Storytelling: Histórias que deixam marcas · storytelling uma questão de fundamental...

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1ªedição

RiodeJaneiro|2015

15-19918

CIP-BRASIL.CATALOGAÇÃONAFONTESINDICATONACIONALDOSEDITORESDELIVROS,RJ

X32s

Xavier,Adilson,1955-Storytelling[recursoeletrônico]/AdilsonXavier.-1.ed.-RiodeJaneiro:BestSeller,2015.recursodigital

Formato:epubRequisitosdosistema:adobedigitaleditionsMododeacesso:worldwidewebIncluibibliografiaISBN978-85-7684-903-2(recursoeletrônico)

1.Publicidade.2.Livroseletrônicos.I.Título.

CDD:659CDU:659

TextorevisadosegundoonovoAcordoOrtográficodaLínguaPortuguesa.

StorytellingCopyright©2015byAdilsonXavier

Capa:IgorCamposEditoraçãoeletrônicadaversãoimpressa:IlustrarteDesign

Todososdireitosreservados.Proibidaareprodução,notodoouemparte,semautorizaçãopréviaporescritodaeditora,sejamquaisforemosmeiosempregados.

DireitosexclusivosdepublicaçãoemlínguaportuguesaparaoBrasilreservadospelaEDITORABESTBUSINESSumselodaEDITORABESTSELLERLTDA.

RuaArgentina,171,parte,SãoCristóvãoRiodeJaneiro,RJ—20921-380

ProduzidonoBrasil

ISBN978-85-7684-903-2

SejaumleitorpreferencialRecord.Cadastre-seerecebainformaçõessobrenossos

lançamentosenossaspromoções.

“Serumapessoaéterumahistóriaparacontar.”

IsakDinesen

Sumário

OFIODAMEADA:Trêsdefiniçõesoriginaisdestorytelling,eumaimportadaPorqueessahistóriatodaagora?

ParteIUMABREVEHISTÓRIADAHISTÓRIA

Capítulo1:DUASTORRESTorredeBabel—VersãobíblicadaglobalizaçãoFranzKafka—BabelemversãoestendidaOqueessastrêshistóriastêmemcomum?

Capítulo2:HISTÓRIASQUENOSEXPLICAMOQUESOMOS

Capítulo3:MESTRESDOSTORYTELLINGLegiãodesuper-heróisConexãoCaminho

Capítulo4:NASPROFUNDEZASDAHISTÓRIADuashistóriasfictícias,duasguerrasdeverdadeSemhistória,semvida

Capítulo5:REALIDADEXFICÇÃO—Ondeestáaverdade?ImaginaçãoefantasiaRealidadesconsistentesEstidadeeplausibilidade

Capítulo6:QUALIDADEARQUETÍPICANarratologiaOsarquétipos

Capítulo7:ESTRUTURANDOAHISTÓRIAIdeia

NarrativaéonomedojogoObjetododesejoTransformaçãoTempoUmaquestãoderitmoConflito—OpoderdosvilõesDilema,escolhaoseuVamosporpartesFórmulasOsmuitosmeiosdesecontarumahistória

Capítulo8:UMMUNDOCOMBILHÕESDEPROTAGONISTASLinhadotempo

Capítulo9:SIGNIFICADO

ParteIIMARCASQUECONTAM

Capítulo10:CADAMARCAQUECONTEASUA

Capítulo11:UMALIVRARIAÀBEIRADOSENA

Capítulo12:PEQUENOSGRANDESMUNDOS

Capítulo13:TEMÁTICOS

Capítulo14:DISNEY—Simplescomodesenharumrato

Capítulo15:APPLE—OpoderdatentaçãoNasceumíconeMacintoshOvilãoDeixandodeserDavi,fugindodeserGolias

Capítulo16:NIKE—Treinar,competir,vencerUmaideiaqueveiocorrendoProtagonistasVilãoParceriadealtaperformancePoliticamenteincorretoUmahistóriaquesealimentadedesafio

Capítulo17:COCA-COLA—FelicidadedentrodeumagarrafaAmisteriosafórmulaAcreditandoemPapaiNoelAmigosursos

EstadodaarteOantagonistaDiscursosborbulhantesHappinessFactoryOnipresença

Capítulo18:JOHNNIEWALKER—Sobamesmadireção

Capítulo19:REDBULL—Tourovermelho,OK.Masvoador?EscapandodospadrõesMúsicaenergizada,filmesegameseletrizantesStratosDequenegócioestamosfalando,afinal?

Capítulo20:HAVAIANAS—Rasteirinha,masdesaltoalto

Capítulo21:DIESEL—MovidaaideiasalternativasForsuccessfullivingEaprovocaçãoviroufilosofia.

Capítulo22:VEÍCULOS—Porondetêmandado?FordeGeneralMotorsVolkswagenFiatBMW,MercedeseoutrosluxosSobreduasrodas,umfenômeno

Capítulo23:QUANDOOPRODUTOÉAHISTÓRIA

ParteIIIHISTÓRIAQUENÃOACABAMAIS

Capítulo24:HISTÓRIASCRUZADAS:EU,VOCÊENOSSASMARCAS

Capítulo25:TRANSMÍDIASTORYTELLINGSuahistóriaémúsicaBingBangCriaçãodeuniversos

Capítulo26:GAMIFICAÇÃO

Capítulo27:IGREJACATÓLICAAPOSTÓLICATRANSMIDIÁTICAROMANAPelasruas,páginasetelasCidadesemaiscidades,atéumEstadototalmenteseuTudoapartirdeumlivroMarcaspregadoras

Capítulo28:TELLERS,BUILDERSEDOERS

Capítulo29:PRÓXIMOSCAPÍTULOS

BIBLIOGRAFIA

OFIODAMEADA

Trêsdefiniçõesoriginaisdestorytelling,eumaimportada

Nãogostodedefinições.Queromelivraroquantoantesdosconceitosedaperigosacargade “palavra final” a queum trabalho como esteme expõe. E sóme atrevo a começar olivropor este capítulo, como riscode afugentar o leitor, porque reconheço quedefinirlogoo temacentralnospoupademuitosdesencontros enosdá a relativa segurançadeumGPSquandovisitamosterritóriodesconhecido.

Parainíciodeconversa,nãotenhoumpontodevistaclarosobreoquesejastorytelling.Tenho três. Esboçados, refletidos e esculpidos com atenção mais artesanal do queacadêmica.

Aívãoeles.Bomproveito!

Definiçãopragmática:Storytelling é a tecnarte de elaborar e encadear cenas, dando-lhes um sentidoenvolventequecapteaatençãodaspessoaseensejeaassimilaçãodeumaideiacentral.

Definiçãopictórica:Storytelling é a tecnartedemoldar e juntar aspeçasdeumquebra-cabeça, formandoumquadromemorável.

Definiçãopoética:Storytelling é a tecnarte de empilhar tijolos narrativos, construindo monumentosimagináriosrepletosdesignificado.

Reparequeumamesmapalavrahíbridaaparecenastrêsdefinições.Équeentendoserinevitável amistura de técnica com arte quando lidamos com histórias. O que nãomeimpededeaplaudiropiniõesdiferentes,comoadoespanholAntonioNúñez,que,emseulivro ¡Será mejor que lo cuentes!, define storytelling como “uma ferramenta decomunicação estruturada em uma sequência de acontecimentos que apelam a nossossentidoseemoções”.Acrescentandologoemseguidaqueessaferramenta,“aoexporumconflito, revela uma verdade que aporta sentido a nossas vidas”. Sem dúvida, umaconceituaçãobrilhante.

Quatro opções: três definindo storytelling como tecnarte, uma definindo comoferramenta.Escolhaaquelhesoarmelhoresigaemfrente.Setudocorrerbem,aofinaldolivrovocêteráelementosparaformularsuaprópriadefinição,eprovavelmenteestaráconvencidodequeninguémprecisadedefiniçõesparaserumbomcontadordehistórias.

Porqueessahistóriatodaagora?

Junho de 2014. Copa do Mundo acontecendo no Brasil. Festival Internacional deCriatividadeacontecendoemCannes.Emboraaindapredominantementefrequentadopelomundodapropaganda,ofestivalatraicrescentepresençadeempresáriosdeváriossetoresem busca de comunicação mais eficaz e aborda outros tipos de criatividade além daestritamentepublicitária.Comoacontececomcadavezmaisintensidade,ossemináriosedebatesganhamespaçosobreamostracompetitiva.

De que tratam essas apresentações que lotam os auditórios do Palais? Pensou emfutebol,marketingesportivoeassuntosafins?Errou.

