se possa entender a posição dos residentes nas discussões será conveniente fornecer alguns
dados sobre a residência de pediatria no HFSE.
1.5.1 A RESIDÊNCIA DE PEDIATRIA NO HSFE
Como já dito, a história da residência em pediatria no Brasil começa nesse hospital.
Começa também nesse Serviço a divisão da pediatria em setores específicos. No total são
quatorze subespecialidades. Os pacientes são encaminhados para os setores específicos. Cada
residente permanece entre um a dois meses sob supervisão dos “staffs” nesses setores. Todos
os pacientes internados são destinados a um setor específico. Há um setor de Pediatria Geral,
que funciona como os outros e se responsabiliza pelos casos de doenças infecciosas, alguns
17
casos que não puderam ser imediatamente destinados a outros setores e casos de cunho
psicossocial como maus-tratos, abusos, síndromes de Münchausen by proxi4 e outros.
O Serviço tem duas estruturas bastante independentes. Em um prédio funciona as
enfermarias com pacientes internados e em um prédio anexo funcionam os ambulatórios. O
Serviço de ambulatório se divide em ambulatório de especialidades, sempre sob supervisão
dos “staffs” dos setores, e um ambulatório geral que embora com supervisão ficam mais a
cargo dos residentes. Eles têm oportunidade de agendar e fazer o acompanhamento de seus
próprios pacientes. Embora o HFSE não disponha de Serviço de emergência, o Serviço
ambulatorial recebe, durante o dia, pacientes clínicos mesmo sem ter prontuário aberto no
hospital. Portanto, é natural que algumas emergências clínicas surjam nos ambulatórios.
O HFSE tem o perfil de hospital terciário e as vagas para internação são solicitadas, em
sua maioria, por outros hospitais da rede pública. Algumas crianças são internadas a partir
dos ambulatórios das subespecialidades por indicação dos “staffs” ou são provenientes dos
ambulatórios dos residentes e da sala de pronto-atendimento. Em geral, os leitos das
enfermarias são ocupados por pacientes com casos de difícil solução, sejam pela gravidade
das doenças, sejam pelas dificuldades sociais envolvidas.
Pela manhã os residentes permanecem nas enfermarias cuidando dos pacientes das
especialidades em que foram alocados. Passam entre um a dois meses em cada um desses
setores. Frequentam os ambulatórios dessas especialidades no período da manhã, quando não
há pacientes internados ou quando há excesso de residentes para a demanda da enfermaria.
No período da tarde as atividades variam pouco e são independentes dos rodízios em
que o residente está alocado. Uma tarde é reservada para os pacientes de puericultura, restrito
às crianças de 0 a 2 anos. Em outra tarde são acompanhadas crianças maiores de 2 anos até a
adolescência. Em geral são aquelas crianças atendidas no pronto-atendimento e que fizeram
um vínculo com os residentes, e passam a ser agendadas para atendimento ambulatorial
exclusivo com esses médicos. Alguns pacientes que tiveram alta das enfermarias têm um
duplo acompanhamento: nos ambulatórios de especialidade e no consultório de um dos
residentes. Há ainda um dia reservado para o atendimento dos adolescentes. O quarto dia da
4 São situações em que a mãe simula sintomas de alguma doença na criança. São diferentes dos casos de maus
tratos e abusos sexuais em que algum dos pais inflige a violência na criança, mas se assemelham com essas
situações limite, pois colocam os próprios pais em total conflito com a condição de protetores das crianças.
18
semana o residente permanece na enfermaria até a chegada da equipe de plantão e, finalmente,
uma tarde é deixada livre para o residente cuidar de sua vida pessoal. Nas atividades
ambulatoriais os residentes são deixados livres para conduzir os casos como acharem correto,
não obstante, todos os setores ambulatoriais têm os seus próprios “staffs” à disposição caso
sintam necessidade de supervisão.
Se o HFSE perdeu muito de seu prestígio dos tempos em que o Rio de Janeiro era
capital da República, a sua dinâmica ainda mantém uma forte tradição e a residência de
pediatria ainda é uma das mais procuradas na rede pública. As atividades se iniciam
rigorosamente às 8h, os residentes não têm “day off” e são bastante cobrados pelos setores e
pela chefia de Serviço.
As exigências para os residentes são grandes, mas são também para o resto da equipe
de saúde, em geral presente e dedicada aos pacientes e ao ensino. Por tudo isso o vínculo com
o hospital, entre os residentes e dos residentes com o restante da equipe é, em geral, muito
positivo.
1.5.2 CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS QUE FORMARAM A ESTRUTURA E
A DINÂMICA DA ATIVIDADE COM OS RESIDENTES
Donald Woods Winnicott foi um médico inglês, nascido em 1896. Era, portanto,
quatorze anos mais novo que Melanie Klein5 e pertence à terceira geração de psicanalistas.
Winnicott inicia a sua carreira como pediatra e desenvolve a sua teoria a partir de sua prática
de psicanalista e pediatra. Como já foi mencionado, os cuidados maternos necessários para o
bom desenvolvimento do bebê são o resultado de um espaço afetivo que a mãe abre para a
chegada do bebê em sua vida e que se acompanha de uma sensibilidade muito acurada da mãe
– a preocupação materna primária. Esse espaço é revelado pela excitação e prazer que a mãe
sente em estar grávida daquele bebê que é o seu bebê.
Os cuidados físicos não são suficientes e não atingem o bebê de forma integral se não
são acompanhados pelo prazer de estar com aquele bebê. Para o bebê também não é possível
alcançar um desenvolvimento saudável se o amor não gera cuidados efetivos. Nos primeiros
5 Melanie Klein, psicanalista húngara, nascida em 1914 e falecida em 1960, foi pioneira na terapia psicanalítica
com crianças (KLEIN, 1996).
19
dias e semanas após o nascimento do bebê, a mãe dispões de tempo suficiente para
permanecer nesse encontro prazeroso com o bebê. Ocorre uma comunicação muito sutil entre
a mãe e o bebê enquanto a mãe fornece os cuidados necessários. Essa comunicação Winnicott
chamou de mutualidade (WINNICOTT et al, 1994).
A mãe não impõe um regime ao bebê, ao contrário, a mãe completa as necessidades do
bebê que são expressas por ele. O seio é dado no momento que ele imagina um seio e é
encerrado no momento em que ele imagina largar o seio. Tudo isso é dito da perspectiva da
mãe que é adulta; da perspectiva do bebê ainda não existe mãe, seio ou bebê. O bebê parte de
uma experiência fusional mãe-bebê ou bebê-ambiente, na terminologia winnicottiana. Essa
perfeição é teórica, pois a mãe dedicada comum falha, pois é humana, mas ela é capaz de
fornecer experiências completas que sustentam esse início fusional.
O que é importante ressaltar é que a realidade objetiva será uma ocorrência tardia para o
bebê e só será real quando ela for secundária à construção dessa subjetividade inicial e
fusional com o ambiente. Enquanto nas teorias freudianas e kleinianas é o bebê que constrói a
sua própria estrutura mental a partir da relação com o mundo externo, na teoria winnicottiana
esse papel é, durante um período inicial da vida do bebê, exclusivo da mãe. A relação, que é
tanto afetiva como efetiva que a mãe estabelece com o seu bebê, permite que ele viva esse
início como uma experiência de “ir sendo”, sem que ele nada precise fazer. Nas palavras de
Winnicott, a mãe garante a continuidade de ser do bebê (WINNICOTT et al, 1994).
Também é a mãe que gradativamente se cansa dos estreitos laços que essa fase inicial
impõe e começa um processo de afastamento gradual. Esse processo chamado de
desilusionamento6 obriga o bebê a colocar em marcha uma série de experiências que resultará
no reconhecimento do mundo externo em que habitam um si mesmo e um outro. Se num
primeiro momento o choro do bebê trazia a mãe sempre para perto, agora a tarefa da mãe é
diferenciar situações quando o choro deve trazê-la para perto e outras que, ao contrário, é
necessário não atender mais tão prontamente o bebê. Entre os períodos de predomínio do
objeto subjetivo e o mundo em que surge de forma mais nítida o objeto real, o bebê passa por
uma período transicional onde os objetos transicionais ocupam o lugar daquilo que nem é
totalmente subjetivo e nem totalmente objetivo (KLAUTAU, 2014).
6 Segundo Winnciott, a mãe propicia ao bebê viver a ilusão da onipotência: o bebê é frágil porém, junto à mãe
que o atende quase perfeitamente, ele experimenta uma sensação de onipotência. O desilusionamento é a perda
dessa ilusão de onipotência.
20
Resumindo, podemos dizer que a contribuição da teoria do amadurecimento do bebê de
Winnicott (1994) permite pensar que:
1. É possível se comunicar com o bebê, mesmo com ele ainda intra-útero.
2. Essa comunicação é subjetiva e antecede ao entendimento cognitivo do bebê.
3. Essa comunicação subjetiva é mediada pelos afetos e não se perde.
4. As obrigações implicadas no cuidado devem fazer parte dessa comunicação
subjetiva, de modo que prevalece um sentimento prazeroso no cumprimento das
tarefas e não um sentimento de sacrifício e perda.
5. Para que a mãe cuide adequadamente do bebê é preciso que ela possa alcançar essa
comunicação subjetiva, mas ela deverá, em dado momento, iniciar a tarefa de abrir
mão gradativamente desse lugar. Em outras palavras, ela deve dar lugar à
ambivalência na relação com o seu bebê.
6. O desenvolvimento e a constituição psíquica e moral do bebê é um resultado
espontâneo que ocorre a partir das experiências recebidas onde se fundem a
comunicação subjetiva e os cuidados efetivos.
Essa comunicação subjetiva da mãe com o bebê consiste em um espaço humano único
de trocas em que cada um tem dignidade e lugar sem a prevalência de um sobre o outro. É o
espaço da brincadeira em que todos os participantes podem desfrutar. Não há julgamentos
sobre a maneira de fazer e nem sobre os resultados.
A natureza da intervenção com os residentes teve como base o pensamento de
Winnicott e de Balint. Esses autores têm em comum a ideia de que é possível e necessário
regredir ao ponto de se reviver um período em que as relações não provocaram angústias.
Segundo esses autores, é nessa sensação de inteireza que aflora a criatividade, o
desenvolvimento e a reorganização psíquica que possibilitam encontrar os caminhos próprios.
Winnicott escreve no trabalho Memórias do nascimento, trauma do nascimento e
ansiedade:
A fim de preservar um modo de vida pessoal já no início, o indivíduo precisa que as
intrusões provocadoras de reações sejam mínimas. Todos os indivíduos buscam, na
verdade, um novo nascimento, no qual a sua linha de vida não seja perturbada por
uma quantidade de reações maior que a que pode ser experimentada sem que ocorra
perda do sentimento de continuidade da existência pessoal (WINNICOTT, 2000, p.
271).
Como reforça as Accioly Lins:
Quando fala da regressão, que se caracteriza pelo fato de surgir quando existe
confiabilidade em relação ao meio ambiente, Winnicott afirma que, em tais
circunstâncias, a regressão não expressa a doença, mas os elementos sadios da
21
personalidade. Para Winnicott, regredir em um ambiente confiável significa
processo de cura (LINS, 2006, p.33).
Tanto Balint como Winnicott concordariam que a adaptação é sempre do ambiente, ou
seja, a responsabilidade é da mãe na relação mãe-bebê e do médico na relação médico-
paciente. A adaptação não deveria depender daquele que, em teoria, seria o mais regredido, ou
seja, o bebê, o paciente ou a mãe do paciente que vive um momento de angústia pela saúde do
bebê.
As dinâmicas da intervenção do setor tinham a intenção de ajudar o residente a alcançar
uma experiência de comunicação mais profunda com o responsável pela criança, que é em
geral a mãe. Nos casos de atendimento com as crianças maiores ou adolescentes pode ser
ainda mais interessante, pois é muito rica a experiência de atingir uma comunicação profunda
com o paciente e outra, independente, com a mãe, sem precisar fazer uma cumplicidade
apenas com uma das partes. São situações de bastante complexidade.
Havia, portanto, um aspecto de supervisão na dinâmica, um rumo e um objetivo. As
conversas eram livres, mas direcionadas para uma teoria que fala de uma intersubjetividade
criativa. Para se alcançar esse lugar é preciso que a pessoa que cuida possa regredir de forma
saudável até atingir uma comunicação empática. Essa comunicação, em que o outro se sente
visto e cuidado de forma mais íntegra, apazigua as angústias e estimula um processo criativo e
curativo na pessoa cuidada. Essa teoria não pode ser compreendida apenas de maneira
racional e precisa ser vivida internamente. Ao expressar livremente os sentimentos de raiva e
as angústias durante os encontros, sem que fossem julgados por isso, os residentes
experimentariam essa vivência de acolhimento. A partir dessa experiência seria possível para
o residente uma compreensão mais completa da teoria do cuidado winnicotiano na relação
mãe-bebê e na relação médico-paciente. A ideia era que os atendimentos dos residentes se
modificassem a partir dos encontros no setor. Essas discussões teriam que ocorrer em um
ambiente propício, longe das ansiedades e das urgências de uma enfermaria de pediatria.
22
1.5.3 O SETTING7
O ambiente dentro de uma enfermaria de pediatria é tocante, como já descrevemos.
Ouve-se todo o tempo choros e gritos, de adultos e de crianças. No começo da manhã chegam
os residentes asseados e sorridentes de suas casas, mas logo se defrontam com um ambiente
que subitamente ou gradativamente se torna pesado. Após os cumprimentos da manhã,
procuram os colegas de plantão para saber como seus pacientes passaram a noite. Por outro
lado, os pacientes e familiares estão à espera de seus médicos para saber novas sobre a
evolução da enfermidade. Ao se buscar um local para a atividade do setor, pensou-se em um
ambiente compatível com o distanciamento desejado dos eventos angustiantes do dia a dia de
uma enfermaria. Foi conseguida uma sala de reunião isolada da enfermaria e a portas
fechadas. Não era autorizado que outros colegas assistissem às reuniões. Os telefones eram
desligados e pedia-se que outros residentes ou membros da equipe não interrompessem os
encontros.
Iniciávamos os encontros às 9:30 ou 10h, não havia um horário rígido. Assim
criávamos um clima muito diferente dos outros setores em que a assiduidade e a pontualidade
são cobradas de forma rígida. Chegando fora do horário padrão e podendo dormir até mais
tarde era como se os residentes estivessem mais folgados ou de férias.
Ajeitávamos as cadeiras, uma em frente a outra, e começávamos a atividade. O horário
de terminar também não era rígido, variando de acordo com a disposição e o cansaço da
dupla. Em geral demoravam em torno de 1h 30m e nunca passava do meio-dia para não
atrapalhar o almoço e as atividades da parte da tarde.
1.5.4 A DINÂMICA
1.5.4.1 HISTÓRICO DO MODELO ESTUDADO
Ao relatar o histórico dessa dinâmica diremos que a pesquisa se deu num segundo
momento dessa experiência. Inicialmente, eu estava ainda muito impactado pelas leituras e os
7 Setting ou enquadre seria o conjunto de acordos objetivos, tais como horário, local dos encontros, duração e
privacidade. Essa estabilidade ajuda a regressão do paciente. Mesmo não se tratando de pacientes a estabilidade
do setting permite uma relação intersubjetiva mais profunda.
23
“insights” que havia experimentado após as leituras dos textos de Winnicott. Achava que por
meio da leitura desses textos os médicos seriam levados a alcançar as mesmas experiências
internas que eu tivera. Compilei textos e produzi uma apostila com um conteúdo teórico. A
leitura desse material ocupava boa parte da dinâmica. Ora eu, ora o residente assumia a
leitura em voz alta. Ao fim de alguns parágrafos iniciávamos a discussão sobre a leitura.
Tardou talvez três anos para eu perceber que a dinâmica era enfadonha e não alcançaria os
objetivos desejados, até que, finalmente, as leituras foram abandonadas.
A ideia era criar um clima de descontração com os residentes para que eles pudessem
ter a coragem de expressar “a própria estupidez”. Ou seja, que não tivessem medo de falar
livremente dos sentimentos que afloravam durante os atendimentos e durante a experiência
no setor. Para isso seria fundamental que eu contivesse a minha “função apostólica”. Esse
termo, cunhado por Michael Balint, se referia à necessidade que o médico tem de que seu
paciente adira à sua prescrição e à sua maneira de pensar. Em outras palavras, naturalmente
eu queria que certos conceitos dos residentes sobre suas práticas mudassem e trabalhava para
isso. Entretanto, eu deveria suportar a opção do residente de não mudar os conceitos sobre a
prática. Eu deveria suportar que o residente achasse que a pediatria deveria tratar tão somente
do desenvolvimento biológico e que o desenvolvimento afetivo seria assunto para psicólogos
e psicanalistas. A irritação pela incompreensão dos residentes ao que eu propunha, a crítica
desabrida às suas maneiras de proceder seriam expressões dessa função apostólica - a
contratransferência. Quando, já sem as leituras, predominou um clima de descontração no
setor achei que essa prática havia alcançado estabilidade suficiente para iniciar uma
investigação preliminar sobre esse modelo.
1.5.4.2 INTRODUÇÃO DA DINÂMICA
Sabia que o encontro com um psicanalista, ainda mais sendo face a face, poderia causar
temor e desconforto. Contava com a minha história de ter sido residente e atuado como
pediatra do Serviço, de modo que poderia ser identificado não apenas como um psicanalista,
mas como alguém mais próximo a eles. Seria preciso, porém, quebrar imediatamente o “gelo”
no primeiro encontro e desconstruir a ideia que o residente estaria diante de alguém que iria
julgá-lo de alguma maneira. O tempo era curto e teria que alcançar uma clima de
descontração e cumplicidade rapidamente. Como se iniciavam as conversas não estava pré-
estabelecido, mas em geral me apresentava explicando que 1. havia sido residente no Serviço
e que conhecia toda a dinâmica da residência e poderia imaginar as dificuldades que a
24
estrutura da residência criava para eles, 2. era psicanalista, mas não caberia interpretá-los ou
analisá-los. As interpretações pessoais só poderiam se dar em um ambiente de análise e
aquilo era um setor para ajudar os médicos a compreenderem mais sobre as questões
subjetivas envolvidas na relação médico-paciente e no desenvolvimento da criança. Sim,
esses dois pontos seriam os focos de nossos encontros. 3. explicava que eles deveriam trazer
fragmentos de casos de suas consultas ambulatoriais. Seriam situações que os tivessem
chamado a atenção. Situações que os havia surpreendido, incomodado ou quaisquer outros
assuntos relativos à residência médica poderiam ser tema de nossas conversas. Por que
preferia não conversar sobre os casos das crianças internadas? As crianças internadas era um
grupo muito seleto. Casos graves, crônicos, em geral, eram casos pouco comuns. A média de
atendimento nos ambulatórios era de quase duzentas consultas por dia. Em um mês somariam
em torno de quatro mil crianças atendidas, enquanto no mesmo período passavam pelas
enfermarias entre trinta a sessenta crianças. Seria, portanto, melhor que falássemos das
crianças vistas no dia a dia de suas vidas profissionais. No entanto, entendia que, as vezes, os
casos das enfermarias mobilizavam demais o residente e que se fosse uma necessidade dele,
poderíamos também conversar sobre esses casos. Essas eram nossas conversas, à guisa de
introdução.
Perguntava se tinham algum caso que gostariam de compartilhar. Poderiam aparecer os
primeiros casos, mas em geral não apareciam. Nessas situações, em que não surgiam casos
mesmo após os estímulos do tipo: “Fala aí! Serve qualquer caso, qualquer situação. Não
precisa prontuário ou lembrar de resultados de exames, serve qualquer caso que lhe venha à
cabeça.”, a introdução era ampliada. Muitas vezes perguntava se sabiam o que era a
psicanálise, se já haviam tido algum contato com o tema. Com frequência os residentes
desconheciam por completo o assunto. Mesmo expressões tão consagradas como complexo
de Édipo poderiam ser totalmente desconhecidas. Explicava, não no sentido de ensinar, mas
de conversar, mostrar um pouco dos meus interesses de modo que pudéssemos criar uma
maior proximidade. Perguntava também dos seus interesses nas subespecialidades e se
estavam satisfeitos com a residência. As perguntas sobre suas vidas pessoais tinham a
intenção de saber sobre as suas experiências no cuidado de bebês. Se tinham tido irmãos
menores, se tinham cuidado de sobrinhos, se tinham amigas com filhos. Ocasionalmente era a
partir das experiências que as amigas estavam vivendo ou das primas que o tema era iniciado.
Finalmente, eu voltaria a insistir. A residência médica era calcada em experiências
vividas na clínica e não em aulas e teoria. Seria necessário que o residente fizesse a sua parte
25
contando casos ambulatoriais. Se mesmo assim os casos não eram contados, eu perguntaria:
“Ontem você fez ambulatório de puericultura, fixo (seus próprios pacientes agendados) ou
adolescentes?” Para depois emendar: “Conte-me os casos de ontem.” Não houve ocasião em
que casos não eram trazidos. Vejamos como se davam os encontros.
1.5.4.3 A DINÂMICA DOS ENCONTROS
1.5.4.3.1 UM CASO VINDO DA ENFERMARIA
Como já dito, embora fossem buscados os atendimentos ambulatoriais, não eram
sempre esses casos que eram trazidos para discussão. Creio que havia nisso uma resistência
dos médicos de aparecerem em sua totalidade em seus próprios atendimentos. O seu paciente
e o seu modo de atender não podiam ser discutidos. Ainda assim qualquer situação clínica era
uma oportunidade para conversarmos sobre as suas experiências. Darei um exemplo de um
registro que fiz de um encontro entre mim e uma participante da pesquisa. Devo ter falado em
alguma ocasião sobre relações simbióticas entre mães e filhos, pois nessa ocasião vivia na
enfermaria uma criança com distrofia muscular e dependente de ventilação mecânica. O
Estado não providenciara condições para uma assistência domiciliar e a criança passou a
viver no hospital. Uma década havia se passado desde então. A relação da mãe com o filho
era do tipo simbiótica. Ela abandonara a sua vida pessoal e os cuidados com a outra filha
haviam ficado muitos limitados para que pudesse se dedicar exclusivamente ao filho enfermo.
Essa mãe era também muito agressiva e difícil com os residentes. Sabia perfeitamente como
humilhá-los e ofendê-los. Esse caso foi, em algum momento, assunto de praticamente todos
os residentes. Quando a residente quis saber sobre relações simbióticas entre mães e filhos
eu pensei que ela se referia a este caso, mas havia ainda um outro que eu desconhecia. Deu-se
o seguinte diálogo:
_ Eu queria falar um pouco com o senhor sobre relações simbióticas.
_ É o caso da criança com distrofia muscular?
_ Não. Há um outro caso. Uma mãe que tem uma criança de 6 meses com uma
doença genética grave. Ela não deverá conseguir ir para casa, nunca. Ela não sai do
hospital. Ela não pode sair, pois a cânula de traqueostomia obstrui com frequência e
a enfermagem não pode ficar lá o tempo todo. Então é ela que fica responsável
pelas aspirações. No último plantão eu falei com ela para ir para casa que eu me
responsabilizaria pela aspiração da criança, mas ela não quis ir. Ela tem um filho de
dez anos e o pai pediu a guarda da criança, pois ela abandonou a casa, o pai e o
filho. Noutro dia era aniversário do filho e ela prometeu a ele que iria em casa por
ocasião da data, mas não foi. O filho ficou esperando.
26
Vejamos isso à luz da teoria winnicottiana. Após o nascimento do bebê, se a mãe
vivenciou a preocupação materna primária, ela permitirá ao filho viver a ilusão da
onipotência. Essa mãe que está num estado de sensibilidade exacerbada é capaz de identificar
as necessidades do bebê e isso se dá em tal medida que o bebê experimenta a ilusão que são
as suas próprias necessidades que criam o mundo. Nas palavras do autor:
Imagino esse processo como se duas linhas viessem de direções opostas, podendo
aproximar-se um da outra. Se elas se superpõem, ocorre um momento de ilusão –
uma partícula de experiência que o bebê pode considerar ou como uma alucinação
sua, ou como um objeto pertencente à realidade externa (WINNICOTT, 2000, p.
227).
Para que esse encontro das duas linhas se dê – a necessidade do bebê e o atendimento
da mãe – a mãe deverá abrir mão de seu mundo pessoal e se dedicar aos cuidados do bebê. A
partir de um determinado ponto, se a mãe é saudável, ela começa a sentir um desconforto
pelo estreitamento de seu mundo. Para que o bebê se desenvolva de forma saudável será
necessário que a mãe abra mão desse estreitamento de sua vida pessoal. Para isso ela deve
fazer contato com o seu próprio ódio:
[...] as crianças parecem ser capazes de lidar com o fato de serem odiadas e isto,
naturalmente, é simplesmente uma maneira de dizer que podem enfrentar e fazer
uso da ambivalência que a mãe sente e demonstra. O que elas não podem jamais
usar satisfatoriamente em seu desenvolvimento emocional é o ódio reprimido e
inconsciente da mãe, que apenas encontram, em suas experiências de vida, sob a
forma de formação reativa. No momento em que a mãe odeia, ela demonstra uma
ternura especial e não existe maneira por que uma criança possa lidar com este
fenômeno (WINNICOTT, 1994, p. 194).
A relação simbiótica é, na visão winnicottiana, uma falha da mãe em acessar o seu ódio
e viver a ambivalência que é despertada em toda a relação de cuidado. Essa é uma tarefa
crucial da mãe que propicia um desenvolvimento saudável da criança e a residente tinha toda
a razão em se preocupar com essas questões. Exponho essa compreensão da teoria apenas
para que se possa acompanhar a partir de que referencial teórico as intervenções são
realizadas. Apenas ocasionalmente, caso haja interesse da parte do residente em conhecer os
fundamentos teóricos, esse referencial é explicitado.
Foi discutida a situação da família como um todo. Enquanto os médicos mantinham o
foco voltado para a criança doente, muitas vezes o que se passava com o resto da família não
era percebido. Pedi, então, para a residente contar o que mais sabia sobre a vida da mãe. A
criança em questão era o segundo filho. O menino mais velho estava praticamente
abandonado pela mãe, que agora era cuidado apenas pelo marido. Esse casal estava em vias
de se separar. O médico, voltado para o sofrimento que estava à sua frente – um bebê doente
–, não conseguia ver o quadro familiar de forma mais ampla. Levantei a questão: a dedicação
27
da mãe era apenas amor materno ou havia culpa pelas dificuldades em viver o ódio fruto das
restrições impostas pela doença?
Discutiu-se a questão do luto. Se uma criança se acidenta, cai da laje ou é atropelada,
situações que não são incomuns no CTI pediátrico, é natural que a mãe se “interne” junto à
criança e abandone o resto da família. Situação semelhante ocorre quando nasce um filho. A
mãe já não pode atender o resto da família durante as primeiras semanas. Mas quando o
quadro se cronifica e a criança deve permanecer no hospital por um tempo prolongado, há
que se fazer um luto e retomar gradualmente as atividades deixadas. Essa mãe não conseguia
fazer o luto de ter dado a luz a uma criança sindrômica e, paradoxalmente, era capaz de
abandonar uma criança saudável.
Discutiu-se também a cumplicidade nem sempre sadia da própria equipe de saúde com
a criança doente. Muitas vezes julgava de maneira crítica a mãe que se ausentava, sem levar
em conta que a mãe que se ausenta pode estar mais saudável do que a que está sempre
presente. Não é incomum perceber a posição crítica da equipe de saúde frente a uma mãe
maquiada e pronta para deixar o hospital quando tem uma criança cronicamente doente
internada.
Finalmente contava histórias de minha própria prática privada. Contei então que
quando atuava como pediatra havia uma família que me chamava com frequência para
atender o filho com síndrome de Down e doença respiratória. Sentia que havia um exagero
em tantas solicitações para atendimento domiciliar. Primeiro porque a doença respiratória da
criança não era grave e os pais já deveriam saber como lidar com as exacerbações e, além
disso, as consultas domiciliares eram caras e a família não parecia dispor de tantos recursos.
Um dia eu estava na sala sozinho e a irmã, que era uma menina saudável e um pouco mais
velha, chegou perto de mim e disse baixinho: “Eu também queria ter sido Down.” Eram
passagens da minha experiência pessoal que ajudavam a enriquecer as conversas sobre a
medicina vista unicamente na perspectiva da doença e do doente em contraste com o doente e
a doença inseridos dentro da dinâmica familiar. A posição do médico e sua maneira de atuar
se modificam quando a dinâmica familiar é colocada na mesma perspectiva da enfermidade.
Enfim, a dinâmica dos encontros incluiu conversas sobre a teoria do desenvolvimento
emocional do bebê, do ódio inconsciente da mãe, da culpabilização da equipe de saúde e
também uma visão da pediatria não apenas a partir da doença, mas também da valorização da
família e de todos os seus membros. Tudo isso foi discutido a partir do caso trazido pela
residente.
28
1.5.4.3.2 UM CASO AMBULATORIAL EM QUE APARECE O ZELO APOSTÓLICO
Certamente a parte mais difícil desse trabalho é lidar com a contratransferência. Muitas
vezes tinha que fazer grande esforço para evitar exigir do residente uma postura que eu
pensava ser correta ou era por mim desejada, mas que nem sempre era possível para o
residente alcançar. Para que essa pesquisa adquira veracidade é necessário contar ao menos
um caso em que aparece de forma clara esse zelo apostólico.
A residente me conta um caso acompanhado no ambulatório, mas é um caso conhecido
por todos devido à longa história de internações no Serviço. É uma menina, cuja a idade não
foi informada, e que era portadora de uma doença renal congênita, mas que tinha ainda um
dos rins em bom funcionamento. O segundo rim começa a apresentar problemas em sua
função e a criança parece evoluir para um quadro de insuficiência renal crônica que
demandará diálise e transplante. Quando o caso é relatado pela residente o funcionamento
renal é sofrível e já começa a haver sinais que o caso se encaminhava para uma evolução
desfavorável. A mãe chega ao ambulatório nervosa, se queixando que os médicos não fazem
nada e a criança que até aquele momento tinha perfeito controle da diurese, começa a
apresentar um quadro de enurese. Essa disfunção nada tem a ver com a insuficiência da
função renal; tratava-se de uma nova questão. É, obviamente, uma situação dramática para a
mãe, a criança e para toda a equipe de saúde envolvida com o acompanhamento de um caso
de má evolução. Entretanto, a maneira como a residente me apresentou o caso já me causou
impacto e mal-estar. Disse a médica: “Sabe a Fabíola8? Todo mundo conhece, ela tem doença
renal e parece que o outro rim está parando de funcionar. Ela está apresentando
hiperatividade do músculo detrusor.”
Aquilo me causou, como disse, um tremendo mal-estar. O músculo detrusor é um dos
músculos responsáveis pela contração da bexiga. O caso era dramático: uma menina que
evoluía inexoravelmente para insuficiência renal. A mãe começa a se desesperar e a criança
passa a apresentar enurese noturna. Uma situação bastante previsível diante de um quadro de
prognóstico reservado. A médica, porém, apresenta o caso de uma maneira e com um jargão
tão técnico e frio que me causou surpresa. A incapacidade em afirmar que deveria haver uma
conexão entre a evolução do caso, o mal-estar da mãe e a enurese da criança irritou-me e deu-
se o seguinte diálogo:
8 Um nome fictício foi dado.
29
_ Isso que você está chamando de disfunção do detrusor, você sabe, é enurese. E
quais as causas que você conhece de enurese?
_ Pode ser psíquico.
_ Nesse caso, o que você acha?
_ Não sei.
_ Então ela deverá passar por uma endoscopia urológica para saber?
_ Se eu não sei o que é...
_ Então se for psíquico, dane-se! Primeiro, enfiar um tudo na uretra da criança!
A abordagem da médica foi colocada em questão e ela chorou. Disse que passava por
problemas pessoais e não estava suportando ser pressionada. Revendo esse caso percebo que
a médica deve ter dado aquela descrição para enurese a partir de conversas com o setor de
Urologia pediátrica do Serviço. A médica repetia a orientação de seus próprios preceptores. A
minha experiência em interagir com o setor de Urologia tinha sido frustrante, pois os casos de
enurese eram tratados mais como uma doença orgânica do que como expressão de tensões
ambientais. Essa era uma abordagem completamente contrária à minha formação em
psicanálise em que o sintoma corporal pode ser a expressão do conflito psíquico que não
chega à consciência. Essas discussões com o setor de Urologia não chegaram a um consenso
e percebi que não haveria espaço para trabalhar com um setor que era tão rico em se tratando
de doenças psicossomáticas em pediatria. Trazer toda essa história é importante para
compreender a maneira bruta com que eu reagi àquela descrição. Identifiquei ali a assinatura
de alguém com quem eu já havia me desentendido anteriormente. Naturalmente, esse tipo de
zelo apostólico não ajuda e deve ser corrigido. Pede-se desculpa pela impaciência e tenta-se
recompor um clima, porém muitas vezes permanece um pequeno mal-estar. Não é justo que o
preceptor atue assim sobre alguém mais novo, em aprendizado. Não creio que essa situação
tenha se repetido nem com ela e nem com outros residentes.
1.5.4.3.3 UM CASO DISCUTIDO QUE RESULTA EM MUDANÇAS NA PRÁTICA
Contaremos agora um caso conduzido de maneira mais satisfatória do que o anterior. O
caso não é exatamente ambulatorial, mas é na verdade um atendimento telefônico, o que é
também muito comum na prática. A médica conta que estava de plantão e recebe uma
chamada telefônica. A mãe relata que o seu filho sofria de cardiopatia congênita e era
paciente do hospital. Aqui podemos apreciar a força das relações transferenciais. A mãe não
aceitaria outra médica que não fosse do próprio Serviço onde o seu filho era acompanhado.
Voltando ao caso, a mãe dizia que a criança estava com febre e que quando a temperatura da
criança subia, ficava taquicárdica. O coração parecia que ia sair do peito e ela, a mãe, ficava
30
muito assustada e precisaria dar um “pulinho” lá para ser assegurada pela médica de plantão,
mesmo sendo já noite, pois estava muito nervosa. A médica não colhe nenhuma história,
enfim, não acolhe a mãe. Não leva em consideração as questões transferenciais mencionadas
e responde para a mãe que ali não é hospital de emergência e que ela se dirigisse ao Hospital
Souza Aguiar. Esse telefonema durou muito tempo, pois a mãe insiste que não conseguiria
dormir e que só se acalmaria se a criança fosse examinada. Argumenta que todos os assuntos
relativos à saúde de seu filho eram feitos naquele hospital. Era lá que tinham o prontuário, os
exames e apenas os seus médicos sabiam sobre o caso de seu filho. A médica não abre mão
de sua posição. É dura, fica indignada com a insistência da mãe e termina por desligar o
telefone sem que houvesse qualquer entendimento entre as partes. Enquanto a médica
relatava o caso eu ouvia e pensava: “Que brutalidade, que rigidez! Provavelmente não seria
necessário nem examinar a criança. Se a médica deixasse a mãe falar um pouco para que ela
se acalmasse isso seria suficiente. Ou ela poderia pegar o número de telefone da mãe, ligar
para um de seus médicos e depois dar um retorno à mãe. Mas por que agir assim? A médica
devia ter muito medo de lidar com cardiopatas! O rodízio no setor de cardiologia ocorre no
segundo ano de residência. A médica, sendo ainda residente do primeiro ano, ainda não tinha
a experiência no setor. Certamente esse era um dos motivos que teria levado a médica a ter
uma atitude tão rígida. No entanto, contra essa raciocínio era preciso lembrar que em todos os
plantões têm dois médicos do primeiro ano e um do segundo ano. Assim que, se ela quisesse
ser mais acolhedora, poderia perfeitamente falar com uma de suas colegas.” Conversamos
então sobre todas essas linhas de raciocínio e finalmente disse para a médica que ela deveria
ter dormido muito mal nas suas poucas horas de sono. Primeiro porque a mãe poderia “bater”
à qualquer hora na porta do hospital. Essa era a força da relação transferencial e da angústia
da mãe. As mães aparecem com seus filhos mesmo sabendo que não há um setor de
emergência. Em segundo lugar se acontecesse algo com a criança, querendo ou não ela tinha
traçado condutas e estava envolvida no caso. O confronto com as mães não era, em geral, um
bom caminho para pediatras.
A médica me ouviu calada, sem demonstrar que revia a sua posição e conduta. Ocorre,
por uma feliz coincidência, que num outro plantão uma outra mãe liga para o hospital para
falar com uma das médicas e é a mesma médica que atende. Era uma mãe que tinha sido
consultada na puericultura naquele mesmo dia. A criança era saudável, mas a mãe tinha
ficado com dúvidas sobre o preparo das mamadeiras e queria saber se a médica poderia
fornecer alguns esclarecimentos. Essa situação de aparência tão inocente, pode gerar revolta
31
nos médicos. Não creio estar sendo injusto. Estou respaldado pelo caso que acabo de relatar.
Um paciente ambulatorial que tira a concentração de um médico que está tratando de uma
paciente internado é comumente visto como uma afronta. Em se tratando de um caso de
puericultura, a reação poderia ter sido ainda mais violenta. Porém, havíamos recém discutido
um caso semelhante na semana anterior e a médica muda totalmente a sua maneira de abordar
o caso. Primeiro ela faz a orientação e depois diz para a mãe procurar o Serviço pela manhã.
A mãe agradece e pergunta: “Gostei da senhora. Qual é mesmo o seu nome?” Foi discutido
que se a médica pretendia ser pessoalmente reconhecida junto aos seus pacientes, ela tinha
descoberto um caminho. Não custava muito e o resultado era mais gratificante do que passar
a noite assustada e desconfortável.
Relembrando a teoria, voltamos a falar das linhas da mãe e do bebê que se encontram
no meio do caminho. Também havia uma linha da mãe e do médico que precisavam se
encontrar no meio do caminho. E essa linha havia sido encontrada pela médica nesse segundo
atendimento.
1.5.4.3.4 À GUISA DE CONCLUSÃO SOBRE A DINÂMICA
Os elementos essenciais dessa dinâmica me parecem que foram apresentados. Há a
primeira vista um certa desorganização. As dinâmicas são, porém, organizadas pelos
princípios da livre associação. Quer dizer, fala-se aquilo que se tem vontade de compartilhar:
qualquer situação vivida relacionada à atividade profissional é assunto a ser tratado. O
enfoque é a ideia que a doença expressa um sofrimento biopsíquico e que os aspectos
psíquicos devem ser reconhecidos e valorizados sob pena de aumentarmos as intervenções
tecnológicas e farmacológicas e diminuirmos o encontro humano e a arte e a poesia que há no
ato médico. A ambiguidade afetiva está sempre presente no ato de cuidar e deve ser
entendida e tolerada até um determinado ponto. Por fim, fica evidente que esse não é um
trabalho simples e que exige do profissional um preparo. Mesmo preparado trabalha-se no
limite da contratransferência e é esperado que atritos ocorram.
Todos esses elementos – a livre associação, os casos relatados a partir da memória, um
lugar em que os sentimentos experimentados na atividade profissional podem ser tratados
sem críticas, a contratransferência do médico e do líder – estão também presentes nas
pesquisas de Michael Balint. Faremos uma revisão da psicossomática a partir do surgimento
da psicanálise para podermos situar as pesquisas de Balint dentro da história da medicina
32
psicossomática. Posteriormente seguiremos com um revisão do trabalho de Balint junto aos
médicos.
1.6 DA PSICOSSOMÁTICA AOS ESTUDOS DE BALINT
Oriunda da medicina, era natural que a psicanálise e a medicina mantivessem um
estreito relacionamento. Curiosamente, Georg Groddeck (1866-1934), um médico alemão
que nunca havia exercido a psicanálise é considerado um dos pioneiros da medicina
psicossomática. Groddeck tinha suas próprias teorias e para ele não havia distinção entre
mente e corpo. Tanto as doenças orgânicas quanto as neuroses eram fruto de uma construção
simbólica. Com isso o médico queria dizer que não acreditava em doenças no corpo e nem
em doenças psíquicas, mas que tudo era representação de uma fonte única que chamou de
Isso (LE VAGUERÈSE. In NASIO, 1995). O tratamento deveria ser focado na força da
relação do paciente com o médico. Obedecendo de maneira quase religiosa ao médico, o
paciente se curava de seus males. Groddeck era uma pessoa singular e Freud concedeu-lhe
um lugar entre os psicanalistas e aproveitou a sua concepção do Isso na construção de seu
último modelo para a mente humana. Suas teorias, entretanto, não eram compatíveis nem
com a medicina clássica e nem com a psicanálise e ele não teve seguidores. O próprio Freud
escreveu um artigo sobre as doenças somáticas oculares com base na neurose, mas ele estava
mais interessado em construir a dinâmica da mente e já havia aberto frentes demais para
ainda disputar um lugar com a medicina (SAPIR, 1972). Outros precursores da psicanálise
como Jellife e Ferenczi também escreveram sobre doenças orgânicas e juntamente com Freud
e Groddeck podem ser considerados os pioneiros na medicina psicossomática.
A hipótese que o inconsciente freudiano poderia explicar a fisiopatologia das doenças
orgânicas de etiologia desconhecida fascinou muitos pesquisadores. Formou-se, assim, na
década de 50 uma corrente da psicossomática nos Estados Unidos liderada por autores como
Dunbar, Alexander e Seguin centrada na nosologia médica.
Esses autores não viam a doença orgânica como um símbolo que refletia um conflito
psíquico tal como Groddeck preconizava. Consideravam a existência de dois pontos de vista
distintos: um psíquico e outro fisiológico, cujo ponto de ligação entre essas duas fisiologias
eram as emoções. Assim, a doença orgânica seria a manifestação defensiva contra as fortes
emoções geradas pelos conflitos psíquicos. As emoções passavam a funcionar como elo de
ligação entre a vida psíquica e a doença orgânica. Atrelada a nosologia médica, esses autores
33
passaram a associar para cada doença orgânica de etiologia desconhecida um temperamento
específico. Ao reduzirem a vida mental às emoções, sem se darem conta, esses psicanalistas
se distanciavam da psicanálise que tem como essência a história do indivíduo e não as
emoções ou o caráter (SMADJA, 2008).
Concomitantemente, surgem na Europa concepções distintas sobre o sentido da doença
orgânica. Na França, autores como Pierre Marty, Michel Fain, Michel de M`Uzan e Christian
David fundam a Escola Psicossomática da Sociedade Psicanalítica de Paris. Para eles, a dor
física também não era a expressão simbólica de um conflito como para Groddeck ou como no
modelo da histérica de Freud mas, ao contrário, expressava um fracasso na capacidade de
simbolização do sujeito. Ou seja, a doença orgânica era o resultado de um processo muito
regredido, quando ainda não havia diferenciação possível entre corpo e mente. A
contribuição do grupo era significativa e ampliava o conceito de doença psicossomática.
A doença não se restringia ao conflito psíquico e à simbolização mas, ao contrário, a
instalação da doença orgânica era decorrente das dificuldades de subjetivação, simbolização e
conflitos intrapsíquicos. A doença ocorria em pacientes com dificuldades em fases muito
precoces da vida que não puderam desenvolver um processo que Pierre Marty chamou de
mentalização. O termo significava as várias camadas da vida mental que inclui a vida
fantasmática, simbólica e representativa, assim como a fluidez, ou seja, a facilidade de acesso
dessas camadas à consciência. Diferentemente dos pacientes neuróticos clássicos, os
pacientes psicossomáticos têm poucas queixas psíquicas, poucos conflitos e demandas, uma
pobreza ou carência mental, conhecido como desmentalização (MARTY, 1998).
Outra autora estudiosa, pioneira na área psicossomática, Joyce McDougall (1978),
também considera que a dor física expressa uma diminuição da capacidade de simbolização.
A dor provocada pela representação mental do conflito é insuportável a tal ponto que ocorre
um curto-circuito e os afetos são “ejetados” do sistema psíquico. Ocorre uma desafetação e a
doença orgânica surge como um ato, algo material e palpável, que ocupa o lugar do conflito
psíquico (McDOUGALL, 1978)9.
9 As semelhanças e as diferenças entre os pensamentos de Pierre Marty e Joyce McDougall foram melhor
explicadas no trabalho de Peres (2006).
34
1.7 MICHAEL BALINT, MÉDICO, PSICANALISTA REVOLUCIONÁRIO
OU EDUCADOR?
No final da década de 50, na Inglaterra, Michael Balint desenvolve uma linha de
pesquisa própria nas áreas de psicanálise e medicina. A sua visão sobre a psicossomática não
se limitava a questões clínicas específicas, mas atingia toda a prática médica e seus
paradigmas. Balint coloca em questão a medicina que buscava a etiologia apenas nos órgãos
dos pacientes e passa a pensar a doença como um evento situacional, sendo parte da história
da pessoa. Para que essa medicina fosse praticada faltaria uma formação psicológica
específica para que o médico pudesse conter o seu anseio de cura. Balint pensava que a boa
prática médica não poderia ficar limitada ao pensamento científico em que o sujeito é
concebido como objeto de pesquisa. O psicanalista não desejava destruir os avanços da
medicina, mas incluir no pensamento médico uma medicina relacional, medicina de duas
pessoas (FAURE, 1978, p. 39). A medicina para um pessoa fazia mal ao doente:
A mudança surgiu quando compreendemos que um grande número de pessoas que
demandavam uma intervenção cirúrgica ou médica, na verdade, sofria de problemas
afetivos. Oferecer-lhes um tratamento cirúrgico ou médico mostrou-se ineficaz e
inútil, um gasto de dinheiro, de tempo e de energia que frequentemente se revelou
provir de uma grave negligência ou mesmo de crueldade (BALINT, in
MISSENARD et al., p. 9).
A partir do final da década de 40 Balint passa a se preocupar com o papel do médico
como um fármaco:
Por que é tão frequente que apesar dos honestos esforços de ambas as partes, a
relação entre médico e paciente resulta insatisfatória, e mesmo infeliz? Ou, em
outras palavras, por que acontece que a droga “médico”, não obstante o aparente
cuidado com que é receitada, não produz os efeitos desejados? Quais são as causas
deste desenvolvimento involuntário, e como evitá-lo? (BALINT, 2005, p. 5).
Era preciso desenvolver uma técnica psicológica específica para o médico e
desenvolver um método para instrumentalizar o médico.
Em resumo, podemos dizer que a situação do clínico geral, mesmo contendo muitos
elementos de ordem fantasmática, é mais próxima da realidade do que a situação
psicanalítica. Para poder enfrentar problemas inerentes a seu universo profissional, o
clínico geral precisa de uma técnica psicoterapêutica que, devemos admiti-lo, será
consideravelmente diferente da nossa. Ao utilizar amplamente nossas descobertas,
esta técnica não será uma forma superficial ou enfraquecida da técnica psicanalítica
(BALINT, in MISSENARD et al., p. 14).
Balint considerou que os sentimentos experimentados pelo médico na consulta seriam
uma informação preciosa quando se tratava da relação entre duas pessoas.
35
Para percebermos isto, estabelecemos um princípio segundo o qual se o médico
sentir alguma coisa enquanto cuidar do paciente, de modo algum deve agir segundo
seus sentimentos, mas fazer uma pausa e considerá-los como um possível sintoma
da doença do paciente. Neste caso, o fato de o médico experimentar tais sentimentos
significaria que o paciente os provoca e que o médico poderia ser uma vítima –
talvez, consentida – que não poderia evitar responder assim ao paciente (BALINT,
in MISSENARD et al., p. 15).
Contemos um pouco da trajetória do autor para que possamos compreender os
instrumentos teóricos e práticos que nortearam as suas pesquisas e a ousadia que teve ao
construir uma linha de pesquisa para mudar a maneira de se praticar a medicina.
Como psicanalista e judeu, Michael Balint emigra da Hungria para a Inglaterra levado
pela maré fascista que assolava todo o continente europeu no final da década de 30. Balint vai
para Manchester casado com a sua primeira esposa, Alice Balint. Tinha que sobreviver como
psicanalista em um idioma que não dominava. Falece a sua esposa e no ano de 45 Balint
chega a Londres já com parte da reputação, que havia conquistado como psicanalista na
Hungria, recuperada. É então promovido para a função de psiquiatra consultor na clínica
Tavistock. A clínica gozava de grande prestígio desde os anos 20 pelo trabalho na assistência
psicológica da população ocidental no pós-guerra.
Enid Eichholtz era psicanalista e trabalhava no Instituto Tavistock onde exercia a
função de líder de um grupo de assistentes sociais. O grupo era voltado para dar suporte às
mulheres com dificuldades matrimoniais e os casos em atendimento eram trazidos para
discussão. O pós-guerra veio acompanhado de um aumento muito grande da demanda. Enid
solicita à administração da Clínica Tavistock a participação de mais um psicanalista para o
seu grupo e Balint é delegado para a função. Alguns anos depois, Eichholtz se tornaria esposa
de Michael Balint. O psicanalista propõe modificações na dinâmica do grupo. Primeiramente,
ele sugeriu que os casos fossem apresentados com espontaneidade e não a partir de fichas e
preparações prévias. Ele também solicita que o grupo comece a dar atenção para os
sentimentos despertados pelos clientes em seus atendimentos. Com isso o método original
utilizado até então pela Clínica Tavistock, aproveitado a partir das experiências da Harvard
Business School, seria modificado e se aproximaria dos princípios da terapia psicanalítica: a
livre associação e a transferência/contratransferência (JOHNSON, 2009).
Balint pensava em tratar esses relatos da mesma forma que o material onírico na análise.
Essa ideia traz uma originalidade à maneira do autor conceber a medicina psicossomática,
pois o seu foco recai sobre a queixa e não apenas a doença. A queixa é vista como uma
comunicação inconsciente do sujeito, sem, no entanto, deixar de levar em consideração
também aspectos clínicos do paciente. É importante salientar que Balint era excelente clínico,
36
com larga experiência adquirida em Berlim. A sua maneira de pensar não se conflitava com o
conhecimento médico. Ele não achava que todas as doenças orgânicas eram decorrentes do
fracasso da relação médico-paciente, mas sabia também que chegavam aos ambulatórios uma
enorme quantidade de pacientes queixosos, que passavam por muitos clínicos e especialistas
com quadros inespecíficos (BALINT, 1969).
A partir de suas experiências como líder do grupo de assistentes sociais, Balint anuncia
o seu interesse em formar um grupo de médicos em formação para uma pesquisa. Era um
modelo de pesquisa que associava treinamento e pesquisa, e Balint o nomeou de training cum
research, conhecido mais tarde como grupo Balint. O grupo era formado por oito médicos e
se reunia uma vez por semana para falar sobre os casos em atendimento. O líder exercia um
papel fundamental mantendo o clima descontraído e franco, e evitando se desviar da ideia de
um grupo de treinamento e pesquisa para um grupo de psicoterapia. A discussão dos casos
era feita de forma livre e o foco eram os sentimentos despertados no “aqui e agora” das
reuniões. Nas palavras de Enid Balint, citadas por Johnson:
Isso era para fazer os estudantes falar livremente sem apontamentos, contradizerem-
se se necessário, repensarem, lembrarem de coisas que pensavam que já haviam
esquecido; tal que aflorasse um quadro completo no qual os sentimentos do próprio
médico fosse evidente à medida que os fatos eram narrados (apud JOHNSON, 2009,
p.14, tradução nossa).
Embora o grupo tenha grande importância na dinâmica do trabalho de Balint, essa
dinâmica não parece ocupar o mesmo lugar na concepção teórica. Richard Gosling, diretor da
clínica Tavistock na época, é quem tinha grande interesse nos trabalhos em grupo e é o
próprio Gosling quem comenta sobre Balint: “Ele não tinha muito interesse no tema das
dinâmicas de grupo como tal; ele era simplesmente um médico adepto” (apud JOHNSON,
2009. P. 20). Faure compartilha desse mesmo pensamento e compreende essa opção pelo
grupo como uma tendência histórica: “O pós-guerra foi visivelmente marcado por toda sorte
de experiências de grupo e por uma investigação considerável de sua teoria” (FAURE, 1978,
p. 47). Finalmente, em uma conferência em Montreux, em 1984, Enid Balint fala: “O valor
dos grupos Balint é facilitar as observações” (apud JOHNSON, 2009. P. 14).
Na verdade, os fundamentos do trabalho haviam sido retirados das experiências de
Balint como psicanalista na Hungria. A formação psicanalítica exige um período de
supervisão em que os atendimentos dos candidatos são revistos por um psicanalista
experiente. O modelo tradicional era que o supervisor não poderia ser o próprio psicanalista
do candidato. Curiosamente, na Hungria o modelo de formação era distinto e, durante um
período, era o próprio analista do candidato que fazia as supervisões. Para que esse modelo
37
pudesse funcionar era necessário que durante as supervisões o analista não colocasse o seu
analisando em análise, mas se restringisse a mostrar como a contratransferência aparecia nas
sessões. Em outras palavras, Balint já possuía a experiência de que era possível fazer uma
análise restrita à contratransferência, evitando que essa relação se transformasse em uma
relação terapêutica. Foi justamente esse o modelo trazido para os encontros em grupo.
Balint iniciou o seu primeiro grupo em 1950. O material proveniente das reuniões foi
uma profícua fonte de reflexão que resultou no livro The doctor, his patient and the illness,
publicado em 1957. O livro se pautou por uma comunicabilidade simples, onde foram
privilegiados os relatos dos casos do dia a dia provenientes do ambulatório do médico
generalista. Balint procurava atingir o médico comum e não o psiquiatra ou psicanalista.
Termos e conceitos psicanalíticos como consciente e inconsciente, regressão, por exemplo,
são usados em muito poucas ocasiões.
Não há elaborações teóricas e não há bibliografia. No livro ele explica o método de sua
pesquisa e descreve a sua experiência com os grupos. Entre as suas principais contribuições
encontra-se a ideia de que o diagnóstico da doença é também uma construção social.
Primeiramente há uma fase não organizada que é “ofertada” ao médico. Como o profissional
não está preparado para lidar com a doença nessa fase de desenvolvimento, ele a rejeita, quer
seja por uma atitude hostil, quer seja pela desvalorização da queixa: “isso não é nada!”.
Eventualmente a doença se organiza; ganha um nome, uma estabilidade e se torna crônica.
Assim ocorre uma perigosa confusão de línguas10
, cada parte falando em uma
língua não entendida e aparentemente não entendível pela outra. Esta situação é
capaz de provocar discussões, desapontamentos e frequentemente mesmo
controvérsias abertas e batalhas (BALINT, 2005, p. 20).
Outro conceito fundamental, descrito pela primeira vez neste livro, foi o que Balint
chamou da “função apostólica” do médico.
A missão ou função apostólica significa em primeiro lugar que todo o médico tem
uma vaga mas quase inabalável ideia sobre o modo como deve se comportar o
paciente quando está doente. Embora este conceito pouco tenha de concreto e de
explícito, é imensamente poderoso e influi, segundo podemos comprová-lo,
praticamente em todos os detalhes do trabalho do médico com o seu paciente. Era
como se cada médico possuísse o conhecimento revelado do que os pacientes
deviam e não deviam esperar e suportar, e além disso, como se tivesse o sagrado
dever de converter à sua fé todos os incrédulos e ignorantes entre seus pacientes.11
10 A expressão “confusão de línguas” é bem conhecida dos psicanalistas. Um conceito chave para Ferenczi –
outro expoente da psicanálise húngara. Vê-se que Balint dialogava com a psicanálise, mas a apresentava em
termos perfeitamente compreensíveis para o público leigo. 11 Grifos do autor.
38
Precisamente por esta razão surge a ideia de aplicar-lhe o nome de ‘função
apostólica’ (BALINT, 2005, p. 161-2).
A função apostólica era, portanto, a forma como se apresenta a defesa mais utilizada
contra a angústia e a culpa vividas pelos médicos. O autor não usa o termo defesa, ao invés
ele utiliza a ideia de “padrões automáticos” de comportamento (BALINT, 2005). Em outras
palavras, comportamentos que não passam pela consciência.
Ao formular o conceito de função apostólica do médico, Balint trouxe da psicanálise
para a medicina o conceito de contratransferência. O desejo que o médico tem que o paciente
melhore teria um componente consciente e outro inconsciente. Por um lado não há nada mais
natural para um médico do que querer a melhora de seu paciente. Balint, porém, não se
referia ao desejo do médico que o paciente cumprisse os protocolos para vê-lo melhorar. Ele
se referia à necessidade que seu paciente seguisse os protocolos.
A função apostólica era a reação bruta, intensa e automática que deixava o paciente
sem muitas opções: obedecer ou enfrentar a ira de seu médico. A função apostólica pode ser
interpretado, portanto, como um pavor inconsciente do médico de: 1. Se ver abandonado pelo
paciente. 2. Ver o seu paciente abandonado. 3. Se ver abandonado pelos seus pares por não
ser digno da confiança depositada pelo contrato narcísico. Qualquer dessas possibilidades em
separado ou em conjunto expressam os temores de abandono que são revividos como medo
da separação, da castração e da morte.
Para lidar com essa porção inconsciente do próprio médico, Balint cria um espaço para
que estes pudessem falar livremente das raivas, irritações, medos, sentimentos de compaixão
que apareciam na consulta. Perdendo a vergonha dos próprios sentimentos, os médicos se
sentiriam menos ameaçados de abandono e tornar-se-iam mais tolerantes com os sentimentos
mais regredidos dos pacientes. Diminuiriam, assim, as reações automáticas: as expressões da
contratransferência do médico.
A importância dos seminários foi logo reconhecida por muitos dos participantes
(BALINT e NORELL, 1978). Ao entender a relação entre duas pessoas em sua
potencialidade terapêutica Balint criava novos paradigmas para a prática médica. Nas
palavras de Faure:
Nos parece que a intenção, de acordo com o psicanalista Michael Balint apoiado em
um outro trabalho, chegou a um conceito novo: a modificação oportuna da estrutura
médica tradicional não é outra coisa para o medicina prática senão o abandono do
modelo científico cujo protótipo é a medicina hospitalar, em benefício de uma
‘medicina da pessoa em sua totalidade’, apoiada na descoberta que o remédio-
médico é ‘o remédio mais utilizado na clínica geral’ (FAURE, 1978, p. 39, tradução
nossa).
39
Findo esse breve relato sobre a história das pesquisas de Balint sobre a relação médico-
paciente caberia a pergunta: qual a repercussão das pesquisas desse autor na atualidade? Suas
pesquisas ganharam prestígio mundo a fora. Em 1969 foi criada a Balint Society que é uma
instituição ativa até os dias de hoje. Organiza encontros, palestras, congressos e um periódico
anual. A International Balint Federation tem vinte e três países afiliados em todos os
continentes (SALINSKY, 2002). Poderíamos imaginar que o movimento Balint manteve a
sua força ou mesmo a ampliou significativamente, entretanto essa resposta não é tão simples.
Faure faz uma avaliação do III° Congresso Balint, realizado em Paris, na introdução de
seu livro de 1978, A doutrina de Michael Balint. Diz ele, não sem uma ponta de ironia, que o
Congresso deveria assegurar a todos que o “Movimento Balint” andava muito bem. Os
auditórios lotados, as trocas de experiências, os debates que terminavam de forma sempre
amistosa, tudo levava a crer em um futuro auspicioso para o “Movimento”. No entanto, Faure
não acreditava nisso e fazia um alerta. Vê nesses elementos uma acomodação enquanto havia
sinais de que a herança balintiana encontrava-se em risco. O autor elenca os motivos:
Uma tendência a transformar os grupos de formação em grupos de ensino e ampliar o
número de disciplinas na medicina.
O agravamento do “fenômeno holandês” que se recusa a enviar uma delegação para
participar da Federação Internacional Balint.
O autor explica o que seria o “fenômeno holandês”: Inicialmente os líderes do
Movimento Balint na Holanda eram médicos que haviam participado dos seminários com
Balint. Gradualmente, essa prática se modifica para um tipo de formação básica e rápida,
ministrada por monitores que ensinam um tipo de atitude diagnóstica de base psicológica
“radicalmente estranha à psicanálise”. Esse movimento não se restringe à Holanda e, em
verdade, começa a se estender para a Bélgica (FAURE, 1978, p. 8 e 9).
O autor faz uma análise da situação:
A resistência externa dos médicos ao desafio de Balint às suas funções apostólicas,
dá ânimo àqueles que “neutralizam” a Formação Balint diluindo-a como formação
“de base” oferecidas pelas instâncias profissionais quasi oficiais.
Entretanto, a “desfiguração” da Formação Balint requer também a cumplicidade
latente de uma resistência interna dos médicos já avançados em suas formações,
assim como dos líderes (FAURE, 1978, p. 9).
Essa preocupação do autor com as resistências, presentes na classe médica em geral,
mas também entre os médicos treinados e mesmo entre fomentadores da formação Balint,
40
estimulou-o a escrever, afinal, o que seria a doutrina Balint, preservando as ideias do
psicanalista que vinham perdendo a sua força original. O psicanalista, ele mesmo, nunca se
preocupou em escrever sobre as bases teóricas de sua experiência com os médicos. Priorizava
a transmissão oral deixando muitas questões em aberto para os seus seguidores.
Podemos dizer que se o movimento Balint cresceu - de fato cresceu bastante -, o fez a
partir do “movimento holandês” que, na verdade, tornou-se hegemônico. Citemos o caso dos
Estados Unidos. Num artigo de 2001, publicado no periódico Family Medicine, Alan
Johnston relata que de 1990 até 2000 o número de serviços de Medicina de Família que
utilizam os grupos para treinamento passou de 29% para a impressionante marca de 48%
(JOHNSON, 2001). Assim como propunha o “movimento holandês”, a American Balint
Society já não vê necessidade que o líder do grupo seja um psicanalista. Qualquer profissional
da equipe de saúde pode ser treinado na prática dos grupos e creditado pelas Sociedades
Balint. Nos Estados Unidos o número de psicanalistas envolvidos nos grupos Balint é hoje
muito reduzido e a tendência é que passe a ser cada vez mais reduzido, até que desapareça
(JOHNSON, 2009, p. 22).
Ao se retirar o psicanalista de cena nos grupos Balint, ganhou-se em difusão e
quantidade de líderes habilitados para a formação de grupos. Mas o que se perde ou o que se
modifica com a perda da relação interdisciplinar? Responderemos que essa mudança implica
em uma modificação da base teórica. Balint construiu sua metodologia a partir de sua
experiência como médico, mas utilizando as bases teóricas da psicanálise. Ex-analisando do
também húngaro Sandor Ferenczi, Balint também pensava a psicanálise como relação entre
duas pessoas. Faure (1978, p. 222-4) sintetiza a base conceitual de Balint que nortearam as
suas pesquisas e como se dava o processo de “cura” do paciente:
1. Os médicos agem em interação com seus doentes, é portanto por excelência o
campo típico de uma psicologia entre duas pessoas.
2. Balint descobriu que o obstáculo maior à criação de uma “atmosfera terapêutica”,
ou que permitisse a emergência de curas espontâneas, residiam nas defesas dos
médicos ou suas “funções apostólicas”.
3. A “função apostólica” aparece aqui como a usurpação da parte dos médicos do
pode de curar.
4. O poder de curar pertence ao paciente.
5. Mas está subordinado à criação da atmosfera necessária à emergência da cura
espontânea (zona de criação).
41
6. O “flash”, última contribuição Michael Balint à formação psicológica dos clínicos,
pode ser considerada como uma tentativa de pedagogia da percepção desta
“necessidade do momento” e do desenvolvimento de uma técnica que contribua
para a criação de uma “atmosfera terapêutica”.
7. A práxis da medicina geral é essencialmente um campo de relação virtual e pré-
formada na qual o médico é uma idealização conceitual geral abrindo um campo
do possível. Por outro lado, todo indivíduo concebe um modelo imaginário de
médico idealizado em resposta pré-formada à sua necessidade fundamental.
Normalmente, portanto, a relação precede a queixa.
8. Portanto, na práxis da medicina geral, a queixa veiculando por ela mesma,
fundamentalmente reivindicação e reparação, repete, então, o sofrimento primário,
não intencionalmente, mas estruturalmente.
9. Os casos de curas espontâneas no campo da medicina geral existiu sempre. Elas
revelam portanto o efeito da “atmosfera” espontânea de seu campo.
Não nos parece que Balint quisesse instituir apenas mais um instrumento pedagógico.
Balint desejava construir um instrumento pedagógico capaz de modificar os médicos e a
própria medicina. A prova disso é que Balint não parou de inovar nas suas pesquisas até a sua
morte em janeiro de 1970. Se acompanharmos os esforços das últimas pesquisas do casal
Balint para avançar em seus objetivos veremos que o grupo de pesquisa estava longe de se
acomodar e se sentir satisfeito com os resultados obtidos até aquela data.
Embora os conceitos de doença não organizada e da função apostólica não tenham sido
mais modificados por Balint, as pesquisas que levariam o médico a atingir uma “limitada,
embora considerável, transformação da personalidade” tiveram que ser repensadas (BALINT,
2005). A necessidade de lidar com os sentimentos havia sido entendida, mas como
transformar médicos-voltados-para-a-doença em médicos-voltados-para-a-pessoa? Enid
Balint explica com um exemplo simples a diferença entre as duas maneiras de ver a medicina
e o paciente: “A doença que pode ser descrita em termos de um ‘diagnóstico tradicional’ é ou
um incidente como uma perna quebrada, ou parte de uma predisposição para o acidente que
faz mais sentido se é compreendido na ideia de um todo” (BALINT, E., 1969, p. 269).
No entanto, a questão não se mostrava tão simples: afinal, dizer que uma pessoa é
predisposta para um acidente ao invés de dizer que a pessoa quebrou a perna não seria, nos
dois casos, formular um diagnóstico? Não permanecia, em essência, a mesma maneira de
42
trabalhar do médico: selecionar informações para finalmente classificar o caso e buscar a
solução mais adequada?
Enid Balint conta que percebeu que, após os primeiros seminários, os médicos
passaram a se identificar com as duas profissões: por ora eram médicos e em outro momento,
psicoterapeutas. De modo que, de forma inconsciente, escolhiam alguns pacientes que
conversavam e exerciam a função médicos-voltados-para-a-pessoa e em outras ocasiões
permaneciam como médicos-voltados-para-a-doença. Não estariam os médicos balintianos
pressionados a exercer duas profissões distintas em seus consultórios? Muitos médicos se
sentiram desconfortáveis e o conflito gerado entre os membros da pesquisa exigiu novas
pesquisas. Um novo grupo foi formado com médicos maduros e experientes nos seminários
balintianos. A ideia era que eles relatassem os casos que atendiam como “médicos normais”,
sem tentar fazer uma diagnóstico da pessoa, e que limitassem as conversas durante a consulta
a não mais do que seis minutos. Não era propriamente uma investigação da pessoa como
anteriormente proposto.
Outra característica da pesquisa é que ela seria centrada sobre o acompanhamento dos
pacientes e não sobre o diagnóstico da pessoa. A pesquisa trouxe resultados gratificantes e
levaram o casal Balint a uma nova compreensão: quando o médico queria obter informações,
seja para chegar a um diagnóstico clínico ou psíquico, ele estava se utilizando do paciente. O
casal percebeu que algo de novo ocorria quando o médico se deixava ser usado pelo seu
paciente. O consultório passava a ser um espaço em que o paciente poderia falar ou não de si
mesmo. Caberia ao médico abrir oportunidades e deixar os pacientes utilizá-las como e
quando bem entendessem.
Parecia que a questão do médico ter de deixar de ser médico para ser psicoterapeuta
estava equacionada. Não era necessário que ele fizesse um diagnóstico psicológico, mas ele
precisaria suportar estar com o paciente, ao menos durante um período da consulta, livre dos
protocolos e do cerimonial do atendimento médico:
Na minha experiência o que impedia que eles tivessem feito isso antes não era
porque implicasse em uma nova maneira de pensar, mas porque eles temiam que se
eles deixassem o paciente solto, digamos assim, eles ficariam sobrecarregados; os
pacientes ficariam próximos demais e se tornariam insuportavelmente dependentes
e demandantes (BALINT, E., 1969, p. 275).
O trabalho do grupo de pesquisa passou a ser centrado na diminuição de controle dos
médicos sobre as consultas:
Parece, portanto, que os nossos médicos começam a sentir que eles não estão em
perigo se eles permitirem a seus pacientes contar o que eles querem no seu próprio
tempo e no seu próprio jeito e que eles entendem que eles não se tornam
psicoterapeutas se eles fazem isso (BALINT, E., 1969, p. 276).
43
Essas últimas pesquisas, em que novos conceitos como o “flash” são formulados, não
foram levadas em consideração pelos grupos que hoje creditam e fomentam o método Balint.
O que se propõe é a repetição do método como apresentada em 1957 no livro The doctor, his
patient and the illness. Uma revisão das recentes publicações dos grupos Balint não se
encontra menções sobre quaisquer dos conceitos relacionados à medicina de duas pessoas e o
objetivo principal de Balint de conseguir uma “limitada, embora considerável, transformação
da personalidade” também não é mais mencionado. Os artigos parecem se ocupar apenas em
medir a eficácia em diferentes grupos de um método consagrado (ADENI et al, 2014;
AIRAGNES et al, 2014; CATALDO et al, 2005; TURNER e MALM, 2004; ADAMS et al,
2006; GRAHAM et al, 2009; SMITH e ANANDARAJAH, 2007).
Quais os resultados qualitativos alcançados pelos grupos na atualidade? Um estudo
qualitativo realizado por Merenstein e Chillag (1999) sobre o andamento dos grupos Balint
em programas de residência em três serviços de medicina de família nos Estados Unidos
concluiu que os grupos vinham funcionando, ao menos parcialmente, como grupos de apoio
contra ansiedade e tendo o líder atuando com o propósito educacional e distante do objetivo
de propiciar “uma limitada, embora considerável, transformação da personalidade do
médico”.
Alan Johnson explica com clareza as diferenças e as implicações dessas dois caminhos
trilhados pelos seguidores do método Balint. O autor sustenta que embora os grupos tenham a
genética da psicanálise, é o método da Harvard Business School que foi finalmente seguido.
O autor defende que o importante é o que surge nos encontros. Há um líder, mas ele não tem
a função de um supervisor. Essa visão é muito distante das origens balintianas. O autor cita o
psicanalista Peter Kutter que defende que as origens do método é a supervisão do
atendimento em psicanálise:
O método Balint se originou no campo da medicina. Portanto, as suas raízes devem
ser encontradas tanto na psicanálise como na medicina. Os participantes eram
médicos, os líderes eram médicos, mas eram ao mesmo tempo psicanalistas. Então
o que eles faziam segundo Michael Balint, correspondia à supervisão psicanalítica.
Essa descrição juntamente com o controle, denota o que um psicanalista experiente
faz com um colega mais novo quando este relata os problemas em seu atendimento
para aquele... Nesse sentido, supervisão é psicanálise aplicada... Portanto, o método
Balint é também uma supervisão psicanalítica. O método Balint e a supervisão
psicanalítica são portanto sinônimos (KUTTER, apud JOHNSON, 2009, p. 22,
tradução nossa)
No primeiro caso o método Balint faria parte de um instrumento pedagógico da
medicina, mas não poderia alcançar o status das outras especialidades. Seria um grupo de
discussão de casos visando um contato do médico com as emoções vividas na prática. No
44
segundo caso o líder teria a função de supervisor. Como em outras especialidades ele teria
um conhecimento que deveria ser compreendido e absorvido pelos colegas mais jovens. O
grupo de discussão seguiria como teaching cum research e faria parte de uma pesquisa em
andamento que visa causar modificações no médico, na relação médico-paciente e na própria
medicina.
Surgia para mim a oportunidade de criar um setor para trabalhar a relação médico-
paciente dentro do programa de residência em pediatria do HFSE. O setor receberia um
residente a cada mês. Mesmo não se tratando de um grupo de médicos, o trabalho
individualizado, preceptor-residente, não me causou qualquer preocupação. Acreditava que o
trabalho balintiano tinha as mesmas bases da supervisão na formação psicanalítica e não a
concepção do trabalho de grupo da Harvard Business School que havia sido transposto para a
clínica Tavistock. Mantinha em mim a ideia de que era desejável e possível conseguir “uma
limitada, embora considerável, transformação da personalidade do médico”.
Tratemos das hipóteses da nossa pesquisa realizada a partir dessa experiência
pedagógica.
45
2 AS HIPÓTESES
Antes de apresentarmos as nossas hipóteses faremos um breve histórico da
puericultura até os dias atuais que ajudarão a entender as origens históricas do zelo apostólico
na pediatria.
2.1 BREVE HISTÓRICO DA PUERICULTURA: DA DEMANDA SOCIAL E
POLÍTICA À ORDEM MÉDICA
Se olharmos a história da puericultura veremos que ela tem particularidades em relação
a outras especialidades da medicina. A puericultura não é filha direta do saber médico, mas se
inicia na construção de uma política social. Acompanhemos brevemente essa história.
Segundo Boltanski, como relata Novaes (2009) em seu detalhado trabalho sobre a
história da puericultura, as publicações sobre a saúde da criança sempre geraram interesse no
público francês. Entretanto, aquele autor identifica uma mudança de padrão ocorrida a partir
de 1885 quando nota que o tom dos artigos passa do coloquial ao doutoral e o número de
publicações aumenta consideravelmente. Passa a ocorrer também uma distribuição gratuita de
exemplares (NOVAES. In MOTA e SCHRAIBER, 2009, p.124).
O termo puericultura, cunhado por Caron em 1865, passa, a partir de 1885, a ser usado
de maneira rotineira. Em plena era da revolução industrial, as famílias muito pobres
migravam do campo para se instalar nos subúrbios de Paris atrás dos empregos nas fábricas.
Os salários, extremamente baixos, acarretavam as péssimas condições de moradia e higiene.
As consequências eram as altas taxas de mortalidade infantil e os problemas sociais que
acompanham a pobreza. A puericultura é introduzida entre vários outros instrumentos
políticos e sociais que objetivavam o controle desses grupos sociais. São criadas escolas
elementares, entidades filantrópicas e serviços médicos. Ocorre uma aglutinação de forças
vindas da pedagogia, filantropia, ciência médica, legislativa e jurídica. “Um específico
avanço científico daquela época foi fundamental para que o projeto da Puericultura pudesse
tornar-se mais eficaz: a chamada revolução pasteuriana fornece à Puericultura um corpo
teórico sobre o qual pode fundamentar-se” (NOVAES. In MOTA e SCHRAIBER, 2009,
p.125).
46
A mãe passa a ser a representante dessa ordem social dentro da família. Faz parte de
suas tarefas organizar a casa, mantê-la limpa e asséptica e se responsabilizar pelos horários e
a boa qualidade das refeições (NOVAES. In MOTA e SCHRAIBER, 2009, p.132). A
puericultura é construída e se constrói dentro de uma projeto pedagógico, social e político
mais amplo.
A inserção da puericultura no Brasil segue o modelo europeu. Com o fim da escravidão
no século XIX e com um projeto de industrialização incipiente, porém em andamento, ocorre
uma expansão da vida nos centros urbanos. As cidades são sujas, as condições de moradia
são precárias e grassam as epidemias, em particular a febre amarela. A boa alimentação é
inacessível para grande parte da população. A situação administrativa é de tal maneira
sofrível que a vacinação contra a varíola, obrigatória desde 1904, não é aplicada de maneira
sistemática (NOVAES. In MOTA e SCHRAIBER, 2009, p.136).
Fazia parte do país uma elite abastada capaz de adquirir os conhecimentos mais
modernos veiculados na Europa e, já em 1890, Moncorvo Filho inicia a difusão da
puericultura no Brasil. Dessa época até 1910 a puericultura ainda encontrava-se na fase de
difusão de uma ideia. Em 1906, o jornal Correio da Manhã inicia uma campanha
correlacionando a mortalidade infantil às más condições de higiene, que era associada, em
última análise, à ignorância das mães:
Mas, em última análise, em que reside a causa de tão grande mortalidade? À
ignorância das mães, ao analfabetismo que em nossa população domina numa
população numa proporção de 80%, são os vícios do regime, a falta de atenção para
os preceitos hoje reconhecidos ótimos, no modo de criarem-se filhos, que
incontestavelmente agravam o obituário infantil... São as chamadas moléstias
evitáveis, porque a boa higiene e os conhecimentos hodiernamente se dispõe, no
terreno da profilaxia, conseguem colocar as crianças ao abrigo do contágio e, por
consequência, do perigo desses morbos que dizimam em tão larga escala (apud
NOVAES. In MOTA e SCHRAIBER, 2009, p.141).
Moncorvo Filho funda em 1899 o Instituto de Proteção e Assistência à Infância do Rio
de Janeiro, uma entidade privada que tinha como objetivo a difusão dos preceitos da
puericultura na sociedade. O Instituto é apoiado por industriais e pelas Damas da Assistência
à Infância. No estatuto da associação consta em seu artigo 2. – “Toda senhora de moralidade
reconhecida e maior de quinze anos poderá pertencer à associação” (apud NOVAES. In
MOTA e SCHRAIBER, 2009, p.145).
A atenção médica era voltada para as questões nutricionais. A desnutrição e a diarreia
eram as principais mazelas da população pobre e o aleitamento materno era muito enfatizado
como medida crucial no combate das doenças nutricionais.
47
Somente na década de 20 é que o governo começa a se preparar para assumir o discurso
puericultor. Em 1923 é regulamentado o Departamento Nacional de Saúde Pública. Este é
subdividido em várias inspetorias: Inspetoria dos Serviços de Profilaxia, Inspetoria de
Fiscalização de Gêneros Alimentícios, Inspetoria de Profilaxia da Tuberculose, Inspetoria de
Higiene Infantil, Inspetoria de Higiene Industrial e Profissional, Serviço de Propaganda e
Educação Sanitária (NOVAES. In MOTA e SCHRAIBER, 2009).
2.2 O ESTADO DA ARTE DA PUERICULURA
Ao analisar o artigo sobre os caminhos da puericultura para o século XXI, escrito em
2003 no suplemento do Jornal de Pediatria dedicado à puericultura e promoção da saúde,
podemos inferir que o modelo do pediatra puericultor, como entendido até recentemente –
talvez o último baluarte da figura do médico generalista – está sob franco ataque:
O modelo tradicional de prática pediátrica, restrito às quatro paredes do consultório,
baseado em consultas rápidas de um médico com uma família, hoje em dia já não dá
conta de todas as demandas de um trabalho integral de promoção da saúde. É mais
do que evidente que as exigências modernas de atenção abrangente às chamadas
“novas morbidades” (problemas familiares e sociais, problemas escolares e de
comportamento, violência e maus-tratos, injúrias físicas, risco de suicídio,
obesidade, influências da mídia, abuso de drogas, riscos da atividade sexual, etc.),
somadas às ações tradicionais (monitorização do crescimento, orientação
nutricional, imunizações, etc.), excederam em muito a capacidade de atendimento
do referido modelo (BLANK, 2003, p. S14).
Logo adiante o autor aceita sem dificuldades a ideia de que o modelo tradicional de
atendimento está obsoleto e que o melhor seria dividir a tarefa com outros profissionais mais
preparados:
Quanto à exaustão do modelo tradicional de prática pediátrica, dizem os
especialistas que o caminho é a integração do médico com outros profissionais na
prestação de serviços preventivos, desde a simples utilização de auxiliares no
ambulatório, passando pela divisão real de tarefas com enfermeiros e educadores,
até a utilização efetiva de todos os recursos da comunidade. Vários estudos têm
demonstrado que enfermeiros investem mais tempo do que os médicos nas ações de
promoção de saúde, com os mesmos resultados e nível de satisfação das famílias,
podendo exercer um papel relevante, ainda pouco aproveitado (BLANK, 2003, p.
S15).
Quando o autor comenta sobre a chamada orientação antecipatória, expressão cunhada
por T. Brazelton há mais de quarenta anos para se referir à ideia de que ao médico caberia se
ocupar numa consulta dos receios que assombram os pais, ele admite que é este o pediatra
que os pais desejariam encontrar: “Contudo, continua sendo um componente chave da
puericultura, pois a maioria dos pais espera receber do pediatra aconselhamento sobre
questões de desenvolvimento, disciplina, segurança e outros assuntos próprios de cada idade”
48
(BLANK, 2003, p. S18).
Portanto ao mesmo tempo que o autor defende a implantação de um modelo mais
“moderno” para a puericultura, admite que isso não poderá ser implantado sem uma tensão
com os pais que ainda desejam um generalista orientador. O que assistimos, portanto, é a
intensificação da fragmentação e da substituição da pedagogia e da filantropia pela técnica
como projeto político da biomedicina na atualidade.
Enquanto o novo modelo norte-americano ainda não está implantado em nosso país,
podemos imaginar que os pediatras ainda hoje estejam empenhados, cada qual à sua maneira,
na conversão das famílias ao modelo da puericultura em suas bases científicas, pedagógicas e
filantrópicas que mantêm os laços com as suas raízes históricas.
2.3 O ZELO APOSTÓLICO DE BALINT NA PRÁTICA PEDIÁTRICA
Partimos do pressuposto que os médicos que iniciam a residência médica em pediatria
são pouco preparados para enfrentar as demandas subjetivas recorrentes em suas práticas.
Eles estão em constante contato com o sofrimento, são obrigados a lidar com esses desafios e
têm que recorrer aos seus recursos intuitivos e automáticos. O médico em sua formação não
pode deixar que os próprios sentimentos interfiram no ato médico. Há, portanto, uma tensão
permanente entre o sentir e o fazer na prática que Bonet (1999) chamou de tensão
estruturante. Dito de outro modo, os médicos residentes elaboram mecanismos de defesa para
lidar com o sofrimento advindos da subjetividade envolvida na prática médica. Tal havia sido
a conclusão dos estudos de Balint. O esforço dos médicos de reivindicarem um direito sobre
a maneira como os pacientes deveriam sentir e reagir às suas enfermidades era tão
generalizado que Balint criou uma expressão para definir essa forma de atuação inconsciente
do médico com seu paciente: a função apostólica. Vimos que, ao se utilizarem da função
apostólica, os médicos se protegem. Permanecem em sintonia com os compromissos
corporativos, além de manter uma distância do sujeito em atendimento. De modo que o
esperado seria encontrar esse zelo apostólico também entre os pediatras.
49
2.4 FORMULAÇÃO DAS HIPÓTESES
1. Os pediatras constroem mecanismos de defesa contra o sofrimento inerente à
prática.
2. O papel da mãe para o pediatra é construído também por elementos externos à
sua formação médica.
3. A puericultura é concebida para o pediatra dentro de um modelo tradicional da
especialidade.
4. O modelo baseado nos mesmos princípios utilizado por Balint poderia ser
utilizado na relação de um para um, supervisor-supervisando, sem riscos de
transformar a experiência em uma relação terapêutica.
50
3 OBJETIVOS
3.1 OBJETIVO GERAL
Apreender as estratégias subjetivas utilizadas por médicos pediatras em formação nos
desafios da prática clínica cotidiana.
3.2 OBJETIVOS ESPECÍFICOS
1. Estudar a pregnância do que Balint denominou da função apostólica entre os
médicos pediatras em formação.
2. Apresentar e conhecer a dinâmica de um modelo de intervenção pedagógica na
prática médica.
51
4 METODOLOGIA
4.1 MÉTODO DE COLETA DE DADOS E ANÁLISE
O objeto de estudo foram as visões dos residentes sobre a prática expressas em duas
entrevistas que foram realizadas, antes e após as discussões ocorridas durante o mês de
rodízio pelo setor de Psicossomática. A pesquisa foi naturalística, ou seja, a interferência na
rotina do setor foi restrita à participação livre e consentida na pesquisa.
Os dados foram coletados com os residentes que passaram pelo setor a partir do
segundo semestre do primeiro ano de residência. Nos primeiros meses do ano o residente
encontra-se em fase de adaptação; muitas vezes ele está ainda mais próximo da graduação do
que da ideia de ser médico. No segundo semestre ele já está mais experiente e adaptado e
começa a se ver mais próximo do que o espera como residente do segundo ano, aquele que é,
de fato, o responsável pelos plantões. Ele está mais maduro e sente-se mais capaz de discutir
seus atendimentos.
Seguimos a metodologia para entrevistas denominada Método de Explicitação do
Discurso Subjacente (MEDS) no Campo da Pesquisa Qualitativa. O MEDS foi escolhido por
ser um método introduzido e testado no campo da psicologia clínica. O método tem o discurso
do entrevistado como o seu objeto principal de interesse e oferece, portanto, uma atenção
particular ao material discursivo, tanto nas entrevistas como em sua análise. Esse método
parte de pressupostos de Foucault, de Berger e Luckmann e afirma que:
[…] ao internalizarmos uma língua nos contextos em que ela é naturalmente usada,
internalizamos todo um conjunto de conceitos, regras, valores, etc. que caracterizam
uma determinada sociedade ou grupo social em um determinado período. Esse
processo de internalização, por seu turno, nos constitui como sujeitos individuais
(NICOLACI-DA-COSTA, 2007, p. 66).
O MEDS incorporou pressupostos da psicanálise ao entender que o discurso informal
livre revela contradições entre a subjetividade do indivíduo e o seu comportamento frente à
realidade.
[…]. De modo a subsidiar a pesquisa em psicologia clínica, foi desenvolvido com o
principal intuito de trazer à tona transformações e conflitos psicológicos que muitas
vezes não são verbalizados explicitamente pelos entrevistados porque deles eles
próprios não têm consciência (NICOLACI-DA-COSTA, 2007, p. 67).
Quatorze residentes são admitidos a cada ano. Pensou-se em entrevistar pelo menos a
metade desse universo e, assim, foi estabelecido um número inicial de oito residentes
selecionados para as entrevistas. Foi levado em consideração a possiblidade que o número da
52
amostra não alcançasse o momento em que ocorre saturação de informação. A saturação de
informação é estabelecida quando o entrevistador percebe que novas entrevistas não
agregariam novas informações e as respostas tornariam-se repetitivas (NICOLACI-DA-
COSTA, 2007). Após a análise do material das entrevistas nos pareceu que o ponto de
saturação havia sido atingido. A idade dos residentes variou entre 25 e 30 anos.
Após estabelecido o número inicial da amostra, seguiu-se uma fase de construção do
roteiro de entrevistas. Para atingir o objetivo de conhecer o discurso livre do entrevistado, o
método prevê uma condução livre desse roteiro pelo entrevistador. Ao simular uma conversa
natural e espontânea, a entrevista é composta de três modalidades de perguntas: questões
abertas, que se iniciam por exemplo por: “O que você acha..?” ou “O que é que isso provoca
em você…?, perguntas de aprofundamento: “Por que…?” ou “Dá para me explicar
melhor…?, e perguntas fechadas do tipo: “Você gosta disso?”, que são esclarecidas com
outras perguntas.
Após a aprovação do projeto pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos do
Hospital Federal dos Servidores do Estado – CEP-HFSE, o preparo e a assinatura do termo de
consentimento livre e esclarecido, com autorização para gravação das entrevistas pelos
residentes, foram realizadas duas entrevistas-piloto: uma antes da experiência no setor de
Psicossomática e a outra após o término. Os ajustes foram feitos e um novo roteiro foi
preparado.
As entrevistas foram realizadas por uma entrevistadora independente. Não houve
qualquer interferência do pesquisador sobre as entrevistas até o momento da análise do
material. As entrevistas foram gravadas e transcritas integralmente, sem alterações.
4.2 PERGUNTAS PREPARADAS PARA A PRIMEIRA ENTREVISTA
A seguir apresentamos o roteiro utilizado pela entrevistadora na primeira entrevista:
1. Conte um pouco sobre a sua escolha pela medicina.
2. E por que a pediatria?
3. Você já fazia pediatria antes de entrar para a residência?
4. Você dava plantões?
5. O que você gosta na pediatria?
6. E o que você não gosta ou acha difícil na prática pediátrica? Conte uma situação.
53
7. Na sua percepção, do que depende o bom desenvolvimento do bebê e da criança?
8. Em sua opinião, por que a amamentação é desejável?
9. Como você aborda as dificuldades de amamentação?
10. Já aconteceu da mãe não cumprir a prescrição? Como foi? Como você reagiu?
11. Quais os fatores que influenciam a mãe a seguir a prescrição médica?
12. Você acha importante saber sobre a vida pessoal independente dos pais? Por que?
13. Na sua concepção existe relação entre as doenças emocionais e as doenças orgânicas?
14. Você já fez encaminhamento para psicólogo ou psiquiatra? Em que circunstância você
o faria?
15. O que significou seu pediatra na sua vida? Você tem lembranças do seu pediatra?
16. Você já esteve doente? Ou teve alguém doente na família? O que você achou do
médico?
17. Como você escolheu seu médico?
18. Que pediatra você quer ser?
As perguntas 1 e 2 foram formuladas como introdução. A ideia era construir uma
atmosfera positiva entre entrevistador e entrevistado, além de apresentar que as entrevistas
tratariam das impressões dos residentes, ou seja o teor subjetivo das entrevistas. Foram
perguntadas as motivações que levaram às suas escolhas profissionais.
As perguntas 3 e 4 visavam conhecer se lidávamos com entrevistados que se sentiam
mais perto da vida profissional ou iniciaram o contato com a prática apenas na residência.
As perguntas 5 e 6 foram formuladas para conhecer as dificuldades e os encantamentos
vividos na profissão. O que encantava na especialidade? Quais as áreas que causavam maiores
dificuldades? Eram de ordem técnica ou relacional?
As perguntas 7 e 8 lidaram com conceitos sobre a teoria da pediatria. Foram escolhidos
temas complexos onde se mesclavam questões técnicas com subjetivas e desejávamos saber
como o entrevistado integrava essas questões. No caso dessa abordagem não ser técnica, que
conceitos eram usados? Como a construção do vínculo na relação mãe-bebê era entendida?
As perguntas 9 e 10 abordaram a maneira como os residentes lidavam em situações de
não aderência. Essas perguntas estavam mais especificamente relacionadas com o zelo
apostólico.
A pergunta 11 voltou a explorar a questão da construção do vínculo, mas agora na
relação médico-paciente.
54
A pergunta 12 desejava saber sobre como é construída a intimidade na relação médico-
paciente. Até que ponto o médico penetrava na intimidade do lar dos pacientes? Como eram
utilizadas as informações obtidas?