Disputando a atenção de milhares de delegados do mundo inteiro, destacam-se ostemas: #Live Storytelling (apresentado em duas sessões diferentes pelo Twitter), MeetTheDisruptors:SpikeJonzeAndGastonLegorburuOnBuildingWorldsWithTechnologyAndStory(apresentadopelaSapientnitro),IsMobileTheFirstAndUltimateStorytellingScreen? (apresentado pela MMA), The Extended Story (apresentado pela The ProjectFactory),StorytellingWithStoryCreators (apresentadopeloTheNewYorkTimes), TheArt Of Storytelling On Youtube, With Dreamworks Animation And Vice Media(apresentadopeloYouTubeemduassessões),ThePowerOfStory(apresentadopelaTimeWarner Inc.), The TruthAboutUniversal Storytelling—HowAndWhyCreative IdeasTravel(apresentadoporMcCannWorldGroupeThePaleyCenterforMedia),CombiningStories, Technology And Cultures: An Experiment In Different Creativity (apresentadopela Party), How To Become A Visual Storyteller (apresentado pelo Tumblr em duassessões),Bands,BrandsAndFans—HowCollaboration IsDrivingMusicCreationAndBrand Storytelling (apresentado pela Moxie). Onze temas tratando de storytelling notítulo,foraosquetambémpassarampeloassuntosemenunciá-lo,comoArt,Copy&CodeCreate The Future Series: CreatingMobile-First Film (apresentado pelo Google) e AlanRusbridger InConversationWithRalphFiennes (apresentadopeloTheGuardian), entre

outros. Concentração bastante expressiva para apenas uma semana de evento em quetantosaspectosdacriatividadeedacomunicaçãodesfilampelaCroisette.

Nãoéporacasoqueamaisantigaformahumanadetrocadeexperiênciastornou-seaquase-novidadeque tanto interesse temdespertadoemgentede tãovariadasprofissões.Criadores e produtores de conteúdo de entretenimento e cultura, profissionais demarketing,depublicidade,devendas,dejornalismo,deensino,depolítica,dequalqueratividade que lide com apresentações de ideias ou projetos de repente percebem nostorytellingumaquestãodefundamentalimportância.Essecliquecoletivo,abruptocomotodo clique que se preza, coincide com omomento em que as narrativas clássicas dãosinais de fragilidade, criando confusão em nossas histórias individuais e consequentescrisesdeidentidade.

Nossocenário,antes restritoapequenas localidades, ficoudo tamanhodomundo.Asfamíliasassumiramconfiguraçõesmúltiplas,deixandodeseroambienteinviolávelondeatuavam os personagens mais importantes. As religiões ou se imediatizam ou perdemterrenoparanecessidadesmaisimediatas,quesemultiplicamalucinadamente,sufocandoas buscas transcendentais. As escolas sofrem para despertar o interesse dos alunos,insistindo em velhas fórmulas que não acompanham a velocidade contemporânea.Profissõesenegóciosdesaparecem,outrossurgem.

As relações de trabalho passam a ter menos envolvimento, menos duração, menossegurança.

As relações afetivas, profissionais, sociais, políticas, ideológicas e espirituais, quehistoricamente deram nitidez ao perfil de cada pessoa, esfumaçaram-se, tornaram-seinstáveis.

Tudo o que era sólido se fragmentou e está virando líquido. Até conceitos comonacionalidade perdem substância quando a globalização espalha as mesmas marcas,modas, hábitos e gostos por todos os cantos do planeta, quando a homogeneização nospriva do prazer de sermos surpreendidos, deixando em nós uma fome ambivalente, deindividualidadeecoletividade.

O clique deflagrador da revitalização do storytelling acontece nomomento em que omundo digital se estabelece definitivamente entre nós, trazendo novas conexões, novasoportunidades de expressão, novos poderes, novas incertezas: uma realidade em quetodossetornamgeradoresdeconteúdoeunidadesdemídiaaomesmotempo.

Diantedeumcomputador, tabletousmartphone,cadaumdenósregistrasuahistóriaviaredessociais,narraoqueestávivendo, testemunhandoouinventando,oquequiser.Milhõesemilhõesdehistóriaslutandoporumlugaraosolnabombardeadamemóriadaspessoas,buscandoserlembradas,admiradas,compartilhadas,multiplicadas.Históriasdeindivíduos,grupos,nomesemarcas,tudomisturado.

Deumahoraparaoutra,passamosa terduasvidas:uma real, outravirtual.E elas seentrelaçaramdetalmaneiraquejánãotemoscertezadoslimitesqueasseparam.Notriodosinstintosbásicosdepreservaçãodaespécie,aconexão(gregarismo)vêampliadasuarelevância ante a sobrevivência e a procriação. Sai de pauta o controle da natalidade,chega com força máxima o descontrole da conectividade, e todos se deliciam com afartura nunca antes experimentada de momentos de comunicação, em uma corrida deregras ainda não claras que, como sempre, só tem lugar no pódio para osmais aptos e

adaptáveis. Apenas um fato parece indiscutível nesse complicado cenário: osmelhorescontadoresdehistóriasvencerão.

Altosebaixos

OQUESOBE OQUEDESCETecnologia AfetividadeOpçõesdeentretenimento TempodisponívelVolumedeinformação CapacidadederetençãoSuperficialidade ProfundidadeExpectativa Atenção

Dentreosmuitosaltosebaixosdavidamoderna,sãoessesosquenosinteressammaisdeperto.Abundânciadeumlado,escassezdooutro—balançadifícildeequilibrar,masque se aproxima do ponto ideal quando agrupamos vários ingredientes no mesmomovimento. Não é difícil imaginar, por exemplo, que tecnologia, entretenimento einformação,sereunidosemummesmopacote,podemfavoreceracaptaçãodeatenção,aotimizaçãodotempo,acapacidadederetençãoeatémesmoaanáliseemprofundidade.Diminuindo a dispersão, aumenta a concentração, o que não chega a ser uma grandenovidade.

Nesseexercícioconcentrador,apenasdoisaspectos,exatamenteosmaisíntimos,ficamde fora: a expectativa em alta e a afetividade em baixa. “Quantomais se tem,mais sequer”, sabemos desde sempre, o que coloca sobre a expectativa alta o peso do seu nãoatingimento:frustração,insatisfação.

Noladodaafetividadebaixa,aconsequênciaésemelhante:frustração,insatisfação.Háuma natural expectativa de afetividade em todos nós, o que acaba juntando essas duaspontas.Nãopor acaso,umaencerra a listados altos enquanto aoutra inicia a listadosbaixos.

Afarturaderecursos,opçõeseinformaçõespareceacelerarumacrescentesensaçãodetédioe aumenta a certezadequenossoproblemaestá longede serquantitativo.Repareque os itens em alta no mundo contemporâneo pertencem mais ao quadranteobjetivo/quantitativo.Portanto, o bom senso recomendaque façamosmelhorusodessesaspectosascendenteseconcentremosesforçosnosaspectosqueestãoembaixa,acomeçarpelaatenção.

Pergunte a um professor qual é seu maior problema no exercício do magistério. Arespostamaisouvidacertamenteseráobinômiodesinteresse/desatenção.

Converse com profissionais que precisam trocar textos com seus colegas de trabalho,qualquerquesejaaatividade,edescubraquequasetodosreclamarãodesuasmensagensnão lidascomadevidaatenção,das respostas recebidasquestionandosobreoque já foiditonamensageminicial,dabaixíssimaprobabilidadedeleituraatéofinaldetextoscommaisdedezlinhas.

Consulte jornalistas, escritores, roteiristas, publicitários, e os relatos de desatençãoserãoassustadores.

AsimplesexistênciadeumaEconomiadaAtenção, popularizada em2001pelo livrode Thomas Davenport e Michael Goldhaber, e antevista por Herbert Simon em 1971,evidencia a gigantesca dimensão do problema. Simon enxergou o óbvio: “O que ainformação consome é a atenção dos seus recipientes, ou seja, a riqueza de informaçãocria umapobrezade atenção.”Desde então, a situação só tem se agravado, levandoumnúmerocadavezmaiordepessoasaconcordarcoma frasedeNicholasNegroponte,doLaboratório de Mídia do MIT: “Não quero quinhentos canais de televisão. Só queroaqueleúnicocanalquemeofereceoquequerover.”

EmMuitoalémdomerchan!,deRaulSantaHelenaeAntonioJorgeAlabyPinheiro,háum parágrafo que, embora dirigido à publicidade, se aplica a todas as áreas ligadas àcomunicaçãoeaoentretenimento:

Sesomarmososfenômenosda‘dispersãodeatenção’eda‘fragmentaçãodaaudiência’,temosdesenhadoumpesadelopara todosnóspublicitárioseprofissionaisdegestãoemarketing. Estes fenômenos somados vêm consolidando a crescente crise de atençãoqueapublicidadevemenfrentandoháalgunsanosdeformacadavezmaisintensa.

Não é preciso ser um grande expert para perceber que todos os itens “em baixa” denossalistaestãointerligadosesão,atécertoponto,interdependentes.Tudocomeçacomatenção, sem a qual o restante se inviabiliza. Se logo após aatenção inserirmos algumgraudeafetividade (ou, se preferirmos, de emoção), estará aberto o caminho para umaidentidademaisprofundaentrecomunicadorepúblico.

Cabe aqui mais uma expressão traduzida para o linguajar econômico dominante emnossosdias:CapitalEmocional.Matematicamente falando,nadamais équeo resultadodasomadapublicidadecomoentretenimento.FoiStevenJ.Heyer,presidentedaCoca-Cola, quem criou a expressão e afirmou, emdiscurso na abertura de evento promovidopelarevistaAdvertisingAge,em2003:“Vamosutilizarumconjuntodediversosrecursosdeentretenimentoparaentrarnoscoraçõesementesdaspessoas.Nessaordem...Vamosnosdeslocarparaideiasquetragamàtonaaemoçãoecriemconexões.”

Completando a aquarela do economês planetário, surge uma outra economia que,lastreadanoCapitalEmocional,divide espaçocomaEconomiadaAtenção.Trata-sedaEconomiaAfetiva.

Nãodesistaainda.Prometoqueasvariaçõesemtornodaeconomiaseencerramaqui.