As perguntas 13 e 14 lidaram mais diretamente com as questões emocionais. Enquanto a
pergunta 13 era mais conceitual sobre a questão da psicossomática, a pergunta 14 manteve o
foco sobre a prática relacionada às questões emocionais.
A pergunta 15, 16 e 17 trataram da experiência pessoal vivida na posição de paciente
desde à infância até os dias atuais. Pediu-se também para que o entrevistado relatasse as suas
experiências quando acompanhavam parentes que necessitavam da ajuda médica.
Finalmente, a pergunta 18 desejou saber quais os objetivos os pediatras buscavam para
as suas vidas profissionais. Quais são seriam os seus ideais ao escolher a pediatria e como
viam o futuro profissional?
Em todas as perguntas os entrevistados eram estimulados a contar casos de suas
próprias vivências. Os relatos dos casos clínicos vividos em seus próprios ambulatórios era
sempre valorizado.
4.3 PERGUNTAS PREPARADAS PARA A SEGUNDA ENTREVISTA
Abaixo encontra-se o roteiro utilizado pela entrevistadora na segunda entrevista:
1. Como tem sido a sua experiência nos atendimentos?
2. Na sua percepção, do que depende o bom desenvolvimento do bebê e da criança?
3. Em sua opinião, por que a amamentação é desejável?
4. Como você aborda as dificuldades de amamentação?
5. Por que as vezes a mãe não cumpre a prescrição?
6. Já aconteceu da mãe não cumprir a prescrição? Como foi? Como você reagiu?
7. Você acha importante saber sobre a vida pessoal independente dos pais? Por que?
8. Na sua concepção existe relação entre as doenças emocionais e as doenças orgânicas?
9. Você já fez encaminhamento para psicólogo ou psiquiatra? Em que circunstância você
o faria?
10. Você acha que você tem se modificado como pediatra?
11. A que você atribui essas mudanças?
12. Você teria alguma coisa para acrescentar ou comentar a respeito da experiência na
psicossomática em relação ao seu trabalho na sua experiência atual?
55
A segunda entrevista foi realizada para ouvir os residentes após a passagem pelo setor de
modo a propiciar reflexões sobre mudanças em suas concepções iniciais. Que tipo de questões
a intervenção havia provocado nos entrevistados? Como havia sido a experiência no setor?
Todas as perguntas foram elaboradas com esse intento.
A pergunta 1 era uma pergunta introdutória, mas também tinha o intuito de saber se
espontaneamente os residentes se refeririam à experiência no setor.
As perguntas de 2 a 9 já haviam sido realizadas na primeira entrevista. A ideia era
comparar as duas respostas – antes e após a intervenção –.
A pergunta 10, 11 e 12 provocavam os residentes a falar diretamente do setor e como
tinham avaliado a experiência no setor.
4.4 ANÁLISE DO MATERIAL DAS ENTREVISTAS
As transcrições foram abertas para o pesquisador e as gravações das entrevistas foram
ouvidas apenas após o término da última entrevista. A análise do material no MEDS buscou
conhecer as variações inter-participantes e uma análise individual, ou seja, intra-participante
(NICOLACI-DA-COSTA, 2007). A fim de se preservar a identidade dos participantes não
foram reveladas as idades e foram modificados dados específicos e o gênero de alguns dos
entrevistados.
Ao longo do processo da pesquisa percebemos que a segunda entrevista não poderia ser
utilizada para avaliação da eficácia da intervenção. Isto porque o MEDS não é um método de
avaliação de eficácia, mas sim uma metodologia que permite a exploração de aspectos da
subjetividade através dos discursos. A segunda entrevista, portanto, cumpriu a função de
aprofundar aspectos da primeira entrevista, bem como permitir a introdução de outras
perguntas que pudessem explorar a presença de novas concepções após a intervenção
pedagógica. As perguntas da segunda entrevista que já haviam sido formuladas na primeira
entrevista, por sua redundância, foram abandonadas.
Para a análise do material usaremos os conceitos desenvolvidos por Balint em suas
pesquisas sobre a relação médico-paciente, principalmente o conceito de zelo apostólico.
Apresentaremos a seguir os resultados da pesquisa.
56
5 RESULTADOS
A amostra foi de oito residentes. Dois eram do sexo masculino e seis eram do sexo
feminino. A primeira participante da pesquisa fez a sua primeira entrevista em julho daquele
ano. Todos os sete residentes seguintes a passar pelo rodízio no setor de Psicossomática
aceitaram participar da pesquisa.
As entrevistas transcorreram sem dificuldades, de maneira cordial e franca. A duração
das entrevistas variou de quatorze a trinta e sete minutos, com uma média de vinte e cinco
minutos. Foram formuladas dezoito perguntas na primeira entrevista e doze perguntas na
segunda.
Os resultados serão apresentados da seguinte forma: primeiramente serão feitas as
análises das respostas dadas na primeira entrevista, ou seja, antes da intervenção. Como já
explicado na metodologia adotada, as respostas foram agrupadas usando como critério o
próprio discurso dos entrevistados. Identificou-se, assim, padrões que se repetiram nas
concepções e nos comportamentos relatados pelos residentes. Nem todas as oito respostas
serão transcritas. Apenas algumas serão selecionadas para que a leitura não fique por demais
repetitiva e cansativa. As respostas que não foram apresentadas são similares a outras que
foram transcritas.
A segunda entrevista foi utilizada para relatar como os residentes sentiram a experiência
vivida no setor. Assim como na primeira entrevista, as respostas serão agrupadas em torno da
semelhança das vivências dos entrevistados.
5.1 PRIMEIRA ENTREVISTA
5.1.1 PERGUNTAS 1 E 2: A ESCOLHA PROFISSIONAL
Iniciamos perguntando aos entrevistados os motivos que os levaram a escolher a
carreira de medicina e logo a seguir era perguntado por que a escolha da pediatria como
especialidade.
57
5.1.1.1 ESCOLHA PELA MEDICINA
5.1.1.1.1 DESDE CRIANÇA
As respostas dos entrevistados mantiveram um padrão bastante uniforme. Sete dos oito
residentes relataram que a escolha profissional se fez muito cedo, ainda na infância. Abaixo
uma resposta representativa desse grupo: “Eu sempre quis fazer medicina desde pequena, não
sei muito bem porque, na verdade. Eu nunca pensei em outra coisa.”
Ocasionalmente as repostas foram ilustradas e mostraram uma força poderosa no
imaginário infantil como na resposta de dois residentes: [...] “na hora de pedir boneca eu
pedia boneca médica.” Um outro diz: “A minha escolha pela medicina é aquela coisa, começa
pela infância mesmo, que você gosta, tem brinquedo e tudo.”
Em algumas ocasiões foi mencionado que a escolha tinha sido motivada por um parente
médico. Uma residente tinha um dos pais pediatra, uma outra tinha uma tia que morava na
mesma casa e que fazia faculdade de medicina durante a sua infância.
Houve um caso em que a escolha parece ter sido motivada por oposição, para não seguir
um caminho familiar já esperado. Diz a residente: “Só que aí eu falei assim: é muito cômodo.
Não gosto de coisa muito cômoda.”
5.1.1.1.2 AJUDAR O PRÓXIMO
A ideia de ajudar o próximo apareceu na metade das entrevistas. Para exemplificar,
podemos destacar a resposta a seguir: “Eu acho assim, a gente nasce, a gente vive pra quê, né?
Para ser feliz, para buscar coisas e uma maneira de ajudar.” Ou ainda outra residente: “Eu sou
muito preocupada com as pessoas. ‘Você está bem?’ Eu sou assim, de ficar preocupada com
as pessoas.”
5.1.1.2 ESCOLHA PELA PEDIATRIA
Enquanto a escolha pela medicina surge muito precocemente na vida dos entrevistados,
a opção pela pediatria se dá aleatória e inesperadamente na metade do grupo. A motivação
mais citada e que levaria à escolha da especialidade foi o afeto pela criança. Parece que
58
embora todos tenham optado pela criança, a ideia de tratar de crianças é uma escolha posterior
na formação. Vejamos algumas das respostas.
5.1.1.2.1 AFINIDADE PELA CRIANÇA E UM ESCOLHA PRECOCE
Uma das residentes comenta: “Na faculdade... eu já entrei na faculdade querendo fazer
pediatria. Que eu sempre gostei muito de criança. Sempre me identifiquei muito, assim,
cuidar da criança.” A seguir, outra resposta semelhante: “A pediatria eu já tinha na cabeça o
modelo dele, mais ou menos, e eu sempre tive uma facilidade maior, assim, de lidar com
criança. Aí... mas assim, eu entrei na faculdade querendo pediatria.”
5.1.1.2.2 AFINIDADE PELA CRIANÇA E UM ESCOLHA TARDIA
É interessante notar que a opção pela pediatria se faz nesse grupo de uma maneira
repentina e pouco racional como ocorre nos processos inconscientes. Vejamos um exemplo:
Foi igualzinho, foi a mesma coisa, sempre me interessei por pediatria, sempre gostei
muito de criança, mas eu nunca achei que eu teria vocação, nem disposição pra
trabalhar com criança. [...] Eu decidi que ia fazer otorrino. Estudei quase o ano
inteiro pensando em otorrino e aí no final do ano fiz uma viagem pra Europa e
quando eu voltei, falei: gente, que otorrino o quê!
5.1.1.3 CONCLUSÃO DA ANÁLISE DAS PERGUNTAS 1 E 2
Enquanto a escolha profissional estava associada a ideia de fazer o bem, a escolha da
especialidade revela uma forte ligação com a criança. Essas escolhas ocorrem muito cedo na
vida dos residentes e estão muito associadas à maneira de ser e pensar o mundo, enfim, à
percepção de si mesmos.
5.1.2 PERGUNTAS 3 E 4: A EXPERIÊNCIA PROFISSIONAL
As perguntas seguintes buscaram acessar a experiência profissional dos participantes.
Hoje é bastante comum que um residente de pediatria complemente a sua renda mensal com
plantões em unidades privadas fora da residência. Queríamos conhecer as experiências
profissionais anteriores do grupo. Apenas duas residentes afirmaram ter passado por essas
experiências profissionais até o momento das entrevistas. Uma tinha trabalhado em clínica
médica, mas nunca em pediatria e a outra trabalhou em pediatria, mas apenas por um período
59
de dois meses. De modo que podemos concluir que a experiência com pediatria no grupo era
restrita às atividades de ensino e da residência.
5.1.3 PERGUNTAS 5 E 6: POSSÍVEIS ORIGENS DO ZELO APOSTÓLICO –
DO QUE GOSTA E DO QUE NÃO GOSTA NA PEDIATRIA
Se considerarmos o zelo apostólico como reação e uma “tomada de partido” do médico
na consulta, podemos pressupor que naquilo que o residente manifesta dificuldades em lidar
estarão as origens das reações imediatas, dos conflitos nos atendimentos. Por outra lado, se
estendemos o conceito do zelo apostólico não apenas para a predisposição ao conflito, mas
também para a fuga dos conflitos que soem ocorrer em relações de tanta responsabilidade,
devemos ter em conta que aquilo que é fácil e agradável para o residente poderá também ser a
origem de situações avaliadas sem a devida isenção.
As perguntas foram formuladas querendo saber do que o residente gostava e do que não
gostava na especialidade. As respostas revelaram as aspirações e os prazeres com a atividade
profissional e também as dificuldades e os sofrimentos vividos na prática.
5.1.3.1 A RELAÇÃO COM A FAMÍLIA E A RELAÇÃO COM O ADULTO
Duas pediatras manifestaram que o interesse na pediatria tem relação com o acesso à
família. A criança é a porta de entrada para a família e isso instigava. Uma residente se
expressou assim sobre o que gostava na especialidade: “Acho que o contato com a criança
mesmo, tentar entender a família. Acho que na consulta de criança, por exemplo, você tem
que tentar entender mais o que tá acontecendo por trás do que só: ‘Ah não vamos examinar, é
isso, é isso, é aquilo’...” Uma outra demonstrou uma concepção semelhante: “Você tem que
conhecer mais a fundo, conhecer a família, que é fundamental na criança. Acho que mais que
num adulto até. Você tem uma influência muito forte família, que é o universo da criança,
ainda.”
Quando perguntadas do que não gostavam na especialidade é interessante notar que o
interesse pela família não se conflita com a dificuldade em lidar com o adulto. Uma delas
relata: “Eu não sei, nunca consegui me relacionar muito bem com adultos. Eu acho que a
criança tem uma linguagem mais simples, acessível, sempre tive mais sinceridade.” E
60
complementa o seu discurso ao falar de suas experiências nos plantões de emergência em
clínicas privadas:
A mãe, normalmente é poliqueixosa, as que eu tive contato até agora. ‘Ah, meu filho
está com tosse.’ Não é só essa queixa. ‘Que ele não tá comendo, na escola ele está
ruim, também.’ Aí começam várias queixas. É complicado, também, lidar. E o pai
muitas vezes fica agressivo.
Portanto, é possível conjecturar que, para alguns residentes, a criança é uma porta de
entrada para se chegar perto de toda a família, mas será difícil alcançar esse lugar sem
superar algumas dificuldades em lidar com os adultos.
5.1.3.2 A IDEALIZAÇÃO DA CRIANÇA E AS DIFICULDADES DE SE RELACIONAR
COM O ADULTO
Embora tenhamos optado por separar esse grupo do anterior, de uma certa maneira os
dois grupos expressam a mesma dificuldade na relação com o adulto. Entretanto nesse grupo
sobressai no discurso não essa dificuldade, mas a idealização da criança. Nas respostas a
essas duas perguntas se misturam as imagens angelicais das crianças com as dificuldades da
relação com o adulto, como exemplificado nos discursos a seguir. Em alguns discursos a
separação entre a mãe e a criança fica bastante evidente. Um exemplo chama a atenção pela
franqueza com que a residente coloca a mãe como alguém que “atrapalha” o trabalho do
pediatra: “E o que eu não gosto, o que eu acho mais difícil, às vezes é a situação com a mãe,
porque você depende da mãe; que a mãe cuide da criança.” Podemos imaginar que essas
concepções deverão aparecer nas consultas como zelo apostólico.
A oposição entre o adulto e a criança foi apresentada associando-se a criança à verdade
e pureza, e o adulto à mentira, a farsa. Vários residentes fizeram comentários dessa natureza.
Citemos três desses discursos. Uma das residentes diz:
Eu acho que crianças são muito verdadeiras, mais puros, não têm muita mentira.
Não sei, você tem mais até coração, você se empenha, acaba se empenhando mais,
porque... acaba se doando mais, tem uma diferença dentro você quando você olha
uma criança, pura, falando a verdade, não está mentindo quando está sentindo dor,
do que quando você não sabe realmente o que é, porque tem muita coisa por trás
quando você vai lidar com adulto, assim.
Uma outra tem as mesmas convicções:
Porque eu acho que a criança, ela tem exceções. A criança, ela não mente. A criança
quando está com dor, eu acredito muito mais, do que quando um adulto fala que está
com dor. A criança quando está mal, ela não consegue fingir que não está mal. Tem
as duas vertentes: tem aquela pessoa que finge demais que está muito mal e aquela
pessoa que está muito mal e finge que está bem. Eu acho na criança eu consigo ver
isso muito mais fácil. Eu acho a pureza da criança me atrai mais.
61
Podemos apreciar o discurso da mesma médica ao se referir às suas experiências num
plantão de emergência em uma clínica privada: “Lidar com as mães. É muito difícil! Eu acho
isso muito, muito difícil.[...] Então se você não atende o filho dele na hora que ele mandou,
você é um médico que não vale nada, você é uma médica ruim.”
Um terceiro discurso será transcrito a seguir:
Eu não sei se é só uma mentira ou se as pessoas querem se sentir acolhidas, querem
receber um pouco de atenção e não é muito o meu perfil. [...] Mas eu acho que
aquela situação dele ter ido procurar uma emergência, né, por mais dele não ter
clínica e nenhuma queixa de nenhuma patologia, nenhuma doença, de nenhum
sintoma. E aquilo se tornar uma consulta psicológica assim, né, uma terapia, aquilo
me incomodava. As pessoas podem ter dificuldade emocional, mas emergência é um
lugar que deveria ser entendido como um lugar pra você ir, quando você realmente
precisa de ajuda urgente. E acho que isso foi uma coisa que me... é como se fosse
um desapontamento, assim. Fiquei desapontada, assim...
Embora de natureza semelhante aos discursos anteriores, esse fragmento traz elementos
que exigem uma reflexão a parte. A colega expressa de forma muito franca e consciente o
desapontamento que é para ela que as questões emocionais não se dissociam das questões
orgânicas. Ela se mostra sem disponibilidade para acolher o adulto e então escolhe a pediatria.
Mais uma vez, é possível imaginar que essas concepções não poderão deixar de aparecer na
relação com as mães, pais e avós e o zelo apostólico deverá se fazer presente com bastante
frequência e intensidade.
5.1.3.3 O SOFRIMENTO DE VER A CRIANÇA DOENTE
O sofrimento que os médicos passam ao acompanhar de perto as crianças enfermas foi
lembrado por dois residentes. Apresentaremos o relato de uma delas. Para essa residente as
queixas e as invencionices das mães não eram questões preocupantes:
O pessoal fala: Ah, pediatria é difícil, porque têm as mães chatas, mas eu não to
tendo essa resistência. Lógico que existe, eu to fazendo, agora, sim eu to fazendo
plantão só em pediatria, óbvio. E lógico que existe. Mas assim, é muito gostoso
trabalhar com pediatria pelo seguinte: eu falo isso sempre pra muita gente, mas
pediatria... Gente, a pediatria é muito bom!
Por outro lado, o sofrimento vivido pela residente quando começou a acompanhar casos
graves, quase a fez desistir da especialidade. Destacamos um fragmento de um extenso relato:
Aquilo me chocava um pouco. As mães, que acaba se envolve todo mundo, né?
criança não tem jeito, envolve a família, mãe, pai, irmãos e avós, enfim, todo mundo
que vem. E aí eu fiquei assim... eu chegava em casa todo dia triste. A sensação que
eu tinha era que eu estava triste.
62
5.1.3.4 O COMPORTAMENTO DAS CRIANÇAS
Um dos residentes apresenta concepções diferentes dos seus colegas. Apenas esse
colega e a residente mencionada acima não parecem ter dificuldade em lidar com os adultos.
Embora todas comentem que as mães as vezes exageram, isso não é o motivo de desconforto
na escolha da especialidade. Para esse colega as crianças livram-se facilmente das doenças e
esse é um dos motivos que o levou a escolher a pediatria. Ao contrário dos colegas, para esse
residente o mais difícil é lidar com as crianças mal comportadas:
A parte difícil na pediatria, eu acho que tem certas crianças muito difícil de lidar,
mesmo. Às vezes é estressante você chegar pra fazer o ambulatório já cansada e tem
a criança que não quer colaborar. Pelo menos o adulto tem essa parte boa de que ele
é mais colaborativo, ele consegue expressar melhor o que você quer saber.
5.1.3.5 UMA ESTRATÉGIA PARA LIDAR COM A ANSIEDADE DAS MÃES
Uma residente também expressou as dificuldades em lidar com as mães ansiosas. De
maneira alguma esse discurso é semelhante aos anteriores. As mães são de fato ansiosas e a
residente parece tolerar bastante bem, diferente de muitas dos residentes acima. Esse relato é
trazido para apresentar a estratégia usada pela médica para lidar com a ansiedade da mãe:
“Acho que o mais difícil na pediatria é a ansiedade da mãe. Lidar com a ansiedade da mãe.
Acho que é o mais difícil. Você aprende a lidar, mas as mães são sempre muito ansiosas”. E a
residente completa: “Você tem que ser muito clara e muito segura, porque senão elas...” Não
é possível saber o que completaria as reticências do discurso, mas o discurso dá a entender
que a residente precisa colocar um limite nas queixas e na ansiedade das mães. Ao invés de
dar espaço para discutir os motivos que as deixam ansiosas, de têm medo, a médica opta por
se colocar de modo afirmativo, diminuindo os espaços para dúvidas. Essa postura didática e
afirmativa poderá aparecer como zelo apostólico. Veremos essas estratégias mais à frente
quando lidarmos com os conflitos da relação médico-paciente.
5.1.3.6 CONCLUSÃO DA ANÁLISE DAS PERGUNTAS 5 E 6
As respostas ajudam a refletir sobre algumas das dificuldades que devem passar os
pediatras no exercício de sua atividade profissional. O desejo é estar perto da família, mas
lidar com o adulto e com suas demandas gera tensão e pode até ser penoso. Alguns se
63
distanciaram da clínica médica e foram buscar na pediatria um lugar de apaziguamento dentro
da medicina. Ficar mais perto da criança deveria trazer mais afeto e paz para esses residentes.
A ilusão começa com a escolha profissional, pois o adulto é parte inerente da prática médica,
mesmo na pediatria. A escolha profissional poderá trazer sérias desilusões para esses
residentes. A imagem idealizada da criança se contrasta com o sofrimento, a doença e a morte.
A atividade clínica pelos pediatras deve ser vivida em um constante ajuste entre uma
expectativa idealizada e uma realidade que não se encaixa em absoluto nessas expectativas.
Essa tensão parece ser ainda mais evidente quando os pediatras trabalham nos hospitais
privados, onde pais se sentem com mais autoridade sobre a conduta dos médicos.
Mais adiante daremos mais atenção às estratégias usadas pelos entrevistados para lidar
com o sofrimento inerente à prática da pediatria. Porém, uma das residentes se antecipa e fala
de sua estratégia para limitar o sofrimento trazido pela mãe. Ao ser clara e firme a residente
imagina que as ansiedades das mães serão contidas.
5.1.4 PERGUNTAS 7 E 8: CONCEPÇÕES À RESPEITO DA
PUERICULTURA
Veremos nas duas perguntas que se seguem algumas concepções que têm os residentes
sobre a puericultura. A primeira pergunta quis saber quais fatores são responsáveis pelo
desenvolvimento da criança. A segunda pergunta avaliou o que os residentes pensam sobre a
amamentação ao seio. Por meio dessas duas perguntas foram apresentadas suas ideias sobre
os cuidados maternos, o bebê e o vínculo mãe-bebê. Apresentaremos primeiramente as
concepções sobre os cuidados maternos e depois sobre o bebê. Se as perguntas anteriores
focaram nas diferentes concepções que tinham os entrevistados sobre adultos e crianças, essas
perguntas visaram saber que concepções tinham sobre a mãe e o bebê. Conjecturamos que as
maiores ou menores idealizações sobre os adultos e as crianças influem na relação médico-
paciente. Da mesma maneira essas ideias sobre a maternidade, a mãe e o bebê devem ter um
papel na maneira como os médicos exercem as suas práticas.
64
5.1.4.1 A MÃE
5.1.4.1.1 UM MÍNIMO DE CUIDADO
Todos concordaram que o bom desenvolvimento da criança depende da atuação dos pais.
No entanto, os residentes apresentaram concepções diferentes sobre a maneira como os pais
deveriam atuar em seus cuidados para que o bom desenvolvimento da criança ocorresse. A
palavra “cuidado” foi enfatizada por dois residentes. Não ficou tão claro o que os residentes
entendiam por cuidado, mas no caso ressaltamos justamente esse aspecto inespecífico e amplo,
como mencionou uma das residentes: “O cuidado dos pais. Da família, não necessariamente
dos pais. O cuidado dos responsáveis por ele.”
Outro residente esclarece melhor a sua posição e fala de cuidado como um conjunto de
ações dispensadas à criança: “Criança pequena precisa de muito cuidado pra ter essas
preocupações todas mesmo, adequadas de higiene, de comida, de o mínimo de educação
também.” Chama a atenção o uso da palavra “mínimo” no discurso. Veremos que a ideia de
“dar o máximo” aparecerá em outros discursos.
5.1.4.1.2 O ESTÍMULO COMO REPRESENTAÇÃO DO CUIDADO
No discurso de muitos residentes o termo estímulo é muito utilizado quando falam sobre
o cuidado materno. Seria como se o estímulo compreendesse a essência do cuidado com a
criança. Assim, se expressa uma das residentes: “Não adianta a criança ter muitos brinquedos,
uma criança ser super bem alimentada, ter tudo de bom e não ser estimulada pela família, não
só pelos pais, né? Pela família. Não é só deixar: deixa ali que ela vai falar, vai aprender. Não,
não é assim.”
Um discurso semelhante tem outra colega: “Depende dos pais, também, de estímulos...
eu acho que é mais estímulo dos pais mesmo.”
5.1.4.1.3 O CUIDADO COMO ABNEGAÇÃO E SACRIFÍCIO
Finalmente, chama a atenção uma outra concepção de cuidado em que os pais devem
passar por grandes provações e sacrifícios. Na opinião de um desses entrevistados a mãe se
sacrifica e não pode falhar: “Aí, assim, a mãe está preparada emocionalmente,
65
psicologicamente, querer aquilo, ter carinho pela criança, se doar mesmo. Não deixar passar
nada, ter acompanhamento, desenvolvimento físico, motor, de linguagem.”
Outra residente apresenta um discurso semelhante e cita um caso em que uma mãe abre
mão da própria saúde pelo bem estar da criança. A maternidade está associada ao ato heroico:
Acho que quando a mãe quer que o filho fique bem, ela não se importa em abrir mão
de algumas coisas. A gastroenterologista falou: tira tudo e você vai comer só isso. E
durante um bom tempo ela fez só isso, porque ela queria que a criança crescesse, se
desenvolvesse, não tivesse um problema mais grave. Isso para mim foi um exemplo,
apesar de às vezes eu achar radical. Ela emagreceu dez quilos.
A ideia de dar o máximo reaparece como conceito na expressão “não deixar passar nada”
ainda que haja um sacrifício da mãe. Uma das residentes fala sobre isso de uma maneira
curiosa. Num primeiro momento ela afirma que com o segundo filho a ansiedade da mãe
diminui e isso seria positivo. Entretanto, logo a seguir ela expressa a dúvida se no caso de
uma redução na ansiedade da mãe, o bebê não ficaria em risco. Ela comenta sobre o segundo
filho: “Ela fica menos ansiosa. Às vezes fica tão menos ansiosa que até prejudica. Acha que
tudo é uma besteira. Mas a ansiedade melhora muito.”
5.1.4.1.4 ESTRUTURA SOCIAL
Duas residentes associam o bom desenvolvimento da criança com um boa estrutura
social e financeira. Seja através da abnegação, seja pelo estímulo ou fornecendo uma melhor
estrutura social, esses residentes pensam no cuidado mais como uma doação da mãe para a
criança. O prazer na realização da tarefa e os ganhos que a mãe tem ao cuidar da criança não
aparecem nos discursos.
5.1.4.2 O BEBÊ E O VÍNCULO
Vimos como pensam os residentes a respeito do que deveria ser o comportamento
adequado das mães para que seus filhos crescessem com saúde. Adiante veremos, a partir da
pergunta sobre a importância da amamentação, algumas das concepções que os residentes têm
sobre o bebê.
66
5.1.4.2.1 O BEBÊ FORMADO E CRÍTICO
Todos os residentes compreendem a amamentação em uma dupla finalidade: o alimento
ideal do ponto de vista nutricional, imunológico, biológico e o seu valor na fomentação do
vínculo mãe-bebê. A maneira como a amamentação “atua” na construção do vínculo é vista
de maneira distinta entre os residentes. Pode-se agrupar as respostas em duas concepções
diferentes a esse respeito. Na primeira, o residente entende que a amamentação engendra,
promove, estimula, enfim, faz surgir um vínculo onde não existia nada. Nos discursos pode se
notar que o bebê descrito por esses colegas está bastante maduro em sua formação e é capaz
de julgar e aprovar ou desaprovar a mãe, como no discurso a seguir: “Fora o merecimento de
vínculo, se sente mais cuidado, mais unido a sua mãe, a sua mãe está ali se dedicando a você.”
Outros residentes compartilham da mesma visão sobre o bebê. A relação da mãe com o
bebê pode ganhar um caráter belicoso como se houvesse dois seres já formados que podem
entrar em litígio como salienta o trecho do discurso de uma outra colega: “Ah, porque
machuca, porque a criança não quer mamar cria um estresse muito grande, e a mãe transmite
e acaba impelindo a criança mesmo, repelindo, né?”
Uma outra residente faz uma associação entre as crianças raivosas com aquelas que não
foram amamentadas ao seio: “Assim, no ambulatório que eu tenho visto as crianças que não
mamam no peito, elas são crianças mais irritadas, mais revoltadas.” A criança, portanto, reage
como se pudesse ter um julgamento sobre a amamentação ao seio.
5.1.4.2.2 AMAMENTAÇÃO COMO ESTÍMULO AO VÍNCULO E DEPENDÊNCIA
Duas residentes demonstraram fazer confusão entre relação afetiva e dependência. Para
essas colegas o aleitamento é desejável, pois ajuda o bebê a permanecer mais colado à mãe.
Essa é a posição dessa residente: “Acho que estimula essa coisa de cuidadora, da mãe, de
cuidar, da criança depender dela. Da criança interagir com a mãe, reconhecer aquela como a
cuidadora.”
No trecho a seguir da entrevista de outra residente não fica claro qual foi o sentido que a
médica quis dar ao termo apegado. No entanto, a ideia que ela passa é que existe um confusão
entre a ligação afetiva e a ligação de dependência: “Acho que a criança fica muito mais
apegada, entre aspas, né, apegada no bom sentido. Não é aquele apegado de... Fica muito mais
apegada à mãe.”
67
5.1.4.2.3 O BEBÊ SENSORIAL
Para outros entrevistados o processo de formação do vínculo ocorre de maneira distinta.
Nas respostas desses outros colegas se nota que a amamentação é compreendida como uma
experiência corporal e sensorial. E a própria maternidade é construída a partir de um contato
entre corpos, como ressalta esse colega: “O próprio contato, eles começam uma aproximação
melhor, a criança quase que identifica a mãe pela amamentação e a própria mãe começa a ter
mais ligação com o filho quando ela está naquele momento na amamentação.”
Outra residente detalha ainda melhor os componentes sensoriais do contato: “Eu não
acho nem que seja tanto.. Eu acho que sim, lógico, é o laço da mãe com o filho. Ali é todo, né,
pele a pele, é o cheiro, enfim, a mãe tá passando tudo para o filho.”
5.1.4.3 CONCLUSÃO DA ANÁLISE DAS PERGUNTAS 7 E 8
Poucos residentes trazem consigo a ideia de que cuidar e amamentar a criança são
atividades prazerosas tanto para a mãe como para a criança. O prazer que a mãe tem em
cuidar do bebê é, na realidade, uma excelente instrumento de aferição para se saber se o bebê
está sendo bem cuidado, porém isso não parece ser compreendido pelos residentes.
A maioria dos residentes, no entanto, associou os cuidados maternos a tarefas que
deveriam ou não ser realizadas. Os cuidados estão muito associados aos estímulos à criança.
São tarefas pedagógicas como ensino e estímulos cognitivos que, tradicionalmente, ficariam a
cargo das escolas, mas que hoje, para o grupo de residentes, parecem estar muito associadas à
função materna. Não que os pais não devessem se envolver com os estudos das crianças,
porém a essência do cuidado materno deveria estar focado na troca afetiva com a criança.
Outros residentes focaram no sacrifício e abnegação da mãe. Essas duas maneiras de
conceber a função materna – estímulos e abnegação – têm em comum a vigilância e a tensão.
A função materna não é pensada como prazer e relaxamento. Para esses residentes, como
colocado por um deles, a maternidade está associada a uma tensão constante e o relaxamento
está associado ao descuido, de modo que não se pode e não se deve estar relaxado.
São concepções em que a família é vista de uma forma hierarquizada: a vida da criança
tem muito valor e a vida da mãe tem menor valor. Desde o nascimento do bebê, todo o tempo
disponível, os recursos materiais e até a saúde da mãe devem ser reservados para ele. Essa
68
concepção vem ao encontro de outra, discutida anteriormente, que a criança tem mais valor do
que o adulto.
Essas mesmas concepções podem também ser reconhecidas quando os residentes
imaginam como pensariam os bebês, que julgam as mães que não amamentam, que não se
dedicam e que não estimulam. Nessa visão, os bebê desvalorizariam as próprias mães.
Sabemos que tal concepção não é o que ocorre na prática. Mesmo as crianças que sofrem
maus-tratos têm ideias bastante positivas sobre os seus pais e não desejariam mal a eles
(GUERRA, 1986). Além disso são concepções em que os bebês são vistos como pequenos
adultos, já formados.
Todas esses conceitos sobre a maternidade levam o residente a impor vigilância e
restrições à maneira como as mães agem. Esse constrangimento de como deve ou não agir
uma mãe aparecerá na prática como zelo apostólico.
5.1.5 PERGUNTAS 9 E 10: A PRÁTICA E O ZELO APOSTÓLICO
Quando aparecem as questões sobre a prática surgem os conflitos inerentes ao encontro
entre médico e paciente. Alguns embates podem ser até desejáveis, porém outros são
contraproducentes – trata-se do zelo apostólico. A primeira questão levantada foi como
reagiam os médicos frente às mães que não amamentavam ao seio. É um assunto da
puericultura, ou seja, lida com o acompanhamento do bebê saudável e, embora desejável, não
há riscos envolvidos em não se amamentar. Em certas situações, como no caso de pacientes
portadores de SIDA, é até recomendável. A segunda questão quer saber como reagem os
médicos quando as mães não cumprem as prescrições. Veremos que muitos dos casos
relatados se referem às medicações profiláticas ou a enfermidades de baixo risco, no entanto o
comportamento do médico em nada difere quando há situações de risco ou quando trata-se de
uma criança saudável. Há entretanto, uma diferença entre a posição do médico da pergunta 9
para a pergunta 10. Embora amamentar ao seio exclusivamente até os seis meses de idade seja
uma prescrição clássica da puericultura, o médico não se sente no direito de impor essa
prescrição à mãe. O zelo apostólico aparece, como veremos, na forma de um distanciamento.
Nas prescrições farmacológicas a situação se modifica e o zelo apostólico aparece em sua
maneira clássica, como conflito.
69
5.1.5.1 DIFICULDADES NA AMAMENTAÇÃO
Primeiramente, todos concordaram que era preciso uma boa técnica para segurar o bebê,
nos cuidados do mamilo e na amamentação. A observação da boa técnica era sempre a
abordagem inicial. Além disso, todos manifestaram também que as dificuldades transcendiam
às questões da técnica. Separamos as respostas em dois grupos. Um grupo em que as questões
afetivas e toda a complexidade da vida em família não aparece nos discursos. Aparece apenas
a mãe e o bebê isolados de seu contexto social. As questões subjetivas, o desejo da mãe de
amamentar não estão incluídos nos discursos e as soluções são colocadas de maneira
simplificada e prática. O outro grupo é aquele em que a mãe é trazida para uma realidade
amplificada. Ela está dentro de uma família onde estão presentes muitas demandas. A mãe
fica dividida entre o desejo de amamentar e as tarefas do lar. A amamentação se torna mais
difícil. Para esse grupo as soluções não são simples e não poderia haver uma solução única.
5.1.5.1.1 ISOLAMENTO DA MÃE DE SEU CONTEXTO FAMILIAR E SOLUÇÕES
SIMPLISTAS – MÃES QUE NÃO FALHAM
Uma residente se coloca de maneira muito prática. As mães aparecem como incapazes
de encontrar soluções para as próprias vidas:
A maioria tem que interromper, porque tem que voltar a trabalhar. A grande maioria.
E elas não sabem que pode... elas não sabem como administrar. Aí você orienta que
pode dar o peito antes de ir, né, antes de ir pro trabalho, acordar um pouco mais cedo.
Não precisa desmamar. Pode dar de manhã quando acorda, antes de ir pro trabalho,
guardar o leite, só que às vezes ela fala: Ah, mas se eu chegar em casa e for tirar o
leite, ainda fico mais cansada. Não vou conseguir. Aí você pode botar uma
alimentação complementar e pode falar: quando chegar acabou mamadeira. Quando
chegar do trabalho você depois toma de novo pra não acabar a amamentação de uma
vez. Porque ela nem pensa nisso.
Outra residente coloca “as cartas na mesa”. Fala dos benefícios da amamentação ao seio
e dos malefícios do leite industrial, mas deixa a opção para as mães. Vamos ver adiante que
essa posição se modifica quando a prescrição é farmacológica. Nessa situação a opção que
traz menos saúde para a criança é fortemente combatida:
Quando a mãe está certa de que ela não quer amamentar, eu acho que o meu papel é
explicar pra ela quais são todos os benefícios da amamentação, todos os malefícios
de uma fórmula, mas que a escolha cabe a ela. Isso que eu aprendi. Não adianta eu
forçar a barra, querer empurrar ela pra amamentar, que se ela não quiser fazer, ela
não vai fazer. Então eu acho que a minha função é mostrar pra ela quais são os
benefícios, quais são os malefícios.
70
A entrevistadora deseja mais esclarecimentos, solicita que ela conte experiências e a
médica mostra que por trás dessa visão simplista sobre a amamentação há um medo terrível:
Bem, eu sempre penso o pior. A mãe que não quer o filho, ela não quer amamentar.
Não necessariamente isso é regra pra aquela que não quer amamentar, não quer o
filho. Não necessariamente é. Tem muita mãe que tem mito de: ah, porque vai deixar
o peito flácido, vai cair, não sei o que, não sei o que lá... Então, aí a gente já não
consegue mais tirar isso da cabeça dela. Mas a mãe que não quer o filho, não
amamenta.
Essa não é única residente que julga que as dificuldades com o vínculo não podem ser
trabalhadas pelo pediatra e apenas revelam uma má índole ou má intenção por parte das mães.
Vejamos a resposta desse residente:
Então tudo isso é passado pra estimular e além de mostrar como que é importante o
vínculo. E a gente questiona o que que está acontecendo? Mas muitas delas falam:
‘ah, não tenho tempo! eu tenho que trabalhar, ah, não adianta que meu peito está
com pedra! Ah, dói muito!’ Nem todo tem a mesma boa vontade, nem todo mundo
se esforça mesmo.
Vimos nas respostas sobre como a mãe deveria atuar para que a criança se
desenvolvesse bem que o estímulo é muito valorizado. Estimular, incentivar as mães é uma
estratégia muito própria dos médicos em sua atuação com os pacientes. A médica a seguir
pensa em estimular a mãe ao antecipar as dores e as dificuldades da amamentação. Como já
vimos, a amamentação não é vista como resultado do prazer em estar junto do bebê.
Consequentemente, as dificuldades em amamentar não são interpretadas ou entendidas como
expressão das ambiguidades do cuidado. Aparece mais uma vez no discurso a ideia de
sofrimento e abnegação:
Então, assim, eu sempre tento explicar quais são os benefícios da amamentação. E
eu sempre falo um pouco, assim, que é difícil, que é dedicação, que é... eu tento
explicar também, o que é ruim, porque às vezes a mãe sai do consultório com a
imagem de que vai ser a coisa mais fácil do mundo. E ela tem que acordar a toda
hora e ela tem que dar mamar, e o peito dói; e o leite às vezes não sai o suficiente, e
a criança chora. Então, assim, eu sempre falo, pelo menos na pueri, quando a mãe
fala que: ah, porque eu to dando leite. A gente sempre tenta convencer ela a ficar só
no peito, mas a gente tenta deixar isso meio claro, assim, que não é fácil, nunca vai
ser fácil. Que depende dela se entregar, viver basicamente pra isso durante um
tempo, até a criança entrar no ciclo de mamar.
5.1.5.1.1 A MÃE DENTRO DE UM CONTEXTO FAMILIAR E CASOS COMPLEXOS –
MÃES QUE FALHAM
Uma das residentes inicia a sua resposta como se fosse uma desabafo: “Muito
complicado!” Em seguida ela elenca as questões como fizeram os seus colegas, mas, logo
aparece a mãe inserida em um mundo complexo:
71
Se tiver tudo direitinho, eu acho que tem que ver outros fatores, assim. Até sociais
mesmo, tem influência: a avó ou de outros parentes, que também interferem na
amamentação. Acha que não é importante, da nossa vez não tinha uma propagação
da amamentação exclusiva. Também tem o fator se a mãe está emocionalmente
disposta, também a amamentar. Às vezes ela tem uma pressão muito grande, assim,
uma carga emocional de que ela tem que amamentar, ela é obrigada a isso. E isso
não favorece, tem que ser uma coisa que ela esteja disposta a fazer isso, uma coisa
prazerosa pra ela, não só que ela é obrigada. Também tem que entender o que que
essa mãe acha que é amamentar, o que que ela acha que ela tem que amamentar, se
ela quer amamentar só por que os outros disseram pra ela que tem que amamentar ou
se ela deseja isso, realmente. Eu acho que as dificuldades podem estar em qualquer
um dessas ....
Para a médica a vida familiar é complexa, pois há questões sociais, culturais e o desejo
da mãe que se misturam em um cadinho. Esse é o único discurso entre os entrevistados em
que está presente a questão do prazer.
O próximo residente relata um caso difícil, mostrado no discurso a seguir. A mãe não se
responsabiliza pelas crianças. Está ainda envolvida numa briga com a própria mãe, e os filhos
são a plateia dessa triste cena. A verdade é que o médico se vê, assim como os filhos, como
plateia e há uma frustração, pois sente que, como médico, ele tem pouco a fazer. Deveria
considerar uma abordagem multidisciplinar em que estão envolvidos o serviço social e talvez
a psicologia. O médico se refere à falta de tempo na consulta, mas talvez não seja essa a
questão. Esse sentimento pode estar ligado à falta de hábito dos médicos em trabalhar de
forma multidisciplinar. Seria necessário uma articulação mais abrangente em torno dessa
família. De qualquer modo vemos que o pediatra deu espaço para conhecer a mãe dentro de
seu próprio contexto e aí a questão da amamentação passa a ser vista como um sintoma de um
quadro muito mais complexo e não uma problema isolado como visto pelos residentes do
grupo anterior.
Tive um contato com uma família que vinha sempre uma bebezinha, que já não era
nem tão pequena, ela já tinha quase um ano, um ano um pouquinho. E aí sempre
vinha a mãe e a avó. E a avó sempre fazia muitas queixas da mãe, que ela não
alimentava direito a criança e que deixava o dia inteiro sozinha, a mãe parece que
fazia um curso à noite. Às vezes levava a criança à noite pra passear de madrugada
e não cuidava direito. A criança tinha problemas mesmo de ganhar peso. E a gente
via que faltava muito o vínculo entre a mãe e a criança. E assim, família era
totalmente desestruturada, porque a própria avó, apesar de cuidar da criança, ela não
conseguia criar um vínculo com a filha, também, era todo o tempo discutindo. E era
um caso, aí a mãe já tinha engravidado outra vez, aí a avó já vivia reclamando.
Então, é difícil elas precisavam de um aconselhamento pra família inteira, sabe? Não
dava só pra tentar trazer o bebê pra mãe, porque a gente sabia que a avó ia estar em
casa criando mais dificuldade, a todo tempo reclamando. Eu não sei, eu acho que
ultrapassa um pouco do que a gente podia fazer, também do nosso tempo.
Finalmente, outra colega relata outro caso não dramático como o anterior, mas
complexo, como veremos. Ela se deixa envolver pelo cotidiano da mãe. Quarenta minutos em
72
cada seio pode ser um tempo excessivo para quem está em casa só, apenas com outras
crianças. Naturalmente isso causará ansiedade na mãe. A médica relata:
Agora tem muita mãe, também, principalmente aqui que tem mais filhos em casa,
não tem aquela paciência. Porque põe a criança pra mamar e geralmente fica
quarenta minutos num peito, quarenta minutos no outro. É todo um tempo! Às vezes
as pessoas não têm isso, dentro de casa é um tumulto, é filho, é marido, é não sei o
que. Então, assim, também não tem a paciência de amamentar. Porque no geral a
criança pega o peito direitinho, mama direitinho, né? mas acho que as dificuldades
são mais essa. Ou é realmente não está colocando direitinho pra mamar, não tem
posição. Ou é isso mesmo, falta de tempo, uma correria dentro de casa e trabalho, e
pensa em não sei o que, e a ansiedade. Eu acho que é isso mesmo, acho que é mais,
a dificuldade é mais essa mesmo.
5.1.5.2 NÃO ADERÊNCIA À PRESCRIÇÃO
5.1.5.2.1 O ZELO APOSTÓLICO E A MÃE FORA DE SEU CONTEXTO FAMILIAR –
MÃES QUE NÃO FALHAM
a) O ZELO APOSTÓLICO EXPRESSO COMO CULPABILIZAÇÃO DA MÃE – A
CRIANÇA DESPROTEGIDA
Quando lidamos com o não cumprimento da mãe às prescrições do pediatra entramos
mais diretamente no campo descrito por Balint em sua primeira descrição do zelo apostólico.
Aparece a indignação do médico que não consegue a cooptação do cliente. A reação do
médico pode colocar em risco não só a relação médico-paciente, mas o próprio paciente.
Nesse primeiro caso, relatado a seguir, a mãe deu alguns dias a mais do antibiótico. Isso foi
suficiente para indignar a colega.
É, eu fico chateada, eu fico bem chateada, mas eu tento explicar de novo, por que
que é necessário fazer a medicação. Mas assim, o que já aconteceu muito comigo
foi: por exemplo, você passa antibiótico. Aí o antibiótico é por sete dias. Ah, doutora
resolvi fazer dez. Aí tento explicar pra ela por que que fazer a mais também é ruim.
Tudo que é de menos, tudo que é demais é ruim. Mas eu tento explicar o que é
melhor pra criança. Mas eu fico chateada, bastante.
No caso a seguir, trata-se de vitaminas com ferro. Medicações profiláticas para um bebê
saudável. A revolta da médica parece desproporcional.
Na semana passada, inclusive, teve uma mãe que, exatamente isso que eu falei. Ah,
quantas gotas? Ah, acho que sete ou oito. Você faz esse remédio todo dia, você não
sabe? Ah, mas nem sou sempre eu que coloca na colher. Eu: ah, quem coloca? Não,
então, sou eu mas, não me lembro. Eu falei: ah, você não conta? Eu fiquei meio que
indagando pra ver se ela assumia que ela não dava realmente. E ela falou: não, eu
faço. Eu falei: é, mas é o seguinte, isso é importante, previne doença, é pra repor...
Mas eu senti que em mim eu não fiquei confortável. Mas eu não tratei com grosseria.
Eu queria que ela me contasse que era mentira, que ela não dava o remédio, que eu
achei que ela estava mentindo, né? eu não posso afirmar, mas... mas eu falei que na
73
próxima consulta eu queria saber quantas gotas, se ela estava dando direitinho.
Nunca tive nada assim, de antibiótico, nada disso que... mas, também eu não sei
como vou reagir.
Esse outro pediatra pensa que as questões da não aderência ultrapassariam o âmbito da
consulta médica e sugere que poderiam ser resolvidas nas instâncias da justiça.
Não, isso ainda não aconteceu comigo. Eu não tive essa situação de ter que
processar uma mãe. Eu gosto muito de conversar. Eu converso bastante, oriento
bastante. Eu ainda não tive, felizmente, em pouco tempo, né, pouco tempo que eu
tenho de residência e de prática médica, nunca tive essa experiência.
Esses relatos têm em comum a ideia de que os bebês estão muito desprotegidos e que as
mães não estão capacitadas para cuidar de forma apropriada.
b) O ZELO APOSTÓLICO COMO NEGAÇÃO DA RESPONSABILIDADE DA MÃE – A
MÃE DESPROTEGIDA
O zelo apostólico que mencionamos acima seria uma indignação dos pediatras, pois a
mãe teria todas as condições de seguir a prescrição. Se ela não cumpriu é porque lhe faltou
zelo com o seu filho(a) e isso é revoltante, pois a criança estaria desprotegida. Nas respostas
dadas abaixo seriam as mães que estariam desprotegidas. Se não cumpriram as prescrições é
porque faltou-lhes as condições intelectuais ou sociais mínimas necessárias e o residente
passa a assumir uma posição protetora com as mães. Vejamos como se coloca uma residente:
Eu tentei explicar de novo, perguntei por que que não fez. A maioria: ah, eu esqueci.
Ah, não lembro, não lembrava como é que é. Assim, sempre tento escrever tudo
mais detalhado possível. Ontem mesmo atendi uma mãe: ah, não como é que você
prepara a mamadeira? São duas medidas? Eu falei: É com morrinho? Ela falou: “É,
eu coloco com morrinho.” Mas Daniele eu não te falei que não precisava do
morrinho, que é para passar a faca. “É mesmo, né, você falou.” Aí a pessoa vê que
você explicou, mas eu não consegui entender por que que não faz. Assim, eu acho
que não é uma coisa tão difícil assim, por exemplo, a mamadeira, o modo de preparo.
Mas algumas, eu acho que parecem que tem uma limitação mesmo para entender.
Não sei se por causa de escolaridade ou alguma coisa assim. Eu sempre tento
explicar o máximo, mas algumas já tiveram dificuldade.
As responsabilidades pela execução das tarefas da mãe passam a ser assumidas pelos
médicos. São eles que devem explicar de novo e de novo. A médica, finalmente, já não
consegue entender o que está se passando. Por que uma mãe não consegue compreender
tarefas tão simples? No relato a seguir outra médica dá uma resposta muito semelhante à
anterior.
E na verdade você sente ali quando você pergunta, que ela nem fez. Ela se
acomodou daquele jeito. Ela só faz mesmo quando... Você tem que, além de
prescrever ou de falar uma conduta, você tem que convencer a mãe que realmente
74
aquilo é importante, porque se não, acaba que ela não faz. Se ela já está fazendo
outra coisa que ela acha que está dando certo. Você tem que convencer por que que
aquilo que ela acha que está dando certo não tá certo. Se não, adere. Ela deve ficar
enrolada, pra você não ficar chateada e tal. Mas você vê que ela não fez.
Porém, quando a entrevistadora insiste, a médica dá a entender que pensa como os
residentes mencionados anteriormente: a mãe que não cumpre a prescrição seria uma pessoa
de má índole: “Porque se a pessoa faz uma coisa, porque ela... a maioria das mães aqui, eu
nunca peguei uma mãe que queria mal ao filho. Então a maioria quer o bem do filho. Ela não
faz por um motivo.”
5.1.5.2.2 O ZELO APOSTÓLICO E A CRIANÇA DENTRO DE UM CONTEXTO
FAMILIAR DESFAVORÁVEL
Para esse grupo de residentes tanto as mães quanto os filhos são vulneráveis, mas, ao
mesmo tempo, são capazes de encontrar as próprias soluções. Os relatos que veremos a seguir
são distintos dos relatos vistos anteriormente, pois o médico percebe a situação em sua
complexidade. Há questões culturais, há displicência, há a mãe que tem um pensamento
próprio e que não acha que a medicação deve ser dada ao filho. A indignação perde o sentido
para esse médico. É preciso compreender por que a mãe não cumpriu a prescrição.
A função apostólica aparece de uma forma muito mais discreta. O médico fala em
“forçar a barra”, colocar um pouco de culpa, mas não há nem a revolta e nem a inocência dos
colegas anteriores.
É outra vez é aquele negócio não é um caso isolado e não é um motivo só por que
isso acontece. Às vezes a gente faz uma prescrição, a mãe realmente gostaria de
fazer e por algum motivo não consegue achar ou tem dificuldade de conseguir a
medicação. Às vezes elas retornam logo pra gente tentar resolver isso, às vezes elas
simplesmente deixam pra lá, entendeu? Então assim, tem várias variáveis, não dá pra
gente botar um caso só, mas tem realmente. Tem vezes que a gente passa uma
medicação que é simples, que dá às vezes, pra pegar em farmácia popular e a mãe
simplesmente não pega e não faz por displicência mesmo. Às vezes por negligenciar
um pouco o que a gente tá fazendo, às vezes por achar que o filho não precisa. E aí
nesses casos a gente volta pra aquele caso, às vezes, de muitas mães que ou tem já
muitos outros filhos que foram criados mesmo sem muita assistência, então acha que
vai criar do mesmo jeito. Ou então não tem experiência nenhuma, às vezes mães
adolescentes mesmo. Bom, quando isso acontece comigo e essas crianças chegam,
óbvio que, acho que não dá pra, dependendo do caso, sei lá brigar com a mãe
diretamente. Eu procuro principalmente aconselhar e às vezes até botar um pouco de
medo, assim, falar assim: olha, mãe, isso aqui se você não fizer vou ter que internar
a criança, não tem jeito. Isso aqui é grave, a senhora não entende, mas é grave, pode
acontecer isso, aquilo, tal. Dar uma explicada, tentar quase persuadir elas de que
aquilo é muito importante e que aquilo tem que ser feito, sem tentar brigar. Até por
que acho que quando a gente briga elas ficam um pouco fechadas até para o que a
gente tem a dizer, entendeu? Mas é isso, assim, tenta dar uma forçada de barra.
75
Uma outra colega apresenta um caso a seguir. Não é um caso da puericultura. É uma
criança com problemas urinários moderados ou severos. A prescrição não é cumprida e as
consequências são danosas. A médica não se revolta e, ao contrário, tem uma postura passiva
e não há uma avaliação real dos riscos que a criança está correndo.
Era antibiótico que a criança estava fazendo, eu acho que era até infecção urinária,
não era nem garganta. Era uma infecção urinária. E aí não melhorou, óbvio. Mas o
que que aconteceu? Essa mãe, foi isso mesmo, ela internou e aí ela, na hora que ela
recebeu alta tinha uma outra consulta minha e ai ela veio. Internou não foi aqui, não.
E aí ela veio na consulta e falou que ficou internada. Eu perguntei se aconteceu
alguma intercorrência, né, no período entre consultas e ela falou que a criança ficou
internada, por causa de infecção urinária e tal. E eu perguntei se ela tinha feito a
medicação, ela falou que não. que ia falar a verdade, que não. Chamei a atenção e só
mostrei o que poderia acontecer por ele sair de uma internação. Que ela poderia ter
evitado se não, se tivesse feito a medicação, se tomado o antibiótico, se tivesse
voltado na consulta no dia certo. Pra poder refazer os exames e tal. Mas foi só, foi só
chamar a atenção mesmo. Assim, eu mostrei que deu errado. E realmente deu. Mas
assim, foi só. Acho que deve ter acontecido mais de uma vez isso, com certeza. Mas
assim, essa eu lembro especificamente, por causa disso, da criança que internou.
5.1.5.3 CONCLUSÃO DA ANÁLISE DAS PERGUNTAS 9 E 10
As respostas sobre a importância da amamentação ao seio formaram dois grupos. No
primeiro grupo o residente via a mãe isolada de seu contexto. Inicialmente, a amamentação
era sempre possível e as dificuldades podiam ser superadas apenas com alguns
esclarecimentos e estímulos. Geralmente, quando as orientações não se mostravam suficientes,
o aleitamento artificial era deixado à critério da mãe. As questões da maternidade como, por
exemplo, o prazer de amamentar, as dificuldades de vínculo com a criança, as dificuldades em
conciliar as tarefas com outros filhos e ter tempo e privacidade para amamentar não eram
discutidos. Alguns discursos atestaram que por trás dessa abordagem simplista havia um
temor muito grande de que a mãe que não amamentava poderia não querer bem à criança ou
querer abandonadona-la.
Por outro lado, havia um grupo de residentes que considerava a situação familiar como
um todo. O quadro era bem mais complexo. As mães tinham mais filhos, a amamentação
demora uma eternidade quando se tem uma panela no fogo e segundo filho brigando com o
terceiro. A vida familiar é complexa e a mãe pode já não mais querer amamentar por diversas
razões. Para esses residentes as questões da amamentação eram complexas e as soluções não
poderiam ser simples. Para esse grupo aparece mais a figura da mãe atrapalhada com as
tarefas do dia a dia do que uma mãe que deixa de amamentar por desamor à criança.
76
Quando passamos para a não aderência às medicações encontramos grupos semelhantes
aos descritos na pergunta anterior. Havia um grupo que julgava as mães que não cumpriam as
prescrições como pouco responsáveis e pouco zelosas. Não devem ser. São mães que levam
seus filhos aos médicos para fazer puericultura, para evitar que fiquem doentes. Estão, com
certeza, dentro de suas curvas de crescimento de peso e altura. São mães que pegam condução
e aguardam nas filas dos atendimentos para oferecer o melhor aos seus filhos. No entanto, os
médicos são exigentes, não admitem falhas no atendimento de suas recomendações e um
julgamento severo surge. É a expressão do zelo apostólico. Novamente, essa exigência sobre
as mães parece estar associada à ideia de um bebê muito frágil. O adulto, que é forte, deveria
protegê-lo melhor.
O contrário também ocorreu e houve um subgrupo que ao invés de ver a mãe como forte
e o bebê como frágil, invertia os papéis. Eram residentes que não atacavam as mães que não
cumpriam as medicações. Se as crianças não eram adequadamente protegidas era porque as
mães, elas mesmas, eram muito frágeis e incapazes. Uns não admitiam que as mães falhassem
enquanto o outro subgrupo negava que as mães pudessem falhar. Consequentemente,
concluímos que é idealização, ela mesma, parte da expressão do zelo apostólico. E a
idealização pode ser resumida assim: boas mães não falham.
Assim como na pergunta sobre as dificuldades com a amamentação, um segundo grupo
aparece em que os pediatras concebem que boas mães falham. Não amamentam ao seio
exclusivamente durante seis meses, esquecem vitaminas e erram nas dosagens. A vida é
complexa e falhas ocorrem, mesmo quando se tenham as melhores intenções. Podemos,
portanto, definir o grupo assim: boas mães falham.
Entretanto, no caso das prescrições algo diferente deve ser considerado. Como lidar
com as mães que de fato falham de uma maneira a comprometer o bom desenvolvimento de
seus filhos? Como o pediatra poderia separar a mãe comum que falha daquela que falha e
compromete a saúde da criança? Serão as mães que esquecem as gotas das vitaminas as
mesmas que esquecem os antibióticos que levam as crianças a reinternações? Essas duas mães,
deveriam ser tratadas da mesma maneira? Para grupos de mães diferentes seria esperado que
os residentes aplicassem estratégias diferentes. Tomando isso como base devemos concluir
que nenhum dos dois grupos de residentes conseguiu separar mães comuns que falham, mas
sem comprometer a saúde de seus filhos das mães que falham colocando seus filhos em risco.
Os residentes contaram casos atendidos por eles. Em um desses casos a mãe
engravidava e não cuidava de seus filhos. Estava na terceira gravidez e não cuidava de
77
nenhum de seus filhos. A amamentação era apenas um sintoma de um quadro terrível. Em
outro caso, a mãe mesmo estando bem orientada no tratamento profilático de uma infecção
renal crônica, falha em administrar os antibióticos levando a criança a mais uma internação. A
estratégia usada pelos pediatras nos dois casos, porém, não foi diferente dos casos em que as
falhas das mães comuns não teriam quaisquer consequências. Essas estratégias se resumiam a
aceitar, explicar e tentar culpabilizar a mãe. Não ocorreram mudanças de estratégia para lidar
com casos das mães comuns que falham, mas que têm seus filhos saudáveis. Nesses primeiros
casos, os médicos poderiam solicitar internação, discutir com os “staffs” ou com um assistente
social, por exemplo. Embora os médicos estejam habituados a encaminhar os pacientes para
especialistas de outras especialidades, não é comum que se reúnam com outros profissionais
reconhecendo os limites da medicina.
5.1.6 PERGUNTA 11: RELAÇÃO DE CONFIANÇA
Depois de observar como sentem e reagem os pediatras quando as mães não cumprem
as prescrições, quisemos aprofundar mais a questão da não aderência. A pergunta foi
formulada então de outra maneira e procurou saber dos pediatras o que eles imaginavam que
levava as mães a cumprirem as prescrições. Sabíamos que falávamos da questão da confiança,
mas queríamos saber como eles pensavam que essa relação era construída.
A relação de confiança ocorre a partir de uma relação empática. Embora isso não tenha
sido formulado dessa maneira por nenhum residente, pareceu que todos assim compreendem.
Percebemos que os residentes se dividem em dois grupos distintos quanto à maneira de como
é alcançada a relação empática. Para um grupo o médico está numa posição passiva. Ele
oferece as condições mínimas e a relação empática deverá ocorrer. O que parece pouco claro
para os residentes desse grupo é que as relações de confiança sofrem tensões e a pergunta
deve ser formulada: quem tem maior responsabilidade de desfazer as tensões e dar
continuidade à relação de confiança – o médico ou o paciente? Nesse sentido é que um grupo
de residentes pensa o médico em uma posição de menor responsabilidade pela sustentação da
relação de confiança do que a mãe.
Para outro grupo, ocorre o inverso. É o médico que deve escutar a mãe e se colocar
ativamente em sintonia com a sua vida e as suas limitações. É o médico o responsável
principal pela sustentação da relação de confiança nos momentos de tensão. Vejamos as
respostas dadas pelos residentes.
78
5.1.6.1 EMPATIA12
: O MÉDICO NA POSIÇÃO PASSIVA E SECUNDÁRIA
5.1.6.1.1 CONFIANÇA CONSTRUÍDA PELA VIA PEDAGÓGICA13
As respostas mais comumente ouvidas revelaram que a relação de confiança é
construída por explicações e esclarecimentos que os médicos fornecem a seus pacientes.
Podemos dizer, então, que para esses residentes basta uma atuação pedagógica elementar.
Para exemplificar mostramos uma das respostas:
Você tem que explicar, por que que você está fazendo aquela prescrição, qual é o
motivo. Quais vão ser o seus benefícios, né, o que que vai acontecer. Normalmente,
a mãe gosta de saber se você passa alguma coisa. Não sei, está com uma piodermite.
Ela quer saber mais ou menos em quanto tempo vai melhorar, qual a previsão, o que
que ela deve esperar. Então, assim, você falando isso, ela já fica mais orientada, ela
faz com mais segurança também.
Uma outra residente foi ainda mais enfática e clara sobre essa questão, mas revela em
seu discurso uma certa confusão. Afinal, a quem deve o pediatra dirigir as suas explicações: à
criança ou aos pais? De qualquer maneira, a residente afirma com clareza a importância do
detalhamento nas explicações na relação de confiança:
Confiança. Acho que ela só vai seguir a prescrição médica se ela confiar no que
você está falando. Eu acho que pra isso você tem que explicar. Ainda mais com
criança. Eu sempre penso na parte de criança, né? Com criança, você tem que
explicar tudo, tim-tim por tim-tim, por que que você está fazendo a medicação. Por
que que ela é indicada, o que a criança tem para a pessoa confiar em você e fazer. É
igual a gente. Se você vai ao médico e não confia no médico. Você vai tomar o
remédio? Eu não tomo. Então eu acho que... é a relação que eu tento fazer é explicar
tudo para ver se ela confia no que eu estou passando para a criança.
Há ainda outra colega com o mesmo discurso e seria desnecessário repeti-lo. Será
apresentado a seguir, porém, o discurso longo e algo prolixo de um dos entrevistados que
revela com mais clareza que a relação de confiança não é algo criado entre duas pessoas,
sustentado por aquele que é mais saudável. Por exemplo, na relação mãe-filho, professor-
aluno e médico-paciente há um da dupla que é mais saudável e que deve sustentar a relação
quando a relação de confiança está ameaçada pelas tensões inerentes às relações de cuidado.
Para esse colega a relação de confiança se confunde com a relação de obediência à autoridade.
A desobediência teria como única justificativa o desamor à criança. Se a mãe não cumpre a
12 A empatia aqui é compreendida como a capacidade de “entrar no sapato do outro” e experimentar o contexto
de vida do outro (BOLOGNINI, 2008). 13
O termo pedagógico será usado no sentido restrito da transmissão de uma aptidão objetiva do tipo “como fazer” e não
aquela que tem o sentido de “como cuidar de si mesmo”, vinda da tradição grega epimeléia heautoû – “cuidado de si
mesmo” e gnôthi seautón – “conhece-te a ti mesmo” (FOUCAULT, 2011).
79
prescrição, o médico se sente autorizado aos mais severos julgamentos. Vemos nesse
depoimento a expressão das bases do zelo apostólico para esse residente. É um
desdobramento de outras situações em que a falha da mãe é descontextualizada e há uma
perseguição à qualquer falha detectada. O discurso ressalta, mais uma vez, que a explicação
técnica e o estímulo deveriam ser recursos suficientes para que uma boa relação médico-
paciente seja estabelecida e mantida:
Eu acho que tudo na vida depende de você. Primeiro de você. Ninguém faz se não
tiver dentro dela, o sentimento de que aquilo é importante, boa vontade, consciência.
Então, depende dela o quanto ela está preocupada realmente com o filho. Não que a
pessoa que não faça não esteja preocupada, mas assim, essa situação toda mesmo de
boa vontade, querer cooperar. Tem gente que é birrenta mesmo. Não tem pessoas
que são assim? Isso existe. Além disso, eu acho que a orientação do médico é
fundamental. Quanto mais... vamos supor, a gente está em época de epidemia de
dengue. A gente orienta que o paciente tem que beber três litros de água por dia,
quatro litros. Muitas vezes a pessoa vai achar que é besteira. Então eu oriento tudo
que está acontecendo. Eu falo que o vaso está inflamado. Então que a parte do vaso
tem a parte líquida e tem a parte sólida, que são as células [...]. Eu acho que quanto
mais você explica ele vai entender aquilo que está acontecendo. Então, assim, é
fundamental você explicar tudo. Está acontecendo isso por causa disso, agora a
gente vai precisar fazer isso... Infelizmente isso não saiu como esperado... ou que
ótimo, estamos melhorando... Parabéns, mãe, continue assim! Sabe, você estimular e
explicar. Você mostrar que a participação da mãe é importante ajuda muito. É
sempre um estímulo para um e para o outro. Você estimula a mãe e ela fazendo
melhor está te estimulando também, você vai apresentando melhora, né?
5.1.6.1.2 CONFIANÇA PELO MEDO DE ADOECER
A residente a seguir atribui o cumprimento da prescrição ao medo que uma mãe tem de
ver um filho adoecer. Aqui também aparece uma posição passiva. A relação de confiança se
estabelece automaticamente. Não deve ser por acaso que foi essa a residente que relatou as
suas dificuldades com a profissão quando começou a lidar com o sofrimento das crianças e
das mães no setor de oncologia.
Ah, tadinha, elas têm medo, né? Eu acho que elas, já que a gente passou, fez a
prescrição, que é pra tomar o remédio, ela conseguem direitinho. Eu acho que é pra
cuidar mesmo da criança, pra melhorar. Eu acho que o medo de ficar doente. De
adoecer é muito ruim pra elas. Elas desesperam, né? eu acho que é isso, é isso que
faz, é pra criança melhorar rápido, pra não ter risco. Mãe, realmente, tem muito
medo.
Vemos então uma correlação, que poderíamos chamar de uma projeção de seus próprios
temores nas mães que serão atendidas pela médica.
80
5.1.6.1.3 CONFIANÇA CONSTRUÍDA AOS POUCOS
O relato dessa outra residente se encaixa perfeitamente nesse grupo em que a posição
empática deve ser sustentada pela mãe. Destacamos o seu discurso, pois nos ajuda a ver uma
dissociação entre os conceitos e a prática. Inicialmente, ela afirma apenas que essa relação é
construída aos poucos. E aqui verificamos essas contradições a partir de seus relatos sobre as
relações com seus pacientes. Ela se aborrece facilmente e fica indignada quando a mãe não
usa vitamina e ferro, e também não se conforma quando os pacientes da emergência solicitam
acolhimento. Ela não admite que é ela quem deve buscar compreender as razões pelas quais a
mãe falha. A importância do trabalho sobre a subjetividade com os residentes fica mais claro
na medida em que se percebe que há, com frequência, uma distância apreciável entre como a
pessoa acha que é certo agir e como a pessoa age, de fato. Diz a médica:
Eu acho que é uma coisa que se constrói, né? não é uma coisa que eu vou chegar pra
uma mãe hoje, vou mandar ela fazer um milhão de coisas e ela vai acatar. Eu acho
que isso é uma coisa gradual de confiança mesmo na pessoa que você está levando o
seu filho. E acho que é isso, acho que é construção mesmo de uma relação de
confiança. Se você confia no médico que você está, você faz tudo que ele manda.
Agora, se você não confia você não vai fazer. Acho que é mais isso, mesmo.
Aparece, então, as dificuldades que a médica enfrentará em sua prática, na medida que a
relação de confiança está associada a uma relação de obediência. A não aderência é percebida
como quebra da confiança e não episódios em uma dinâmica que é sempre atualizada.
5.1.6.2 EMPATIA: O MÉDICO NA POSIÇÃO PRINCIPAL E ATIVA
Nem todos os médicos achavam que bastaria explicar plena e pausadamente para que as
mães confiassem neles. Alguns residentes expressaram uma posição distinta e manifestaram
um pensamento mais complexo em que o médico deveria entender um pouco mais o contexto
da vida dessa mulher. O médico tem a responsabilidade principal pela construção dessa
relação que começa com uma necessidade de entrar em sintonia com a vida da mãe:
Confiança no médico, entender um pouco o que que está se passando, gravidade do
que a criança tem. Acho que confiança mesmo. Quando a mãe sente que o médico
entende o que ela está passando, o que ela precisa, como o neném está ou como a
criança está. E que a gente está ouvindo o que ela tem pra dizer, também, ela sente
mais confiança e ela acaba acreditando mais no que a gente está passando, né, está
prescrevendo.
O que o pediatra descreve, afinal, é que a relação de confiança só pode se estabelecer a
partir de uma posição empática do médico com a mãe que vem pedir ajuda. A relação de
81
confiança é, no entender desse profissional, uma troca. Não basta, porém, oferecer apenas
explicações. O médico, primeiro, deve escutar e entender quem é a mãe e como é o sua
dinâmica familiar. A mãe vai a consulta e transmite o seu sofrimento, em troca o médico
oferece uma posição empática, finalmente a mãe reconhece o interesse e a generosidade do
médico, e só a partir daí que ela poderá confiar em sua técnica.
5.1.6.3 CONCLUSÃO DA ANÁLISE DA PERGUNTA 11
A pergunta: o que faz a mãe seguir as prescrições médicas? lidou com a questão da
construção da relação de confiança entre médico e paciente. Para um grupo de residentes a
relação de confiança é construída dos pais para os residentes. Eles acham que se forem
simpáticos, educados e competentes, ou seja, se derem explicações e mostrarem interesse pela
saúde de seus pacientes, a relação de confiança será construída. Não se dão conta que as
relações de confiança passam por tensões e, a partir daí, alguém assumirá maior
responsabilidade pela manutenção da relação de confiança. Para esse grupo, a mãe seria a
principal responsável. Ao médico bastaria oferecer as condições mínimas necessárias.
Para outro grupo, a relação é construída pelo interesse do médico em conhecer a vida da
mãe, o contexto da criança. A relação empática vem do médico para o paciente. É o médico
que tem que buscar a empatia com a mãe e a família. Não bastam as condições mínimas; é
necessária uma posição mais ativa.
5.1.7 PERGUNTA 12: CONHECER A VIDA ÍNTIMA DA FAMÍLIA
A pergunta quis saber se os médicos achavam importante conhecer a intimidade do lar,
a vida do casal. A pergunta era conceitual, mas sabemos que a residência médica é justamente
o lugar em que o jovem profissional se encontra frente a frente com os pacientes. Ele é
marcado pelas experiências à beira do leito e pelas histórias de vida que passa a conhecer. O
fato de apenas uma residente lembrar e relatar um caso sugere que os médicos não se
aproximam o bastante de seus pacientes para que essas informações adquiram relevância no
diagnóstico, na conduta e na evolução dos casos. Se pensarmos que as mães enfrentam todos
os dias o transporte público e as filas de atendimento para chegar até um espaço de
privacidade que possam falar de seus filhos e de suas vidas, é notória a falta de histórias e de
82
casos clínicos relatados. Apenas uma das residentes contou casos que, como veremos, se
mostraram de muito interesse para os diagnósticos e as condutas propostas.
Todos os entrevistados afirmaram que conhecer a vida íntima dos pais é importante para
a orientação de seus pacientes, mas apenas duas residentes não apresentaram ressalvas e
limites para essa intimidade. Ou seja, em geral havia um conjunto de critérios que
autorizavam ou não os médicos a fazerem perguntas. Os profissionais não se sentem inibidos
para perguntar sobre o nível salarial dos pais, o nível de escolaridade, quantos cômodos tem a
casa, se há água encanada, se a mãe já praticou aborto, por exemplo, quando seguem o roteiro
preconizado de anamnese. O mesmo não ocorre quando a conversa é espontânea, sem roteiros.
Vejamos algumas das respostas dadas.
5.1.7.1 IMPORTANTE, MAS...
5.1.7.1.1 IMPORTANTE, MAS NÃO COSTUMO FAZER
Assim como os outros colegas essa residente concorda que saber da vida íntima da
família seria importante, mas não tem o hábito e em sua entrevista ela não explica o porquê.
Supõe-se que essa abordagem não foi orientada e nem discutida em sua formação. Quando e
como abordar as questões com a família fica a critério do médico e essa médica não se sente à
vontade.
Eu acho que é importante, porque eles que vão ser o exemplo da criança a vida toda,
né? O comportamento deles sempre vai, a criança vai notar, porque como é o
exemplo, ela vai sempre estar ali olhando aquilo. Só que eu acho, também, não tem
que ser uma cobrança, né? Na verdade se você ver que, acha que alguma coisa da
família está influenciando, você pode até tentar sugerir que a pessoa fale. Mas eu
não tenho o costume.
A seguir em seu depoimento, ela elabora as dificuldades que teria se ouvisse as histórias
da família e pode se perceber a confusão que existe entre as questões objetivas e subjetivas.
As diferenças entre verdades e narrativas.
Porque a pessoa fala o seu ponto de vista. Às vezes se você conversasse com outra
não ia ter, ia falar outra coisa, né? Por exemplo, se fosse marido e mulher, a mulher
falou mal do marido. Às vezes o marido se fosse conversar com ele, ele ia contar
outra história. Então fica difícil saber o que que a pessoa tem a impressão, o que é a
realidade.
83
5.1.7.1.2 IMPORTANTE, MAS NÃO ESTOU PREPARADA
A resposta da residente a seguir é muito semelhante a da colega anterior. Há uma
diferença, porém, pois essa residente reconhece que não foi treinada e não sabe como fazer
essa abordagem.
Muitas vezes não é passado isso pra gente. [...] Mas eu sempre tento, assim, na
medida do possível saber pelo menos o básico, assim. Tudo bem em casa? Assim, né,
entrar na família. Eu acho que é importantíssimo, mas eu não sei fazer isso muito
bem, ainda.
Embora uma outra residente diga que costuma fazer perguntas, ela logo admite que não
se aprofunda. O fato dela não lembrar de casos para contar sugere que havia dificuldade de
aproximação. Quando perguntada se ela costumava fazer perguntas, ela responde: “Costumo.
Não vou muito a fundo, mas costumo pelo menos perguntar sobre qual que é tipo de relação
dos pais.”
5.1.7.1.3 IMPORTANTE, MAS SÓ PARA CASOS SOCIAIS
Nesse grupo encontram-se duas residentes. Há uma abertura para investigar questões
familiares, mas fica restrita para um grupo específico. A violência que aparece como brigas e
rompimentos pode ser investigada. A violência velada que se apresenta como distanciamento
e negligência, por esses critérios, passariam sem investigação. Veremos mais adiante que
outros entrevistados têm visões distintas do que seria a violência dentro da família.
Eu acho que tudo depende. Eu acho que depende da vida social da criança. Eu acho
que se a vida social da criança, se a criança tem algum problema social: maus tratos,
alguma coisa, eu acho que é importante você saber o que está por trás dessa criança.
[...] Então eu tento não entrar muito na vida pessoal das pessoas. Só quando tem um
problema mais grave, uma questão social mesmo.
O outro colega fala da importância de se conhecer o que se passa na família, mas, mais
uma vez, a falta de casos lembrados mostra uma provável desconexão entre essa concepção e
a prática.
A gente tem que ver qual que é o ambiente familiar que aquela criança vive. Se os
pais são separados, qual a profissão dos pais. Saber em que momento eles estão
dentro de casa, pra estar junto com aquela criança. Se tem condição financeira de
conseguir alguma, de repente que gente precisa passar e sabe que ela não vai
conseguir sem pagar, entendeu? Essa parte, também, de profissão a gente consegue
mais ou menos esclarecimentos dos pais. É tudo isso, é um conjunto de coisas. Ver
se existe briga dentro de casa.
84
5.1.7.2 IMPORTANTE PARA TODAS AS FAMÍLIAS
5.1.7.2.1 A FAMÍLIA E A SALA DE TV
Nesse depoimento a residente mostra que a sua preocupação não se restringe a brigas,
separações, desempregos, enfim aos ditos “casos sociais”. O seu interesse chega à sala de TV
do pobre, do remediado e do abastado. A violência familiar também pode aparecer de
múltiplas formas e talvez a mais comum seja mesmo a distância e desagregação entre os
membros da família. Provavelmente poderíamos estender essa ideia trazida pela colega para
as dificuldades de amamentação e para as questões de aderência como no caso relatado por
essa mesma colega em que a mãe teve a filha internada com infecção urinária. As dificuldades
de amamentação e as dificuldades de cuidado ligadas a uma desagregação afetiva. Eis como
ela se expressa:
Que às vezes a criança: ah, tá com problema na escola, não fala, não tem amigos. Aí
quando a gente vai ver a criança dentro de casa vive no meio de muita confusão. Às
vezes nem é briga ou não, não precisa de ser briga. Às vezes o pai vive em cada
canto, a mãe, ninguém conversa, não tem aquela harmonia. Não precisa ser briga,
porque às vezes, né, igual a criança que vê muita briga em casa entre pai, irmão,
enfim, tem problema. Tem, às vezes, criança que pai, mãe cada um vive no seu
mundo e vive sozinho. E cada um na sua televisão, ninguém conversa, também tem
problema. Então, assim, eu acho importante, sim, claro tem que saber o ambiente
que a criança tá vivendo, que a criança está crescendo.
5.1.7.2.2 DOIS CASOS RELATADOS
Finalmente, chegamos à residente que se lembra de casos de sua própria experiência.
Esse relato é muito rico e há vários aspectos importantes a serem comentados.
Apresentaremos esse fragmento da entrevista que comentaremos a seguir. Eis o diálogo
ocorrido com a entrevistadora:
RESIDENTE – Eu acho que o que mais me chama a atenção é que, às vezes, aquela
história da mãe poliqueixosa, né, que vem um milhão de queixas do filho e a criança
é saudável. Não é, não tem nada. Eu acho que, às vezes a carência emocional ou ....
eu tive um paciente na puericultura, também, que era uma criança, que ela botava o
dedo na garganta e vomitava. Eu achei aquilo esquisito e por acaso eu perguntei.
Aconteceu alguma coisa na sua família? Aí ela: ah, doutora eu não te contei, mas
meu marido foi assassinado. Tem quinze dias e foi justamente quando ela começou
a fazer isso. Eu falei: ah, então pode ser realmente alguma coisa, alguma forma de
defesa, alguma forma de... E aí comecei aquilo ali como... Sempre que eu vejo
alguma criança com alguma mania estranha, alguma mãe que vem com muitas
queixas e a criança aparentemente saudável eu costumo perguntar se está passando
por algum problema. Uma outra adolescente que eu atendi no Gama, que tinha muita
dor de cabeça, muita dor de cabeça, mas ela nunca chegava aqui com dor de cabeça.
85
A história é que ela tinha dor de cabeça sem parar todos os dias, todos os dias, todos
os dias. Mas eu atendi ela seguida, assim, três meses, pedi pra ela vir três consultas
diferentes e ela nunca chegava com dor de cabeça. Até um dia que eu pedi pra mãe
sair da sala na última consulta, eu falei: vou pedir, porque vai que essa menina tem
alguma pra me contar. E ela falou que ela tinha um namorado e que ele tinha se
envolvido com drogas e ela não sabia como que ela ia fazer pra continuar. Que na
verdade ela tentava fica menos em casa, pra encontrar menos com ela, pra ter que
dar menos explicação pros pais. Então, a mãe vivia levando ela pra UPA, pra isso,
pra aquilo porque ela relatava uma cefaleia absurda e a mãe sempre levava ela pro
pronto socorro. Então nesse dia ela veio me contar: Ah, doutora na verdade é porque
eu não sei como é que eu vou fazer. Porque eu não quero ficar em casa quando o
fulano aparece. E aí quando ele aparece a minha mãe começa a perguntar por que
que ele está estranho. Por que que as roupas que ele usa e eu não quero dar
explicação. Então eu prefiro não encontrar com ele, então eu peço pra ser levada pro
hospital, quando eu estou com muita dor, quando eu sei que ele vai aparecer. Então,
assim eu encaminhei pra psicologia e inclusive eu passei ela pra uma outra pessoa.
Que eu saí do ambulatório. Mas eu não sei assim, o que que aconteceu no fim das
contas. Mas era uma coisa extremante emocional e ela no dia não estava com uma
dor de cabeça, que ela realmente não tinha, pra poder ser levada pro hospital, fazer a
medicação e voltava pra casa. Isso durante, assim, dois, três meses. Foi o tempo
desde quando eu comecei a acompanhar. Então eu achei aquilo muito interessante,
né? são coisas que a gente só escuta aqui. Eu nunca tinha ouvido nada parecido.
Essas duas histórias me marcaram muito. Então hoje em dia eu sempre pergunto: tá
acontecendo alguma coisa? Eu peço pra mãe sair da sala quando é consulta de
adolescente.
ENTREVISTADORA – E quando é consulta de criança, eventualmente, você
investiga...
RESIDENTE – Às vezes eu peço pra criança ir dar uma volta no corredor, porque a
gente, também, não quer que ela escute, né?
Primeiramente, destacamos a mudança da postura da médica em relação à mãe
“poliqueixosa”. Esse é um termo pejorativo usado pelos residentes para se referir às mães
demandantes e, porque não dizer, chatas. A própria residente já havia, em mais de uma
ocasião, se referido dessa maneira às mães. Ela já havia mencionado a sua dificuldade em
acolher os pacientes e manifestou quanto era desconfortável para ela os assuntos da área da
psicologia. Bem, é justamente essa a médica que surpreendentemente dá giro de cento e
oitenta graus. Ela aproveita, tão ao feitio do legado de Balint, a queixa como a porta de
entrada para penetrar na vida íntima do paciente. A mãe “poliqueixosa” deixou de se tornar
um estigma desagradável e passou a figurar com um alerta precioso para um radar sensível
como o da colega.
Outro aspecto que vale ressaltar foi a rapidez com que a etiologia dos vômitos da
criança foi equacionada. É comum que os residentes se queixem que a avaliação psicológica
toma muito tempo da consulta. Assim como na clínica, há diagnósticos que não podem ser
feitos, pois os sintomas ainda não estão suficientemente amadurecidos para uma conclusão, há
outros em que o diagnóstico é realizado de imediato. O mesmo se passa com nas questões
emocionais e psicossomáticas. Há situações que estão maduras para eclodir como um
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abscesso e basta apenas um leve toque na ferida. Esse é o caso do primeiro relato e mostra que
mesmo numa emergência pediátrica muita coisa pode ser esclarecida de forma imediata. Para
isso é preciso que o médico suspeite que fatores emocionais estão contribuindo de forma
determinante.
Voltemos ainda um pouco para os depoimentos anteriores dessa colega. Foi ela quem
relatou que a mentira do adulto lhe causava repulsa e esse foi um dos motivos alegados para ir
ao encontro da pediatria. O segundo caso irá mostrar que as concepções vão variar de acordo
com a relação estabelecida com o outro, na intersubjetividade. Criou-se um vínculo entre a
adolescente e a médica. A partir daí as mentiras que a menina usava foram compreendidas e
acolhidas! Fica, portanto, evidente que a frieza e a racionalidade da médica desaparecem
facilmente diante de uma relação na qual ela deixou-se envolver. Essa é uma situação muito
delicada no trabalho com a subjetividade. O mesmo médico que tem uma atitude fria e pouco
acolhedora, em outro momento pode ser sensível e afetivo. Com isso parece que as
dificuldades são, de fato, dos pacientes. O que ocorre, porém, é que os mecanismos de defesa
podem ou não ser acionados e o zelo apostólico aparece e desaparece de forma mágica.
Finalmente, devemos comentar sobre a criatividade e a coragem que a médica tem em
dar espaços separados para a criança e a mãe. Nessa situação a médica constrói uma maneira
própria de exercer a pediatria. Ela alcança uma posição empática com as duas e não está mais
preocupada com a verdade, mas com a versão de cada uma e pode compreender e mediar com
novos elementos a situação familiar.
5.1.7.3 CONCLUSÃO DA ANÁLISE DA PERGUNTA12
A intimidade do lar não é apenas o que se passa no interior das alcovas, mas o que se
passa na sala de TV, na cozinha e em todos os lugares da casa. Trata-se da dinâmica da casa e
de como é veiculada a afetividade entre as pessoas que lá habitam. Não se trata de procurar o
problema e sua causa, mas de conhecer o contexto objetivo e afetivo onde vive a criança,
onde a criança se adoenta e é cuidada, como tão bem nos mostrou a médica ao associar a
desagregação entre as pessoas da família com a violência familiar.
Em geral, os residentes não se dão conta que não se pode encontrar o melhor
diagnóstico e a melhor conduta sem levar em consideração essa dinâmica. Não se trata de
intromissão no lar, mas de alcançar uma compreensão mais ampla da doença em seu contexto.
87
Diremos então que ao invés de intromissão estamos nos referindo à posição empática ativa em
que o médico que ser conhecer e tornar-se mais íntimo da família.
Os casos relatados por uma das residentes esclarecem vários pontos. Por exemplo, a
medicina ensinada como ciência objetiva confunde o médico, que passa a se preocupar com a
verdade para os fatos. É importante que o médico compreenda que a posição empática
dependerá de seu interesse pela versão de cada um. Compreender como cada indivíduo se
sente afetado na dinâmica familiar é tão importante como conhecer os fatos. Tendo dado
espaço para escutar os vários membros da família, a intervenção do médico também será
melhor aceita.
Além disso a residente mostrou que para se chegar a um diagnóstico em que
preponderam as questões psíquicas nem sempre é necessário entabular longas conversas, mas
basta apenas um pouco de empatia e interesse. Essa era a ideia por trás do conceito de “flash”
(BALINT, E. e NORELL, 1978).
Ao escutar separadamente a avó e a adolescente, a médica pode ouvir as angústias de
cada um e conhecer a intimidade de todos sem perguntas, mas apenas dando o espaço
adequado para o outro falar.
5.1.8 PERGUNTA 13: RELAÇÃO ENTRE DOENÇAS ORGÂNICAS E VIDA
AFETIVA
A pergunta realizada foi sobre a relação entre as doenças orgânicas e a vida afetiva.
Logo acima relatamos os casos contados pela médica. Uma das crianças colocava o dedo na
garganta e vomitava. Ela não estava com uma lesão na faringe e nem tinha uma doença
psiquiátrica. Ela apenas não conseguia “engolir” a morte do pai. Ainda assim, esses relatos
não foram suficientes para a médica afirmar categoricamente essa relação, como veremos
adiante. Portanto, as respostas surpreenderam, pois revelaram que a grande maioria dos
residentes participantes se posicionou como se fossem leigos no assunto.
Todos estudaram e conhecem casos de constipação severa ou de enurese e as dividem
em causas orgânicas e funcionais. As causas funcionais estão relacionadas aos estados
psicológicos e comportamentais. Além disso, sabem que a tensão pode diminuir a produção
de leite. No entanto, muitos entrevistados não puderam afirmar com segurança essa
associação.
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5.1.8.1 A CRIANÇA ESTÁ PROTEGIDA DE SEU MEIO
5.1.8.1.1 AS PRÓPRIAS EXPERIÊNCIAS COMO REFERÊNCIA
Como dissemos, a maioria dos residentes presumiu que essa associação era possível e
usou a própria experiência e não os seus casos como a principal referência. Vejamos nas
respostas as dificuldades que os residentes tiveram em fazer essa associação:
Não tenho certeza, sabe, é um palpite. ...Próprio mesmo quando fico muito
estressada. Que agora eu estou light, que eu voltei de férias, mas em setembro eu
estava muito, muito, muito estressada. Eu estava ficando doente por qualquer
besteira, qualquer coisa. Eu ficava muito resfriada, passando mal em casa. Acho que
isso é por causa de estresse mesmo, porque não tinha nem um fator desencadeante
disso.
Outra residente admite que os estados psíquicos tem implicações na gênese de doenças
e na evolução das doenças estabelecidas, porém, mais uma vez, a médica recorre às próprias
vivências e a posição profissional de pediatra é deixada de lado:
Eu acho que sim, acho que influencia muito, pelo menos pra mim quando eu estou
mais feliz, eu me sinto melhor, eu não me vejo doente. Agora, quando eu estou mal,
quando eu estou com algum problema emocional, eu acho que isso tudo interfere na
minha saúde, na minha disposição.
Há ainda outra residente que se refere aos próprios sintomas. Em seu discurso aparece
as dificuldades de “ler” a criança a partir de seu ambiente. Se a criança não fala e se os seus
sintomas são interpretados apenas como manifestações originadas em seu corpo, como
entender essa associação? “É, criança é difícil de você saber, não é o que desencadeou na
verdade. Mas é mais adulto, né, você vê muito, assim, adulto.”
Vejamos a resposta da residente que relatou dois casos quando comentou sobre a
importância de perguntar sobre o que se passava na intimidade do lar. Já mencionamos os
casos: no primeiro os vômitos estavam relacionados à morte do pai e no segundo as cefaleias
da adolescente ligadas às dificuldades em revelar o namoro para a família. Ao responder a
pergunta ela não associa com os seus próprios casos relatados e se sente insegura para
responder:
Eu acredito que tem alguma relação, mas eu não tenho uma certeza absoluta. Eu
acho que sim, acho que influencia muito, pelo menos pra mim quando eu estou mais
feliz, eu me sinto melhor, eu não me vejo doente. Agora, quando eu estou mal,
quando eu estou com algum problema emocional, eu acho que isso tudo interfere na
minha saúde, na minha disposição.