Procurando compreender a base emocional que motiva a tomada de decisão doconsumidortantoparaconsumodemídiacomoparafazercompras,aEconomiaAfetivacolocaseufoconopontoondegrandeshistóriasegrandesvendasseencontram—obotãoque,umavezacionado,faztudoaconteceraomesmotempo.

Pois bem.Ultrapassada a barreira da superficialidade, é natural que nos seja concedidomais tempo, o que resulta em ainda mais atenção. E com esse reforço de atenção,qualificadopeloafeto,ganhamosaindamaisprofundidade,chegandoaoúltimoegloriosoitem: capacidade de retenção, que traz a reboque os três grandes prêmios de sercompreendido,seramadoeserlembrado.

Amaneira de cumprir esse difícil percurso é contar uma boa história, que prenda aatenção, envolva comemoção, crie laçosprofundos comopúblico,una todas aspontasem um relato compreensível, seja apreciada e lembrada. A ironia do jornalista JoelAchenbach,doTheWashingtonPost,écontundentequandoeleobservaque“aoverdosede informação não é o apocalipse que alguns imaginaram que sobreviria ao início domilênio.Omundonãoestáacabando,simplesmenteestásetornandoincompreensível”.

Vivemosummomentodegrandesnovidades,queprovocareflexãoeexigeatomadadenovos rumos: apreciaroquantodepassado se refleteno futuro, redescobrir ashistóriasque estruturam nossas vidas há tanto tempo e que podem continuar nos ensinando;aprenderadegustá-las,criá-lasecontá-lasdemaneiracadavezmaisagradáveleeficaz.

Histórias dão sentido à vida. Sustentamnossos valores básicos, as religiões, a ética, oscostumes, as leis, os múltiplos aspectos culturais que nos cercam. Histórias nos dãosegurança, estabilidade grupal, erguem celebridades, empresas e nações. Soa exagerado,mas até isso faz parte das histórias: acentuar os traços para impressionar o público ereforçarpontosdevista.Semcerimônias,sempreocupaçãocomquestõesdogmáticasoucontroversas de fé, raça, política, o que quer que seja. Sem permitir que nada seinterponhaentrenóseaanáliseobjetivadashistóriasquenoslevamaacreditarmaisemummodelodoquenooutro,maisemumalinhaderaciocíniodoquenaoutra,maisnestamarcadoquenaquela.

Antes de seguirmos em frente, esclareço que uso a palavra “história” tanto para oficcional quanto para o factual. “Estória” (story, em inglês) nos livraria de eventuaisconfusões,masempobreceriaaestéticaeoconteúdodotextoemumdeseuspilaresmaisinteressantes: a íntima complementaridade entre realidade e ficção na revelação daverdade.Paratodososefeitos,portanto,históriaeestóriasãopartesindivisíveisdeumaúnicanecessidadedenarrar.

Issoposto,vamosàhistória.

ParteI

UMABREVEHISTÓRIADAHISTÓRIA

Capítulo1

DUASTORRES

Uma torremuito charmosa sedestacanapaisagemde Istambul.Chamama atenção suaarquiteturaarredondada,dando-lhearesdecontodefadas,eaposiçãoestratégica,que,adespeito da relativamente baixa estatura, permite visão privilegiada da cidade. Seriaapenas um belo mirante, de onde os visitantes poderiam sair carregados de fotos esuveniresnãofosseahistóriaquelhedáalma.

Daquela torre chamada Gálata, em pleno século XVII, decolou o primeiro homemvoador de que se tem registro. Hezarfen Ahmed Celebi, usando o que seriam asprecursoras das asas-deltas, com os ventos de sudoeste soprando a favor, sobrevoou oestreitodeBósforo,pousando sãoe salvonapraçadeDogançilar, emUskudar,distantecercade3,4quilômetrosdopontodepartida.

Entre osmuitos boquiabertos com a proeza deCelebi (cujo sobrenomeparecia preverseudestinodecelebridade)estavaosultãoMuradKahn,conhecidocomoMuradIV,que,confortavelmente instalado namansão de SinanPasa, emSarayburnu, podia observar ofeitoinéditoeoefeitoqueelecausavanaplateia.

Concluídaafaçanha,oprimeiropensamentoqueocorreuaosoberanofoipremiá-la.Umsacodemoedasdeourofoientregueaoheróiquetantoorgulhotraziaaosturcos.

Osegundopensamentoalheassaltaramentejánãoeratãodouradoquantooprimeiro.Concluindo serHezarfen umhomemde criatividade e coragemmuito acima damédia,capazde fazerpraticamentequalquer coisaquedesejasse, aindamaisnaquelemomentoemqueopovooidolatrava,entendeuserperigosodemaismantê-loporperto.

Resultado: o celebrado Celebi, pouco depois de presenteado pelo sultão, foi por eleexiladonaArgélia,onde,desgostoso,morreu.

ATorredeGálatapodiaserapenasumlugarhistóricopelovooquedelapartiu.Masfoialém, tornou-se um lugar que tem história, porque o relato do que aconteceu entre oprotagonista Hezarfen Ahmed Celebi e o antagonista Murad IV enriquece nossoconhecimentosobreanaturezahumanaeascomplexasrelaçõesdepoder.Éfácilesquecer

osnomesdospersonagenselugares,masaessênciadessahistóriapermanece,revestindoGálatadeumarelevânciatodaespecial.

TorredeBabel—Versãobíblicadaglobalização

As grandes histórias são para sempre.Mas poucas nasceram tão ambiciosas como a daTorredeBabel.

Está no livro doGênese, lá no comecinho da Bíblia, abrindo o Pentateuco (ou Torá),ondecristãos,judeusemuçulmanoscompartilhamasmesmasconvicçõeseconvivememperfeitaharmoniainterpretativa.Nocapítulo11,versículos1a9,ergue-seumapequenacoluna de texto que em nada lembra a pretensão do projeto nela descrito. Aliencontramos um grupo de homens estabelecidos em uma planície na terra de Senaar.Tendo aprendido a lidar com tijolos e betume, dizemuns aos outros: “Vamos, façamospara nós uma cidade e uma torre cujo cimo atinja os céus. Tornemos assim célebre onosso nome...” Lançamento em grande estilo da vaidade arquitetônica, doempreendedorismo em busca da fama e do apetite pelo crescimento desmedido quepermanecementrenósatéhoje.

O que acontece em seguida? Deus desce para ver a cidade e a torre ainda emconstrução,nãogostadoquevêe,voltandoaoseutronocelestial,diznoplural,comoseaSantíssimaTrindadeatuasseemformadecolegiado,oucomoseDeusestivesserodeadoporumaespéciedeministérioangelical:“Eisquesãoumsópovoefalamumasólíngua:se começam assim, nada futuramente os impedirá de executarem todos os seusempreendimentos.Vamos:desçamosparalhesconfundiralinguagem,desortequejánãosecompreendamumaooutro.”

A forma descontraída que uso para descrever a passagem bíblica pode soardesrespeitosa,masbuscaapenassublinharoquantoaquestãoestilísticase fazpresente.SendoolivrodoGêneseoquedescreveaorigemdomundoedahumanidade,tãorepletodemitosqueLuizPauloHortao aponta comooquemaioresdificuldades traz ao leitormoderno, temos o alívio de imaginar que as diversas fontes coletadas para a suaformação,influenciadasporumaimagemdeDeusassociadaaosmonarcasdaépocaenãoà figurapaterna transmitidapeloNovoTestamento, “erraramnamão” aodescrever umCriadorqueseopõeaoprogressohumano,comodealgumaformajáofizeraantescomaproibiçãodamaçã(frutodaárvoredaciênciadobemedomal)aAdãoeEva.Masoquerealmente importaéaprecisãodanarrativaaoapontarumaverdadeincontestavelmenteincômoda: nossa dificuldade em lidar com as barreiras das diferenças para realizar umprojeto comum, aliada aos problemas que vaidade e ambição sempre acabam nostrazendo.

Verdade. Este é o grande tesouro a ser extraído de toda história, especialmente asficcionais. Uma boa história tem que ser verdadeira, mesmo quando totalmenteinventada.

FranzKafka—Babelemversãoestendida

Foi em um conto, “Das Stadtwappen”, vertido para o inglês como “The City Coat ofArms”esemtraduçãoconhecidaparaoportuguês.

Publicada postumamente em 1931, a visão de Kafka sobre a famosa torre acrescentaelementosmuitointeressantesaofracassadoprocessodeconstrução.

EraPraga que o autor tinha emmente com sua crítica,mas, como costuma acontecercomtudoqueéhonestamentefocado,omicroseaplicouaomacro,esobrouparatodoomundo.

A Babel de Kafka começa enaltecendo que tudo estava bem organizado, talvez atéexcessivamente, para o início do empreendimento. Ressalta, por exemplo, a grandeatenção dada a guias, intérpretes, acomodação de trabalhadores e sistemas decomunicação,comoeradeseesperaremuminéditoprojetomultinacionalquepretendiamarcardeformaindelévelahistóriadahumanidade.

Daestrutura,passa-seaoconceito:“Construirumatorrequechegueatéocéu.”CemporcentoalinhadocomoquedizaBíblia, excetopornãoaludiràparticipaçãodeDeusnoenredo.Origor focalésublinhadonafrasequevemlogoapósoenunciadodoconceito:“Beside that idea everything else is secondary” (Perto daquela ideia, tudo o mais ésecundário).