5.1.8.2 A CRIANÇA FAZ PARTE DE SEU MEIO
89
Apenas duas residentes foram afirmativas ao dizer que essa associação ocorre em
crianças. Embora nenhum deles conseguiu lembrar de alguma situação clínica vivida, esse
residente elabora mais a sua resposta.
Existe até muitas doenças que elas são manifestadas de forma orgânica, com
princípio maior emocional, né? Muitas crianças quando têm negligência de
tratamento dentro de casa mesmo. Elas acabam, de repente ficando com uma certa
idade tipo de depressão, ficando mais reprimidas. Elas param de querer interagir
com o meio. E aquilo ali acaba virando uma doença orgânica, né, psíquica, enfim. E
aí pode se manifestar até de algumas outras formas orgânicas mesmo. Às vezes
manifesta no trato gastrointestinal, uma constipação intestinal. Às vezes por medo de
relacionamento mesmo dentro de casa, de estar fazendo a coisa errada e acaba tendo
uma consequência orgânica. E pode começar mesmo com alguma coisa mesmo
emocional de relacionamento dentro de casa.
5.1.8.3 CONCLUSÃO DA ANÁLISE DA PERGUNTA 13
Como dissemos, os residentes estudaram e são treinados para lidar com a associação
entre doenças orgânicas e os estados psíquicos. Conhecem as doenças inflamatórias intestinais,
as doenças autoimunes e as doenças funcionais. A maioria dos residentes já tinha passado
pelos setores da gastroenterologia, nefrologia e alergia que ocorrem no primeiro ano da
residência. Já haviam, portanto, frequentado os ambulatórios e acompanharam crianças com
encoprese, enurese, dermatites e asma, onde discutiram a associação entre as tensões
psíquicas e as exacerbações das doenças. Ficamos surpresos com as dificuldades que tiveram
os residentes em afirmar categoricamente essa associação.
Talvez a explicação dessa dificuldade possa estar na ideia da criança protegida e isolada
de todo o mal. Ela estaria, portanto, imune às distúrbios afetivos que ocorrem nos cuidados
com ela. Mantém-se assim a criança protegida da própria ambiguidade materna.
É verdade que uma das residentes não teve dificuldades em afirmar essa relação. Foi
aquela que denunciou que a maior violência pode ocorrer na sala de TV da casa.
5.1.9 PERGUNTA 14: ENCAMINHAMENTO AOS MÉDICOS DA ÁREA
“PSI”
Uma última pergunta sobre a prática foi feita para que os entrevistados explicassem se
já tinham feito encaminhamentos à psicologia ou psiquiatria e em que situações isso havia
ocorrido. Ficou evidenciado que, em geral, os residentes se preocupam com o bem-estar
90
psíquico de seus pacientes e têm o Serviço de psicologia como um colaborador frequente em
suas práticas. Alguns faziam encaminhamentos com muita frequência enquanto outros os
faziam raramente. Houve um residente que não se lembrava de ter realizado qualquer
encaminhamento em sua prática ambulatorial. Essa variação sugere que os residentes não têm
uma orientação e critérios bem estabelecidos dada por preceptores para encaminhamentos à
psicologia, como deve ocorrer para outras especialidades. A maneira de lidar com o bem-estar
psíquico parece estar mais associado à experiência pessoal do que à critérios mais objetivos.
Mostraremos essa variação pelos relatos das entrevistas.
Antes de apresentar as respostas explicamos que elas foram divididas em dois grupos. O
primeiro grupo foi constituído pelos residentes que encaminhavam os casos a partir das
impressões das mães ou das próprias impressões, mas sem que as crianças tivessem um
espaço privativo com os médicos para se expressar. São encaminhamentos em que os
conflitos intrafamiliares não podem ser identificados pelos pediatras. Um outro grupo foi
constituído por apenas uma residente. Essa colega era capaz de ouvir em separado a criança e
a mãe e o resultado é algo totalmente diferente do que ocorre com os outros residentes.
Vejamos então os relatos.
5.1.9.1 DIFICULDADES PSICOLÓGICAS EM QUE OS CONFLITOS
INTRAFAMILIARES NÃO APARECEM
5.1.9.1.1 APENAS A PERSPECTIVA DAS MÃES É CONHECIDA DO PEDIATRA
Nesse grupo estão os casos encaminhados pelo desejo da mãe. Os pediatras são
direcionados pelos responsáveis muitas vezes sem ao menos realizar uma investigação. Antes
de apresentarmos os casos citados pelos residentes, mostraremos o depoimento de uma
residente que expressa de maneira clara o que caracteriza esse grupo. A residente demonstra
um temor do que a mãe poderia pensar dela caso iniciasse uma investigação da situação
familiar:
Porque o que acontece, na consulta com a gente na maioria dos lugares vem a mãe e
a criança. Normalmente você não tira a mãe pra conversar só com a criança. Porque
não tem uma cultura. Então ninguém faz isso. Se você faz isso no seu consultório a
mãe fala: Ué, por que que é que eu não vou poder ficar ali? Aí, acabou confiança,
acabou tudo, né? Então, na verdade, quando eu acho que tem que conversar com a
criança sozinha pra ver o que que está acontecendo, eu mando pra psicologia...
Veremos mais adiante que nem todos os residentes agem dessa maneira. Há aqueles que
não encontram dificuldades em entrevistar em separado a mãe e a criança. Fica evidente que
91
para essa residente há um limite muito grande para o papel do pediatra como mediador dos
conflitos na família. Esse limite é dado pelo receio de ser repreendida pela mãe. Para outros
residentes esse temor não parece ser consciente como era para essa residente, no entanto, pelo
açodamento com que os casos são encaminhados podemos supor que o mesmo pode estar
ocorrendo com os outros residentes.
O caso que será apresentado a seguir caracteriza esse grupo que embora a residente não
verbalize o medo de separar a criança da mãe para uma avaliação, ela segue os critérios da
mãe. Vejamos um desses relatos:
A mãe falava que ela era assim no colégio, que não falava com ninguém e a mãe
contava que a criança inventava muita mentira, entendeu. Criava intriga dentro da
escola, criava uma inimizade, alguém pegava a amiguinha dela e ela contava toda
uma história para separar, essa menina eu encaminhei.
Esses são os encaminhamentos que ocorrem por indicação da mãe sem que o residente
coloque em questão a avaliação apresentada pelos responsáveis. O mesmo não ocorre no
encaminhamento para outras especialidades. Quando uma mãe pede para ser encaminhada
para um neurologista ou cardiologista, a criança será examinada e a desejo da mãe será
referendado ou não pelos critérios do médico. O profissional fica, geralmente, muito
aborrecido quando a mãe resolve ditar exames, remédios ou pareceres que o médico deveria
solicitar.
Um residente comenta como se dá o encaminhamento para a psicologia:
Na verdade, assim, a gente recebe muita queixa de pais que relatam as crianças que
são muito hiperativas ou que tem essa diferenciação de, às vezes, estar muito
hiperativas ou muito relapsas e às vezes fica mais depressiva.
Vejamos o depoimento de outra residente que conta o caso de uma menina de
aproximadamente cinco anos havia ficado muito calada na consulta. Na semana seguinte ela
se apresenta de maneira distinta e mostra-se alegre e falante; a criança parece muito bem.
Porém, a médica prefere manter o encaminhamento sem nem mesmo antes ter uma conversa
com a criança.
Na semana seguinte ela estava super falante, conversando comigo e tudo. Só que
mãe falou que na escola ela não tem amigos, ela não fala com ninguém. Então,
assim, a professora até me mandou coisa, porque a professora teve uma época acho
que ela não falava, de tanto que a menina não fala, ela não abre a boca.
Há ainda dois casos relatados que mostram de maneira ainda mais clara a dificuldade
dos médicos em conflito com as mães e encaminham as crianças evitando esses confrontos.
Nos dois casos os residentes acharam que eram as mães que tinham dificuldades com seus
92
filhos. Uma era muito exigente e a outra, negligente. Nos dois casos foram as crianças que
terminaram encaminhadas para a psicologia. Vejamos o primeiro relato:
Mas no ambulatório também já encaminhei uma criança que estava com dificuldade
na escola, dificuldade de relacionamento com os colegas, com os professores. E a
mãe, assim, também não conseguia lidar muito bem com isso. Só exigia, sentia a
relação com a mãe muito difícil, também. Ela exigia muito dele: ‘ah, porque você
tem que tirar boas notas. É sua obrigação fazer isso!’ E não ajudava. Aí a gente
pediu acompanhamento da psicologia. A gente achou que nesse caso ia ajudar
bastante. A gente não conseguia lidar bem com essas questões.
Para quem conhece a dinâmica do ambulatório pode imaginar como foi esse
atendimento. A médica ficou confusa com as exigências da mãe e pediu auxílio aos seus
supervisores. Por isso ela fala “a gente”. Os supervisores também não sabem como abordar a
mãe e encaminham a criança.
No segundo caso a médica identifica que o seu paciente de doze anos está
sobrecarregado, pois a mãe não assume as suas responsabilidades. Ao invés de abordar a mãe
e/ou encaminhá-la à assistência social, ela prefere direcionar a criança ao psicólogo. A mãe é
protegida e a criança vai para terapia.
Esse menino que eu falei que é um pai de doze anos, eu gostaria de encaminhar ele
pra um psicólogo. Eu acho que ele precisa, principalmente, porque fala que tem
problema na escola e tal. E o que eu vejo é uma criança extremamente responsável
que cuida de uma criança menor. Porque ele sabe das limitações da mãe dele. Ele eu
tenho vontade de encaminhar pra um psicólogo.
5.1.9.1.3 A QUESTÃO DA SEXUALIDADE
Incluímos esses casos entre aqueles em que os conflitos intrafamiliares não podem
aparecer. As questões da sexualidade ainda são tabu e as conversas não podem ser abertas
entre o médico e o paciente, sem a presença dos pais. Relatamos dois casos. Vejamos o
primeiro:
Teve uma criança até agora que ela era muito calada. Eram três irmãos. Muito
calado, muito calado um menino. Semana passada, muito calado. Falava nada e
tudo. E assim, a gente ás vezes tem uns estigmas, né? Mas assim, ele parecia ser
homossexual, pelas atitudes, do jeito de falar e tudo. [...] Ele tinha quinze anos. Eu
não sabia se ele era ou não, mas eu não ia perguntar na frente da mãe. Mas ele era
muito calado, não falava nada. Parecia... sabe aquela pessoa que não fala, que parece
que não quer que você pergunte nada? Aí ele eu encaminhei. Mas não que eu
achasse que ele estava com algum problema, mas eu achei que ele estava com
problema assim, algum problema que ele tinha que falar, mas não podia falar na
frente dela.
Não era uma criança, mas um adolescente. A médica faz o encaminhamento sem uma
conversa com o rapaz separado da mãe. Não fica evidente para o leitor e também não deve ter
ficado para o rapaz ou para a mãe o motivo do encaminhamento. Era por ele ser calado ou por
93
seus trejeitos afeminados? É verdade que esse deverá ser um caso simples para a psicologia,
mas devemos considerar que estamos falando de pediatras em formação e que deveriam saber
ao menos como conversar com os adolescentes.
Vejamos o caso de outra residente: “Um outro menino que, não que ele seja gay ou
tenha um comportamento gay, mas eu acho que ele, ele é um menino mais delicado e os
coleguinhas implicam muito com ele e ele chegava em casa chorando sempre, esse eu,
também, encaminhei.” E mais uma vez não fica claro o que preocupava a médica, se o fato
dele ser afeminado ou dele estar sofrendo uma pressão na escola. Podemos perceber como os
conceitos sobre a sexualidade dos médicos influenciarão na maneira de proteger essa criança.
A médica deveria encaminhar o paciente ao psicólogo ou chamar a coordenação da escola e
saber que providências estão sendo tomadas para integrar o aluno? Naturalmente, as duas
coisas podem ser feitas, mas o pediatra preocupado com a orientação sexual tenderá a tratá-lo
ao invés de apoiá-lo.
Veremos agora o depoimento da única residente que foi colocada em outro grupo.
5.1.9.2 DIFICULDADES PSICOLÓGICAS EM QUE OS CONFLITOS
INTRAFAMILIARES APARECEM
5.1.9.2.1 OUTRAS PERSPECTIVAS ALÉM DA VISÃO DA MÃE E O TRABALHO DO
PEDIATRA
Vejamos, a seguir, o caso relatado pela pediatra:
Tenho, assim, sempre umas histórias de distúrbio de atenção, que a mãe relata que a
criança está indo mal na escola, aí quando você vai perguntar... Por exemplo, uma
outra adolescente que eu atendi, que a avó, os pais são separados e a avó materna é
que toma conta da parte da saúde da menina. E quando a avó chegou ela começou a
falar que a menina era muito tímida, que era isso, que era aquilo; que não interagia
com ninguém, que não se relacionava bem com o pai. O pai mora com a avó e a
criança vai pra casa da avó. Que não é criança, né, uns quatorze anos. E aí que ela
não é feliz, que a mãe tem um namorado que ela não gosta. E aí ela me contando,
contando, contando. E aí eu, quando eu pedi pra avó sair a menina falou: não,
doutora eu gosto de ficar com a minha mãe. Porque ela tentou me convencer que a
menina não gostava de ficar com a mãe, que ela gostava de morar na casa dela com
o pai. E que ela tinha muita dificuldade de relacionamento com o pai, porque ela era
muito tímida. Mas com a mãe ela odiava o padrasto, ela odiava ter que cuidar do
irmão mais novo, que era filho desse marido da mãe. E aí no fim das contas quando
a avó saiu ela falou: não, eu adoro ficar em casa com a minha mãe, eu não me
importo de cuidar do meu irmão. Eu realmente não tenho uma relação muito boa
com o meu padrasto, mas não é nada absurdo, porque ele faz tudo pra mim. Só que
eu queria que a minha mãe tivesse junto com o meu pai. E aí às vezes eu fazendo
queixa na casa da minha avó, pra ver se eu falando mal do meu padrasto o meu pai
procura a minha mãe. Então, assim, criando uma situação de uma forma de reunir os
pais novamente. E aí essa eu encaminhei pra psicologia. Assim, algumas eu
94
encaminho por história de problemas na escola, sempre tem alguma coisa, ou de
relacionamento com os amiguinhos.
Tivemos a sorte de encontrar no grupo entrevistado uma residente que conta casos e
mostra que a compreensão e a conduta médica ganha outra perspectiva quando os conflitos
intrafamiliares são considerados. Nessa dinâmica várias perspectivas são consideradas; não há
a busca pela verdade. No caso, a avó é a representante da figura materna e nessa perspectiva
quando falamos na autoridade materna nos referimos àquela que exerce a função materna e
não à mãe propriamente dita. O encaminhamento à psicologia se deu da mesma maneira, mas
a dinâmica familiar ficou melhor esclarecida para a pediatra que poderá compreender novas
ocorrências de maneira privilegiada. Uma relação transferencial pode ser estabelecida com a
adolescente e com a avó, e não apenas com uma delas. A última frase de sua resposta: “Assim,
algumas eu encaminho por história de problemas na escola, sempre tem alguma coisa, ou de
relacionamento com os amiguinhos”, mostra que em muitos casos essa residente deve agir da
mesma maneira que o restante do grupo. Talvez em alguns casos ela tenha receio de criar
conflito com a mãe e também não se ocuparia em ouvir a perspectiva da criança ou do pai.
Entretanto, o caso mostra como a consulta pediátrica se enriquece e penetra nos conflitos
intrafamiliares quando diferentes perspectivas são escutadas.
5.1.9.3 CONCLUSÃO DA ANÁLISE DA PERGUNTA 14
Vimos de três maneiras distintas como o pediatra preserva uma cumplicidade com a
autoridade da mãe e responsáveis. Mais que uma cumplicidade, a mãe exerce um
constrangimento na atuação da maioria dos pediatras. Há aqui uma questão sutil que ficará
melhor esclarecida quando nos referirmos à questão da necessidade do médico de “ser usado”.
Antecipemos brevemente essa questão. Muitas vezes é preciso ceder aos desejos da mãe em
prol de um bom vínculo médico-paciente. Não há mal nenhum em assim proceder, desde que
com isso a saúde da criança não fique comprometida. Entretanto, os encaminhamentos
açodados não parecem que tivessem relação com o fortalecimento da relação com a mãe.
Voltaremos a isso com mais clareza, esperamos, mais a frente.
Pode ocorrer do pediatra não poder aprofundar a consulta, pois a mãe se sentiria
incomodada. Ou as crianças são encaminhadas unicamente pelos critérios da mãe e da escola.
E pode ocorrer também casos em que os pediatras, mesmo reconhecendo que as mães estão
exigindo demais de seus filhos, elas são poupadas e as crianças são encaminhadas para
avaliação e tratamento no Serviço de psicologia.
95
Mesmo com toda as modificações em nossa sociedade, a sexualidade continua sendo
um tabu e esse assunto não é abordada na formação do pediatra.
5.1.10 PERGUNTA 15, 16 E 17: MÉDICOS COMO PACIENTES
A pergunta 15 buscou conhecer as lembranças que os médicos tinham das relações com
seus pediatras. A pergunta 16 queria conhecer as experiências dos entrevistados como
pacientes ou com doenças em pessoas próximas e a pergunta 17 quis saber os critérios usados
pelos médicos para escolher os seus próprios médicos. Enfim, as perguntas desejavam
conhecer os médicos quando enfrentavam as doenças em si mesmo ou em seus entes queridos.
5.1.10.1 EXPERIÊNCIAS COM SEU PEDIATRA
5.1.10.1.1 EXPERIÊNCIAS MARCANTES DA INFÂNCIA
Quando apresentamos as respostas sobre a escolha pela pediatria, vimos que não era
incomum que os residentes fizessem a opção pela especialidade em uma fase tardia da
graduação. Chamou a nossa atenção que as escolhas eram feitas de maneira tão súbita que
pareciam decisões mais inconscientes do que racionais. As repostas sobre as lembranças que
os entrevistados retinham sobre os seus pediatras dão suporte às impressões acima, pois as
experiências eram ainda muito marcantes e vívidas. Apenas uma residente não tinha
lembranças de suas experiências: “Eu tive, mas eu não lembro dele. Não lembro, porque não
fui acompanhada depois de grandinha, assim, depois sei lá de... sei lá, de seis, sete anos que
eu lembro, não lembro mais de pediatra. Não lembro nada.” Um dos residentes tinha o próprio
pai como seu pediatra e não seria possível separar as recordações do pai das do pediatra.
Uma das residentes tinha recordações muito ruins de seu pediatra, mas o clínico da sua
avó a examinava nas crises de bronquite e desse clínico, que atuava também como seu
pediatra, se lembrava bem.
O médico que eu gostava, ele não era pediatra, ele era clínico geral, cuidava da
minha avó. Ele eu adorava, porque ele era bonzinho. Eu ia lá ele sempre me dava
bala, nunca me dava injeção. Na verdade eu tinha uma visão boa dele, não do meu
pediatra em si. As vezes, eu ia com ela. Às vezes eu ficava com ela quando ela era
viva. Eu ficava com ela, que ela morava na casa de trás. Então às vezes ela ia no
médico, eu ia com ela. Na verdade não é que eu levava ela, ela que me levava
quando estava comigo. E aí e às vezes ele também consultava criança.
96
As recordações eram sempre marcantes. Uma outra médica conta:
Mas era sempre um momento agradável para mim. Não só pela recompensa, mas
acho que o tratamento que ele tinha. Não era aquela consulta rápida, era aquela
consulta que ele demorava, perguntava tudo, como é que tava em casa, como é que
tava na escola. Acho que isso é importante, numa consulta não só direcionada para a
queixa, né?
Para essa colega, mesmo doente a visita à pediatra era sempre excitante: “Não, eu
adorava meu pediatra. eu gostava, já falei um pouco. Mas eu gostava muito dela, adorava.
Igual eu to falando. Pra ir na consulta com ela era uma festa. Mesmo que eu estivesse doente.
Com febre, eu adorava ir no médico, amava.”
Selecionamos dois casos que apresentaremos em separado, pois revela uma dissociação
entre as visões do adulto enquanto pediatra e da criança, quando ainda era paciente.
5.1.10.1.2 DISSOCIAÇÃO ENTRE AS EXPERIÊNCIAS DA INFÂNCIA E A
EXPERIÊNCIA COMO PEDIATRA
Para que se possa ter em perspectiva as respostas desses dois residentes anteciparemos
as suas respostas para as perguntas que vêm a seguir. Assim, temos os depoimentos das
próprias residentes que hoje se reconhecem saudáveis. Sobre a sua saúde, um deles responde
que teve púrpura trombocitopênica idiopática. Um episódio agudo, resolvido sem sequelas. O
residente diz: “Então, que eu me lembre não teve ninguém com alguma doença importante.”
Quanto à saúde da outra residente, ela responde: “Eu nunca tive nada, graças a Deus...”
Voltando às respostas sobre as lembranças de suas relações com seus pediatras,
podemos afirmar que eram crianças saudáveis. Se frequentaram muito os pediatras e se seus
responsáveis demandaram muito deles é porque tinham pais e avós ansiosos como é costume
acontecer na relação da família com seu pediatra.
Vejamos, então, o depoimento de uma delas:
Os pacientes dele, eram pacientes que ele visitava em casa, porque eu tinha muita
amigdalite quando eu era criança. E eu tinha febres absurdas e a minha mãe nunca
me levou numa emergência, era sempre ele que ia até a gente. Pra olhar a garganta,
pra prescrever antibiótico. Uma época que eu tive uma dor de barriga, que eu me
lembro, tipo uma apendicite, mas não era. Então ele esteve muito presente nesses
momentos. Mas não é uma pessoa que eu tenho relação hoje, assim, mas é uma
pessoa que eu acho que seria um bom exemplo, assim.
97
O outro colega traz assim as suas lembranças:
E eu ia muito ao pediatra, ia muito mesmo. Eu ficava muito doente durante o
primeiro, segundo ano de vida. Não só... a minha infância realmente eu fiquei muito
doente. E minha mãe, minha avó sempre foram muito preocupadas. Então eu ia com
muita frequência ao pediatra e ele tinha uma relação muito forte assim, comigo, com
minha mãe, minha mãe tinha muita confiança. Ela podia ligar pra ele, a esposa dele
atendia também com muita atenção. E eu fui a ele até, acho que os dezesseis anos,
porque eu não sabia mais a quem procurar.
Tivemos, assim, a oportunidade de trazer depoimentos que apresentam de maneira
bastante real a relação das famílias com o pediatra. As crianças são, em geral, saudáveis,
porém se a família fica muito ansiosa a criança experimentará as suas enfermidades também
com preocupação. A primeira residente diz que tinha “febres absurdas” e a dor de barriga
inespecífica foi vivida como apendicite. Chamamos atenção para essa separação da
experiência vivida como paciente e de médico. Podemos apreciar que em um de seus
depoimentos anteriores ela havia se mostrado bastante intolerante com os pacientes com dores
abdominais inespecíficas:
E a outra parte eram pessoas completamente carentes que chegavam pra gente como
clínica, sei lá, dor abdominal e quando assim, conversando a dor simplesmente não
existia mais. Eu não sei se é só uma mentira ou se as pessoas querem se sentiram
acolhidas, querem receber um pouco de atenção e não é muito o meu perfil.
O outro colega também tem a lembrança de ficar “muito doente”. Era saudável, mas
seus responsáveis eram provavelmente bastante ansiosos. Esses pediatras, por terem sido
presentes nas vidas dessas famílias foram marcantes para esses dois residentes também.
Porém, quando passa a viver a doença como médico e pediatra esse segundo residente
também se mostra pouco tolerante com as mães: “E o que eu não gosto, o que eu acho mais
difícil, às vezes é a situação com a mãe, porque você depende da mãe; que a mãe cuide da
criança.”
5.1.10.2 EXPERIÊNCIAS COM DOENÇAS NA FAMÍLIA
A experiência pessoal com doença era muito limitada. São jovens saudáveis. Duas
residentes tiveram asma quando criança e ainda mantém crises esporádicas, mas não há
história de internação ou sequela. Como já mencionado, um residente teve púrpura
trombocitopênica idiopática, curado sem sequelas. Quando se referem a doenças na família,
há sempre dor e sofrimento, entretanto na maior parte dos relatos os residentes manifestaram
98
uma certa distância das experiências. Sendo mais jovens não se responsabilizavam pelos
acontecimentos. Uma delas relatou:
Ele nunca deixou. Nunca fui ao médico com ele. Quando ele operou ele não quis
que eu fosse. Eu não vi ele operado, eu não fui ao hospital. Não por que eu não
queria, porque ele não queria que o visse mal. Então eu não tive, eu só sabia as
coisas assim, dos exames que eu via em casa e tudo. Porque ele não deu abertura,
entendeu? Quem ficou mesmo foi minha mãe.
Outra residente relata uma experiência de enfermidade em um parente próximo que
mobilizou durante muito tempo a família: “Mas foi um susto grande, foi bem sofrido. E eu era
nova. Eu tinha, era nova, mas entendia, não é, nova o suficiente pra entender, também. Eu
tinha, acho que uns nove ou dez anos. Nossa, eu lembro de tudo muito nitidamente.”
Há três relatos, no entanto, em que os residentes já são adultos e médicos. Os relatos
tornam-se bem mais dramáticos e emotivos. Embora em nenhum dos casos eles tenham
qualquer responsabilidade como médicos, eles se sentem muito responsáveis e os relatos são
repletos de emoção e culpa. Vejamos o primeiro relato:
Muito ruim, infelizmente. Eu odeio falar isso, mas eu achei muito ruim. A gente14
foi pra uma emergência. Ele não sabia o que ele tinha. E foi uma outra coisa que me
incomodou muito, que eu não consegui fazer o diagnóstico. Não é conseguir o
diagnóstico, não consegui suspeitar de uma coisa tão óbvia. [...] Aí chegou na
emergência, foi atendido. Demorou mais de seis horas pra ser transferido, porque
não tinha vaga no hospital. Quando ele chegou no hospital a médica que atendeu ele,
examinou ele direitinho. E ele tinha que começar o antibiótico antes de fazer a
cirurgia, porque ele estava com quase cinquenta mil leucócitos, estava uma coisa
horrorosa. Estava quase ficando séptico, né? Aí quando chegou lá a médica falou
assim: ah, não, a gente vai começar o antibiótico amanhã. Aí eu falei: não, você vai
começar esse antibiótico agora. E eu sou super calma, sou uma pessoa muito
tranquila, mas tudo tem seu limite, né? Aí eu falei: não, você vai começar o
antibiótico agora, porque você vai começar amanhã? Falei assim: a doença dele não
vai esperar até amanhã, não. Aí ela falou que não ia começar o antibiótico.
Primeiramente, embora ainda não tivesse qualquer prática com a medicina, ela se culpa
por não ter suspeitado do diagnóstico. As lembranças são tão dolorosas, pois as fazem
relembrar de sua culpa!
Embora ela seja médica e tenha, portanto, uma avaliação técnica do atendimento, nos
parece interessante comparar esse depoimento com a sua resposta sobre o que a incomodava
na pediatria. Respondeu essa residente:
Acho que depende também, depende do lugar também. Quando você trabalha num
hospital particular. O que acontece muito é de as pessoas acharem, os pais acharem
14 Houve modificação na transcrição dos três relatos para evitar a identificação dos entrevistados.
99
que, na verdade eles não estão errados, mas é uma coisa arrogante achar que eles
estão ali pagando seu salário e que você tem obrigação de... Obrigação a gente tem,
mas que você tem que fazer o que eles querem. E isso é uma coisa que eu não... é
muito difícil pra mim. Porque às vezes eles acham que tem que fazer uma coisa, que
na minha opinião não tem que ser feita. Mas um exemplo uma vez quando eu estava
trabalhando na emergência. Não estava nem trabalhando, era estagiária lá na
Baixada. Aí a mãe chegou e falou assim: ah, eu quero que você peça um raio-x pro
meu filho. Aí eu falei: não, calma aí. Me diz o que que ele tem, o que está
acontecendo. Não, não, eu quero um raio-x pro meu filho. E assim, isso é uma coisa
que me incomoda muito. A mãe enfia na cabeça dela que o filho tem que fazer raio-
x que não adianta, por mais.... Por mais que eu conversasse com ela, por mais que eu
falasse, tentasse explicar pra ela que a criança não precisava de um raio-x, não
adiantava, eu tinha que fazer o raio-x. E isso é uma coisa que me incomoda muito.
Percebe-se, de maneira semelhante ao que se observou nos relatos sobre as lembranças
da infância com seus pediatras, um alto grau de dissociação entre a experiência como médico
e como paciente. O mesmo podemos constatar na entrevista dos outros colegas. Ao se lembrar
da enfermidade em seu ente próximo, outra residente desata a chorar e relata:
Então, assim, a primeira vez que eu tive contato com uma doença, assim, grave foi
com ele, que é uma pessoa que eu sou muito apegada, sou muito... Então, eu acho
que isso foi uma coisa que mexeu muito comigo. [...] E por mais que a gente tenha
muito contato com doente, com doença, quando é na nossa casa é diferente. [...] Só
sei que a gente surtava. Até que um dia a gente resolveu: não, vamos chamar uma
equipe pra cuidar só dele e aí a gente ficou muito satisfeito, fomos muito bem
atendidos.
Já mencionamos a resposta dessa residente sobre o seu desconforto em acolher os
pacientes quando falamos de suas lembranças com o seu pediatra. Finalmente, mostramos
mais um caso. O médico fica indignado quando percebeu que poderia haver descompromisso
da parte do médico que atendia o seu parente:
Ele falou assim: ah, quase morreu! Eu não consigo aceitar. Pra mim quem está
achando que ele poderia morrer facilmente que está acostumado a perder doente.
Você não pode se acostumar. A partir do momento que um médico se acostuma a
perder um doente, está na hora de largar a profissão. Se você perde uma pancreatite
que é uma coisa relativamente comum, você vai curar o que na sua vida?
5.1.10.3 A ESCOLHA DOS SEUS PRÓPRIOS MÉDICOS
Os residentes são jovens e saudáveis. Suas experiências como pacientes são muito
limitadas e, desse modo, as respostas foram curtas e pouco elaboradas. Ainda assim, é
possível perceber que os médicos são escolhidos por serem pessoas de confiança da família.
Repostas como: “Por indicação, é o mesmo médico da minha mãe.” Ou, “Ele já era médico do
meu pai, cuidava da minha mãe e agora cuida da família toda.” Foram comuns.
Ocasionalmente, eram ex-professores ou pai de amigos, como na resposta a seguir:
100
Na verdade o médico atual meu é pai de uma amiga minha que estudou comigo na
faculdade. Então como era pai dela e tal, não sei o que. Falei: ah, eu vou começar a
ir no seu pai como médico. E aí foi. E eu acompanho com ele.
Há apenas uma experiência negativa de uma das residentes que relataremos a seguir.
Esse relato reforça a ideia de que mais do que excelência técnica os residentes estavam em
busca de experiências empáticas com seus médicos. A seguir esse relato:
E meu clínico geral era cardiologista, também e eu descartei ele, não vou mais nele
uma vez que eu vou numa consulta e eu queria falar sobre coisas que eu sentia, dor
nas costas. Coisas assim, nada demais e aí eu comentei que eu ia fazer uma viagem
e ele passou a consulta inteira só falando da minha viagem. E aquilo me gerou uma
inquietação. E ele atendia o telefone, e ele não sei o que... Eu falei: não, acho que
não dá pra eu voltar aqui. Assim, não é nada contra ele, ele é um ótimo profissional,
mas acho que comigo, né? Acho que a gente sai da faculdade um pouco crítico,
assim.
5.1.10.4 CONCLUSÃO DA ANÁLISE DAS PERGUNTAS 15, 16 E 17
Embora jovens e saudáveis, os residentes relataram várias lembranças das vivências
como pacientes e acompanhantes de familiares enfermos. Tanto nas experiências como
criança com seu pediatra como em suas experiências de adulto, os residentes mostram que
esperam de seus médicos que sejam não apenas competentes tecnicamente, mas que sejam
afetivos e que possam acolher a ansiedade dos enfermos e dos parentes dos enfermos.
A ansiedade vivida pela família não está associada à doença, mas aos medos e fantasias
trazidas pela perspectiva do adoecimento. A família não pode discernir os riscos que estão em
jogo e o medo de perder a pessoa amada será trazida ao médico. Caberá ao médico acolher o
doente e os familiares.
O profissional na posição de doente entende isso, porém, na posição de médico, muitas
vezes se recusa a ocupar o lugar do paciente e familiar. Referimo-nos a esse fenômeno
quando abordamos a questão da relação de confiança. O médico como paciente assume a
posição passiva na relação empática. Em outras palavras, ele entende que ser cuidado não se
resume aos cuidados físicos. É preciso acolher as queixas e se responsabilizar pela criação e
manutenção de uma relação empática. Entretanto, quando ele ocupa o lugar de médico muitos
não se limitam aos cuidados físicos e deixam as tensões inerentes da relação de cuidado sob
responsabilidade do paciente e familiares. Passam a dividir em iguais proporções a
responsabilidade da relação médico-paciente com os pais. Uma residente coloca isso de
maneira clara em um discurso que aparece na segunda entrevista: “Acho que quando você
101
entra, você entra insegura demais, você entra às vezes um pouco carente, também, de
conhecimento e até de atenção dos pais com você. Você quer resolver, às vezes a pessoa não
te dá muita...”
Talvez a responsabilidade que o médico tem que assumir no exercício de sua profissão
seja, por si só, uma carga tão pesada que ele não encontre mais disponibilidade para um maior
acolhimento de seus pacientes.
5.1.11 PERGUNTA 18: O PEDIATRA QUE DESEJARIAM SE TORNAR
Passemos para a última pergunta da primeira entrevista em que os médicos discorrem
sobre o tipo de pediatra que desejariam se tornar. Os residentes se manifestaram de duas
maneiras distintas. Alguns falaram do que desejariam ser, enquanto outros tiveram maior
preocupação em expressar aquilo que não gostariam de se tornar. Vejamos as repostas.
5.1.11.1 A MEDICINA PRIVADA E AMBULATORIAL
O nosso sistema público de saúde ainda privilegia a medicina hospitalar e leva o
residente a confundir medicina ambulatorial com o consultório privado. Foi marcante a opção
dos residentes pelo consultório. Para eles a pediatria está associada a uma prática ambulatorial
em que o médico atua cuidando da criança e da família. Esse é o lugar que desejam ocupar.
Uma residente responde: “Eu tenho vontade de ter um consultório particular, acho que é o
meu perfil. Eu gosto de consulta ambulatorial, gosto de acompanhar paciente. Eu sempre quis,
assim.”
Em outro depoimento aparece o consultório associado ao acompanhamento do
desenvolvimento da criança: “E ter um acompanhamento certo, né, pra um bom
desenvolvimento, crescimento.” Quando a entrevistadora pergunta se ela está se referindo a
ter um consultório, ela responde afirmativamente: “É clínica.”
Duas residentes pensam em fazer consultório, mas ainda consideram várias
possibilidades. Uma delas afirma: “Provavelmente. Eu não me vejo, assim nada mais
intervencionista. Mas eu ainda, também, não sei o que eu vou fazer, pra variar. Eu espero me
decidir mais pra frente...” A outra médica também não descarta a ideia de fazer consultório:
102
Eu penso fazer gastro. Eu gosto muito de gastro. Eu gosto de procedimento, né, eu
gosto de coisa que tenha procedimento. Então gastro e endoscopia que eu acho
muito bom. E tem consultório, também. Então é uma coisa que... mais meio termo.
Não é só a parte intensiva que é de procedimento e também não é só consultório.
5.1.11.2 A PRÁTICA QUE TRANSCENDE ÀS QUESTÕES DA TÉCNICA
5.1.11.2.1 ESTAR PREPARADO PARA AS QUESTÕES EMOCIONAIS
Os planos de abrir ou não um consultório de pediatria não modificavam o desejo que os
residentes expressaram – todos se manifestaram dessa maneira – de ir além das questões da
técnica e estar preparados para isso. Como dissemos, houve aqueles que manifestaram esse
desejo pelo que gostariam ser e outros que manifestaram um temor do que poderiam se
transformar. Vejamos as respostas do primeiro grupo. Uma residente respondeu:
Que eu quero é ser uma pediatra completa. Uma pediatra que tenha muito
conhecimento técnico. Assim, que saiba o que está fazendo. Saiba identificar as
doenças, tratar da maneira correta. E, também uma pediatra que tem uma relação
boa com os pacientes, quanto com a família. Que consiga entender as outras
questões envolvidas, não só a doença física da criança, né? Assim, uma pessoa com
que eles possam contar, eu acho, nas dificuldades. Talvez, não só naquela rotina de
levar pro pediatra, de pesar, de ver gráfico, de crescimento, de ver vacina e tal. Mas
nas dificuldades que eles tiverem, é uma pessoa que eles possam contar. Ver que eu
estou ali pra ajudar em que eles precisarem. O que eu quero ser.
Outra residente tem aspirações similares. Ela fala de ver a criança com “um todo”:
Quero ser uma pediatra que ... com bastante atenção ao paciente, seja bastante
atenciosa, que esteja pronta pra ouvir as queixas das mães, que a gente sabe que a
gente vai ouvir muita queixa de mãe. E que esteja preparada para prestar atenção
bastante no paciente. O que que eu to vendo, o que que ele tá tentando me dizer, o
que ele tá tentando me mostrar. Possa me esforçar pra conseguir resolver o problema
e esteja disponível pra qualquer intercorrência, se for preciso tentar ajudar ao
máximo que eu puder e tentar resolver o problema num todo, e tentar fazer um
acompanhamento bom da criança.
Mesmo a residente que ainda não resolveu se fará consultório ou não, manifesta-se de
maneira semelhante aos demais:
Eu, assim, diferente das pessoas eu não quero ser a melhor pediatra do mundo. Eu
não tenho essa ambição. Mas eu quero ser uma pediatra dedicada, que consiga dar
aos doentes o que eles precisam, não só em relação a doença, mas até em relação ao
emocional mesmo, assim. Conforto pros pais, porque às vezes a doença do filho é
muito desgastante, também , pra família, né, não é só pro pai e pra mãe, mas pra
toda a família.
103
Por fim, deixamos um último depoimento de uma colega que sabe, mesmo sem ter
filhos, que a mãe tem uma experiência sobre a doença do filho que não é a do médico. O fato
da mãe ser médica em nada modificaria a experiência da maternidade.
Não precisa ser uma pediatra, assim famosa, de nome, não precisa, não. Mas eu
quero ser uma boa pediatra, eu quero acompanhar, eu quero ter essa relação boa com
a mãe e com pai, sabe? Eu acho muito importante. Que é exatamente isso o
problema que o pessoal fala do problema. O problema do pediatra não é a criança é
o pai e a mãe. Mas acho que se você tiver uma relação boa dá pra fazer, a pediatria
fica perfeita, fica muito bom. Realmente a dificuldade que a gente encontra maior é
pai e mãe, até porque a gente tem que entender um pouco a ficção, óbvio de pai e
mãe. Eu não sou mãe, eu não tenho filho mas é notável o desespero. Você vê que
uma mãe médica, uma médica quando vira mãe ela vira, quando o filho tá doente ela
é só uma mãe, ela não é uma médica. Então, né, a gente vê que realmente deve ser
uma coisa bem diferente. Então eu quero ser isso. Eu quero ser uma pediatra boa,
que eu consiga solucionar os casos, principalmente. Lógico de doença em si, é pra
isso que a gente estuda, pra isso que a gente serve, também. Mas se eu puder ajudar,
né, em questão quando não é uma doença orgânica e é uma emocional, social que eu
saiba identificar e que eu consiga resolver o problema.
5.1.11.2.2 NÃO SE TORNAR INSENSÍVEL
Por que alguns médicos, ainda tão jovens, se preocuparam em “perder a sensibilidade”
ao longo da vida profissional? Certamente, esse acontecimento é percebido nos médicos mais
velhos, próximos a eles. Escolheram a profissão pela “vontade de ajudar” como vimos, ou
pelo intenso afeto que as crianças despertam. Porém, se deparam com médicos que, com o
passar do tempo, tornam-se embrutecidos, sem tempo para os pacientes e sem prazer em
atendê-los. Há algo que se perde em muitos dos nossos colegas e essa perda é uma ameaça ao
jovem médico. Vejamos algumas das respostas. Diz uma das residentes:
Ter sensibilidade sempre, porque acho que isso é importante. Porque às vezes você
vê gente muito mais velha, que acaba, né, acaba a sensibilidade. [...] Acaba a
sensibilidade, fica só a com a qualidade técnica. Ah, está com resfriado faz isso, não
tenta ver as outras... não tenta... foca só na doença, na doença orgânica. Não tenta
ver os outros problemas, a parte de escolaridade ou os problemas psicológicos que
podem estar influenciando todo o resto. Fica só está resfriado, está com pneumonia,
está com infecção urinária, está com atraso do desenvolvimento faz isso, entendeu, o
problema? É a sensibilidade do todo. Não só do que é a medicina de tratar. Espero
que eu... e que eu não fique esnobe se eu um dia souber bastante. Que eu tenha a
humildade pra passar pros outros. Que a gente morre e leva tudo com a gente.
Espero que eu não morra com as informações comigo.
Outra colega se preocupa se também terminará absorvida pelos aspectos comerciais da
profissão:
O que eu não quero ser é aquele pediatra que quer atender uma criança a cada quinze
minutos só pra ganhar dinheiro mais rápido. Isso eu acho um absurdo, porque eu
acho que é impossível você atender a uma criança em quinze minutos. Eu quero ser
uma pediatra que eu consiga criar um vínculo com a família e que por mais... As
pessoas falam: ah, que é chato as pessoas ficarem te ligando. Não, não, quero que
me liga. [...] Não quero só trabalhar por dinheiro, porque eu acho que isso é muito
104
ruim. Acho que quando você pensa assim, você é muito pobre de espírito. Acho que
isso é uma coisa que eu não quero fazer.
Há ainda outra residente que se preocupou com o aspecto financeiro. Essa residente, no
entanto, mostrou uma visão mais realista do que a primeira. Ela sabe que precisará de uma
justa remuneração para viver e que dependerá dos convênios com as seguradoras de saúde. A
estrutura que terá de enfrentar poderá lhe roubar a autonomia e seus sonhos.
Então não dá para fazer uma medicina de quinze minutos. Acho que, é por isso que
eu falo assim que eu sei muito o que eu não quero. Eu tava até conversando com a
doutora X ontem: Ah, eu a tenho medo de fazer consultório e só ter prejuízo, porque
eu também não quero fazer essa parte assim, de vender para plano. Ah, não, tem que
ser com calma. Eu, ah tudo bem, mas calma até quando, entendeu? Não sei até
quando eu seria uma pediatra bem sucedida, quando que fala: não, agora chega de
tentar, acho que é basicamente isso.
5.1.11.2.3 A PREOCUPAÇÃO COM O EXCESSO DE ENVOLVIMENTO E PERDA DA
INDIVIDUALIDADE
Destacamos uma colega que ressalta outros temores com o futuro profissional. A sua
resposta não está centrada nem nos aspectos financeiros e nem na perda de sensibilidade,
como manifestaram outros residentes. A médica traz para a nossa reflexão um questão nova: o
temor que o envolvimento com as famílias demandam pode levar o médico a perder a sua
individualidade e atrapalhá-lo em seus planos pessoais. Essa questão levantada pela colega
pode nos ajudar a compreender por que os médicos, com o tempo, tornam-se mais
embrutecidos. Seria essa insensibilidade uma defesa contra a demanda emocional que o
médico tem que dispender para lidar com a carência das mães e das crianças? Talvez seja
disso que essa residente fale quando expressa as dificuldades em conciliar a vida de pediatra
com a sua própria vida pessoal:
Que pediatra eu quero ser. Ah, eu quero ser... eu costumo me relacionar muito com
o paciente. Aí as meninas até brincam: ah, não fica se apegando tanto. Que eu brinco
que eu costumo sempre ter um filho. Pegar uma pessoa que eu acabo sempre me
dedicando muito até a pessoa sair. Eu fico muito sentida, se a pessoa fica sentida
ou... eu me envolvo mesmo, eu vou pra casa, eu não costumo esquecer. Aí eu to com
o meu namorado eu sempre fico falando: ontem eu perguntei a ele, você fica
chateado? Ele fala: um pouco, porque você não esquece e tipo por mim. Então você
tem que se acostumar, porque você vai ter muito. Esse é só um caso de vários que
você ainda vai ter e não tem como você sofrer por todos eles. Mas eu tenho isso, eu
não consigo esquecer. Aí tipo: a família toda, envolvida no sofrimento. Isso
acontece sempre, mas é difícil você ... eu acho muito difícil você ver isso e você ir
pra casa, e esquecer. Eu ainda não consigo. [...] Não, eu acho que ter carinho não
custa nada. Eu tenho, eu gosto disso, assim. E eu espero que eles tenham por mim,
também. Nem todo mundo vai ser da mesma forma. Eu espero ser carinhosa, atenta,
lutar bastante pelos meus pacientes, assim, o máximo que eles precisarem de mim.
Eu só tenho um pouco de medo de atrapalhar, assim, eu fico pensando em quanto
que isso vai interferir na minha vida com os meus filhos, que eu tenho uma vontade
louca de ser mãe, assim. E se fosse escolher, a melhor coisa que você quer ser na sua
105
vida. Eu escolheria, a melhor coisa que eu quero ser é melhor mãe do mundo. Eu
ficaria feliz em ser uma profissional competente e boa, atualizada, que eu faça as
coisas bem feitas, mas assim, não quero ser a melhor pediatra, não, quero ser a
melhor mãe do mundo em escolha.
5.1.11.3 CONCLUSÃO DA ANÁLISE DA PERGUNTA 18
O pediatra não quer apenas curar as doenças. A sua formação técnica parece ser um
meio para se aproximar das famílias e ajudá-las. Esse apoio não se restringe às questões
relacionadas às doenças, mas inclui todos os sofrimentos pelos quais as famílias passam.
Porém, os pediatras veem colegas mais velhos que perderam os seus ideais. Estão
amargos e desiludidos em suas profissões. Não têm mais tempo e nem alegria para atender as
mães e dar a devida atenção às suas queixas. Por que perderam os seus ideais? Talvez não seja
correto atribuir esse caminho profissional tão frequentemente observado apenas às questões
econômicas da carreira.
Uma das residentes levanta uma questão: como é possível estar perto de tanto
sofrimento e ainda manter tempo e alegria para a própria família? Não seria mais prudente se
afastar desses sonhos profissionais e preservar a vida privada?
Há, portanto, um conflito em cada um dos residentes: o desejo de ajudar o outro e a
necessidade de ser ajudado e cuidado. Aparecem as questões relacionadas ao
desilusionamento – suportar o ódio de quem está sendo cuidado –, como descrito por
Winnicott, no âmago das dificuldades que têm os residentes em manter uma relação afetiva
com as famílias sem perder a própria individualidade.
5.2 SEGUNDA ENTREVISTA
Explicamos na metodologia que a segunda entrevista havia sido pensada para comparar
conceitos sobre a teoria e sobre a prática, antes e após a intervenção. Posteriormente,
concluímos que a metodologia era inadequada para essa comparação. Acumularam-se muitas
informações que já haviam sido colhidas nas primeiras entrevistas e em nada acrescentaria ao
trabalho expô-las novamente. No entanto, os casos relatados durante a segunda entrevista
serão trazidos, pois são as expressões mais vivas da prática. A maneira de conduzir os casos
106
atendidos deve mostrar se ocorreram ou não modificações conceituais nos residentes, embora
a metodologia aplicada não permita concluir se isso se deveu à intervenção ou a outros fatores
que não foram investigados.
Foram feitas quatro novas perguntas na segunda entrevistas que serão apresentadas a
seguir. As perguntas giraram sobre o mesmo tema: o que o residente achou da experiência da
intervenção? A primeira pergunta foi realizada de uma forma aberta para detectar se o
residente se manifestava espontaneamente sobre a experiência. A pergunta foi formulada
assim: Como tem sido a sua experiência nos atendimentos? Posteriormente foi perguntado
aos residentes se eles achavam que vinham se modificando como pediatras. É portanto mais
direcionada que a primeira pergunta, pois sugere que modificações possam ter ocorrido. A
terceira pergunta é um complemento às duas anteriores e busca saber ao que foram atribuídas
as mudanças ocorridas. Finalmente, há uma quarta pergunta que é direta e pede para o
entrevistado comentar sobre a experiência no setor. Pode-se notar que as perguntas são muito
semelhantes e tratam, afinal, da mesma questão: a intervenção – as reflexões produzidas, o
impacto sobre a prática, as críticas e os desconfortos causados pela experiência.
Como as respostas às quatro perguntas mesclaram essas três questões – reflexões,
mudanças e críticas – optamos por apresentá-las em conjunto para cada um dos residentes.
5.2.1 PERGUNTAS 1, 2, 3 E 4: REFLEXÕES, MUDANÇAS NA POSIÇÃO
DO MÉDICO FRENTE ÀS MÃES E CRÍTICAS À INTERVENÇÃO
Todos os residentes, ao menos em algum momento da entrevista, se referiram às
reflexões provocadas pela experiência do setor. Nesse sentido a experiência cumpriu um
objetivo: provocar uma reflexão sobre a prática e a relação médico-paciente. Separamos essas
respostas em três grupos distintos. Nos dois primeiros grupos ficaram aqueles que tinham
mais resistência em aceitar que as mães podiam falhar. Em geral, admitiam que tinham muito
pouca tolerância com as mães e expressaram que estavam refletindo e buscando ampliar o
espaço dado às mães. No primeiro grupo foram incluídos aqueles que embora refletissem
sobre o zelo apostólico, não acharam que deveriam empreender grandes esforços para mudar.
Mostravam, portanto, uma maior resistência às mudanças e terminaram por reafirmar as suas
postura nas consultas. No segundo grupo encontram-se aqueles que admitiam a necessidade
107
de mudar e empreenderam esforços para fazê-lo. Relacionamos esses grupos às questões
contratransferenciais, ou seja, ao zelo apostólico propriamente dito.
Houve um terceiro grupo que aceitava melhor os adultos e, também, as falhas das mães.
Para esse grupo a questão da contratransferência não era tão evidente. Os componentes desse
grupo puderam fazer reflexões mais profundas sobre as questões transferenciais. Houve casos
relatados em que se pode ver com mais clareza mudanças de postura do residente em suas
consultas.
Mostramos na primeira entrevistas que mesmo os residentes que aceitavam que as mães
comuns falham em seus cuidados, não conseguiam separar as mães comuns que falham
daquelas que podem, de fato, comprometer a saúde e o desenvolvimento de seus filhos. Não
foi possível avaliar se houve reflexão sobre esse ponto. Não houve relato de casos ou menções
sobre essas questões que costumam aparecer nos casos de alta complexidade.
5.2.1.1 REFLEXÕES COM POUCO OU NENHUM IMPACTO NA
CONTRATRANSFERÊNCIA
5.2.1.1.1 REFLEXÕES E REAFIRMAÇÃO DA PRÓPRIA PRÁTICA
Embora em posição aparentemente opostas em relação à maneira de perceber a relação
médico-paciente, os dois residentes têm em comum que a intervenção apenas os ajudou a
reafirmar a própria maneira de agir com os pacientes. Ocorreram reflexões sobre a prática,
mas que serviram apenas para ratificar o próprio trabalho. Um deles nunca entrava em
conflito com as mães e voltava sempre a explicar pacientemente quando as mães não
cumpriam as prescrições. O outro colega mostrou-se sempre bem mais impaciente e
predisposto a entrar em conflito com os pais.
Vejamos a primeira residente. Em suas respostas a médica faz pouquíssimas referências
ao setor. Quando perguntada como estavam caminhando os seus atendimentos, foi lacônica:
“Tem sido boa.” Posteriormente ela explica que nos últimos meses não havia passado pelos
ambulatórios. Os seus rodízios tinham sido nas unidades intensivas quando os residentes são
dispensados das atividades de ambulatório. Mesmo assim a entrevistadora insiste e pede que a
residente conte alguma de suas experiências do cotidiano e ela responde: “Do cotidiano? Ah,
o cotidiano é interessante. Uma influência, muitas angústias. É bom para aprender, né, a lidar,
porque cada pessoa é de um jeito, cada pessoa relata de um jeito, demonstra de um jeito. É
108
bom.” A resposta parece confusa e, infelizmente, não fica claro o que a médica queria dizer.
A entrevistadora, já tendo insistido para esclarecimentos anteriormente, resolve não insistir
mais e a entrevista segue.
Quando perguntada se vinha se modificando como pediatra, ela responde
afirmativamente. A sua resposta, porém, é muito geral. Ela atribui as suas mudanças à
passagem do tempo e não é possível identificar se, em sua opinião, as discussões no setor a
ajudaram de alguma maneira:
Tudo. A maneira de você abordar, você vai aprimorando, né? A maneira de abordar,
a maneira de perguntar, a maneira de tratar. Tanto da parte, óbvio, que cada tempo
que passa você tem um pouquinho mais, fica um pouco melhor e também a forma de
você abordar o paciente vai mudando com o tempo, né, você vai criando mais
sensibilidade, sabendo como abordar, como perguntar, como lidar com algumas
coisas, vai aprimorando, eu acho. Porque você já fez não funcionou, você já sabe
mais ou menos...aprimorando, né? Como você vai se relacionar com o seu paciente.
A entrevistadora insiste, mas não consegue obter da residente uma resposta direta.
Indiretamente, em suas respostas é possível perceber que a médica se sente menos culpada e
responsável por um resultado favorável e resolutivo nas consultas. Em outras palavras, parece
ter havido um arrefecimento no zelo apostólico ou, talvez, haja mais consciência do que seja o
zelo apostólico:
Ah, não ter aquele resultado que eu esperava em cada... cada ato que eu fazia eu
esperava uma resposta e nem sempre aquela resposta que eu queria que... até muitas
vezes ainda não acontece, mas assim você vai fazendo de um jeito, vai aprimorando
de um jeito para você conseguir mais vezes os resultados positivos, né? [...] Mas na
verdade você esperava que o paciente conseguisse ou solucionar aquele problema e
tudo e ele não solucionava. Então assim, então quer dizer que o que ele veio buscar
ele não conseguiu, né? Então alguma coisa estava errada. Não que eu ficasse
frustrada “Ah, meu Deus não consegui!” Mas assim, ele não conseguiu. Alguma
coisa está errada, vamos ver aonde está errado. Será que foi a maneira que eu
abordei? Será que tem que olhar outra coisa? É mais isso, assim.
Quando perguntada diretamente sobre o que achou da experiência no setor, ela ressalta
o conhecimento teórico adquirido.
Não, foi ótima! Porque a gente faz as coisas meio pelo feeling, né? O que a gente
acha, como a gente acha que tem que abordar. Foi uma parte mais teórica dessa
parte psicológica ou de emocional, como você aborda. Foi bom, né, ter uma base
mais teórica em vez de ser mais de intuição, vamos dizer assim, né?
A resposta surpreende, pois o setor se assenta sobre uma base teórica, mas não um
programa teórico. A médica não esclarece especificamente ao que se referia e parece então
que a residente manteve uma postura mais racional. No entanto, a reposta anterior em que ela
parece mais atenta ao zelo apostólico sugere que algo mais que um conhecimento teórico foi
alcançado.
109
Essa residente era a que não se sentia autorizada a conversar em separado com as mães
e as crianças. Em sua avaliação final afirma: “Para mim foi até bom, eu até confirmei como
eu faço. Pode ser que tenham pessoas que repensem, né? Que de repente fazem de um jeito
que nunca pensaram e não mudam porque nunca pensaram.” Nessa afirmação constatamos
que os alguns objetivos do setor podem ter sido tocados, porém houve pouca reflexão e a
postura da médica em suas consultas foi reafirmada e não colocada em questão.
O segundo residente desse grupo, como dissemos, era bastante queixoso não apenas
com os pais, mas com todo o programa da residência como veremos adiante. Quando
perguntado como andava a sua relação com o ambulatório, ele afirma que está satisfeito, que
tem tido mais intimidade com seus pacientes. No final de seu discurso ele se mostra muito
resistente a qualquer mudança, reafirma uma posição e queixa-se da estrutura da residência:
Apesar de que às vezes eu acho que o ambulatório deixa a desejar. Eu acho que...
Tem muitos pacientes que vem ao ambulatório sem nada, a gente acompanha, assim,
não tem nem por que ter vindo, às vezes. Assim, é do ponto de vista, se fosse o
doutor Paulo ia brigar horrores comigo, falar: não tem porque ter vindo. Mas porque,
assim, na verdade eu não to aqui pra aprender exatamente psicologia agora. Eu acho
que isso, cada um é da própria pessoa. Tem gente que já sabe trabalhar isso, já sabe
tudo e eu acho que até que eu sei, sim. Conversar, orientar e tal. Mas acho que a
gente fica muito solto, meio largado. Tem paciente com patologias que são
importantes da gente aprender e a gente tem sempre que ficar encaminhando. Então
a gente, ás vezes, deixa de acompanhar exatamente o importante do paciente. A
gente encaminha...
Aparece uma crítica bem construída ao setor. O médico não concordou com o conteúdo.
Estava muito preocupado em aprender as especialidades da pediatria e entendia que não seria
o momento para se dedicar às questões psicológicas. Há, com certeza, uma força de expressão
ao afirmar que eu “brigaria horrores” com ela, mas é provável que o médico se refira ao meu
zelo apostólico que resistências tão severas haviam provocado em mim.
Mais adiante, o residente relata um pouco da dinâmica da atuação do setor. O caso era
de uma criança em torno dos três anos que tinha um desenvolvimento motor muito lento.
Poderia tratar-se de um caso de neuromiopatia. O residente contava que a mãe mantinha uma
relação simbiótica com a criança. Vivia com ela no colo e não a deixava no chão. Era um caso
típico destes que ficam na fronteira entre o orgânico e o psíquico e que seria uma boa
experiência para o residente trabalhar a separação mãe-bebê e observar a evolução do caso
antes de fazer uma encaminhamento para a neurologia. O médico seguiu a orientação e foi
uma experiência rica para ele, para a mãe e para a criança que respondeu positivamente à
orientação. Entretanto, o residente estava sempre inseguro, insatisfeito e queixoso em ter um
110
ambulatório sob sua responsabilidade. Sobre isso ele diz: “De repente eu acho que seria mais
positivo a gente acompanhar com a especialidade, do que no próprio ambulatório.” Apesar
das queixas, em seu relato ele se mostrou satisfeito com a experiência. Vejamos o seu relato:
É porque, às vezes, tem pacientes com problema neurológico. Aí, assim, teve um
que eu atendi, que eu fiquei muito satisfeita, até. Era um menino que ele tinha, ia
fazer dois anos e meio, aí estava muito atrasado. A mãe estava achando ele muito
atrasado. Aí eu comecei a orientar. E no mês seguinte segui algumas coisas do
doutor Paulo orientava e tal. Aí três meses depois foi o tempo de eu ficar na
maternidade e voltar. Aí conversei, falei que era para ela deixar ele mais
independente. Ele, realmente, tem um atraso. Deixar ele mais independente, falei
várias coisas. Pedi pra ele ir pra creche, tal, ter o relacionamento com as outras
crianças. Tudo foi muito positivo. Ele começou a aceitar a dormir em outro quarto,
falou que agora quando sai ela não fica só no colo. E ele é grandão, né? … é uma
criança grandalhona, assim... Aí ela ficou muito positiva, ficou satisfeita, eu
consegui marcar um ambulatório de neurologia, que ele realmente precisa. Ah, eu
não sei explicar, acho que eu gostaria que a gente tivesse mais orientação no
ambulatório. A gente segue muito as nossas coisas, sabe? É como se a gente tivesse
aprendendo a se virar. O que precisa a gente pede orientação, mas mesmo assim, eu
acho que falta alguma coisa a mais. A gente fica muito solto.
As dificuldades pelas quais passava esse residente com a formação profissional podem
ser constatadas pelo discurso abaixo.
Eu não vou dizer que eu to me modificando como pediatra, porque eu não sou
pediatra, ainda. Então assim, eu to me formando como pediatra e como médico,
também. A gente se forma... eu não considero tanto quando a gente sai da faculdade
a gente se forma como médico. Que parece que você ainda não é médico, você não
tem o suficiente pra ser um médico. Embora algumas pessoas sintam. Eu não me
senti assim. Eu acho que você precisa.. eu sou muito preocupado com certas coisas,
porque eu acho que é muita responsabilidade.
Enquanto todos os outros residentes respondiam à pergunta sobre as modificações que
vinham sentindo como pediatra, demonstrando orgulho pela passagem de residente do
primeiro para o segundo ano, esse colega demonstrava desconforto quando era alçado à
condição de pediatra-em-treinamento. Mais uma vez aparece as suas queixas com o excesso
de responsabilidade depositado sobre ele. Adiante, mais um trecho de seu discurso:
Quando a gente pega essa responsabilidade, principalmente do R2, que você dá
plantão numa enfermaria tem pacientes gravíssimos com doenças de investigação,
muitas vezes, conhecidos de difícil investigação. Tantos exames, tantos recursos,
tantos profissionais todas as especialidades aqui demoram pra dar o diagnóstico,
pacientes são complicados e a gente se responsabiliza por eles na situação que a
gente ainda está em formação, não tem o conhecimento necessário e nem a
experiência necessária pra lidar com todas as consequências. Gente com doenças
respiratórias graves, paradas, convulsões, resistentes a várias medicações, essas
coisas todas, entendeu? Então, assim, é complicado. Eu acho complicado.
Finalmente, quando a entrevistadora pergunta se ele teria algo a acrescentar sobre a sua
experiência na residência, ele faz uma desabafo:
111
Sobre o trabalho, sobre a vida, sobre tudo... Sobre várias coisas, tenho pensado, mas
eu acho que não está uma coisa assim, digamos está muita confusão, muita coisa
junta, muita coisa nova pra mim, muita responsabilidade só pra mim e tal, que eu
acho bom, mas acho que, às vezes, gera alguns conflitos internos e tal. É difícil de
colocar tudo agora, assim...
Enfim, o residente mostrava que o seu conflito ultrapassava as questões da formação
para alcançar as suas escolhas de vida. Ao iniciarmos o nosso trabalho, ocorreu uma tentativa
explícita por parte do residente de transformar a relação supervisor-supervisionando em uma
relação terapêutica que, no entanto, não foi aceita. São situações em que há uma relação
transferencial maciça que impede a realização do trabalho proposto. Passamos a primeira
semana numa relação desconfortável, mas posteriormente creio que o trabalho evoluiu como
com os outros residentes.
Embora o residente tenha relatado uma experiência positiva de um caso tratado em
conjunto com o setor, prevalece em seu discurso as queixas aos outros e a resistência em
refletir sobre as próprias dificuldades.
5.2.1.1.2 REFLEXÕES E ESFORÇO DE SUPERAÇÃO DO ZELO APOSTÓLICO
Veremos que nesse grupo encontram-se residentes que reconhecem o zelo apostólico e
fizeram um real esforço de superação. Diferente do grupo anterior, esse grupo parece mais
homogêneo. As questões levantadas pelos residentes são muito parecidas: o grupo se
preocupa com a questão da contratransferência. Poderíamos aglutinar todos esses discursos
em um único, hipotético, que poderia ser resumido assim: “Eu sei que sou intolerante com as
mães, sei também que eu não deveria ser assim e faço esforço para mudar, mas não vou muito
longe.” Vejamos os discursos dos próprios residentes.
Uma residente é bastante representativa do grupo. Quando perguntada sobre as
modificações ela fala que reconhece a necessidade de dar mais espaço às mães. Ela se
empenha, no entanto, como podemos notar pelo seu discurso, esse espaço é ainda muito
limitado:
Agora eu tenho um pouquinho mais de paciência para ouvir, porque digamos que eu
não seja muito paciente. Assim, eu acho complicado porque a gente não tem muito
seguimento do que a gente faz. A gente só consegue marcar para daqui a três meses,
quando a gente quer marcar no mês seguinte. Às vezes as mães não fazem os
exames que a gente pede. E acho difícil ter uma continuidade no atendimento, talvez
falte... Assim, tem alguns pacientes que eu tenho muito vínculo, então, tudo que eu
faço, peço para fazer eles fazem. Mas tem outros que eu ainda não consegui criar
muito vínculo, então acaba que, acho que o seguimento fica meio prejudicado. O
que eu mais gosto assim, talvez, seja atender os adolescentes. Mas ainda tenho muita
dificuldade para atender com os adolescentes gordinhos.
112
Nota-se por esse relato que a residente enfrenta dificuldades em seus atendimentos.
Percebe-as, mas ainda não foi capaz de superá-las. Podemos perceber por esse discurso como
a capacidade empática está intimamente associada ao zelo apostólico. Primeiramente ela
mostra o seu desconforto com as mães que não trazem os exames solicitados. A médica
parece atribuir isso à falta de oportunidade de ver as mães com mais frequência, mas ela logo
refuta a própria tese ao dizer que isso não ocorre com todos os pacientes. E não sabemos se os
pacientes que trazem os exames são porque tem um bom vínculo com a médica ou se a
médica é que faz vínculos com as mães que são cordatas e obedientes. Sendo a pediatra muito
impaciente, como ela mesmo se reconhece, o mais provável é que a segunda hipótese ocorra
com mais frequência.
Os residentes são muito espontâneos e até inocentes. Falam desabridamente de suas
dificuldades e com isso temos a oportunidade de ver as suas limitações e contradições. A
médica fala de suas dificuldades com “gordinhos” e como nessa entrevista ela traz um caso de
seu próprio ambulatório apresentaremos então o diálogo ocorrido durante a entrevista. A
entrevistadora havia perguntado sobre os seus últimos encaminhamentos aos psicólogos e ela
responde:
Residente – E tem uma outra menina, que é uma gordinha também, só que a menina
é extremamente mimada, essa eu não achei que tinha necessidade tanto assim de
encaminhar. Mas acabei encaminhando, porque já tentei orientar inúmeras vezes, a
mãe estava muito ansiosa também, ela tem um comportamento muito impulsivo
assim, mas eu acho que muita parte é mimo. Não acredito que seja transtorno
psicológico, mas acabei encaminhando. Essa eu não achei que tinha tanta indicação,
não.
Entrevistadora – Essa você não conseguiu trabalhar muito com a mãe essa questão.
Residente – Não. Tentei orientar inúmeras vezes. A última consulta com ela até foi
muito angustiante assim, porque eu tive que falar com a menina como se fosse a
minha filha ou alguém da minha família. Ficar meio dando uma bronca nela, mas
assim eu acabei levando para o lado pessoal, entendeu? Menina desaforada. Não tive
uma boa experiência desse tipo com ela. Mas essa eu encaminhei... Às vezes os
gordinhos eu tenho tentado encaminhar, porque eu acho difícil para trabalhar só aqui,
entendeu? Só com orientação alimentar, às vezes a família também não ajuda muito,
a auto estima deles é péssima também.
Esse caso ratifica as dificuldades que a médica encontra ao se defrontar talvez não
apenas com “gordinhos”, mas com casos refratários, em que a não aderência é mais a norma
do que a exceção. A orientação da médica deveria ser cumprida pela mãe, como isso não
ocorria a médica foi perdendo a paciência. É um relato bastante elucidativo do que é o zelo
apostólico. O mimo, que é uma cumplicidade entre mãe e filha, e que a médica não podia
participar, incomodou-a e o zelo apostólico, ou seja, uma reação desproporcional eclodiu. A
113
médica explica que o zelo apostólico é o “lado pessoal” se insurgindo na consulta. E
poderíamos acrescentar: é o lado pessoal inconsciente.
Exemplificamos com o caso relatado pela própria médica que embora ela se diga mais
paciente, ainda haveria muito de seu zelo apostólico a ser trabalhado. Com tudo isso a médica
se sente menos intolerante. Quando perguntada se isso se dava porque ela era uma médica
mais experiente, ela responde que isso se devia ao trabalho no setor. Mais uma vez ela se
refere a pequeníssimas mudanças:
Não, acho que o fato de ter conseguido criar uma relação melhor assim com as mães,
acho que ajudou bastante. Doutor Paulo me ajudou bastante assim. Porque eu não
tinha muita paciência. Às vezes eu ficava muito presa ali ao modelo da consulta
também, agora estou tentando soltar um pouquinho mais. Então está fluindo melhor.
Ao elaborar sobre a forma em que o setor a havia ajudado, ela se dá conta da
importância em adotar uma posição empática:
Olha o que me chamou atenção foi realmente a diferença com que eu passei a
observar as mães, tentar entender o lado delas. Que às vezes eu só entendia o lado da
consulta, o que estava acontecendo ali. Não tentava entender o que estava
acontecendo por trás de tudo, como que a mãe reagia a determinada situações, como
que a criança reagia. Acho que me ajudou bastante.
No entanto, a própria médica reconhece que o trabalho ficou insuficiente. Ao fazer seus
comentários finais, ela diz:
Eu queria entender mais a dinâmica da relação da mãe com a criança que eu acho
isso aí importante. Talvez tenha que me aprofundar um pouquinho mais nisso aí, que
é importante. [...] Não, até tinha uma ideia, mas não dava valor para o quão
importante isso é. Claro que a gente sabe que a história da pessoa, todas as emoções
influenciam, mas assim eu não tinha a dinâmica do... não tinha ideia da dimensão,
entendeu?
A colega a seguir ressalta o que chamamos as dificuldades que tem a pediatra em se
deixar “ser usada” na relação transferencial, embora ela faça um real esforço em se aproximar
das mães. Porém, veremos que o seu esforço é centrado em diminuir o incômodo que o
atendimento às mães desperta na médica. Admite que é impaciente e exigente com as mães e
comenta sobre a estratégia que vem utilizando para lidar com esse desconforto: ela se desvia
do assunto trazido pela mãe na consulta e não dá seguimento a algumas das demandas. A sua
intenção é a de evitar, assim, as suas reações automáticas. A residente nos ajuda com esse
discurso a entender o conceito de “ser usado” na relação transferencial, que traz a ideia de
estar plenamente disponível para os assuntos e demandas dos pais:
Eu acho que eu amadureci em relação ao atendimento mesmo, relação com paciente.
Acho que eu hoje em dia não me atenho a coisas muito pequenas, quando o paciente
começa a ficar muito poliqueixoso eu tento desvirtuar um pouquinho, falar sobre
outra coisa, mas assim eu ainda tenho uma sensação de que às vezes a pessoa espera
114
aquele momento para resolver a vida, entendeu? Eu ainda tenho essa ideia em
relação a pediatria. Principalmente os pais, né? Acho que os pais eles não chegam
normalmente...ainda é difícil para mim às vezes contornar isso, né?
Quando perguntada como vem se modificando, ela mantém o mesmo discurso e
descreve uma outra estratégia que utiliza para escapar da relação transferencial. Ela faz de
conta que não escutou as queixas da mãe sobre o pai da criança. Ela não consegue largar os
seus instrumentos e seus protocolos e dar pleno espaço para as queixas da mãe. Como diz a
médica, uma parte ainda fica de fora:
Focar mais a consulta na criança, nas coisas que estão acontecendo e deixar um
pouco esse problema social um pouco de fora. Mas eu também entendo que em
algumas circunstâncias você tem que abordar os problemas sociais. Acho que isso
ficou um pouco mais fácil para mim. Ainda tenho dificuldade, ainda tem consultas
que me estressam, que eu saio daqui sobrecarregada, mas assim, são poucas. A
maioria eu estou conseguindo, quando começa muito “Ah, porque o pai não faz, não
sei o que.” Eu já começo a falar: “Não. Mas e o seu filho? Como é que está a relação
de vocês dois.” Eu tento...tentar contornar aí um pouco essas coisas. Eu acho que
ficou um pouco mais fácil para mim.
Finalmente, ela mostra como se coloca na relação transferencial. Ela admite que a
percebe, porém sob o ângulo invertido. A médica admite que desejaria que os pais tivessem
disponibilidade para ocupar o lugar das figuras parentais e a apoiassem. Ela se sentia carente
da atenção dos pais de seus pacientes e precisava desses pais para dar-lhe segurança em seus
atendimentos. E fica muito triste quando é ignorada pelos pais! Como pode ela ocupar ao
mesmo tempo o lugar de acolhimento para os pais? Seus clientes, porém, não estão
preocupados com a sua capacidade técnica como pediatra. Mesmo sabendo racionalmente que
ela é ainda uma residente, inconscientemente, precisam encontrar alguém que lhes deem
segurança e vão atrás da pessoa que possa ocupar essa função. Entretanto, a médica mostra-se
ainda despreparada para esse lugar. Ainda assim a médica diz que se sente melhor em suas
consultas, pois está conseguindo diminuir as suas reações contratransferenciais.
Ah eu acho que eu estou amadurecendo a minha forma de ver as coisas. Acho que
quando você entra, você entra insegura demais, você entra às vezes um pouco
carente, também, de conhecimento e até de atenção dos pais com você. Você quer
resolver, às vezes a pessoa não te dá muita...Hoje em dia eu já sei lidar melhor com
isso, eu falo uma coisa e o pai não liga eu também não vou ficar...entendeu? Me
gastando com isso, tipo “Ah, sofrendo que eu falei e o cara não vai fazer.” Né? Eu
acho que eu tenho amadurecido a minha postura em relação aos pais e isso tem me
ajudado, assim, a não chegar em casa e ficar sofrendo, porque eu disse uma coisa e a
pessoa ignorou. Hoje em dia eu vejo de outra forma. Acho que até a questão de
atendimento mesmo do paciente, acho que eu tenho mudado diariamente assim.
Em sua avaliação sobre a experiência no setor ela fala que a ajudou fazer uma reflexão
sobre a prática. Não obstante, as relações transferenciais mais profundas, ou seja, na questão
115
de poder “ser usada” pelos pais, talvez precisem ser melhor elaboradas em outro momento de
sua formação.
Eu acho que é um setor que tira algumas dúvidas que a gente tem durante a
formação em relação a médico-paciente, em relação a mãe-paciente. Eu, quando tive
aqui, eu acho que isso me fez enxergar algumas coisas que a gente não enxerga. Né?
Quando a gente entra, se revolta quando a mãe é grosseira, a gente não entende
aquela mãe que chega chorando, gritando, querendo... e aí você começa a ter uma
outra visão do que é essa relação mãe e filho, do que é a relação médico-paciente.
Eu acho que é muito importante assim. Eu tive uma experiência boa e acho que hoje
quando eu chego no plantão e quando eu vejo uma mãe que quer confusão, não sei o
que, eu já encaro de outra forma, eu tento me manter mais centrada, eu faço a minha
parte, né? Acho que isso é importante.
Vejamos a seguir uma terceira colega. Ela associa as suas reflexões no setor e o
aumento de sua tolerância com o interesse pelo ambulatório. A médica se sente mais segura e
arrisca uma posição mais empática com as mães. O discurso abaixo “Não sou mãe, não sei
como é que é ter uma preocupação com o filho...” revela as dificuldades da posição empática,
que é a capacidade de se colocar no lugar do outro e experimentar o sofrimento trazido pelo
outro. Portanto, podemos dizer que essas são reflexões que fazem parte de um primeiro nível
de aproximação com a mãe:
Aprendi a gostar do ambulatório. No inicio eu tinha uma visão errada, não gostava,
achava que era muita chatice, muita besteira, queixa sem sentido da mãe, mas agora
eu tenho uma visão um pouco diferente eu acho que... [...]Não entendia. Eu achava
que a mãe cismava com muita coisa que não tinha sentindo, mas agora eu vejo que
não. Tem vezes que tem realmente sentido. Eu gosto do ambulatório, eu gosto de
atender as crianças. Acho que mudou mais essa parte da visão de entender como a
mãe lida com o filho. Né? Coisa que eu não tinha noção. Não sou mãe, não sei como
é que é ter uma preocupação com o filho, às vezes achava que era muita besteira.
Durante o período no setor tivemos a oportunidade de discutir um caso de uma família
constituída apenas pela mãe e o filho adolescente. A situação econômica da família era
precária e o rapaz trabalhava vendendo as quentinhas que a mãe produzia. Embora os
problemas sociais e econômicos fossem evidentes, a mãe não vinha à consulta para resolver o
seu problema social e sim para refletir sobre as questões de autoridade na relação com o seu
filho. Ajudamos a médica a se manter na posição de pediatra e conter os desejos vindos de sua
contratransferência de exigir um comportamento da mãe que seria incompatível com as suas
condições sociais. Em outras palavras, a pediatra estava preparada para cuidar de
determinadas famílias, mas ficava muito angustiada ao lidar com situações menos idealizadas.
A partir da explicação acima poderemos entender melhor o seu discurso a seguir:
Eu mudei, porque eu fui vendo que realmente tem sentindo, né? A gente vai vendo
que a mãe está preocupada, porque o filho dela está doente, né, e às vezes a gente
acha que por mais que seja uma tosse, seja uma coisa boba que o tratamento seja
simples, é o filho dela, né! [...] E também na parte, não sei se emocional é a palavra
certa, né, mas a parte social, assim, você entender mais o mundo do outro. Porque às
116
vezes a gente entra aqui achando que todo mundo tem a mesma vida que a gente,
né? Essa é a verdade. E quando você vê você dá de cara com um mundo totalmente
diferente, muita família desestruturada, muita criança abandonada. Então você
aprende a lidar um pouco com isso e tentar ajudar da melhor maneira possível.
Entender também que você não vai ajudar em todos os momentos, que você não vai
salvar a vida da criança. Eu fico muito frustrada às vezes quando eu não consigo
ajudar, principalmente, na questão social. Né? Que é aquela criança que não estuda,
não tem dinheiro, não sei o que lá, você encaminha, você faz tudo o que você pode
fazer pela criança, mas você tem um limite. Chega um ponto que você infelizmente
não tem mais o que fazer.
Ainda algumas palavras sobre a influência que teve a experiência no setor. O caso
acima, parcialmente relatado pela residente, mostra que o atendimento de casos difíceis é um
trabalho árduo para o médico. É, de fato, muito frustrante não conseguirmos dar aos nossos
pacientes as condições que outros têm. No entanto, cabe ao setor ajudar no trabalho
relacionado à onipotência do médico, um mecanismo defensivo frequentemente utilizado
contra as frustrações, e que afasta o profissional da posição empática com a família:
Me ajudou um pouco na parte da frustração com o paciente. Às vezes a gente fica
frustrada, porque você não consegue resolver o problema dele, porque você não
consegue fazer com que ele faça o que você pede, por qualquer outra situação, ou
por dinheiro, não poder comprar a medicação ou porque realmente ele não quer. E é
a pessoa que mais me ajudou a aceitar isso. Que no final das contas a mãe vai fazer
o que ela achar melhor para o filho dela.
Por que achamos que a residente teve um aproveitamento limitado? Veremos em outros
segmentos de seu discurso a dificuldade em se aproximar das mães. A residente parte de uma
posição muito idealizada da criança e do adulto. Houve uma aproximação, mas não
poderíamos esperar mudanças tão radicais. Mostraremos por algumas de suas reflexões que a
sua disponibilidade é limitada. Ainda há temor de uma posição mais próxima, como veremos
com outros residentes. Abaixo apresentamos um fragmento da entrevista que mostra uma
ambiguidade da residente em relação à aproximação como os pais. A entrevistadora percebe
que a residente talvez gostasse de se aproximar ainda mais, mas que teme essa aproximação:
Residente – Eu acho assim, na minha opinião, eu acho que em alguns casos é
importante você entrar para resolver o problema dele ali. Mas eu acho que em outros
não tem porque eu procurar saber se a mãe da minha paciente é traída pelo marido.
Então, acho que nessa parte assim não me ajudou muito. Mas assim, me ajudou a
saber conduzir mais as coisas, assim. Ele me ajudou muito nesse caso desse menino
que entregava quentinha. Entendeu? Me ajudou muito a conduzir essa parte de tentar
entender o mundo do outro. Que às vezes a gente fica num mundinho tão fechado, a
gente fica tanto tempo pensando em só pessoas que vivem como a gente, que a gente
acaba se perdendo um pouco. Mas da parte de entrar muito na vida das pessoas eu
ainda não consigo fazer isso.
Entrevistadora – Mas quando você diz: “Não consegue.” Você gostaria de
conseguir?
Residente – Não, é assim, é que eu sou uma pessoa muito reservada, eu sou uma
pessoa muito fechada. Então eu acho que todo mundo é assim. Então assim, eu dou
abertura para a pessoa falar, o que ela quiser. Se ela falar eu acho ótimo, vou achar
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ótimo, vou escutar, vou ajudar, vou fazer tudo, mas eu dou o direito a pessoa
também não querer falar. Que às vezes eu também não quero falar e às vezes sou
forçada a falar, entendeu?
5.2.1.2 REFLEXÕES COM POSSÍVEIS IMPACTOS NA RELAÇÃO TRANSFERENCIAL
Esse grupo é constituído pelos residentes que já haviam superado questões mais básicas
sobre a contratransferência. Em outras palavras, são residentes que aceitam que as mães
falhem. Essa divisão que foi construída entre esses dois grupos, é necessário que se diga, foi
formulada a partir dos discursos das segundas entrevistas. Se utilizássemos apenas as
primeiras entrevistas, a constituição desses grupos seria, não muito, mas um pouco distinta.
Assim, quando afirmamos que nesse grupo estão aqueles que aceitam que as mães falham,
isto é apenas parcialmente verdadeiro. Houve de fato uma tendência que nesse grupo
estivessem aqueles que tinham uma relação mais tolerante com os adultos e maior aceitação
das falhas maternas. No entanto, como dissemos, isso não era sempre evidente. A residente
que apresentaremos a seguir manifestou dificuldade com os adultos quando respondeu, na
primeira entrevista, os motivos que a haviam levado a escolher a especialidade. Quando
perguntada sobre as suas reações com as mães que não aderiam às prescrições, mostrou-se
intransigente mesmo quando se tratavam de crianças saudáveis. No entanto, nas segunda
entrevista ela mostrou que houve transformações ocorridas em seu atendimento. Diferente do
grupo anterior, ela vai além do empreendimento de esforços para amenizar a
contratransferência. Ela relata que “começa a entender a sua função” como pediatra. Vejamos
a sua resposta:
Acho que eu mudei um pouquinho a forma de atender e de pensar um pouquinho o
atendimento. Quando eu entrei eu tinha uma visão, assim, de que eu ia sempre, to ali
pra ajudar as crianças, mostrar o que que é certo, o que que é fazer e já tem mais ou
menos um ano que eu estou atendendo. Aí eu já começo, assim, a entender um
pouquinho mais minha função. Eu to sentindo isso, que muitas vezes, assim, que eu
não vou conseguir mudar tudo. Que tinha uma coisa que eu tinha, que eu tenho que
consertar tudo o que está errado com a criança. Tenho que consertar, está no meu
direito, eu tenho que consertar, não pode, não tá tomando remédio, eu tenho que
consertar. Aí eu já to levando assim, de uma forma um pouco mais tranquila no
ambulatório, a sensação que eu tenho de que eu to compreendo mais. De repente o
que é certo pra mim não é certo pra aquela família, pra aquela mãe, pra aquela
criança. E de que eu não consigo mudar tudo também. Às vezes a mãe não quer
mudar. Eu to sentindo que o meu papel é orientar dentro possível. Assim, pelo
menos eu já estou mais tranquila. [...] O que eu entendia como minha função lá,
antes assim como meu papel ali, era consertar. Consertar tudo. Era o que eu tinha na
minha cabeça. A gente estuda, né, a gente estuda tudo como tem que ser e eu to ali,
porque aquela mãe não estudou, ela não sabe que eu estou ali pra consertar. Agora
eu já acho que não, que é mais uma função de orientação e de apoio também.
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Fica bastante claro que a residente se refere à sua função apostólica. Ela reflete sobre os
limites da ação médica e sobre o que necessitam as mães. A sua compreensão sobre o seu
papel se modifica e afirma que a sua função não é consertar, mas apoiar.
Quando perguntada que tipo de mudanças estariam ocorrendo, a médica demonstra que
tem muito claro para si mesma o que mudou. Ela fala que focar apenas na criança é pouco
para o exercício da pediatria. Como se pode desejar ser a pessoa de confiança da família para
os problemas emocionais e sociais, como ela havia manifestado na primeira entrevistas, e não
olhar para a família como um todo? Ela passa a olhar mais a mãe. Compreende que a mãe é
questão fundamental no atendimento pediátrico. Ela fala que antes de transmitir algum
conhecimento é preciso entender esse contexto, entender a mãe. A consulta fica mais leve
para a médica e ela se sente mais pessoalizada:
Não sei, eu acho que eu ter mudado, é que eu to conseguindo ter uma relação melhor,
principalmente com as mães que eu to acompanhando. To conseguindo ter uma
identificação maior. Acho que eu to enxergando melhor a importância de entender
elas, entender a família. E eu acho que eu bati, como eu tinha falado, eu bati muito
naquela tecla, focar na criança e tentar corrigir tudo que está errado. Agora, não, to
mais entendendo. To tentando entender quem é essa mãe, né? Principalmente a mãe,
que normalmente é quem está ali com o filho. Quem é essa mãe? Como é que está a
vida dela. Eu acho que eu to criando uma identificação maior com a família. Não
com todas, assim, mas aí tem algumas que eu sinto que tem uma identificação, assim,
que às vezes até quando internam perguntam por mim, pedem pra eu ir lá na
enfermaria pra ver. Então eu acho que já tem uma identificação de que eu sou a
médica dela, dela e do filho dela. Acho que isso tem mudado mesmo. Não é
qualquer pessoa que está ali atendendo, né? Tem identificação comigo de que sou a
médica dela.
Sobre o papel que teve o setor para a alcançar essas mudanças, a médica, mais uma vez,
ressalta o papel da supervisão. Ela já sabia de tudo o que foi falado, mas era necessário
alguém que a autorizasse a fazer as mudanças. Naturalmente, essa autorização não é formal,
mas associada à relação transferencial. O supervisor entra em sintonia com o próprio desejo
do profissional que este temia colocar em prática. Pela posição que passa a ocupar na
formação do médico, o supervisionando se sente autorizado a experimentar uma nova maneira
de estar como pediatra, como é possível perceber pelo relato da residente em questão.
Não é que, sabe, até poderia ter essas noções, mas eu precisava de alguém me
falando, me orientado. Que as minhas noções eram muito, assim, vagas, né? E na
minha cabeça, realmente, que eu agia era que eu tinha que focar na criança e
consertar, tudo. Então eu acho que, foi um mês assim, na psicossomática que a gente
ficou trabalhando tanto essas questões que, realmente, a partir dali, acho que foi um
marco, assim. A partir dali eu comecei a enxergar diferente. Já começava a aplicar
nas minhas consultas tudo o que a gente tinha discutido. Eu acho que foi
fundamental.
A médica segue o seu discurso que é algo repetitivo, mas ao repetir e reafirmar os seus
pensamentos ela faz modificações sutis em seu próprio discurso e mostra que esse processo de
119
autorização é contínuo e não está terminado. Apresentamos esse trecho e chamamos a atenção
para a modificação de sua posição no decorrer do discurso. Inicialmente ela começa dizendo
que havia mudado um pouco e termina afirmando que, na realidade, mudara muito.
Eu achava que eu estava fazendo tudo certinho, né, assim. Eu estava fazendo tudo
certinho, eu estava fazendo o meu papel ali direito. Eu seguia um roteiro de consulta.
Tinha um roteiro, né? Seguia tudo direitinho, examinava, fazia tudo, mas eu acho
que faltava isso. O que eu fazia era como se qualquer pessoa pudesse fazer. Não é,
não precisava ser eu, era qualquer pessoa que tivesse a mesma orientação que eu,
que recebesse o mesmo roteiro poderia fazer. Eu acho que mudou um pouco isso.
Agora, não, acho que as mães que eu atendo estão percebendo que sou eu que estou
ali e eu que atendo elas daquele jeito, que eu me identifico com elas e elas se
identificam comigo. Acho que isso mudou muito.
Continuaremos com a sua entrevista, pois a médica traz em cada discurso aspectos
distintos dessa mudança interna ocorrida. Ela conta da surpresa que foi ver uma nova
abordagem para a pediatria. Até então ela se achava uma médica exemplar. Ao abrir mão do
lugar de médica exemplar ela se sente aliviada.
E eu nem achava, no início, assim, quando eu comecei o rodízio... eu nem achava
que pudesse me ajudar tanto, sabe? Eu falava assim: ah, vai falar de atendimento.
Não, to fazendo tudo certinho, eu faço tudo direitinho, não acho que vá mudar muita
coisa! Eu já gostava de ambulatório, sempre gostei. Sempre achei que me
relacionava bem com as pacientes. Então eu achava que não ia ser tão, fizesse tanta
diferença no meu trabalho. E eu me surpreendi, porque depois eu, realmente, vi que
não era exatamente como deveria ser. Comecei a achar, a ver que o importante não é
só eu falar tudo, passar todas as orientações certinhas, não é só seguir um roteiro.
Comecei a ver que cada criança e cada família vai precisar de uma atenção
diferenciada, pra mim. Que tem criança que, às vezes, nem é tão importante assim
examinar cada detalhe, porque ela não tem tanto problema e uma consulta pronta
não vai mudar tanta coisa assim, que às vezes ela precisar mais conversar mesmo.
Comecei a diferenciar mais isso. Eu também comecei a tirar um pouquinho o peso
das minhas costas, assim.
Finalmente, a médica fala sobre a culpa que o médico vive de forma profunda e
inconsciente em sua prática que é, em última análise, a fonte do zelo apostólico:
Não, não tive dificuldade. Não tive e eu venho tentando isso. Assim, eu acho que é
um processo, mas toda consulta eu ainda tento, sabe, cada vez mais mudar um
pouquinho disso, mas não to tendo dificuldade, não. Apesar de ser diferente do que
eu fazia, eu vejo que é mais fácil fazer dessa forma, do que querer... é muito difícil
também você colocar nas costas uma obrigação de querer consertar tudo. E eu
sempre saía de uma consulta, assim, com a sensação de que: nossa, eu não to
fazendo o suficiente, eu não to sendo uma boa médica pra essa família! Porque ela
continua com todos esses problemas! Agora, não, agora eu to mais tranquila. Isso
realmente mudou bastante.