Tudobem,atéquesurgeoprimeiroentrave.Opessoalenvolvidonoprojetoconsideraque o conhecimento humano está aumentando, que a arquitetura tem progredido econtinuaráevoluindo,quedaliacemanosumtrabalhoquenaépocalevavaumanoparaserfeitopoderiatalvezserexecutadonametadedotempo,emais,executadocommaiorqualidadeesegurança.Aobrasófariasentido,portanto,seatorrefosseerguidadentrodeumaúnica geração, o que, dada sua complexidade, estava fora de questão. Justificavamesse veredicto pressupondo que a geração seguinte, com seu know-how aperfeiçoado,acharia insatisfatório o trabalho da geração anterior e derrubaria o que até ali foraconstruídoparacomeçardozero.

Criadooimpasseexecucional,aspessoasacabaramsepreocupandomenoscomatorredo que com a construção da cidade que abrigaria os trabalhadores incumbidos deconstruí-la.E,nesseprocesso,cadanacionalidade(nãonosesqueçamosdequesetratavadeumempreendimentoglobal)tratoudepleitearparasiosmelhorespedaçosdacidade,oquedeuorigemadisputaseconflitossangrentos.

Perdida a necessária concentração na tarefa principal, a torre seria construídamuitolentamente.Melhoradiá-laatéquechegassemaalgumacordodepaz.

Assim se passou a primeira geração. Da mesma forma se passaram as geraçõesseguintes. E nada mudou de uma geração para outra, exceto o aumento da capacidadetecnológicaedabeligerânciaentreospovos.

Kafka ressaltaque, lápelasegundae terceiragerações,oabsurdodeseconstruirumatorre até o céu já era amplamente reconhecido.Mas, àquela altura dos acontecimentos,todosjáestavamtãoligadosaoprojetoqueninguémconseguiadeixaracidade.

Seorelatobíblicosoacomomaldição,Kafkaocomplementacommaestria,ampliandoa maldição a níveis facilmente reconhecíveis como verdadeiros. É assim que a

humanidade vem caminhando desde sempre, metendo-se em labirintos que, de tãotrágicos, resvalam no cômico. Cada avanço traz consigo novas complicações,acrescentando mais curvas ao imenso labirinto em que nos movemos. No fundo, nadarealmente muda, exceto, como bem pontuou o gênio tcheco, a tecnologia e o grau deviolência.Serámesmo?

Talvez tenha faltado uma janela para arejar a condenada torre: a janela que se abresobreaevoluçãodosvaloreséticos,humanitárioseecológicos,porexemplo.

Oqueessastrêshistóriastêmemcomum?

Na descrição bíblica da Torre de Babel, a motivação de Deus para confundir osconstrutoreséamesmadosultãoMurad IVparaexilarHezarfenAhmedCelebi.Ambosagem preventivamente contra ações criativas de quem, segundo sua percepção, setransformaempotencialameaçaaseupoder.

ABabeldeFranzKafkapoderiateoricamenteestarnaBíblia,claro,sefossecriadaantesdeCristo,atempodeserselecionadaparaoAntigoTestamento.Suahistóriaébemmaisverossímil, convincente e com o mérito adicional de não colocar Deus na incômodaposiçãodevilãovulnerável.

Apesardisso,aBabelbíblicaéinfinitamentemaisconhecidadoqueadeKafka.Mesmonãotendoexistênciafísica,elatambémémuitomaisfamosaqueaTorredeGálata.Umatorreimaginária,maisconcretanamentedahumanidadedoqueumatorreconstruídahávários séculos, que existe até hoje, é ponto turístico e, ainda por cima, tem relevânciahistórica.Porquê?

Aresposta imediataé religião.Babelbíblica,pelo simplesadjetivoqueaacompanha,disparana frentedequalqueroutra torreouversão.Masnãopodemosdesconsiderar asqualidades que a levaram a participar do Livro Sagrado. Imagino que a narrativa dafamosa torre tornou-seelegívelpelo fatodeexplicarumaspecto importantedavida,demaneira simples e direta, a um povo que na época não dispunha de conhecimento erecursoscientíficosparaenxergaracomplexidadeevolutivadahumanidade.Dizerqueavariedadedeidiomasdecorredeumprojetoarquitetônicofracassado,ereforçaraideiadeque pretensões grandiosas nos colocam em conflito com o Altíssimo resolvia váriosproblemasaomesmo tempo.Aelasticidadedoconceitode confusão linguísticaparaoseternos desentendimentos humanos encarregou-se de manter a contemporaneidade dahistóriaaolongodosséculos.Eosdetalhes...ah,sãoapenasdetalhes,tãodesimportantesque pouca gente os conhece, e, quando conhece, não os destaca. Digamos que Babel setrata de uma alegoria explicativa, sem pretensão real de esclarecer, mas com inegávelcapacidadedeficarnamemóriaecolocarumrótulode“indesejável”emnossasambiçõesdesmedidas.

Observandocomfocomaisapurado, tantoaBabelbíblicaquantoaBabeldeKafkaeaTorre de Gálata (convidada especial off-bíblica)— cada uma a seumodo, e dentro dasproporçõescabíveis—tratamdosempreendimentosquenoslevamàsalturas,dosperigos

que cercam esses empreendimentos e do principal combustível desses perigos: nossaimensadificuldadedecomunicação.

Capítulo2

HISTÓRIASQUENOSEXPLICAMOQUESOMOS

ABíbliaestácheiadelas.Nãoporacasotornou-seomaiorbest-sellerdetodosostempos.A inveja levando ao fratricídio entre Caim e Abel, a vaidade e a luxúria exaurindo aenergiadeSansão,avalorizaçãodapaciênciaemJó,asuperaçãodaforçabrutadeGoliaspelacoragemeinteligênciadeDavi,nossaorigemdivina,ainsistênciaemcomerdofrutoproibidonoscriandodificuldades...umsem-númerode liçõesarquetípicasqueculminacomorelatodavidadeumheróisalvador,queenfrentainimigospoderosos,éentregueaelesporaçãodeumtraidor, torturadoatéamortepelosantagonistas,abandonadopelosamigos na hora crucial, e, nos últimos capítulos, premia o público com uma grandeviradaredentora.Umlivrocontendohistóriasinspiradorasnosdizdeondeviemoseparaondevamos,organizandoocaosdenossasinquietaçõescom“explicações”semrespaldoracional, mas que, pelo simples enunciado de conceitos alinhados com nossasexpectativas mais profundas, vem, há mais de um milênio, funcionando como guia ebálsamoparaasansiedadesexistenciaisquenosperseguem.

Nãome alinho com os que classificam a Bíblia como um romance, embora não vejacomo necessariamente ofensiva a opinião dos que assim a consideram. Religiosidade àparte,é incontestávelquesetratadeumacoletâneadetextostransmitidosoralmenteaolongo de um amplo período de tempo, selecionados com a finalidade de compor umaideiacentraleescritosemumaenormevariedadedeestilosliterários.Ensaiosfilosóficos,poemas, cartas, textos legislativos, fragmentosdeepopeia, listasgenealógicas,narraçõeshistóricas,narraçõesromanceadas,sermões,oráculosproféticoseatéumcantodeamor,tudosemisturanolivrocujotítulo“Bíblia”sinalizasuavocaçãoderepresentartodososlivros. Nele são descritas desde cenas de sensualidade, violência, incesto, uma extensagama de homicídios e barbaridades múltiplas, até milagres, e exemplos de sacrifíciopessoal,generosidade,sabedoria,astúcia,perseverançaebravura.ÉcomessadiversidadedehistóriasqueaBíbliasemantémvivacomomanualdeinstruçãodocristianismo.E,seconsiderarmos que sua primeira parte, o Antigo Testamento, é também a base do

judaísmo e do islamismo, fica patente seu status de grande balizador ético-religioso dahumanidade.

Assim,umaformadebarroesculpidanoÉden,soboefeitodosoprodivino,tornou-seAdão(nomederivadode“adama”,terraemhebraico).Dacostelaretiradadesseprimeirohomem fez-se Eva, e, criado o primeiro casal, a narrativa nuncamais parou de renderfilhotes.Umahistóriafantásticaque,convenhamos,sóosmuitoradicaispodemassumircomofactual,apontodecontrapô-laatesescientíficascomoaTeoriadaEvolução.Mas,antes de tudo, uma história que veio para ficar, através dos séculos, em sucessivasgeraçõesdecoraçõesementes.Nãopornecessariamenteacreditarmosemseusdetalhes,mas por sua essência. Ali, no capítulo de abertura do Gênese, se encontra amatriz denossa autoimagem transcendental: No princípio, Deus criou. Autoimagem, aliás, é obenefíciomaisbuscadonaliteratura,segundoHenryJames.Em1884,elejádefiniaque“aconstante exigência humana pelo que o romancista tem a oferecer é simplesmente acarênciacomumporumretrato.Oromanceé,de todosos retratos,omaisabrangenteeelástico”.

Mas,afinal, aBíblia foiounãoescritapor inspiraçãodivina?Claroquesim.Aosnãoreligiosos, basta considerar que todo trabalho criativo advém dessa inspiração que nosvem do alto, ou de dentro, de onde quer que julguemos ser a localização de Deus, eabsorver o quanto de complexidade e sabedoria salta de seus capítulos e versículos.Nuncaédemaisrelembrarqueaféestáparaacertezaassimcomoaimaginaçãoestáparaoconhecimento.Ouseja,acreditaremalgoéumaconfissãodeincerteza;féeimaginaçãopertencem,portanto,àmesmafamília.E,paraarrematarnossareflexãocompoesia,nadacomorelembrarFernandoPessoa,atravésdeseuheterônimoRicardoReis,nosensinandoque“nadasesabe,tudoseimagina”.

Capítulo3

MESTRESDOSTORYTELLING

Osprimeirosnarradoresdesucessomundialeramhomensejudeus.Deus é pai, não mãe. Enviou-nos seu único filho, não filha. Antes disso, todas as

negociações entre a humanidade e a divindade foram intermediadas pelos grandesprofetas,comdestaqueparaAbraãoeMoisés,eo“povoescolhido”nãocessavadelouvarseus dois soberanos mais queridos: Salomão e Davi. Às mulheres, a despeito daspassagens marcadas pela beleza poética, restavam predominantemente papéiscoadjuvantes,eemgrandepartenegativos.Evacolocoutudoaperder,empurrandoAdãoparaopecado.DalilailudiuSansão,descobriuseusegredoeexauriusuasforças.Salomédeu um jeito de pedir a cabeça de João Batista. Salvo raras e honrosas exceções, asmulheres bíblicas ou carecem de proteção masculina e choram, desamparadas, ouprovocam a desgraça dos machos. São abundantes também os relatos de famílias semaldizendo por não terem gerado bebês do sexomasculino, a ansiedade e as questõeshereditáriasem tornodoprimogênito,acrençadequeonomeeosangueda família sóseguem adiante através dos varões. As consequências jurídicas da primogenituramasculinamostraram-seresistentesaotempo,reverberandoemalgunspontosdoplanetaemplenoséculoXXI.

Por causa dessas narrativas, que obviamente retratam a situação sociocultural de ummomentohistórico,asmulherescontinuamlutandoatéhojeparasuperarumsem-númerode injustiças que ainda lhes são impostas. Em determinadas culturas, continuamobrigadasasecobrircomotentaçõesambulantes;andamatrásdoshomenscomoseresdesegunda classe, muitas vezes sem direito a participar de conversas. Em praticamentetodas as culturas, sofrem mais para atingir altos cargos e para receber saláriosequiparadosaosdehomensocupandoasmesmasposições;sãovítimasdepreconceitoseviolências de toda ordem. Isso depois de conquistas relativamente recentes, como a devotaremeseremvotadas,possibilitandoumnúmerocrescente,emboraaindamodesto,de

mulheres napresidência depaíses e empresas.Histórias sãopoderosas, desconstruir asideiasconsistentementeimplementadasporelaslevatempo.

Deixando de lado o machismo, encontramos a questão da raça. Que outro povo seintitularia“escolhido”senãoopovoqueprimeirocontouahistória?

Não é de se estranhar também que o paraíso seja descrito na Bíblia como a novaJerusalémceleste,cidadedurantealgumtempoconsideradacomoocentrodoplaneta.AgeografiaeasituaçãosociopolíticadaépocadeCristoimpregnamasnarrativasbíblicas,situando-asemnossosescaninhosmentaisreservadosaofactualedando-lhesumvaliosorevestimentodeestidade(aspectoqueabordaremosmaisadiante).

Legiãodesuper-heróis

O que há de comum entre Super-Homem, Batman, Capitão América, Homem-Aranha,Hulk,HomemdeFerro,Thor,X-MeneoQuartetoFantástico?

TodossurgiramnaGoldenAgedosquadrinhos,entre1933e1963.Todosforamgeradosemummomento de insegurançamundial, sob o impacto da SegundaGrandeGuerra. Etodosforamcriadosporjudeus.

JoeShustereJerrySiegelnosderamoSuper-Homem,quealgunsanalistasconsideramuma referência aMoisés: omenino abandonado à própria sorte emuma terra estranha,salvo e adotado por acaso, que se descobre com poderes especiais, tornando-seresponsávelporlivrarseupovodeváriosperigos,erevelando-seumgrandelíder.

Bob Kane, ainda que sob acusações de omitida coautoria, é o pai do Batman. Daluminosidade interplanetária para as sombras da caverna, do personagem de aço comvisão de raio-X para o aristocrata que deposita sua força na astúcia, na potência dobatmóvel, nos recursos tecnológicos instalados em seu esconderijo e no sempresurpreendentecintodeutilidades.

E o brilhante Stan Lee encarregou-se de todos os demais, desde o óbvio CapitãoAmérica,comseuimbatívelescudo(qualquersemelhançacomaparticipaçãodosEstadosUnidosnaguerracontraonazifascismonãoémeracoincidência),atéomitológicoThor,com seu inseparávelmartelo. Passando pelos beneficiados por interferências científicasacidentais, como Homem-Aranha e Hulk, e pelo turbinado Homem de Ferro, quehabilmenteconseguiuescapardecomparaçõesdiretascomohomemdeaçokryptoniano.Fechamsuagaleriadecriaçõesmemoráveisosprimeirossuper-heróiscoletivos:X-MeneQuartetoFantástico.

Por que todos esses criativos seriam judeus? Porque estavam especialmentepressionados pela perseguição hitleriana? Digamos tratar-se de um evidente aspectomotivacional,masnãoéamelhorresposta.

Olhandoparaograndequadro,desdeaBíbliaatéosdiasdehoje,nãomeocorrenadamais honesto do que simplesmente reconhecer que os judeus são “os melhoresstorytellersdoplaneta”.

Porqueeles,enãooutrospovos?Talvezpelasdificuldadesquelhesforamimpostasemsuatrajetóriaatravésdosséculos,acentuandoanecessidadedeumacoesãoespecialquesó o compartilhamento de histórias consegue proporcionar. Talvez por característicasespecíficas, como seu longonomadismo, o convívio constante com a aridez, a diásporademandandoumterrenodehistóriasemquepudessempisarsemsobressaltos.Talvezporesseseoutrosaspectossomados,oumesmo—porquenão?—porteremsidorealmente“escolhidos”paraessanobretarefa.

Eavocaçãonarrativajudaicatemsidoexercidaemtodasuaplenitude.LuisFernandoVerissimo,emcrônicapublicadanojornalOGlobode14dejulhode2013,comparadoisescritoresjudeusmuitoafastadosumdooutro,históricaegeograficamente:MoacyrScliareonossojávisitadoFranzKafka.ApartirdadeclaraçãodeMoacyrdequeKafkaforasuamaiorinfluêncialiterária,Verissimoanalisa:

ComoashistóriasdoKafkaecomo,no fundo, todaa literatura judaica tradicionaloumoderna, as histórias do Scliar têm um tom de parábola, de ensinamento bíblico, sevocêconseguirimaginarumaBíbliasemreligião.Sãoparábolassemumamoralnofim.Têm a forma de uma narrativa didática, inspiradora ou aterrorizadora,mas sem umaclaraliçãonofinal.OScliareoKafka têmemcomumnãoapenaso fatode seremambos judeusurbanoscom um pendor para o fantástico e o insólito, mas por compartilharem destacompulsão,característicadaculturajudaica,decontarhistóriasquesignificammaisdoqueelasmesmas,históriasquesignificamoutrashistórias,escondidas,ebrincamcomanalogiasesímbolosantigosdestacultura.

Tanto domínio narrativo só pode ser atingido por quem conhece a fundo a almahumana,enessahoranãopodemosnosesquecerdeSigmundFreud,paidapsicanálise,quebuscouumsignificadoúnicoparatodososmalesqueatingemnossapsique.

Aextraordináriaperformancedosjudeusnocampodostorytelling,independentementedos fatores que a antecedem e tentam justificá-la, converge para o mesmo pontoperseguidoporFreudque,nofinaldascontas,éarazãodeserdetodahistória:abuscaporsignificado.Darsignificadoànossaexistência,àspessoasecoisasquenoscercaméameta que buscamos desde sempre. Quanto mais nos aproximamos dela, mais pertochegamosdafelicidade.

Conexão

Palavramuitorepetidaemnossodiaadiainformatizado,aconexãoaquenosreferimosaqui vai muito além do que a tecnologia pode oferecer. Elo imprescindível para aconstruçãodehistóriaspoderosas,elaépressupostodequalquerespéciedecomunicação

quefuncione.Aconexãoaconteceemdoispolossimultâneos:oemocional eocultural.Sememoção,qualquerqueseja(humortambéméemoção,valerelembrar),nãoexisteboacomunicação nem boa história. Em Lovemarks, Kevin Roberts registra que “a emoçãotornou-seassunto legítimodepesquisassérias.Quandooscientistasseenvolvemcomaemoção,nãodemoramuitoparaprovaremoqueeraóbvioparaqualquerumquetenhaseinteressadoemobservar”.Econclui:

Aspessoas estão àprocurade conexõesnovas e emocionais.Elasprocuramalgoparaamar [...] Só existe uma forma de prosperar como profissional de marketing naEconomia da Atenção: parar de correr atrás de modismos e dedicar-se a estabelecerconexõesconsistenteseemocionaiscomosconsumidores.Sevocênãorepresentanada,falhaemtudo.

Nopolocultural,quetambémtrazemsialgunsvoltsdecargaemocional,verificamosque, sem elementos de referência que acrescentem relevância e identificação ao que seestádizendo,nadaacontece.Umaboahistórianosfisganessesdoispontosenosmantémconectadoscomela.