Passemos para outro residente que colocamos nesse terceiro grupo. Ele não tinha
dificuldades em lidar com os adultos, não gostava das atividades ambulatoriais, não
manifestou críticas às mães “poliqueixosas” e aceitava bem as falhas maternas. As suas
120
questões contratransferenciais eram menos evidentes. Talvez, por essas mesmas razões, as
mudanças em seus atendimentos foram sutis, de difícil identificação.
Ao responder como se sentia em relação aos atendimentos, esse residente se refere
imediatamente às mudanças que vinha percebendo. Ele argumenta que as mudanças que
ocorriam eram internas e seria muito difícil que fosse notada na maneira de tratar o paciente.
Ele sempre foi educado e sempre tratou com cuidado e atenção os seus pacientes. No entanto
algo de novo ocorria. Ele percebe que já não se sente à vontade em continuar a fazer
exigências sobre o comportamento das mães em relação às doenças. Ao cunhar a expressão
zelo apostólico, Balint se referia exatamente ao que expressou o residente: a exigência do
médico sobre a maneira como o paciente deveria se comportar em relação à sua própria
doença. Vejamos a resposta perspicaz do colega:
Eu não sei, exatamente, o que mudou do jeito que a gente trata o paciente, mas acho
que mudou um pouco o jeito da gente perceber como que ele entende a doença e
como os pais entendem. Qual a aflição que eles têm em relação ao filho estar doente
ou não. Como eles deveriam se comportar em relação a isso. Mas, assim, a gente
sempre querendo fazer o melhor, né, tentar entender mesmo, entrar na cabeça desses
pais e do próprio paciente, tentar entender o que que ele está querendo, exatamente,
que a gente faça, o que a gente pode fazer por ele.
O residente segue elaborando a sua resposta e passa a descrever o tipo de mudança
ocorrida. A doença não é mais o único ponto a ser focado na consulta, ao contrário, pode ser
até secundário. O médico começa a elaborar um pensamento mais complexo sobre a etiologia
das doenças em que as tensões ambientais podem exercer um papel relevante.
É porque acho que eu comecei a ter uma certa percepção diferente mesmo. Antes a
gente lidava mesmo com a doença. E ás vezes, tem outros fatores externos que
interferem também, né? Como a pessoa se sente e de repente como ela é tratada e
não apenas na doença. Isso acho que a gente começa a perceber um pouquinho mais
e, às vezes, deixa até um pouco de lado a doença propriamente dita quando ela não é
tão importante assim. E aí passa a, de repente, até conversar com os pais e falar: olha,
vamos mudar isso ou aquilo. De repente, filho sentindo melhor dentro de casa, ele
passa a, de repente até expressar menos algum tipo de doença que ele possa ter.
O residente segue o seu discurso e a entrevistadora pede para ele dar mais detalhes
sobre as reflexões que o fizeram mudar. Em sua resposta o residente demonstra que estava em
sintonia com o pensamento winnicottiano, como transmitido nos encontros, e coloca a relação
mãe-bebê em sua fase inicial como central nos acontecimentos futuros da família. São
conhecimentos novos que ajudam o médico a entender muitos desdobramentos da consulta
pediátrica e estão associados aos “insights” e não à compreensão racional.
Que óbvio que a gente sempre sabe que tem que ter e que é muito importante. Mas
eu não tinha muita noção de como isso é muito importante pro bebê ainda que, pra
formar essa imagem da mãe. Então assim, aquela dedicação exclusiva da mãe,
porque é normal muitas vezes a gente ver, assim, a mãe que precisa trabalhar, a mãe
121
que precisa deixar o bebê pequeno em casa. Aí a gente falou, mas realmente ela
precisa e tudo, mas na verdade não devia acontecer, né? Tinha que ser exatamente
essa dedicação exclusiva, porque isso pode se refletir mais na frente pra criança. A
gente pode achar que não, que não vai lembrar de nada, mas não é nada disso, né, na
verdade faz, é importante e pra mãe, também. A mãe que não se dedica totalmente
daqui a pouco, lá pra frente ela vai começar a sentir mal, de sentir de não ter feito
tudo que ela deveria ter feito pelo bebê. Isso se reflete pela vida inteira. E a gente vê
os casos que a gente diz: ah, que a mãe faz tudo, mima demais a criança, não sei o
que, às vezes reflete pelo o que ela não fez quando era bebezinho, né? Isso eu não
tinha a menor noção.
Quando a entrevistadora pergunta se essas reflexões são fruto do trabalho no setor, ele
responde de modo afirmativo: “Foi. Do meu trabalho com doutor Paulo.” O colega concorda
que as discussões sobre o vínculo da mãe com o seu bebê, as discussões que envolviam o
desilusionamento, enfim, toda a teoria do desenvolvimento de Winnicott é pertinente e
necessária para o trabalho do pediatra.
Principalmente pra gente que é pediatra, então a gente tem que ressaltar muito essa
parte do, sei lá, de até mesmo essa ligação da mãe com o bebê e pro crescimento.
Que é uma coisa que não é, assim, não é tão momentânea. É uma coisa que se reflete
pela vida inteira. E aí depois vem pra figura do pai, também. E a criança começa a se
desvincular aos poucos tendo ainda essa figura da mãe formada. E aí ela começa a
ter as responsabilidades, a gente tem que saber controlar mesmo na parte de você vai
começar a fazer as coisas sozinho e vai dormir sozinho, e eu não vou mais levantar
pra te pegar. Eu acho que essa foi a parte mais importante mesmo. Que é bem o que
a gente vive, né? Puericultura e tudo. Então dá pra gente aconselhar muito melhor as
famílias em relação a isso.
Na introdução desse trabalho descrevemos a dinâmica que, naturalmente, foi descrita
sob o ponto de vista do autor. O discurso a seguir do residente é uma oportunidade de
conhecer um pouco dessa dinâmica de trabalho do ponto de vista do residente.
Às vezes nós mesmas ficamos assim, com sentimento que a gente, quando
expressava aqui ele ajudava. Mas por que que você sente isso? e aí a gente começa a
entender mais um pouco da gente e acalmar mais. De repente tomar até algumas
condutas diferentes. Eu lembro que na época que a gente estava, que estava eu e
uma colega e aí a gente contava sobre caso de mães que ligavam pra cá. Pro hospital
assim, aqui não é hospital de emergência. Elas falavam assim: ah, quero levar a
criança aí. A gente falava: não, não vai levar, vai pra emergência e tudo. Aí ele falou
assim: você não pode fazer isso, porque a mãe vai continuar ligando e ela vai
aparecer aí. Você tem que conversar com a mãe, perguntar o que que a criança tem,
o que que ela precisa. Se quiser vir aqui, vem que eu dou uma olhada, se não for
nada vai embora. E aí, assim, isso realmente, funciona muito, sabe? E aí começa a
mudar um pouco a nossa percepção mesmo. A gente começa a ficar, acho que
acalmar um pouco mais o nosso ânimo assim, de não vem pra cá, tá tudo errado, não
é isso. E na verdade a mãe não sabe, né, ela precisa de alguém que entenda, ouça,
né? Alguém que ouça ela.
Finalmente, falaremos de outra residente que mostrou significativas mudanças em sua
maneira de atender. Essa colega tinha grande apreço às atividades do ambulatório. Sentia
122
muito prazer em estar com as mães e em atendê-las. Para essa médica, os sofrimentos das
mães, fossem eles apresentados como psíquico ou orgânico sempre tiveram igual valor. Para
muitos outros médicos há uma hierarquia: o sofrimento orgânico é valorizado, enquanto o
psíquico tem menor valor. Um pouco desorganizada em seus atendimentos, a médica
precisava sempre de mais tempo para conversar com as mães. Porém, mesmo uma residente
tão atenciosa também enfrentava situações nas quais se sentia desconfortável, como no caso
dos atendimentos dos adolescentes.
Minhas consultas tem sido muito boas. Tirando quando a gente tem, lógico,
problemas, assim, de muitos pacientes, eu tenho que reduzir, tem que acelerar um
pouco mais, dividir mais o tempo. Mas quando eu vejo que eu tenho três pacientes
para entender eu faço uma consulta completa, converso de tudo, pergunto tudo.
Lógico quando é uma criança que tem uma patologia de base não tem jeito, eu tenho
que focar mais, né, para ser resolutiva para aquilo. Às vezes, são crianças que fazem
acompanhamento multidisciplinar, então assim, eu tenho que ver como anda tudo,
como é que está. Então assim, lógico, eu tenho que focar nisso, mas quando a
criança é sem patologia, que vem mesmo para acompanhamento mesmo pediátrico,
aí eu vou mais além, aí eu deixo mais um pouco a prática de medicina, além pesar,
medir, essas coisas, né? Uma criança sem patologia, aí eu pergunto como é que está,
como é que está na escola, aí eu vou... Então assim, as pessoas, geralmente, saem
bem satisfeitas, pede para trazer parente, para atender comigo e tal. Então assim, tem
sido bom! Tanto na pueri, quanto no fixo e no gama, que eu tinha uma dificuldade
maior com adolescente.
A entrevistadora quer saber por que é difícil atender os adolescentes e ao responder a
residente expõe uma dificuldade que a é de quase todos: assumir, diante das mães, o
crescimento das crianças. O pediatra deve estar preparado para uma grande flexibilidade na
relação com os pais. Em geral, há uma dificuldade dos residentes em abrir mão de uma
afetividade mais infantilizada, em que a vida do bebê e da mãe se misturam, que pode ter
lugar nos primeiros meses de vida. Essa afetividade deve se modificar gradativamente.
Quando se trata de lidar com as doenças orgânicas, o médico está mais preparado para uma
relação amadurecida. Ele sabe que é necessário separar a criança da mãe e levá-la ao centro
cirúrgico e o faz com toda a tranquilidade. O mesmo não ocorre nas consultas ambulatoriais.
Não é simples para o pediatra separar a criança da mãe ou a mãe da criança para uma
conversa, por exemplo. Ou abordar a mãe que prossegue a amamentação anos a fio ou que
dorme com à noite com a criança. A residente explica em sua entrevista: “A minha
dificuldade era abordar os assuntos com os adolescentes junto com a mãe do lado. Eu tinha
aquela dificuldade de pedir a mãe para se retirar quando eu queria conversar só com o
adolescente.”
A colega fala com orgulho de estar conseguindo superar essa dificuldade e se sente
melhor e mais à vontade agora em sua atividade profissional:
123
Muito mais a vontade. Inclusive eu estou fazendo isso, até, às vezes, quando não é
adolescente, mas chega uma mãe com duas crianças. Com duas crianças que criam
um caos dentro do ambulatório. Eu já consegui uma mãe que falou: “Não. Eu trago
um em um dia. E trago o outro...não tem problema nenhum.”, aí eu: “Vai te
prejudicar financeiramente, alguma coisa?” “Não. Não tem problema. Eu trago.” Aí
eu explico por quê? Porque fica uma consulta muito melhor, que eu consigo olhar
um e ela não tem aquele estresse de ficar gritando com o outro, pegando o outro e aí
vira uma bagunça a consulta. E também tenho mais facilidade de pedir para trazer
alguém para um ficar lá fora com alguém e ela entrar cada hora com um. Cada um
tem que ter uma consulta.
Quando perguntada de que maneira vem se modificando como pediatra, ela relata que
se sente mais segura. Em sua resposta ela se refere às mães “poliqueixosas”; ela sabe que as
mães são ansiosas e, portanto, demandantes. Porém, ela não se refere a essas mães de forma
pejorativa e comenta que a melhora de sua qualificação técnica tem ajudado no atendimento.
Primeiro que eu já te falei, eu me sinto mais madura e por conta disso eu me sinto
muito mais segura. Eu acho que eu sei mais diferenciar o que é bobeira, né, se é que
eu consigo fazer isso. Mas, assim, o que é bobeira? O que é uma mãe poliqueixosa
ou que cria, que quer criar queixas pra criança. Ou até mesmo da criança poder criar.
Às vezes a mãe nem é, mas a criança é. Não é, a criança... e você dá uma situada na
criança, falo que ela tem uma saúde boa. Enfim, eu me sinto mais segura agora, do
que antes. Acho que é mais por conta da maturidade mesmo. E é igual ao que eu te
falei, eu sinto minhas consultas muito melhores. Muito mais rápido e muito melhor
em qualidade. Até técnica mesmo, acho... me sinto mais segura.
É interessante perceber como é difícil para um médico dar espaço ao mesmo tempo para
o sofrimento psíquico e físico. Em geral os médicos mostram que têm dificuldade em dar
espaço para a ansiedade das mães quando uma doença orgânica não é claramente identificada.
Esses mesmos médicos, porém, podem suportar muito bem a demanda das mães quando as
crianças quando estão, de fato, doentes. Essa residente, ao contrário do que ocorre geralmente,
oferecia um enorme espaço para as queixas das mães em suas consultas. Porém, tinha grande
dificuldade em suportar o sofrimento quando as crianças eram acometidas por doenças graves.
A primeira vez que eu entrei... eu comecei na maternidade, então, lá eu estava
melhorzinha lá. Na hora eu subi, eu fiquei dois meses na maternidade. Então eu
fiquei março e abril na maternidade. Eu só subi em maio, foi isso mesmo, subi em
maio. Então quando eu cheguei naquela enfermaria, aquele tanto de criança doente,
aquele tanto de mãe sofrida, que você olhava assim, sabe? Eu falei: gente, eu não
vou gostar disso aqui, não. Não vou, isso vai mexer muito comigo e não vai ter jeito.
Hoje, mexe comigo, ainda mexe. Acabei de sair do rodízio da onco, tive que tomar
remédio pra dormir em casa, que eu estava tendo pesadelos com as crianças da onco.
De tão preocupada que eu ficava. Eu rodei sozinha na onco. Então, assim, nossa eu
fiquei muito sozinha com as crianças, crianças graves. Eu tinha oito pacientes
internados no rodízio inteiro! Então, assim, eu ia pra casa... teve um dia que eu tive
uma crise de choro, que eu falei: vou tomar um remédio, porque eu preciso dormir e
descansar. Tinha pesadelos com as crianças da onco.
A médica relata na segunda entrevista que tem conseguido alcançar um equilíbrio maior.
124
Mas hoje eu gosto muito mais, eu me envolvo muito mais. E foi muito engraçado
quando eu saí da onco e a mães ficaram assim: por favor, não sai, não, doutora!
Gente, eu não sei nada de onco, não é assim, não sai, não, eu tenho que rodar em
tudo pra conhecer e tal. Mas, assim você se apega, você tem coisa... eu gosto muito
mais da pediatria. E eu não tenho aquela dificuldade que o pessoal tem: aí, mãe é
muito chata! Eu não acho.
A experiência no setor a ajudou nesse equilíbrio. Ao colocar um limite nas demandas da
mãe, ao organizar o tempo das suas consultas, conseguiu colocar também um limite à sua
onipotência e culpa. Quando perguntada sobre de que forma o setor havia ajudado em suas
mudanças, ela responde:
Nossa, muita coisa! Mãe que chega pra mim... Nossa, me ajudou muita coisa na
minha consulta! Porque é assim, agora, igual doutor Paulo ensinou. Às vezes pai
ficava lá fora eu falava: quem está com você? O pai. Ah, chama ele também pra
participar da consulta. Aí o pai e a mãe participam da consulta. Aí o pai geralmente
faz queixa: ah, porque ela, doutora, faz isso e isso, e isso e tal, não sei o que. Aí eu
tenho que explicar pra mãe que ela é mulher, também. E que ela é esposa... Então
isso me ajudou muito. Isso tudo foi conversa com doutor Paulo. Tudo isso eu
conversei com ele, sabe? E ele me orientou a fazer essas coisas. Porque eu falei com
ele: ah, o pai ficou lá fora. aí ele falava pra mim: mas traz o pai pra consulta. Todo
mundo tem que participar da consulta, envolve todo mundo na consulta. É
responsabilidade de todo mundo. Todo mundo tem uma queixa pra fazer! E às vezes
é tão simples, você consegue resolver nessas coisas, nessas simples conversas. Então,
pais na minha consulta estão muito mais presentes. E isso é muito legal. Eu to
achando muito legal, porque eles são tranquilos. Às vezes a mãe está muito
estressada e o pai fala: doutora, não é... Tá exagerando, não é assim... Então, assim,
eles estão participando muito mais da consulta, eu gosto! Ah, me ajudou muito, me
ajudou a ver, exatamente, pueri... Nossa quanta mãe que... a gente fica aqui na
consulta, às vezes, de uma hora e tal, mas assim, queixas, queixas... Organizar
horário de consulta. Doutor Paulo me ajudou a fazer isso. Eu falei: nossa! Teve um
dia que eu atendi dois irmãos e depois eu tive que atender todo mundo correndo, em
menos de vinte minutos, porque os dois irmãos tomaram o meu tempo todo. Ele
falou: você não pode fazer isso! organize sua consulta. Se você organizar não vai
acontecer isso. Trinta minutos de consulta, conversando e tal, você consegue fazer
as coisas e consegue fazer uma boa consulta. E eu consegui organizar o meu tempo.
Eu não me embolo com isso. Então, assim, me ajudou no tempo de consulta,
organizar, me organizar. É igual eu te falei, às vezes quando eu largo a caneta
mesmo e vou só pra conversa mesmo, quando eu vejo que é só uma carência
emocional, é mais dúvidas, assim... Tento tranquilizar: mãe, põe o pé no chão, tá
criando doença que não existe! Sabe, assim, me ajudou muito a orientar mais a mães
e principalmente ver isso também, o ambiente que a criança vive, o que que isso
pode prejudicar, o que que não pode. Aquelas mães que perdem o marido, que eles
se afastam depois que a criança nasce, não é esse intuito, né, de se afastar, porque a
mãe virou mãe e não quer mais se cuidar, não quer mais olhar pro marido, não
quer.... Então me ajudou em muita coisa, muita coisa. E eu falo isso pra todo, que eu
faço propaganda.
Ao longo da entrevista, a médica conta dois casos em que percebe que as conversas no
rodízio contribuíram diretamente nas mudanças de sua postura e conduta. No primeiro caso,
ela fala como agiu com uma mãe que tinha dificuldades em amamentar ao seio. Ela prioriza a
amamentação ao seio, mas ao perceber o contexto em que a mãe estava inserida e ao dar
ouvidos à mãe que já não queria amamentar, ela muda e percebe que era hora de fazer
cumplicidade com a mãe e ajudá-la a encerrar o aleitamento ao seio. O relato é longo, mas
125
será apresentado na íntegra para que se possa apreciar como a médica se comporta diante de
um dilema: fazer cumplicidade com a mãe ou com os ensinamentos da pediatria? Vejamos o
seu relato:
Pois, é. Antes eu ficava muito tensa. Depois eu comecei a conversar com o doutor
Paulo eu fiquei mais relaxada. Muitas mães, a maioria, pelo menos a maioria daqui,
né? Dessa realidade aqui desse serviço que a gente conhece ficam desesperadas,
porque elas precisam de trabalhar e não tem como ficar amamentando
exclusivamente seis meses, mesmo quando você ensina todo aquele processo de tirar
o leite, de guardar, de conservar, como é que faz, elas têm essa dificuldade, ninguém
tem tempo para isso. Você vê que elas ficam muito nervosas e que muitas : “Aí,
doutora, já posso tirar dessa vez?” aí chega na consulta: “E agora, posso tirar, né?
Não aguento mais isso!” Aí você vê que aquele negócio já está ficando insustentável.
E aí eu já fiquei mais relaxada com isso. “Olha, não tem jeito? Precisa de trabalhar?
Precisa de sustentar a família, não tem jeito?” Aí já introduzo já o leite mesmo e até
ensino a conserva do leite materno, explico que é importante e tal. Mas na prática
parece que a correria é muito grande, tem outros filhos e é difícil por causa do
trabalho e aí eu vejo que a dificuldade de conservar o leite para poder oferecer
quando a mãe está fora, é muito grande. Já vi...consegui mãe fazendo isso aqui que a
mãe ia para a faculdade a noite, mas a criança ficava com a avó e o padrão meio que
de vida era um pouquinho maior, mais elevado do que as outras, né? A grande
maioria daqui. Então assim, eu converso. “Olha, então tá! Então vamos tirar, vamos
introduzir o leite. É importante que se faça amamentação exclusiva até tanto tempo.
Mas eu entendo também a dificuldade, sei que você precisa de trabalhar, que vai
perder o emprego, que tem outras coisas, não adianta amamentar desse jeito também.
Né? Com pressa, com raiva. Aí não. Se é desse jeito, né, tem que ser uma coisa
prazerosa também.” Então pela mãe. Aí eu consigo olhar mais o lado da mãe,
também. Antes não, ficava “Ah, que judiação!” né? A gente fica, às vezes, chega até
a condenar a mãe, né, por causa disso. E agora, não, eu acho assim, não tem jeito?
Conversa, não tem jeito? Vamos introduzir o leite, não tem problema você continua
com seu emprego, faz o que tem que fazer para não sentir em uma prisão também,
nem, parece que foi condenada àquilo.
No segundo caso, ela mostra outra mudança na sua maneira de atender. Como já
descrito, a expressão zelo apostólico foi cunhada por Balint a partir do conceito psicanalítico
de contratransferência. Ou seja, na relação íntima com o outro revivemos ao nível
inconsciente experiências das relações parentais. As reações automáticas ocorrem justamente
por não passarem pelo julgamento da consciência. Os pacientes fazem relações
transferenciais com seus médicos. Criam expectativas, depositam esperanças irreais, mas
também, é bom lembrar, desesperanças fantasiosas em seus médicos. Para se usar o médico
como um fármaco, como dizia Balint, seria preciso que o médico pudesse suportar e não fugir
da relação transferencial. No caso abaixo, é bem possível imaginar que conscientemente a
mãe soubesse que problemas relacionados ao luto da mãe e da criança pela perda do esposo e
pai não fossem exatamente da alçada do pediatra. Talvez procurar uma psicóloga fosse mais
adequado. Porém, a relação transferencial é feita com o seu médico e por conta disso todas as
formas de sofrimento são trazidas para esse médico. Vimos que esse é o desejo de todos os
pediatras: ser o centro da relação transferencial das famílias. No entanto, isso traz exigências
126
psíquicas que muitos não suportam. São exigências inconscientes que podem estar
relacionadas, por exemplo ao medo de decepcionar, de ter as suas fraquezas desveladas e ser,
finalmente, acusado, em suas fantasias, de se colocar no lugar de seu próprio pai ou da própria
mãe indevidamente.
Portanto, o zelo apostólico é também a fuga da relação transferencial. Veremos nesse
caso a estratégia que a médica usava para fugir da relação transferencial: ela se defendia no
uso dos instrumentos e protocolos médicos. O que ela faz, com a ajuda do setor, é abrir mão
dessa defesa e permitir “ser usada” na relação transferencial. Ou seja, atender à demanda da
mãe, sem as defesas profissionais. Ela se sente melhor e a família também. Vejamos o seu
relato, longo, porém necessário para que apareçam todos esses elementos das questões
transferenciais na prática pediátrica:
Não, acho que mudou, sim, bastante, principalmente na consulta. É igual eu falei,
chega às vezes paciente que não tem nada de base, não tem nenhuma patologia,
chega pra acompanhamento. E ás vezes o paciente, pelo contrário, está com a
doença emocional, completamente, você vê que é completamente abalada. E antes
eu ficava focando muito; tem que pesar, tem que medir, tem que saber se o cartão da
vacina está completo, isso e isso, isso, isso, isso e quando eu via já tinha dado trinta
minutos de consulta, porque eu ficava me... me coisa nisso... E o mais importante
que o paciente chegou, o problema maior do paciente era....(escuto ela bater com as
mãos uma na outra) Ah, vou encaminhar pro psicólogo. Era assim que eu fazia.
Porque assim, não, eu tenho que fazer, tem que estar ali peso, altura, IMC. E eu
ficava focando nisso, exatamente nisso. Vou examinar todinho. Hoje tem paciente
que eu nem examino e que sai super satisfeito. Mas é isso, vem pra desabafar. Eu
tenho um paciente, uma mãe com uma criança que a menininha perdeu o pai. A mãe
era casada há trinta e cinco anos, é a única filha que ela tem, o marido morreu de
câncer. E cheguei as duas pra primeira consulta minha, as duas abaladíssimas. A
mãe quando começou a falar, começou a chorar, eu nem sabia o que que era. E a
criança sentada, assim, a menina também, magra, não queria comer, não queria ir
pra escola, não estava fazendo nada porque tinha um mês que tinha perdido o pai. O
pai era tudo pra ela, inclusive pra mulher. Era um casamento muito feliz. Tudo que
ela conta era uma coisa muito alegre entre os três. Moravam só os três. As duas
estavam abaladíssimas. E aí eu larguei tudo! Falei, vou largar a caneta, vou largar
tudo e vou conversar, porque as duas estão precisando de conversa. Isso foi agora
em março. Isso mesmo, deve ter sido em março, que a gente estava abrindo
consultas e tal. as duas acompanham comigo, comecei a marcar de mês em mês,
mesmo a menina não precisando ser vista de... Não precisando, né, mais ou menos,
porque pra mim precisava. De mês em mês estão outras pessoas. E eu tenho uma
relação ótima com as duas, assim... Outras pessoas. A menina já come melhor, vai
pra escola... Eu perguntei, pedi pra trocar de escola, porque ela não queria ir pra
aquela escola. Eu falei: vamos trocar de escola? Trocou de escola, a menina adora,
tem vários amiguinhos. Então assim, eu adorei! Eu falei assim: talvez se eu não
tivesse rodado na psicossomática, eu ia... Não é que eu ia ignorar aquela situação ali,
mas eu ia mesmo ficar lá no peso, medida, estatura, o que que você tem, como é que
está o cartão de vacina, como é que está... pra uma criança e pra uma família, na
verdade a mãe e a filha que estavam precisando mais de uma... de alguém pra
conversar, pra tranquilizar, porque a mãe estava preocupada que a menina não
queria comer nada. Aí eu expliquei, falei como que a perda pra criança é mais,
aguda é mais difícil do que pra gente, mas a criança se recupera muito melhor do
que a gente, adulto, né, de uma perda às vezes assim, que ela ia se recuperar bem. A
gente conversou muito. E talvez eu não faria isso, acho que eu não faria isso.
127
6 DISCUSSÃO
6.1 A FUNÇÃO APOSTÓLICA
Antes de darmos início à discussão do trabalho, faremos uma recapitulação sobre o
conceito balintiano da função apostólica, pois esse foi o tema central de nossa pesquisa.
Balint estava interessado em estudar o médico como fármaco. Em outras palavras,
quando, quanto e como “aplicar” o médico na relação com seu paciente poderia ser benéfico
ou até mesmo prejudicial para a evolução da enfermidade. Por exemplo, os médicos entendem
que em um caso de dor abdominal aguda, sem diagnóstico esclarecido, o uso de analgésicos
potentes não é recomendado, pois poderia mascarar e atrasar o diagnóstico elevando os riscos
do paciente. Essa noção não é compreendida em relação às questões psíquicas. A mãe diz:
“meu filho não está dormindo à noite”. Devemos aliviar o seu sofrimento e dar-lhe uma
medicação à base de hipnóticos, dar-lhe medicamentos da flora medicinal ou placebos, mudar
os seus hábitos, dizer para a mãe que não há nada para se preocupar ou tentar um diagnóstico
psicológico da situação? Há tantas maneiras de atuar e não temos claro a dimensão de como o
médico deve ser “aplicado”.
Foi estudando essa “farmacologia” que Balint chegou ao conceito de “função
apostólica”. Esse conceito foi formulado ao percepção que os médicos tinham um padrão de
atuação repetitivo e do qual não abriam mão. Seria, portanto, necessário trabalhar o médico
para que ele pudesse modificar esses padrões automáticos de comportamento. Ao longo do
livro O médico, seu paciente e a doença (2005), Balint esclarece o que seriam esses padrões.
Num primeiro trecho ele explica que embora o conceito seja difícil de ser precisado, ele tem
uma força e um alcance imensos no modo como o médico se relaciona com o seu paciente:
A missão ou função apostólica significa em primeiro lugar que todo o médico tem
uma vaga mas quase inabalável ideia sobre o modo como deve se comportar o
paciente quando está doente. Embora este conceito pouco tenha de concreto e de
explícito, é imensamente poderoso e influi, segundo podemos comprová-lo,
praticamente em todos os detalhes do trabalho do médico com o seu paciente. Era
como se cada médico possuísse o conhecimento revelado do que os pacientes
deviam e não deviam esperar e suportar, e além disso, como se tivesse o sagrado
dever de converter à sua fé todos os incrédulos e ignorantes entre seus pacientes.15
Precisamente por esta razão surge a ideia de aplicar-lhe o nome de ‘função
apostólica’ (BALINT, 2005, p. 161-2).
15 Grifos do autor.
128
O médico precisa que seu paciente adira à sua ciência e à sua prescrição. Não se trata
de um desejo, mas de uma necessidade que tem que ser atendida pelo paciente. Caso o
paciente reaja de uma maneira não esperada o médico modificará a sua atitude em relação ao
paciente; em geral se afasta, fica mais frio ou agressivo e a relação empática com o paciente
fica perdida.
Mais adiante o autor oferece outros componentes desse padrão ao afirmar que o médico
tem que ser bom e reconhecido como uma pessoa boa:
Um aspecto particularmente importante da função apostólica é a necessidade que o
médico sente de provar ao paciente, ao mundo inteiro e sobretudo a si mesmo, que é
bom, um profissional bondoso, digno da confiança e capaz de ajudar. Ainda que nos
doa, nós médicos sabemos muito bem que se trata de uma imagem por demais
idealizada (BALINT, 2005, p. 173).
Logo a seguir o autor fornece mais detalhes sobre a maneira do médico se comportar:
“Em conjunto, sempre que aparece algum sinal de sofrimento mental ou de ansiedade, o
médico se ocupa em primeiro lugar de ‘tranquilizar’ o paciente, com a esperança de aliviar o
sofrimento” (BALINT, 2005, p. 173).
Portanto, a necessidade que o médico tem que o paciente adira ao seu tratamento está
diretamente ligado às suas emoções. O médico sofre se o paciente tem um sofrimento. Caso
esse sofrimento seja físico o médico é capaz de conter a sua ansiedade até que o diagnóstico
seja confirmado. Nos casos de sofrimento psíquico o profissional já não pode conter a sua
ansiedade e fará tudo para aliviar o sofrimento do paciente. Além disso o médico precisa ser
reconhecido como boa pessoa e bom profissional. Sendo assim o paciente tem que ser curado
pela prescrição daquele médico, caso contrário ele reagirá. Esses são os componentes da
função apostólica do médico como descrito por Balint.
Os capítulos dezesseis e dezessete do livro são dedicados exclusivamente à função
apostólica. O autor faz uma certa confusão, pois a expressão não mais se limita ao desejo do
médico de trazer o paciente para a sua fé e nem à necessidade do médico de ser bom e
reconhecido como uma pessoa boa e bom profissional. O autor estende a discussão do tema e
do que entendia como função apostólica:
Assim, depois de aceitar o fato de que cada médico é suficientemente flexível e
adaptado para permitir o desenvolvimento de grande variedade de relações entre ele
mesmo e seus pacientes, proponho-me a discutir neste capítulo as limitações dessas
elasticidades, os fatores individuais que determinam suas fronteiras e o medo como
tais limitações afetam a ‘prática’ do médico, tendo em conta quase todos os matizes
de significação dessa palavra complexa, por exemplo (para citar o Concise Oxford
Dictionary), ‘ação habitual’, ‘exercício habitual de certa arte’, ‘hábito’, ‘trabalho
profissional’, ‘disposição’, etc (BALINT, 2005, p. 163).
129
Portanto a função apostólica modifica a sua definição e se amplia para “as limitações
dessas elasticidades” que têm os médicos nas relações com seus pacientes. É evidente na
leitura desse livro o cuidado que o autor teve em evitar termos e conceitos da psicanálise.
Balint não queria expor os resultados de suas pesquisas para psicanalistas, mas para médicos,
leigos em psicanálise. Por exemplo, embora o conceito de contratransferência esteja presente
em algumas passagens o termo só é utilizado no apêndice dedicado aos líderes de grupo que
na época eram psicanalistas. Fica claro que o conceito de função apostólica passa a se
confundir com o conjunto de defesas dos médicos contra as suas próprias angústias que os
ameaçam na prática da medicina. Autores dedicados às pesquisas e à difusão dos grupos
Balint como John Salinsky, Paul Sackin e Michael Courtenay preferem a expressão “padrões
defensivos” ao termo função apostólica (SALINSKY e SACKIN, 2000).
O restante dos dois capítulos corrobora com essa ideia ao descrever os casos discutidos
nos grupos. Em um caso, por exemplo, é discutida a atitude do médico que não aceita um
paciente que havia trocado de médico e desejava ser atendido por ele novamente. O médico,
no entanto, não o aceita de volta. Isso é colocado em discussão e o médico afirma que “não
via por que não podia castigar deste modo o paciente.” Balint acrescenta: “Devo acrescentar
que este profissional é homem sensível e humano, e de nenhum modo o indivíduo duro que
suas ‘normas’ parecem sugerir” (2005, p. 164). Seguem-se assim vários casos em que o autor
destaca a singularidade de cada médico em seus atendimentos. Relata dois casos de
hipocondria e comenta sobre o hábito de dar vidros de remédios ao invés de conhecer a vida
íntima do pacientes:
Sempre em relação a essa repugnância geral de investigar os problemas pessoais,
quer dizer, psicológicos, dos pacientes, comprovamos que – como era de se esperar
– os exames dos problemas sexuais suscitavam maior resistência. Em muitos casos
os médicos informavam sobre casais que conheciam há muitos anos, com os quais
mantinham prolongados e estreitas relações de amizade e como conselheiros
médicos de confiança; em cada caso, o médico havia acreditado encontrar-se ante
um casamento indubitavelmente feliz, mas logo se descobria – com grande surpresa
do profissional – que marido e mulher tinham estado vivendo uma vida de discórdia
e brigas constantes (BALINT, 2005, p. 169).
Balint transforma assim o conceito da função apostólica em um conjunto de defesas
contra a angústia. As pesquisas mostraram também que havia um conjunto de códigos sociais
que dava a ilusão de que os médicos eram próximos de seus pacientes, mas em realidade
estavam bem afastados e conheciam muito pouco sobre eles.
130
6.2 A FUNÇÃO APOSTÓLICA E OS PEDIATRAS
Podemos dizer que o zelo apostólico diz respeito não apenas à intolerância do médico
quando o seu paciente não segue as recomendações como também à dificuldade que tem o
médico de conhecer, de fato, a vida de seus pacientes.
Nesse sentido há uma particularidade na pediatria. Talvez essa particularidade não seja
exclusivo da pediatria, mas é certamente mais acentuada na especialidade: o paciente na
pediatria é a família. Não se pode isolar a criança de sua família e estar próximo da criança
sem ter proximidade com os pais e cuidadores, ainda que, em casos excepcionais, estar
próximo seja reconhecer que os pais não podem cuidar sozinhos de seus filhos e possa ser
necessário fazer um acompanhamento domiciliar. Vimos como os residentes que se
interessam em conhecer o ponto de vista dos vários membros da família e colhem histórias em
separado das crianças e dos pais são capazes de compreender uma outra dinâmica. As
idealizações que tudo anda muito bem no lar, que o discurso das mães devem ser sempre mais
valorizado que o de outros membros da família, por exemplo, são deixadas de lado e chega-se
a outros diagnósticos e novas condutas.
Essas dificuldades não devem ter sido adquiridas na formação médica, mas trazidas por
cada um para a prática. A pesquisa, de fato, sugere que muitos residentes escolheram a
especialidade pelas dificuldades em lidar com adultos e por idealizações a respeito da criança.
Como seria possível imaginar que esse grupo possa estar próximo da família sem uma
trabalho sobre a subjetividade? O adulto do sexo masculino está ausente dos ambulatórios.
Provavelmente, já não podemos atribuir esse fenômeno apenas ao fato do homem trabalhar
fora de casa. É comum vermos homens nos corredores que, mesmo presentes, não são
chamados para entrar nos consultórios. Os residentes que mostraram desconfiança em relação
aos adultos, revelaram-na ainda mais em relação aos homens. Esses são muitas vezes tidos
como violentos e encrenqueiros e o consultório passa a ser um lugar quase exclusivo das
mulheres.
Por outro lado, a idealização do bebê cria uma expectativa que as mães deveriam tratar
de seus bebês perfeitamente e muitos dos residentes mostraram-se implacáveis quando
qualquer falha, por menor que fosse, era detectada. A partir de conceitos culturais tão
arraigados, o zelo apostólico aparece liberado demais para uma boa parte dos pediatras. Pode-
se perceber também diferenças na manifestação do zelo apostólico nos Serviços privados e
públicos. O sexo masculino e as exigências dos pais eram mais presentes nos plantões em
131
hospitais privados do que na residência que ocorria em um hospital público. Passavam de
exigentes para exigidos. As dificuldades na relação com os pais não se alterava, mas a
maneira como elas se manifestam pode ser bastante distinta.
A ideia da “mãe poliqueixosa”, ou seja, das mães que exigiam demais dos médicos,
pode ser melhor compreendida a partir do zelo apostólico dos pediatras: é a idealização do
bebê que leva a uma exigência dos pediatras para que as mães vigiem e cumpram
rigorosamente as prescrições. Embora ansiosas e queixosas não são apenas elas que são
demandantes. No fundo, a exigência das mães é apenas que os médicos se disponham a ter
uma relação empática com elas. De fato, as mães não exigem que os médicos solucionem seus
problemas. Ao contrário, se o médico se dispuser apenas a ouvir as queixas e disser que não
há motivos para preocupações, pois os exames clínicos atestam a boa saúde das crianças, elas
sairão bastante confortadas dos consultórios. Por empatia entende-se o interesse do médico
em conhecer a vida da mãe, de modo que as falhas e as queixas são compreendidas na
perspectiva psíquica e social daquela pessoa (BOLOGNINI, 2008). Como isso não é
compreendido por esse grupo, os residentes se sentem pressionados a solucionar cada uma das
queixas das mães.
No entanto, ocorre o oposto. As mães são também bastante pressionadas e não lhes resta
outra opção a não ser cumprir as recomendações. Como dissemos, essa vigilância que os
residentes exercem sobre as mães pode levá-los a hostilizá-las, mas não apenas isso. Vimos
em nossas entrevistas que há outros que infantilizam as mães e explicam repetidas vezes, sem
se dar conta que as mães compreendem perfeitamente as recomendações. São os médicos que
não estão suficientemente próximos para saber os motivos que as levam a deixar de
amamentar, a não comparecer às consultas ou a não dar os remédios. Não lhes falta nem
novas explicações e nem o “puxão de orelha”. As explicações e os “puxões de orelhas”
denunciam, portanto, a distância entre os médicos e as famílias.
Quer seja com um tom de confronto, quer seja pela infantilização das mães, essas duas
posturas têm algo em comum: o eixo de sustentação do processo empático. A relação médico-
paciente é uma relação desigual, como é a do professor-aluno ou a da mãe-bebê. Para que um
encontro profundo seja possível é necessário que a relação empática possa ser sustentada pelo
polo mais forte e mais saudável. Não pode se esperar que o elo mais frágil sustente a relação
empática nos momentos de tensão. Tanto o médico bravo como o médico que acredita em
uma pedagogia infantilizada pressupõem que a aderência ao tratamento é função da mãe. O
médico irritadiço interpreta a mãe como negligente enquanto o outro interpreta a mãe como
132
ignorante. A falha não é entendida como falha da relação médico-paciente, e, portanto, do
próprio médico. O profissional não se dá conta que em muitas ocasiões caberia ao médico
aderir, ao menos temporariamente, ao funcionamento da mãe até que se esclareça por que ela
não quer amamentar, não consegue aderir a alguma medicação ou exige a realização de um
exame. Na maioria dos casos há mais prejuízo em não aderir à mãe do que em exigir a
aderência dela. Em outras palavras, aceitar a não adesão da mãe pode ser a única maneira de
sustentar a relação empática para que se possa compreender com mais profundidades as
dificuldades pelas quais passa a mãe. A relação empática necessita, portanto, de uma
flexibilidade por parte do médico sobre o comando da consulta, desde que o médico saiba
avaliar os riscos reais para a criança e pesá-los em relação ao valor que tem o estabelecimento
de uma forte relação empática. É preciso saber conduzir e se deixar ser conduzido também.
Ao transformar todas as questões trazidas pelas mães em doença física, o médico se
sente demasiadamente forte e a sua autoridade ganha dimensões desproporcionais em relação
às mães. Quando passamos para as questões que não se encontram nesse escopo da doença
física, a situação se inverte. Nas questões comportamentais, ocasionalmente a autoridade da
mãe passa a ser absoluta e os médicos não se sentem mais autorizados para colocar em
questão essa autoridade desproporcional das mães. Por isso vimos residentes com grande
dificuldade de colher histórias em separado das crianças e das mães. Diferente do que
acontece com a doença orgânica, as questões psíquicas são encaminhadas sem maiores
questionamentos. As histórias sobre as queixas das escolas ou mesmo das mães não são nem
ao menos colhidas. Os “problemas” são das crianças, pois assim informaram as mães. Vimos
casos em que mesmo quando era nítido para o médico que era mãe que estava em dificuldade
na criação das crianças, eram essas últimas que eram encaminhadas aos Serviços de
psicologia. A idealização, que se acompanha de um receio das mães, provocam em muitos um
açodamento nos encaminhamentos, pois partem do princípio que, em se tratando de questões
psíquicas as mães deveriam ter a palavra final. Com isso os residentes mantém a autoridade
dessas mães protegida e ficam eles mesmos protegidos de encontro com as mães (e pais) que
falham. As entrevistas mostraram, portanto, que grande parte dos médicos se mantém a uma
distância segura das questões subjetivas das famílias.
Concluímos que na base da função apostólica estão a dissociação entre o orgânico e o
psíquico, o despreparo dos residentes em lidar com as questões psíquicas e a idealização da
família. Há uma negociação da autoridade: as mães não estão preparadas para lidar com a
alimentação, desenvolvimento e saúde física. Nesses quesitos a autoridade é do médico. Fora
133
desse domínio as mães não devem ser questionadas e os médicos preservam a autoridade.
Sabem como ser mães e cuidar afetivamente de seus filhos. No entanto, a realidade parece ser
bem distinta. Embora as mães errem as gotas do ferro e vitaminas, as crianças estão, em geral,
dentro de suas curvas de crescimento. Pode ser que coloquem um pouco mais de hidrato de
carbono do que o recomendável em suas alimentações, mas isso não quer dizer que não
saibam manter seus filhos saudáveis. São os pequenos deslizes e não as falhas graves que
capturam a atenção dos pediatras. É bom que se diga que os deslizes são assim entendidos em
função de protocolos que podem mesmo variar enormemente entre profissionais. Mesmo as
condutas mais usuais em um ambulatório de pediatria podem estar em questão quando se trata
de crianças hígidas. Por exemplo, há muita controvérsia em relação a interpretação se as
amigdalites, sinusites e otites são bacterianas ou não, e estudos recentes mostram que não há
consenso se necessitariam ou não de antibióticos para o tratamento (VENEKAMP et al.,
2013; O’BRIEN, 2015).
Na realidade, as perguntas das mães sobre a saúde das crianças dizem respeito muito
mais a ansiedade que experimentam se estão cuidando bem de seus filhos do que a uma
incapacidade. Precisam mais de ratificação e não tanto de retificação. São, portanto, as
questões da culpa, se cuidam bem e se estão causando mal às crianças, os principais motivos
que levam as mães tão amiúde aos pediatras. A abordagem objetiva é desejada, mas deve se
levar em conta que essa é apenas a parte superficial e aparente da motivação da consulta. A
parte mais densa e profunda que leva a mãe ao pediatra só pode ser conhecida e aferida
através da empatia e do interesse pela vida da mãe e da família. Dar atenção unicamente para
o corpo da criança, conduzir a consulta e focar apenas na objetividade das questões trazidas é,
enfim, expressão do próprio zelo apostólico, constitutivo da própria como praticada hoje, ao
menos no mundo ocidental.
Essa objetividade não se restringia à visão que os pediatras tinham da medicina. A
própria maternidade era vista como um conjunto de tarefas a serem executadas, voltadas para
o ensino e ao estímulo cognitivo. As funções maternas de colocar no colo, acolher, acarinhar,
rir e se divertir não foram quase mencionadas por esse grupo de residentes. Infelizmente,
ocorre uma despreocupação muito grande em relação à relevância dessas funções da mãe na
formação dos residentes e na própria pediatria.
Até aqui nos referimos principalmente a um grupo dos residentes que expressaram mais
dificuldades com os adultos, mais dificuldades com as mães e na relação médico-paciente.
Houve, no entanto, um outro grupo de residentes que se comportou de maneira distinta.
134
Partiram de uma visão do adulto menos fragmentada e mesmo quando esses residentes
observaram falhas nas condutas das mães, elas eram bastante bem toleradas. Os pediatras não
se irritavam tanto e aceitavam a situação sem ter que recorrer a explicações incessantes.
Naturalmente essas linhas de demarcação entre grupos têm objetivo didático e podem ser
falhas. Alguns residentes que se colocam de maneira mais intolerante no atendimento de um
bebê, podem ser muito apropriados e tolerantes no atendimento de um adolescente, e vice-
versa. E há mesmo a variação de tolerância de um caso para outro, de modo que essas
configurações variam para o mesmo residente no atendimento de casos diferentes. Mesmo
com essas ressalvas, os grupos tendiam a manter um padrão.