As histórias contadas por Jesus aconteciam em uma região onde predominavamatividadesagropastoris.Daíasalusõesaobompastor,àssementeslançadasnaestrada,àvideira com seus ramos etc.Uma realidade totalmente distante danossa,mas quenemporissonosdesconecta.

Porquê?Primeiro,porquerevelaautenticidade,não tentaumaamplitude imediataquepoderia

levá-la a se perder. Segundo, porque não trata em última instância daqueles elementoscircunstanciais, mas da natureza humana e dos significados que tanto desejamosencontrar.

O filósofo espanhol Ortega y Gasset resumemuito bem a questão da autenticidade eidentidadequandodizque“eusoueueminhacircunstância”.Eoutroespanhol,MigueldeUnamuno, vaimais fundona aplicaçãodesse princípio da identificação ao universoliterário, propondo a seguinte reflexão: “Por que, ou seja, para que se escreve umromance?Paraseescreveroromancista.Eparaqueescreveroromancista?Paraescreveroleitor,parasetornarumcomoleitor.Eésósetornandoumqueoromancistaeoleitordo romancista se salvam, ambos, de sua solidão radical. Namedida em que se tornamum,elesseatualizame,atualizando-se,eternizam-se.”

Impossívelprecisaromomento exato emquea conexãodeve acontecer.Quantomaiscedo, melhor. Como em qualquer contato humano, estamos falando da primeiraimpressão,doolharprovocador,dosorrisocativante,dogestoqueatraienosfazsentiràvontade com o outro. Na escassez de tempo e fartura de opções em que vivemos, éfundamentalcativaropúblicologonasprimeiraslinhas,prometercomumbomcomeçoque há algo muito interessante nos aguardando no final da história. Sedução, convite,promessa de uma experiência especial são elementos essenciais de uma boa história.Feitoisso,restacumprirapromessa.

Em carta a um pupilo que lhe pede parceria em um projeto literário, o escritor eprofessor australiano Michael Pryor ensina: “O início de uma história tem que fazermuitas coisas, mas prioritariamente ele deve interessar ao leitor. Se um leitor ficaentediadopelamaneiracomoahistóriacomeça,elepodesimplesmentedesistirenãoleroresto.Issoéumdesastreparaoescritor.”

Começarerradopodedesconectaronarradordeseupúblico.Desconectados,abortamosahistória.

Caminho

Umadasmetáforasmaisutilizadasparaavidaéadocaminho.Falamosfrequentementenasestradasdavida.Emnossacaminhada,fazemoscursosparaestarmosbempreparadospara a trajetória profissional que escolhemos, conscientes de que o melhor jeito deaprenderépassoapasso,semnosdeixarmosabalarporeventuaistropeçosouacidentesdepercurso.

No século VI a.C., enquanto a filosofia grega surgia na Europa, o taoísmo corria emparalelonaChina,coincidindocomosfilósofosgregosnaabordagemdealgumasquestõesfundamentais, como a busca da estabilidade em um mundo que se transformaconstantemente.Oque isso temaver comnossa conversa?O fato curiosodeque “tao”significa “caminho”.Umadoutrina filosófica ancestral, quepoderia ser traduzida como“caminhismo”,mereceespecialatençãoquandoanalisamosessepontodevistanarrativo.

Viverébasicamentecaminhar,donascimentoatéamorte.Umesboçodeautobiografianos levaria certamente a lembranças queridas e traumáticas da infância, episódios epessoas marcantes na vida estudantil, os grandes amores pontuados pelos primeirosgrandes momentos, surpresas e decepções, os sucessos e fracassos profissionais, osaliadoseoponentescomquemnosdeparamos,eashistóriasdeoutrospersonagensque,cruzandocomasnossas,influenciaramseudesenvolvimentoedesenlace.

Estamos todos empreendendo uma viagem que, conforme avança, aumenta nossabagagemdeexperiências,nosobrigaatomardecisõesemváriasencruzilhadas,emuitasvezesnoscolocaemrotadecolisãocomoutrosviajantes.Nãoporacasoodocumentoqueorientaarealizaçãodeumfilmerecebeomesmonomedaquiloquefazemosquandonospropomosapercorrerumlongotrajeto:roteiro.

Quandobuscamosaajudadeumpsicanalista,oprincipalbenefícioesperadoéavisãoclaradoroteirodenossavida,paranãoperdermosorumo.

Encurtandonossaviagem,encerramosestecapítulocommaisumaalusãoaomestredocristianismo. No momento de dar a si próprio um significado, ele se definiu como“caminho,verdadeevida”.NãoummapaouGPS,masoprópriocaminho.

Se quisermos uma história com todos os elementos indispensáveis para se tornarrelevanteeinesquecível,bastaolharparaavidadeCristo,degustaroquantodeconflito,intriga,entrega,mistério,traiçãoesuperaçãoeleencontrouemseucaminho,paraenfim

compreender por que essa história continua emocionando emobilizandomultidões atéhoje.

Comotodacaminhada,ashistóriastêmumdestinoque,emboranemsemprepercebidode imediato, se delineia desde o início. Respondendo sobre seu planejamento narrativoementrevistaconcedidaao jornal literárioRascunho (junhode2013),oescritorWesleyPeresnospresenteiacomumaricavisãodoassunto:

[...] Assim, a narrativa cristã do mundo se orienta rumo à finalidade de atingir umoutromundo,umaoutratopologia,umoutroespaço;anarrativamarxistadomundoseorientatambémpelafinalidadedeinstituirumoutromundo,nãoutópiconosentidodeoutroespaço,masumoutromundonotempo,numtempoqueestáporvir,sempreporvir, sempre.Essemovimentonarrativomeparece replicadonanoçãodeumahistóriaestruturadaemtornodeumclímax,umarconarrativoquesequebrasobresimesmo,determinando obrigatoriamente o fim da história, o apocalipse narrativo— demodoque essa forma me parece um tipo de transcendência, da promessa de que tudoacontece com uma finalidade que ultrapassa completamente o acontecimento,amarrando-onumpontoquejustificacadaumeatotalidadedosacontecimentos(essepontoéoclímax),criandooespíritodesistema,desalvação,afinaltudofarásentido,podeconfiar.

Capítulo4

NASPROFUNDEZASDAHISTÓRIA

Hámaisconteúdoemumahistóriadoqueimaginanossavãfilosofia.TudocomeçacomaquestãopropostaporAristótelesemAética:Comoumserhumano

deveviversuavida?Se você acha que o assunto está tomando um rumo filosófico demais, relaxe. A

primeirafunçãodeumahistóriaéoentretenimento,pontopacífico.Sónãopodemosnosesquecerqueentreter,alémdedistrairedivertircomrecreação,tambémsignificamanter,conservar. Manter e conservar o quê? Resposta imediata: aprendizados, tradições.Aprofundando o significado dedistrair, o dicionário nos apresenta:atrair ou chamar aatençãode(alguém)paraoutropontoouobjeto.Eooutroverboafim,divertir,noslevaasentidoscomo:dissuadir,fazeresquecer.Deumlado,mantereconservarconhecimento.Deoutro,chamaratençãoparaoutroponto.E,encerrandoatrilogia,dissuadir.Buscamosentretenimento,nãoapenasporhedonismo,mastambémpornecessidadedeoxigenaçãoespiritual, pertença grupal, socialização, atualização, informação, enfrentamento denossos medos, segurança emocional, autoconfiança, exploração do nosso imaginário,reafirmaçãodenossosprincípioséticosemorais.

Quantas vezes você se identificou com personagens literários ou cinematográficos aponto de se colocar no lugar deles? Quanto você deve às histórias que ouviu, leu ouassistiu em termos de conhecimento adquirido sobre guerras, sequestros, tragédias,relações afetivas, dramas familiares, conflitos de toda ordem? Sem precisar correr osriscosdaquelespersonagens,vocêaprendeumuitoecertamenterefletiusobreoquefariasepassassepeloqueelespassaram,queerrosevitaria,queatitudescopiaria.Istotendeadarmaiscertodoqueaquilo,éoquepensamossobreasescolhasfeitasporpersonagensquenoscativam.

Quantosmilhõesdecriançasaprenderamquevaleapenaseguiraorientaçãodospaiscom Chapeuzinho Vermelho? Quantas madrastas são rejeitadas até hoje por causa deBranca de Neve? Quanta esperança de reverter situações adversas foi plantada mundo

afora por Cinderela? Aliás, quem ainda não testemunhou a habilidade das crianças emcriar personagens? Uma infinidade de amigos invisíveis circula pelo imaginário dospequenos,assimcomosãoincontáveisasprincesaseheróisqueenfrentammilaventurasnapeledessesbaixinhoscujacapacidadenarrativarevelatransbordantetalentogenético.

Todavezqueumprofissionalouumaempresacomeçadebaixo,semgrandesrecursosfinanceiros, mas acreditando no potencial de sua ideia para superar os gigantes jáestabelecidosnomercado,podemoscreditaraomenosumafraçãodissoaoduelodeDavicomGolias,eoutrasfraçõesa“n”históriasqueguardamosnocoração.DeTarzanaKaratêKid, passando por RobinsonCrusoé, Forrest Gump, Rocky Balboa, James Bond, IndianaJones...uminterminávelelencodepersonagens,todossussurramemnossosouvidosquesempre há uma saída e que nossos sonhos podem se tornar realidade, apesar dosadversários,obstáculoseintempériesquetenhamosdeenfrentar.

Duashistóriasfictícias,duasguerrasdeverdade

AugustKubizek,amigodeinfânciadeAdolphHitler,descreveumaidaàópera,quandoopesadeloaparentementeteriacomeçado.OjovemAdolphtinhaapenas16anosefoicomAugustassistiraRienzi, obradeRichardWagner comcincohorasdeduração sobreumheroicotribunoromano.Terminadooespetáculo,Hitlerpareciatertidoumarevelaçãoe,com ar profético, falou ao amigo sobre um mandato que haveria de receber do povoalemãoparaguiá-lorumoàliberdade.

Poderia ter sido uma bela inspiração juvenil não fossem as frustrações que sesucederam,suarejeiçãonaescoladeartesetudoquesesomouparaaformaçãodeumapersonalidade doentia e contagiosamente cruel. Mas tudo indica que o estopim queresultouemumdosmaioresvilõesdahumanidadefoiumheróifictícioembaladopelosacordesdeRichardWagner.Valelembrarque,alémdebrilhantecompositor,Wagnereraumnacionalistaexacerbadoeantissemitadeclarado.EqueháoutrosrelatosdandocontadequeHitlerseconsideravaumheróiwagneriano,comespecialpredileçãoporParsifal,enxergandoasiprópriocomoumaespéciedecavaleiromodernoengajadonalutacontraomal.

CulpadeWagner?TalvezdeEdwardBulwer-Lytton, o escritor que criouRienzi, cujolivro publicado em 1835 inspirou o jovem compositor a transformá-lo em ópera. PobreEdward, morreu sem saber que pode ter provocado o surgimento de um personagemsanguinárioquemanchouahistóriadoséculoXX.

Enquanto Rienzi aguardava nas páginas o estrelato que viria mais tarde através damúsica,outrospersonagensfictíciostramavamumagrandeviradanaAméricadoNorte.Não tinhamnada parecido com cavaleiros de espada em punho, eram apenas escravos.Mascomseu sofrimentoe sonhode liberdade saltaramdiretamenteda literaturaparaa

vida real. O livro de onde vieram transformou-se em um fenômeno de vendas, decomoçãopopularerepercussãopolítica.Seutítulo:AcabanadoPaiTomás.

Nada explica melhor o efeito do famoso romance do que as palavras de AbrahamLincolnaoencontrarsuaautora,HarrietBeecherStowe.OencontroaconteceuduranteaGuerra Civil Americana, e o presidente a saudou dizendo: “Então você é a pequenamulher que escreveu o livro que provocou esta grande guerra.” Além de acender aindignação contra a escravatura que acabou causando o choque entre nortistas(abolicionistas)esulistas (escravagistas),o livro,obtendosucesso tambémna Inglaterra,convenceu os ingleses a não interferir no conflito, o que foi altamente relevante noresultadofinal.

Semhistória,semvida

Queiramos ou não, são as histórias que nos inspiram e dão força. E, sem dúvida, nosajudamadecifraraquestãoexistencialbásica:ovelhoediscutidíssimo“sentidodavida”.

Vemdo críticoKennethBurke a frase quemelhordefende essa relevância: “Históriassãoequipamentosparaavida”,edoprofessoreroteiristaRobertMcKeeocomplementoparaaafirmaçãodeBurkecomdoispensamentosmarcantes:“Aartedahistóriaéaforçaculturaldominantenomundo”e“Adádivadahistória é a oportunidadede viver vidasalémdanossa”.

Pensenoque sepassana cabeçadeumacriançaquandopedeque suamãe lhe conteumahistória antes de dormir. Ela quer, aomesmo tempo, umadistração, uma lição devida e um afago que lhe proporcionem sensação de segurança e algum confortoemocional. Ela quer momentos de sintonia que possam fazer parte de sua memóriaafetiva.

Agora pense em um grupo peludo e malcheiroso de homens da caverna sentado emvoltadeumafogueira,acompartilharseusfeitosdecaça,suasaventurasesuaslendas.Adiferença entre eles e a criança que pede à mãe para contar histórias se resume aopressupostodesuperioridade intelectual-vivencialdamãesobrea filhaeàdiscrepânciadas condições de limpeza, aconchego emodernidade entre o contemporâneo quarto dacriançaearústicacaverna.Nomais,osobjetivossãopraticamenteosmesmos: trocadeexperiências,paradormirempaz.

EmseulivroOzeneaartedaescrita,RayBradburyensinaque“osprimeiroshomensemulheresdesenharamsonhosdeficçãocientíficanasparedesdascavernas”.

Criarecontarhistórias,maisdoqueentretenimento,éumaquestãodesobrevivência.

Capítulo5

REALIDADE×FICÇÃO.

Ondeestáaverdade?

“Estavacertoquemdissequevencerumabatalhaéconvenceraosseuseaosoutros,aosamigoseinimigos,quevocêaganhou.Existeumalendadarealidadequeéasubstância,arealidadeíntimadaprópria

realidade.”

MIGUELDEUNAMUNO

“Aquiloque énãopode ser verdade”, filosofouHerbertMarcuse. Cerca de dois séculosantesdele,GottfriedLeibnizdefendiaaexistênciadedois tiposdeverdade:verdade derazãoeverdadedefato.

Longedosdebates filosóficos,HonorédeBalzacrejeitavaorótuloderomancista,parase autodefinir comoumhistoriadorde costumes.ERobertMcKee sentenciaque “o queaconteceéfato,enãoverdade.Verdadeéoquenóspensamossobreoqueacontece.”

Técnicasconsagradasdepesquisautilizamassociaçãodeimagensparadescobriroqueos pesquisados pensam de verdade. Técnicas de dramatização facilitam a psicólogos oacesso às verdades mais remotas de seus analisados. Algumas delas escondidas nossonhos, que, em última análise, são histórias que elaboramos enquanto dormimos,recheadasdesimbolismoserevelaçõesquemuitasvezesnossurpreendem.

O psicanalista Robert A. Johnson chega a questionar a separação feita entre o queaconteceu realmente e o que aconteceu em um sonho, defendendo que o mais corretoseriaperguntarsedeterminadofatoaconteceunarealidadedeumsonhoounarealidadefísica.Segundoele,éinjustoprivarossonhosdesuaverdade,jáqueomundodossonhosteria “efeitos mais práticos e concretos em nossa vida do que os acontecimentosexternos”.

Romances.Deondeosescritorestiramsuashistórias,senãodascamadasmaisprofundasde suas experiências de vida? Anne Lamott afirma que “escrever nosmotiva a olhar avida mais de perto”, “escrever bem é contar a verdade” e que “um escritor busca averdadee,paradoxalmente,contamentirasacadaetapadocaminho”.

Filmes.Aquantidadedeimaginaçãoaplicadaaosdocumentáriosémaioroumenorqueovolumederealidadeinseridonaficção?

Biografiassão tãovulneráveisà fantasiaquantosãomanipuláveisosrelatoshistóricosque aprendemos na escola, ou a descrição que um amigo nos faz da festa em que seupoderdeseduçãoatingiuospíncarosdaglória.

Oantiquadoverbo“confabular”émuitohonestoaodefinir“conversa”comoumatrocade fábulas, embora alguma honestidade persista quando entendemos “conversar” comointercâmbiodeversões.

Sempre que nos expressamos, inevitavelmente o fazemos de um ponto de vistaparticular, sujeito a distorções culturais, convicções, intenções, preconceitos, estilos evíciosquemuitasvezesnemsequerreconhecemos.Háumpontodeinterseção,sensíveleimpreciso,entrerealidadeeficção,eénessepontoqueseencontraaverdade.

Nãodeve causar estranheza, portanto, o número crescente de executivos e jornalistasqueconfiamseupreparoprofissionalmaisaosromancesdoquealivrostécnicos.Lendoentrevistas de pessoas que ocupam cargos de alta responsabilidade, por duas vezesmedepareicomaafirmaçãodequeaprendiammaissobreanaturezahumanacomTolstóieDostoiévskidoqueemtratadosdepsicologiaoumanuaisdeRH.

JamesWoodensinaque

[...]aliteraturaédiferentedavidaporqueavidaécheiadedetalhes,masdemaneiraamorfa,eraramenteelanosconduzaeles,enquantoaliteraturanosensinaanotar[...].Essaliçãoédialética.Aliteraturanosensinaanotarmelhoravida;praticamosissonavida,oquenosfaz,porsuavez,lermelhorodetalhenaliteratura,oque,porsuavez,nosfazlermelhoravida.

Deummodogeral,comodisseAndreadelFuegoemtextopublicadonojornalliterárioRascunho, “espera-sequeoautor recolhadomundoaquiloquenós, leitores,não temostempo,oportunidadeedomparafazê-lo”.

Porfim,nãopoderíamosdeixardeforaabelaobservaçãodeGuydeMaupassant:

Que infantilidade, ademais, acreditar em realidade se carregamos a nossa própria emnosso pensamento e em nossos órgãos. Nossos olhos, nossos ouvidos, nosso olfato,nosso paladar, diferindo de pessoa para pessoa, criam tantas verdades quanto háhomens na terra. E nossas mentes, informadas por esses órgãos, tão diversamentesentem,compreendem,analisam, julgam,quecadaumdenósparecepertencerauma

raçadistinta.Cadaumdenós,portanto, formapara simesmouma ilusãodomundo,que é uma ilusão poética, ou sentimental, ou alegre, ou melancólica, ou turva, oudesanimadora,deacordocomnossanatureza.Eoescritornãotemoutramissãosenãoadereproduzir fielmenteessa ilusão,comtodososdispositivosdaartequeaprendeuecomanda.Ailusãodabeleza,queéumaconvençãohumana!Ailusãodafeiura,queéumaopiniãomutável!Ailusãodaverdade,quenuncamuda!Ailusãodoignóbil,queatantosatrai!Osgrandesartistassãoaquelesquefazemahumanidadeaceitarsuailusãoparticular.