Porém, mesmo esses pediatras mais tolerantes não souberam como entrar na intimidade
do lar. Houve pouquíssimos casos em que se dava espaço para ouvir a história da criança
separada da mãe e a autoridade da mãe era dificilmente colocada em questão nos
encaminhamento ao Serviço de psicologia. Apenas uma residente compreendeu que a
intimidade do lar não se restringia à sexualidade dos pais, mas à relação na sala de TV,
durante as refeições, nos dias de semana e nos finais de semana. Houve muito poucas histórias
que revelavam o interesse do residente pela dinâmica familiar.
A sensualidade do corpo e o prazer estavam também mais presentes nos discursos
desses residentes, mas não de todos. Nenhum dos residentes compreendeu a sensualidade e o
prazer como um instrumento de aferição. Sim, o prazer que a mãe tem de estar com seu filho
(a), ao mesmo tempo, que mantém preservada a capacidade de se afastar da criança, tendo o
direito ao repouso e à vida conjugal, são os melhores parâmetros para se avaliar que a família
está saudável e que as crianças se desenvolverão com saúde. No entanto, esses parâmetros não
são compreendidos pela pediatria e não se poderia esperar que os residentes estivessem
acostumados a aferi-los. Mesmo assim, é possível afirmar que nesse grupo havia menos
perseguição e combate às mães que incorriam em pequenos deslizes.
A função apostólica para esse grupo aparecia quando o residente lidava com casos
complexos. Os casos relatados mostraram que haviam mães que não eram capazes de fornecer
os cuidados mínimos e colocavam em risco a saúde de seus filhos. Os pediatras não
conseguiram diferenciar o que seriam bons cuidados, embora com falhas, como ocorre com a
mãe comum, daqueles que colocavam as crianças em risco. Quando já não podemos contar
com as mães, chegamos ao limite da pediatria, do atendimento médico. Trata-se, então, de
casos complexos em que a ajuda de outros profissionais e do Estado passa a ser necessária.
135
Por que os residentes não foram capazes de reconhecer esses casos não é tão simples de
responder. É provável que falte treinamento, mas, de fato, parece que o pediatra tem
dificuldade em discriminar a mãe negligente ou a que coloca o filho em risco de alguma
maneira daquela que cuida, embora sem a perfeição esperada. É possível que estejamos no
campo da negação inconsciente. A vigilância acirrada às mães comuns que falham, que vimos
no primeiro grupo, é provavelmente uma defesa contra a ameaça que é para o médico entrar
em contato com a mãe abandonadora. Seria como se o médico tivesse dificuldade em
reconhecer que as mães falham como falharam as nossas mães e falharão as residentes quando
tiverem seus próprios filhos.
Porém, quando estão diante das mães que põem em risco a saúde dos filhos,
confundem-nas com as mães comuns que falham. Há uma negação e a conduta dos médicos
não se modifica. O pediatra segue as suas estratégias de explicações, alertas e pequenos sustos.
Lamentavelmente, para as mães abandonadoras, essas estratégias não funcionarão. Não é
incomum acompanharmos casos de crianças com SIDA, por exemplo, investigadas por falhas
no tratamento que passam-se anos com diagnóstico de resistência aos medicamentos até que a
não aderência é revelada. Esses casos e tantos outros mostram as dificuldades dos pediatras no
enfrentamento de mães não confiáveis.
Portanto, tanto para um grupo como para o outro a dificuldade em enfrentar as mães
abandonadoras estão na base do zelo apostólico. O primeiro grupo tem grande dificuldade de
se aproximar das mães e é o fantasma da mãe abandonadora que causa o zelo apostólico. Os
pediatras do segundo grupo se aproximam das mães, mas negam o fato que há mães que
podem não ser confiáveis. Essa diferenciação entre esse dois grupos de mães pode parecer
complicada, mas é relativamente simples. O exame físico e as curvas de crescimento são, por
si só, excelentes indicadores de que a criança é cuidada. A relação da mãe com a criança no
consultório asseguram o pediatra de que o vínculo é bem construído e estabelecido. Como
dissemos, o fato de haver momentos de lazer entre a mãe e a criança, que são diferentes das
atividades de estimulação cognitiva, associados às noites de sono e vida conjugal preservada
dos pais, quase asseguram que um bom desenvolvimento está em curso. Há casos em que essa
diferenciação pode ser mais complexa, como no caso relatado por uma das residentes em
relatado em que a mãe não deu as medicações ocasionando uma internação desnecessária por
pielonefrite. Nesses casos, um acompanhamento mais de perto deverá esclarecer se a criança
corre mais riscos do que o necessário. Em caso afirmativo, outros profissionais deverão ser
acionados. Essas observações vêm da experiência própria. As referências teóricas estão ao
136
longo de toda a obra de Winnicott em que os cuidados afetivos não podem ser separados dos
cuidados efetivos.
Até aqui mostramos padrões defensivos e suas reações contratransferenciais. O medo da
intimidade com a mãe e o pai, o medo de entrar em conflito com a mãe, a idealização que leva
à vigilância, à cobrança e à exigência de uma presença constante da mãe, a objetividade
excessiva associada à negação da ansiedade das mães que não sabem como cuidar dos filhos e
a negação dos casos que necessitam de intervenção. Enfim, todas essas são expressões das
defesas do médico. Mostramos, assim, uma gama de mecanismos de defesa que, em essência,
difere muito pouco ou nada do que foi apresentado por Balint em seu livro mais importante,
como vimos anteriormente. Chegamos em nossa pesquisa até o ponto que Balint havia
alcançado até a publicação de O médico, seu paciente e a doença: a prática do médico está
presa aos seus próprios padrões defensivos. A questão que se colocava então era: como fazer
os médicos abrir mão desses padrões? Acompanharemos um pouco como prosseguiram as
pesquisas de Balint para discutir as modificações ocorridas no grupo após a experiência
relatada.
6.3 O AMBIENTE TERAPÊUTICO E A AUSÊNCIA DO ZELO
APOSTÓLICO: A SEGUNDA FASE DAS PESQUISAS BALINTIANAS E AS
SEGUNDAS ENTREVISTAS
De início Balint tentou criar entrevistas específicas para se conhecer a pessoa do doente.
Essa tentativa perturbou a sobrecarregada rotina dos médicos e não se mostrou satisfatória.
Transformavam médicos-voltados-para-a-doença em médicos-voltados-para-a-pessoa, porém
os médicos perdiam-se em sua identidade profissional e alternavam as duas formas de ser em
consultas distintas. Ora funcionavam como médicos-voltados-para-a-doença, ora como
médicos-voltados-para-a-pessoa e a função apostólica se modificava, mas não se encerrava
(BALINT, E., 1969). Era preciso que a nova forma dos médicos atuarem estivesse
incorporada à rotina dos atendimentos médicos.
O psicanalista já não se achava satisfeito com os resultados das pesquisas e propõe um
novo modelo com um grupo de médicos mais experiente e mais preparado para abrir mão do
zelo apostólico, mas sem deixar de lado a clínica. Balint estava inquieto com as dificuldades
137
que os médicos tinham em compreender plenamente aonde queria chegar em suas pesquisas.
Eis o depoimento de um dos participantes da última fase das pesquisas de Balint:
Depois desta intervenção de Balint, que teve um caráter dramático, os membros do
seminário passaram a trabalhar de modo diferente. [...] Foram capazes de entrar em
‘sintonia’ mais frequentemente com o paciente, de modo que não havia necessidade
de tomar o papel de ‘detetive’ nas questões do paciente. [...] Deixaram de pensar em
termos de psicologia de uma pessoa, preocupando-se com uma psicologia de duas
pessoas; em outras palavras, foram capazes de chegar mais perto do paciente pela
exploração do relacionamento médico-paciente, em lugar de explorar a psicologia do
paciente. Começaram a ver o paciente sob nova luz e tentaram ajudá-lo de uma outra
perspectiva. Em lugar de pensarem como poderiam melhor examiná-lo, diagnosticá-
lo e tratá-lo, os médicos passaram a se perguntar como seus pacientes poderiam
melhor usá-los (PASMORE, in. BALINT, E. e NORELL, 1978, p. 28-9).
Esse depoimento nos ajuda a compreender a base teórica usada por Balint, uma vez que
ele não se ocupou em registrá-la. Podemos, portanto, inferir que Balint acreditava que daria
passos na direção de minimizar os padrões de defesa caso o médico conseguisse compreender
a sua atuação dentro do registro do uso do objeto como elaborado por Winnicott (1975).
Talvez possamos entender o que Balint queria dizer com a expressão “atmosfera terapêutica”
a partir do conceito do uso de objeto. A atmosfera terapêutica seria um lugar onde ocorreria a
reorganização psíquica do paciente. No caso da pediatria o paciente em questão seria a mãe
que, psiquicamente organizada, seria capaz de cuidar de seus filhos abandonando as fantasias
destrutivas que a assombra. Para que a mãe possa fazer uso de seu médico é preciso que o
pediatra “sobreviva” à tensão e destrutividade subjetiva da mãe, sem retaliações
(WINNICOTT, 1975, p. 127)16
. Essa descrição, originalmente descrita na relação da mãe com
o seu bebê, será reapresentada a seguir fazendo-se uma analogia com a relação médico-
paciente.
Podemos imaginar como isso se passa na relação da mãe com o médico:
Como dissemos a mãe leva seu filho ao pediatra não apenas para tratar das doenças de
forma objetiva, mas ela precisa também “usar” o pediatra para acalmar a sua destrutividade e
a sua culpa. A mãe abre mão de seu mundo pessoal para a gravidez, o parto e os cuidados do
16 Roussillon chama essa fase do desenvolvimento do bebê de “destruído-encontrado”, que explicamos,
brevemente, a seguir: em um determinado momento de seu desenvolvimento, o bebê morde o seio da mãe, chora
e se suja. Se a mãe não retalia, ou seja, se ela não castiga e nem passa a temer o bebê, diríamos que ela
“sobreviveu” à agressividade do bebê. Com isso ela tranquiliza o bebê que experimenta a sua própria
agressividade contra a mãe. Essa seria uma fase crucial para a integração do amor e ódio dentro do bebê. O bebê
adquire então uma integridade pessoal e pode se separar, se afastar da mãe alcançando novos voos pessoais e
sociais. Essa é uma descrição que busca compreender a passagem do narcisismo primário onde existe apenas
objetos subjetivos para o narcisismo secundário em que os objetivos reais já podem ser percebidos
(ROUSSILLON, et al. 2007, p. 111-2).
138
bebê. Entretanto, ela se cansa de tanta atenção e cuidados, e passa a experimentar sentimentos
constituídos não apenas de amor ao bebê, mas também sentimentos agressivos, de raiva. É
essa a base de sua destrutividade e culpa, que são geradas por esses sentimentos ambivalentes.
Ao se queixar, reclamar e exigir do pediatra a mãe está jogando sobre ele os seus sentimentos
destrutivos, sua ira e sua insatisfação com o bebê que não a ajuda. Como tudo isso se passa
subjetivamente, o esperado seria que o pediatra não se incomodasse e apenas constatasse que
a mãe está repleta de ansiedades e insatisfações. Ao manter a sua posição empática com a mãe
mesmo sabendo que ela reclama demais, vem em horas inoportunas, e falha em cumprir as
orientações dadas, o pediatra “sobrevive” ao ódio e às imperfeições da mãe. Essa
“sobrevivência” do pediatra a ajuda a vivenciar que os seus sentimentos de ódio são
subjetivos e não são, de fato, destrutivos. O pediatra reafirma, através de sua serenidade, que
o bebê está vivo e com saúde. A mãe pode se acalmar e voltar a cuidar do seu bebê com mais
confiança. Ao contrário, se o pediatra não recebe as suas imperfeições e a critica – estamos
falando da mãe comum que falha, mas que cuida de seu bebê – a mãe passa a viver os seus
sentimentos de ódio, a sua ambiguidade em relação ao bebê, como perigosos, potencialmente
destrutivos, e amplifica a sua culpa e o seu medo de cuidar.
Faure cita as palavras de Balint retiradas do livro The basic fault e completa:
“Mesmo que o paciente em geral se sinta fraco em comparação com o analista e
muito menos importante, é entretanto apenas ele (o paciente) que conta, e conta
enormemente; são apenas seus desejos, impulsos e necessidades dos quais é preciso
se ocupar exclusivamente, e são apenas os seus interesses que devem permanecer
no centro da atenção constantemente.” Balint poderia ter escrito a mesma frase,
substituindo a palavra analista pela palavra médico e ele teria descrito perfeitamente
a “atmosfera” de um consultório médico. (FAURE, 1978, p. 207, tradução nossa)
O ambiente terapêutico descrito por Balint nada mais é senão o lugar onde o ódio
subjetivo da mãe não pode destruir a relação empática do médico com a família. Essa relação
a dois, sem condicionantes e sem julgamentos, era a relação médico-paciente que deveria ser
buscada pelos médicos e pelos pesquisadores dessa área. É esse o pediatra que os pais buscam.
Naturalmente, os pais também esperam que o seu pediatra esteja preparado para suportar as
tensões do ambiente subjetivo sem, contudo, abandonar as questões objetivas para as quais ele
foi treinado.
O conceito de ambiente terapêutico não foi claramente definido e as suas bases teóricas
também não foram apresentadas. Sendo um conceito mais abstrato do que o zelo apostólico,
essas indefinições não ajudaram a sua compreensão e aceitação. O mesmo ocorreu com o
conceito de “flash”. Esse clarão que é sentido pelo paciente e médico quando ocorre uma
139
sintonia no encontro entre médico e paciente é por demais fugaz e impreciso. Terminou por
ser interpretado pelos atuais seguidores de Balint como mais uma “viagem” de psicanalista,
pouco prático e que deveria, portanto, ser abandonada. Talvez sim, porém o conceito nos
parece importante. O “flash” seria equivalente ao que em psicanálise foi descrito como
interpretação mutativa. Ou seja, uma interpretação que provoca um “insight” poderoso que
ocasiona mudanças (ETCHEGOYEN, 2004, p. 252). No entanto, o processo de análise não
está condicionado a fenômenos isolados. O importante não deveria ser o “flash”, mas o
ambiente criado para que ele possa ocorrer, embora na maioria das vezes as reflexões
decorrentes não sejam tão impactantes, definíveis ou mesmo lembradas posteriormente. O
importante, porém, é ressaltar que Balint buscou até o fim de seus dias ir além do zelo
apostólico, ou seja, buscou alcançar “uma limitada, porém significativa mudança na
personalidade profissional do médico”. Sabia que o médico só alcançaria sua plena potência
como fármaco se pudesse criar um ambiente tão empático que a consulta fosse conduzida ora
pelo médico, ora pelo paciente. O médico reivindicaria para si o lugar de autoridade somente
se necessário.
Avaliamos o trabalho realizado a partir dessas três concepções do zelo apostólico: as
reações automáticas de confronto, as reações de retirada e de negação e, finalmente, se o
médico era capaz de deixar a consulta ser conduzida pela mãe, ou seja, ser “usado” sem ser
“destruído”. Além disso buscamos saber se a intervenção manteve o seu compromisso como
uma intervenção pedagógica sem se transformar em uma intervenção terapêutica para os
residentes.
Os mesmos grupos que foram utilizados para análise da primeira entrevista puderam ser
mantidos na análise da segunda entrevista. Em relação ao zelo apostólico, concluímos que o
trabalho não sugere que tenha havido regressão do zelo apostólico para os residentes que se
encontram no primeiro grupo. Ao contrário, o mais provável é que não tenham ocorrido
modificações sobre o zelo apostólico. Sendo mais reativo aos adultos, as mães e suas queixas,
o grupo era pouco reflexivo sobre as questões subjetivas. Havia mais espaço para a queixa
direcionada às mães e para a resolução objetiva dos problemas do que para a reflexão e a
autocrítica. No entanto, esse grupo não deixou de fazer uma reflexão mais profunda sobre a
prática e sobre o zelo apostólico. Todos concordaram que a intervenção os levou a uma
reflexão sobre a prática. São médicos em formação e fizeram apenas um primeiro contato com
muitas das questões levantadas. É possível que os obstáculos que a vida profissional traga
obrigue-os a buscar novos lugares para reflexão. Para esse grupo essa reflexão leva, num
140
primeiro momento, à inibição e contenção do zelo apostólico. Os residentes pareceram mais
atentos e constrangidos ao perceberem quanto são intolerantes com as mães e suas demandas.
Esse constrangimento é uma primeira tomada de consciência, mas não deve se esperar que
essa reflexão por si só gere mudanças. Ao contrário, pode ocasionar também revolta com o
preceptor que vem mostrar “defeitos” e que os torna menos livres e mais constrangidos em
suas práticas. Não é incomum que muitos terminem por se opor aos métodos que trabalham a
subjetividade (SMITH e ANANDARAJAH, 2007; BALINT, 2005). Um deles demonstrou
essa revolta ao dizer que queria fazer medicina e não psicologia. Portanto, o mais provável é
que a intervenção, que é uma reflexão crítica sobre a prática, gere sentimentos contraditórios
em muitos residentes.
Para o segundo grupo a situação foi diferente. Os residentes que compunham esse grupo
tinham mais prazer nas atividades de ambulatório e eram mais próximos e mais tolerantes
com as mães. O grupo era, portanto, mais tolerante e reflexivo. Uma das residentes
aprofundou de maneira surpreendente as suas reflexões sobre a prática. Antes do início do
setor achava que a experiência em nada acrescentaria, pois ela já pensava muito sobre a sua
conduta no ambulatório e julgava-se irrepreensível, diferente de outros colegas que não
gostavam do ambulatório. Embora também manifestasse um desconforto em lidar com os
adultos, ela havia se mostrado mais reflexiva ao admitir que o desconforto poderia ser uma
problema com ela e não com os adultos. Da mesma maneira que essa residente, muitos
partiram de posições mais reflexivas e menos reativas. Essa médica, por exemplo, pode
constatar que o seu zelo apostólico se expressava exatamente por “fazer tudo certinho”, como
dizia. Ela era dócil e cordata, mas percebeu que isso era parte de suas defesas, pois tinha
dificuldades em se apresentar de forma mais pessoal nas consultas. Outro residente ficou
impactado por compreender que havia uma base teórica para a compreensão dos aspectos
subjetivos. Abriu-se um mundo que desconhecia sobre a relação mãe-bebê e sobre a culpa das
mães. Essa instrumentalização trouxe uma nova compreensão sobre a sua prática de pediatra.
Esses residentes não ilustraram essas reflexões com relato de casos para que pudéssemos
constatar as mudanças em seus atendimentos.
Houve, ainda assim, uma residente que ao descrever os seus atendimentos nos permitiu
acompanhar com mais clareza as mudanças em sua prática. Ela descreve um atendimento em
que a mãe e a filha vêm à consulta para falar do sofrimento que estava sendo a morte do
esposo e pai da menina. A residente se dá conta que o motivo da consulta nada tinha a ver
com doenças orgânicas. Ela mesmo já havia mencionado que em outras ocasiões, mesmo
141
sabendo que as queixas não se referiam a doenças no corpo, não conseguia abrir mão de fazer
o exame físico e cumprir os protocolos do pediatra. Após a experiência no setor ela
experimenta fazer diferente. Ela larga os instrumentos médicos que, no caso, serviam como
zelo apostólico, e apenas ouve a mãe e a filha. Esse relato nos dá a nítida sensação que a
médica compreendeu de maneira profunda – ela nada sabe sobre a teoria – o que seria deixar a
condução da consulta para o paciente. A médica não encaminha, ao menos no primeiro
momento, mãe e filha para o setor de psicologia e marca uma consulta de revisão com ela
própria. Assim, ela se deixa ser “usada” pela mãe e filha sem precisar curar o sofrimento da
família.
6.4 OS LIMITES DA PESQUISA
Há uma limitação pelo fato do trabalho com os residentes ter sido realizado em apenas
um mes. Ainda assim, devemos levar em conta que para a ocorrência de “insights” mutativos
e para o “flash” o fator tempo não seria importante. Winnicott demonstrou isso em vários
casos tratados em uma, duas ou três sessões durante a segunda guerra quando os
deslocamentos eram dificílimos (LINS, 2006). Mesmo assim, o tempo no setor não permitiu
acompanhar o seguimento dos pacientes e trabalhar a relação médico-paciente em uma
relação transferencial mais duradoura. O fato de serem médicos jovens também deve ter
dificultado. Os médicos mais experientes podem suportar melhor abrir mão da investigação
orgânica e com isso podem manter o foco na relação transferencial. No entanto, temos que
reconhecer que quando se consegue uma boa relação entre preceptor e o residente muita coisa
pode acontecer em muito pouco tempo. O mais provável é que, se tivéssemos mais tempo, um
trabalho mais aprofundado teria sido alcançado com alguns. Entretanto, como já
mencionamos, não temos a ilusão que com mais tempo outros teriam se afastado ainda mais,
como ocorreu com Balint em todas as experiências similares (SMITH e ANANDARAJAH,
2007). O trabalho com a subjetividade terá sempre que lidar com fortes resistências.
Quanto aos possíveis transtornos que foram causados com os residentes, não cremos
que houve qualquer situação que nos tenha preocupado ou que tenha sido relatado pelos
residentes. A contratransferência do preceptor, sem dúvida, cria afastamento e atrapalha o
melhor aproveitamento do rodízio por parte do residente. Porém, a preocupação é não
transformar a relação profissional em relação terapêutica, uma vez que não é autorizada pela
coordenação do programa e nem pelo residente. Isso não ocorreu. Os desentendimentos não
142
preocupam e demonstram a ansiedade em acertar e corrigir. Nada mais que isso. Os excessos
devem, entretanto, ser corrigidos para um melhor aproveitamento do residente.
6.5 RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE E A RELAÇÃO ENTRE
PSICANÁLISE E MEDICINA HOJE
Todas essas experiências nos ajudaram a refletir sobre o que aconteceu com o legado de
Balint. A década de cinquenta tinha sido muito profícua na compreensão dos padrões
defensivos que os médicos utilizavam. As pesquisas passariam por um período de crise na
década de sessenta, pois reconhecer os padrões defensivos era bem mais simples do que fazer
com que os médicos mudassem esses padrões. Os embates e as resistências foram enormes
gerando dissensões e afastamentos. Apenas no final da década, em 1968, é que começam as
pesquisas sobre o “flash”. Dois anos depois Balint morre e as pesquisas que envolvem a ideia
da psicologia a dois se encerram.
Balint deixa portanto um legado completo calcado na contratransferência. É o trabalho
dos grupos em que as emoções são discutidas e a contratransferência é reconhecida pelos
participantes do grupo. Esse trabalho tem sido bem aceito entre os médicos. Porém, o objetivo
que ele queria alcançar – uma “limitada, embora considerável, transformação da
personalidade profissional do médico” – não pode ser atingido sem que se dê prosseguimento
ao trabalho voltado para a transferência, que ele deixou incompleto e que não foi
compreendido de forma plena por aqueles que difundem hoje o movimento Balint.
Mais uma vez temos que lançar mão de nossas interpretações, pois Balint não realizou
um registro de seus pensamentos teóricos em relação ao trabalho como os médicos. Os seus
trabalhos teóricos em psicanálise que foram organizados no livro The basic fault, publicado
em 1968, mostram com clareza o seu pensamento e certamente estão na base de suas
pesquisas com os médicos. No entanto, essas pesquisas não eram um trabalho clínico de
psicanálise, mas uma aplicação da psicanálise para um grupo que não estava em análise.
Nesse sentido, teria sido interessante que o próprio autor tivesse explicado melhor as
dificuldades conceituais pelas quais passou ao longo de suas pesquisas. Porém, ele não o fez.
Se por um lado isso trouxe dificuldades, é possível que ao não vincular a prática dos grupos a
teorias alheias à medicina, Balint tenha facilitado a aceitação de seu trabalho pelos médicos.
Eles abraçaram os grupos Balint, mas nunca abraçaram nem a teoria psicanalítica e nem o
143
psicanalista. Os grupos Balint vêm perdendo cada vez mais a sua filiação com a psicanálise.
Atualmente, defende-se que a base de sua prática seja o modelo das dinâmicas de grupo da
Harvard Business School como propõe Alan Johnson (2009).
O livro de John Salinsky e Paul Sackin, What are you feeling, doctor? (2000) fornece
alguns elementos desse caminho que tomou o movimento Balint após a década de setenta. O
livro é o resultado de um trabalho árduo e corajoso. Dez experientes médicos de família se
reuniram durante cinco anos e buscaram nas discussões de casos conhecer os seu padrões de
defesa. O material do trabalho é muito rico. São apresentações de casos como o que aparecem
no livro inaugural de Balint. Há uma farta documentação de que as defesas utilizadas pelos
médicos e que impediam uma posição empática com seus pacientes estava relacionada às
experiências pessoais dolorosas que nada tinham a ver com os pacientes.
Apenas para ilustrar, em um dos casos o médico atende uma senhora surda que deixa
cair o seu aparelho de audição que se desmonta em várias partes. O médico fica irritado e
acaba gritando com a idosa. Ao final da discussão, o profissional lembra de quanto se irritava
com a sua própria mãe que era surda. Um outro caso trata de um médico que dá alta para uma
paciente com um quadro clínico indefinido. Embora a irmã da paciente insistisse com o
médico que ela não deveria sair do hospital, o profissional não consegue atender aos apelos da
parente. Na discussão com o grupo fica claro que a angústia da irmã era justificada, pois havia
riscos da paciente cometer suicídio. Só então o médico se lembra que quando era pequeno a
sua avó havia se suicidado. O trauma infantil não permitira que o médico antevisse o caso
com a clareza necessária.
Ainda em outro caso, uma moça é atendida após ter levado um soco no nariz desferido
pelo namorado. O médico tem empatia pela paciente. Ao longo da consulta, ela conta que o
namorado havia se irritado e desferido o golpe após a paciente contar que era portadora do
HIV. Embora a paciente tivesse dito que tinha usado preservativo, o médico toma as dores do
namorado e já não pode manter a empatia com a moça e passa a atacá-la. No decorrer das
discussões em grupo ele faz uma conexão com sua vida pessoal: recentemente havia sido
traído pela própria esposa (COURTENAY. In SALINSKY e SACKIN, 2000, p. 85-93).
Assim, foi possível chegar em muitos casos aos motivos profundos das reações
contratransferenciais. Podemos dizer que nada poderia ser mais freudiano: uma reação
defensiva contra uma vivência dolorosa inconsciente. Ainda assim, escreve o autor: “Talvez
devêssemos começar esclarecendo que essas defesas não são defesas no sentido psicanalítico.
São ‘padrões de evitamento’ que podem muito bem ter uma base no self da pessoa do médico,
144
mas não necessariamente” (COURTENAY. In SALINSKY e SACKIN, 2000, p. 86, tradução
nossa). Por que não serviria a teoria psicanalista não é esclarecido pelo autor. Não se trata
apenas de exigência do reconhecimento autoral; perde-se o eixo teórico sem que outro seja
colocado como referência. As consequências são a elaboração de um conjunto de sinais de
alerta para os quais os médicos deveriam estar atentos em si mesmos para evitar os padrões
defensivos automáticos no atendimento aos pacientes. Eles elencam esses sinais: ansiedade,
sentimento de irritabilidade, preocupação com o tempo, afastamento e indiferença, frieza e
desprezo, raiva, cuidado em não ofender, exagero no uso do modelo biomédico,
comportamento apostólico, educação de saúde, aprisionamento aos protocolos, forte
identificação (SALINSKY e SACKIN, 2000, p. 131-2).
Sobre a relevância da presença do psicanalista para o grupo o autor escreve:
Um membro disse que lamentava que o grupo não tivesse um psicanalista como um
dos líderes. Senti-me incomodado com isso. Eu não sabia o que um psicanalista
diria. Será que ele encontraria coisas flagrantes que nós nem pensamos? Teria sido
bom ter essa parte (transferência) observada por alguém que está acostumado a
lidar com esses assuntos. Quando eu coloquei essa questão para outros membros do
grupo, o consenso foi que com um psicanalista o grupo teria sido diferente e talvez
fosse incapaz de alcançar o tipo de coisas que alcançou. Teria sido interessante, mas
teria sido um grupo diferente (SALINSKY e SACKIN, 2000, p. 123-4).
Isso é tudo que os autores têm a dizer sobre a questão do psicanalista. Não há qualquer
discussão teórica. O modelo é a decisão do grupo e o grupo achou que foi vantajoso a
ausência do profissional, embora houvesse controvérsias.
O alijamento do psicanalista e da psicanálise não é exclusivo do movimento Balint atual,
mas parece ser uma constante nos autores médicos que trabalham com a subjetividade e a
relação médico-paciente. Esse fenômeno pode ser observado também na obra de um
reconhecido pesquisador como Arthur Kleinman. Esse pesquisador é médico, psiquiatra e
antropólogo e atuante em várias áreas distintas da medicina e nos interessará abordar as suas
contribuições na compreensão e manejo da doença crônica.
A doença crônica é aquela que não pode ser curada. Traz, portanto, um desafio não só
para o paciente, mas também para o médico e para a relação médico-paciente. Um não se
livrará mais do outro. Terão que conviver, a doença, o paciente e o médico. Em seu livro The
illness narratives, Kleinman (1988) inicia a sua abordagem sobre a doença crônica
conceituando à sua maneira três termos: illness, disease e sickness.
Illness é definido como o conjunto de limitações e sofrimentos vividos pelo paciente.
Estão aí contidos: 1. Os sofrimentos impostos pela doença, por exemplo, não poder subir
escada ou a dor lombar que impede o indivíduo de permanecer sentado por um tempo maior.
145
2. Os sofrimentos impostos pelo tratamento, por exemplo, as dietas, as visitas aos médicos e
terapeutas que interferem nas agendas. 3. Os constrangimentos e estigmas que essa condição
impõe para a pessoa. Por illness compreende-se também que cada um, cada família, busca
estratégias socialmente concebidas e aceitas para lidar com esses sofrimentos. Há, portanto,
um comportamento socialmente esperado para o doente e sua família.
Disease é a tradução que essa condição tem dentro do discurso científico médico. Ou
seja, é a redução dessa condição pela visão isolada de sua estrutura biológica. Há ainda um
terceiro conceito, sickness, que corresponde ao lugar que essa doença ocupa no contexto
social e econômico. Essa posição é conhecida e compartilhada não só por médicos, mas pelo
conjunto da sociedade. Por exemplo, que o câncer de pulmão está associado ao tabagismo ou
que a doença coronariana está associada ao sedentarismo.
Como aponta o autor, enquanto o paciente vem ao médico trazendo a illness, ou seja,
todos os sofrimentos, estratégias e a maneira como ele e a família se comportam diante de sua
condição, o médico está preparado apenas para cuidar da disease. Para que se possa entender
esse conflito em toda a sua extensão deve-se levar em conta as oscilações entre sérios
agravamentos e períodos de grande alívio pelos quais passa o doente crônico.
Até agora um corpo muito substancial de resultados indica que os fatores psicológicos e
sociais são, muitas vezes, os determinantes das oscilações em direção à exacerbação
(KLEINMAN, 1988, p. 7).
Da mesma maneira, os períodos de acalmia estão associados aos fatores positivos que
ocorrem nas condições psicológicas e sociais dos pacientes. Esses fatores atuam ao mesmo
tempo em que o médico age sobre os fatores biológicos envolvidos no sofrimento do paciente.
Que fatores levaram o paciente ao período de melhora de seu sofrimento? Kleinman (1988)
chama a atenção que como nunca se pode ter certeza que não são os fatores biológicos os
responsáveis pelo agravamento da condição dos pacientes, os fatores psicossociais tendem a
ser ignorados mesmo quando estão obviamente relacionados às oscilações da enfermidade. O
resultado dessa negação é o agravamento das enfermidades e uma sensação que não há nada a
fazer:
O resultado é a negação conjunta (médico, paciente e família) de que a doença
crônica é tão influenciada - uma cumplicidade fatal que na minha experiência se
correlaciona com o pessimismo e a passividade. Não é de modo algum
surpreendente que o efeito é o agravamento do resultado17
(KLEINMAN, 1988, p.
8).
17 Todas as traduções do livro de Kleinman foram de nossa autoria.
146
Como expresso pelo título do livro, The illness narrative, o autor considera que a
doença, os sintomas, os relatos dos sintomas, as exacerbações e acalmias são narrativas que
precisam ser adequadamente interpretadas para se chegar a um cuidado mais eficaz. Os
sintomas são construções inseridas em um determinado contexto cultural e podem expressar
uma disfunção biológica ou outro tipo de sofrimento. Seja ele orgânico ou psíquico, o
sofrimento é uma experiência de desamparo pessoal que necessita encontrar um acolhimento
socialmente acordado e estabelecido. O paciente pode buscar esse amparo social na ciência,
em algum saber popular, em um encontro espiritual ou combiná-los como bem lhe aprouver.
Kleinman (1988) faz uma severa crítica à biomedicina que aposta sempre na disfunção
orgânica como única maneira de interpretar o sofrimento, e se recusa a aceitar o ato médico
em sua ampla dimensão social.
A partir dessas premissas, o autor formula uma nova abordagem em que a illness receba
a mesma valorização que recebe a disease. Assim como Balint, Kleinman se preocupa com a
hierarquização do sofrimento. Os sofrimentos da disease são importantes para o médico,
enquanto lidar com a illness desvalorizaria o profissional. A preocupação do autor é a mesma
de Balint e, finalmente, Kleinman apresenta o zelo apostólico de uma maneira própria e
elegante.
Os caminhos seguidos pelo autor para ajudar o médico a abrir espaço para lidar com a
illness não é muito diferente do que foi tentado por Balint, apenas ele se utiliza de sua
experiência na área de antropologia. Parte, à semelhança das pesquisas etnográficas, de três
polos essenciais: a escuta empática, tradução e interpretação (KLEINMAN, 1988, p. 228).
Uma entrevista, que o autor chamou de entrevista mini-etnográfica, é realizada a partir de
uma escuta empática. Isto quer dizer que o entrevistador (médico) busca se colocar “nos
sapatos” do outro (paciente), esforçando-se por compreender o comportamento desse
indivíduo frente à sua doença. A interpretação é alcançada a partir do interesse do médico em
conhecer as experiências vividas pelo paciente sem, entretanto, perder uma perspectiva
pessoal do que está se passando com o paciente, assim como realiza o etnógrafo. A
interpretação se beneficia do fato do etnógrafo ter um pé na cultura que ele está estudando e
um pé fora dela (KLEINMAN, 1988, p. 231).
A partir do conhecimento que o médico adquire sobre o que vive o paciente, ele será
capaz de interpretar a simbologia dos sintomas, os distúrbios de origens culturais, a
importância das questões pessoais e interpessoais e as elaborações explicativas dos pacientes
e da família sobre o que se passa com o paciente.
147
Finalmente, o paciente e/ou a família realiza uma breve história de vida a partir da
doença ressaltando o que se manteve e o que se modificou na personalidade do paciente,
principais objetivos que deseja alcançar e obstáculos previstos. De posse das informações que
se referem à história de vida como contada pelo paciente, o médico está apto a tomar atitudes
que possam fazer sentido para o paciente e não apenas para os aspectos biológicos da doença.
Mais à frente, Kleinman (1988) faz uma crítica à psicanálise, mas mantém com ela uma
relação ambígua. O autor mostra que os conhecimentos da psicanálise são muitas vezes úteis e
ajudam a solucionar casos difíceis como mostra o relato a seguir:
A abordagem estreita da psicanálise na interpretação dos significados da illness se
transformou em um caminho extremamente difícil de seguir, uma linha tortuosa, que,
com toda a sua fascinação e promessa, leva a uma beco sem saída de especulação e
de ausência de pesquisa. Em alguns casos de conversão clássica, entretanto, os
significados inaceitáveis dos conflitos mais profundos podem se materializar como
sintomas simbólicos, cujo desaparecimento pode ser provocado pela expressão de
um sentimento profundo ou por manipulação simbólica do conflito inconsciente. A
partir daí o insight original continua a intrigar e provocar. Por exemplo, eu avaliei
uma vez um paciente com paralisia aguda das pernas (paraplegia), que a suspeita do
neurologista era de conversão, pois o exame neurológico não mostrava uma
patologia clara; o paciente havia sido visto previamente em boa saúde. Durante a
nossa entrevista o paciente, um homem vulnerável em seus vinte e tantos anos, que
estava obviamente nos estertores de um grande conflito neurótico, revelou que ele
estava num impasse em um batalha sem vencedores com seu pai. O pai insistia para
que ele tomasse conta dos negócios da família e terminantemente se recusava a
considerar o pungente pedido de seu filho que ele fosse autorizado a seguir a carreira
de artista plástico e escultor. O paciente rompeu em lágrimas quando ele contou a
atitude autoritária e insensível de seu pai e seu próprio medo que o seu pai o fizesse
renunciar seus sonhos. Após lamentar que seu pai visse seus interesses artísticos
como bobos e afeminados e sempre tê-lo criticado por seu comportamento “afetado
e afeminado”, o paciente começou a refazer toda uma vida de relações frustrantes
com sua família tirânica que aterrorizava o paciente desde a infância. ‘Eu nunca fui
capaz de fincar os, fincar os, fincar os dois pés diante do meu, do meu pai,’ ele
gaguejou. Momentos depois, quase tão súbito quanto veio, sua paralisia começou a
desaparecer. Obviamente em meia hora estava totalmente desaparecida, sem
qualquer sequela física (KLEINMAN, 1988, p. 40-1).
O autor escreve que a psicanálise oferece uma visão reducionista e que propõe um
caminho de busca labiríntica e distante da realidade do paciente. Uma crítica semelhante a que
ele faz à própria medicina. No entanto, enquanto em relação à medicina o autor faz uma
crítica à prática, mas preserva a sua base teórica, em relação à psicanálise a sua posição é
outra. Como a prática é muitas vezes limitada, joga-se por terra também a base teórica de que
ele mesmo se utiliza, como no caso que foi descrito acima, tratado por Kleinman. Esse parece
ser um processo semelhante ao que ocorre com os atuais grupos Balint.
Faz-nos lembrar o que aconteceu na época da implantação da Igreja. Aceita-se São
Jorge e aceita-se o dragão, mas não se aceita a mitologia.
148
6.6 UM CAMINHO PARA AS PESQUISAS BALINTIANAS
Não foi sem razão que Balint continuou empenhado em suas pesquisas e não se
contentou com o que havia alcançado. Embora revolucionários, os grupos não tinham trazido
todas as respostas. O foco unicamente voltado para a contratransferência não havia alcançado
as modificações desejáveis. Os médicos não abriam mão tão facilmente das respostas
automáticas. O “flash” – um clarão que ocorre na relação entre médicos e pacientes durante a
consulta – era um evento raro e pouco confiável, porém indicava novas concepções teóricas
de onde poderiam aparecer as respostas. Parece-nos que essas respostas podem vir do
conceito psicanalítico relacionado ao uso do objeto. Não se trata apenas de tolerar ou não as
queixas da mãe, mas de permitir que ela experimente a sua ira em relação ao bebê que aparece
no consultório pediátrico sob a forma de queixas. Ao tentar se livrar das queixas, seja
rejeitando a mãe ou tentando consertar as queixas, o pediatra dificulta o apaziguamento
interno da mãe que é necessário para dar continuidade à maternagem. Uma outra maneira de
colocar a questão seria dizer que os médicos precisam suportar a transferência negativa. A
partir da sobrevivência subjetiva do médico é que a mãe poderá se reorganizar psiquicamente.
Sem a sombra de seu próprio ódio ela saberá como cuidar de seu bebê. Ao pediatra caberá se
deixar ser usado pela mãe comum.
A pesquisa mostrou também as dificuldades que teve o grupo em diferenciar a mãe
comum que falha da mãe negligente. Em outras palavras, a dificuldade de separar as fantasias
de ódio de uma atuação que pode prejudicar a criança. Parece necessário um trabalho sobre a
ambiguidade das mães (e dos médicos) no cuidado. As fantasias de ódio são inerentes ao
cuidado, mas não é por isso que as crianças estão em risco. É por esse motivo que as canções
de ninar devem ser politicamente incorretas. É necessário um lugar socialmente aceito de
alívio para as angústias e para o ódio. Ao cantar Boi da cara preta a mãe se alivia de seu ódio
enquanto passa uma melodia serena para a criança. É o que ela tenta fazer na relação médico-
paciente: passa o discurso odioso para o médico para acalentar e cuidar da criança à noite. Os
cuidados efetivos devem ser avaliados pelo médico, não apenas os discursos.
7 CONCLUSÃO
Um estudo antropológico realizado em CTI de adultos por Menezes (2000) verificou
que os médicos tinham em relação aos pacientes internados um comportamento moralizador.
149
Os médicos separavam os pacientes em “bonzinhos” e “rebeldes”. A empatia dos médicos
com os pacientes variava de acordo com a aceitação por parte desses últimos aos tratamentos
propostos. O que há em comum entre um CTI de adultos e um ambulatório de puericultura? A
resposta poderia ser: o médico e a sua necessidade de que as suas prescrições sejam atendidas
pelo enfermo. Enfim, o zelo apostólico se apresenta da mesma forma nos mais variados tipos
de encontro entre médico e paciente. A presente pesquisa constatou que a ansiedade
despertada nos profissionais da área pediátrica quando as mães não cumpriam as prescrições,
mesmo se tratando de medicações profiláticas, em nada diferia das ansiedades vividas pelos
médicos em um CTI de adultos.
Além disso, a pesquisa sugere que a origem desse zelo apostólico não surge com a
formação médica. As idealizações positivas e negativas sobre as mães, pais, maternidade e
bebês já estão presentes nos profissionais desde o início da formação e fizeram parte das
próprias escolhas profissionais e da especialidade. As idealizações, assim como a onipotência,
fazem parte das defesas primitivas contra as angústias arcaicas (BARANGER, 1999). Seria
muito difícil melhorar a relação empática do médico com seus pacientes e aproximá-lo da
família sem um trabalho sobre as angústias que a enfermidade faz eclodir tanto nos pacientes
como no médico. A necessidade que sentem os profissionais em curar não apenas as doenças,
mas de estancar todas as queixas de seus pacientes são expressões dessas angústias.
Chamou a atenção as dificuldades que os médicos tiveram em aceitar as falhas das mães
que cuidam de seus filhos de maneira bastante satisfatória. Havia, muitas vezes, uma
vigilância obsessiva na maneira das mães cuidarem de seus filhos. Por outro lado, houve
muito pouca atenção ao prazer que a mãe tem em cuidar deles. A atenção quase
exclusivamente voltada para as doenças e prevenções de doenças, associadas às idealizações
das mães, levaram a um posição do médico por vezes persecutória com as mães. Havia mais
preocupação por parte dos pediatras com as falhas do que com os acertos. A busca incessante
pela minimização de riscos como é exercida a medicina hoje pode exacerbar ainda mais a
culpa inconsciente das mães.
Por outro lado, os residentes tiveram dificuldade em reconhecer as mães que de fato
falhavam a ponto de comprometer o desenvolvimento da criança ou colocá-la em riscos
desnecessário. Com o foco nas doenças e sem a preocupação em identificar o prazer que as
mães têm com seus filhos e a capacidade de manter viva a vida conjugal, os pediatras não
conseguem separar as crianças que estão em risco em seus próprios lares daquelas que não
estão.
150
Vimos que o interesse pelos acontecimentos do dia a dia da família pode ajudar a
esclarecer a origem dos eventos clínicos nas crianças. Portanto, um interesse pela vida
familiar é fundamental para um diagnóstico situacional da criança e para a compreensão de
suas manifestações clínicas. Entretanto isso é raramente colocado em prática pelos
profissionais. Para se conhecer a dinâmica da família não é preciso fazer perguntas e obter
respostas, mas é necessário que o médico possa estar em uma relação empática com a mãe e a
criança. Se há espaço para o encontro prazeroso entre pais e filhos, e se há um lugar de
alteridade entre os membros da família, o mais provável é que a criança encontra-se em um
ambiente favorável para alcançar um desenvolvimento saudável. Não bastam o
monitoramento apenas dos cuidados médicos dispensados à criança.
Concluímos que para se alcançar uma precisão no diagnóstico e nas condutas prescritas
são necessários, além de um conhecimento técnico, uma experiência empática com a mãe e a
criança. Há um conhecimento sensível que não pode ser alcançado apenas com a técnica. Essa
experiência de empatia pode ser aprimorada pelo trabalho de elaboração do zelo apostólico,
expressão das angústias arcaicas.
Podemos dividir o zelo apostólico em dois níveis distintos. As exigências excessivas
sobre as mães, assim como a infantilização das mães, representam um nível mais superficial
do zelo apostólico. Em um segundo nível estaria a impossibilidade do médico de se deixar
“ser usado” em uma relação transferencial mais profunda. O desejável seria que os residentes
pudessem compreender o zelo apostólico em suas várias dimensões.
O trabalho individual usando os princípios balintianos e tendo como base a teoria de
desenvolvimento de Winnicott ajudou os residentes da área de pediatria a refletir sobre o zelo
apostólico e sobre a relação empática em suas práticas.
151
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