Tudoaltamente subjetivo e abstrato,mas atingindo emcheioomundoconcreto.Paraeliminardúvidasteimosassobreopapeldaficçãoemnossasvidas,sugiroduasviagens.Aprimeira,aMadri,ondeaimagemdeDomQuixoteéamaisprocuradapelosvisitantes,eobviamenteamaispresentenaslojasdesuvenires.Trata-sedopersonagemmaisfamosodaEspanha,umpaísonde,diga-sedepassagem,aconcorrênciadepersonagenshistóricosreaiséfortíssima.AsegundaviagemseriaaVerona,cidadeitalianaquejamaisconstariaderoteirosturísticosnãotivessesidoescolhidaporShakespeareparahospedarRomeueJulieta. E já que falamos de duas cidades europeias, não custa nada passar por Paris,visitar a catedraldeNotreDame, e tentarnão lembrardoQuasímodo criadoporVictorHugo,queseguetocandoseussinosemnossoimaginário.

Imaginaçãoefantasia

Duas palavras arrastadas ao longo do tempo para significados bem distantes de suasorigens.

Imaginação vemdo latim“imago” (imagem).No sentidooriginal, énossa capacidadededarformaaomundointerior.Semaimaginação,nossoinconscientenãoteriacomoseexpressar.

Fantasiavemdogrego“phantasía”.Significava“tornarvisível,revelar”.Originalmente, imaginação e fantasia estão associadas a trazer à tona a realidade do

mundointerior,darformasvisíveisaonossoreinoinvisível.Nos domínios da religião, o canal da inspiração divina era a imaginação, às vezes o

sonho. Desqualificar esses produtos de nossa mente foi um equívoco provocado pelomaterialismocrescente,queapsicanálisecomeçouacorrigir,auxiliandoasubjetividadecontemporâneaareincorporá-losaonossoelencopremiumdecapacidades.

Ninguémduvida,nosdiasdehoje,queépraticamenteimpossívelsuportaraexistênciahumana sem imaginação e fantasia. Todos sabem que esses dois elementos, tãodestacados durante a infância e negligenciados na idade adulta, são os principaisresponsáveispelacriatividadee,consequentemente,pelageraçãodehistórias.

Bastafolhearalgunsjornaisourevistasdedicadosaomundodosnegóciosparaverqueum dos bens mais valorizados atualmente é a ideia criativa. Quando a expressão

“economia criativa” passa a ser tema recorrente das discussões econômicas, e grandescapitais passam a exaltar a necessidade de grandes ideias, é sinal de que algo muitorelevanteestáacontecendo.

Realidadesconsistentes

Vamosdeixardelado,porenquanto,nossoentendimentodoquesejarealidadeelevaropensamento a alguémcomooSuper-Homem.Nãonos espanta que ele voe,nemqueostirosricocheteiememseupeito,masincomodariabastantevê-lobrincandocomumioiôdekryptonita.

Domesmomodo,seriaabsurdoverIndianaJonesmanuseandoaespadadeluzdeLukeSkywalker, ou Darth Vader atrapalhando o relacionamento de Don Corleone com seusfamiliaresmafiosos.

Cada história tem seu universo, e cada universo tem seus códigos. É no significadodesseconjuntodecódigosqueresideaverdadedecadahistória.Portanto,eletemqueserrespeitado.

Seestabelecemosqueodragãocospefogo,issopassaaserumdadodoproblemaqueooponentedodragãoterádeenfrentar.Alegar,porexemplo,queogásdodragãoacabouderepenteouqueelepegouumagripequecongestionouseulança-chamaséumaquebradecontratoimperdoávelparaqueminvestiuemoçãonopríncipequepassouahistóriatodasepreparandoparaoduelocomaterrívelfera.

Tudo o que é combinado antes é convincente, desde que respeitados os gêneros econtextos. Uma vassoura voadora não cabe em um filme policial, assim comoextraterrestressesentiriamdeslocadosemumdramafamiliar,ouduendes ficariamsemassuntoemumthrillerpolítico.Existeumadelimitaçãoestabelecidapelobomsensodeaté onde podem ir os códigos. Em um contexto bíblico, aceitamos que Deus conversediretamente com os personagens. Em um contexto romântico contemporâneo, não cabedramatizar a perda da virgindade feminina como ocorreria, por exemplo, na Inglaterravitoriana.Emumcontextopublicitário,espera-sequesóasqualidadesdoprodutosejamevidenciadas.Ninguémdiria que determinadamarca é tendenciosa porque omite o quepodedesvalorizá-laemsuaspeçasdecomunicação.

Imaginemosamesmacenaacontecendoemhistóriasdiferentes:umhomemfugindodeumleão.Emumatramadeaventura,provocatensão;emumatramadecomédia,provocariso(porquesabemosdeantemãoqueemcomédiasninguémsemachucadeverdade);emuma trama de terror, pode ser apenas um sustinho menor dentre os muitos que nosdispomos a experimentar quando consumimos esse gênero; e em um comercial de TV,provoca curiosidade, provavelmente criando no público a expectativa de ser algorelacionadocomo ImpostodeRenda (aassociaçãodo leãoao imposto, já incorporadaàculturabrasileira,é frutodecampanhapublicitáriacriadapelaagênciaDPZeveiculadaem 1980). Aventura, comédia, terror, propaganda etc, cada um no seu quadrado. Opúblicosabeexatamenteoqueesperardetodososgênerosecontextos.

Umavezconvincentesoscódigosdentrodasexpectativastacitamentepreestabelecidasentreaspartes(autorepúblico),restaapenasserconsistente.Paraefeitosnarrativos,serforconvincenteeconsistente,nãosediscute:éverdade.

Estidadeeplausibilidade

Entramosagoranaáreamaisdifícildedeterminar,territóriodominadopelasensibilidadedoautor,ondeasdosagenssãodelicadaseasmedidas,imprecisas.

Ao mesmo tempo que Alfred Hitchcock nos diz que “história é a realidade sem asparteschatas”,JamesWoodpontuaanecessidadede“qualquerdetalhequeatraiparasiaabstração eparecematá-la comumsoprode tangibilidade”.Omesmoautor, emoutrosmomentos, nos fala de “empatia imaginativa” e decreta que “literatura é, ao mesmotempo,artifícioeverossimilhança”.

Até onde um detalhe se enquadra nas partes chatas que devem ser evitadas ou nasnecessárias para dar mais concretude à narrativa? Até onde podemos considerar umadescriçãoexcessivaouprecisa?

Nossoprimeirodilemanarrativoaconteceentreaprogressãodahistóriaeaestidade.Aprogressão exige foco naquilo que é relevante para o desenrolar da trama, enquanto aestidade salpica pontos de apoio que sustentam nossa relação emocional com as cenasquesedesenrolamdiantedenós.Erraramãonessetemperopodequebraroritmoefazerdesandarareceita,masnãotemperarpodetornarahistóriainsípida.

Estidade é o nome dado pelo teólogo medieval Duns Scotus ao processo deindividuação. O conceito original estava mais ligado ao detalhamento, e acabou sendoadotado sem moderação pelos pós-flaubertianos, que passaram a considerá-lo comonecessária manifestação de estilo. Como tudo na vida, o conceito evoluiu para o queJames Wood define como “o fato que promete escorar a ficção”. Ganhou, assim,elasticidade suficiente para que possamos considerar a existência de uma estidadehistórico-culturalque, inseridaemcontextoficcional, lheinfundearesderealidade.EmseuGetting it Right: The Publishing Process and the Correction of Factual Errors,M. J.Brucolli aponta a gravidade do tema, sentenciando que “erros factuais na ficçãoperturbamosleitoresqueosdetectameminamsuaconfiançanaobraenoautor”.

Nãonosfaltamexemplosdeestidadehistórico-culturalexplícitanosgrandesclássicos.Guerra e paz,AnnaKarenina,MadameBovary,Em busca do tempo perdido— só paradefinir o patamar a que me refiro — são obras tão ricamente contextualizadas quepodemos sentir vividamente as tensões sociais em que se desenvolvem e o invólucropolíticoqueasembala.

Saltando da literatura para um trabalho televisivo contemporâneo, a série DowntonAbbey nos traz os dramas de uma família aristocrática inglesa e seu séquito defuncionários no início do século XX, submetendo um bem desenhado elenco depersonagens fictícios aos efeitos do naufrágio do Titanic, do advento da telefonia, dosdebates em torno da liberação feminina, da Primeira Guerra Mundial, entre outros

eventoshistóricos.Acadafato,dessesquesabemosestaremregistradosnoscompêndiosescolares, soa uma espécie de canto da sereia que nos atrai para o miolo da história,dizendo:“Issorealmenteaconteceu,daítodoorestobemquepoderiateracontecido.”

Contextualizar historicamente é a forma mais elementar de estidade, mas a históriatambém pode ser usada apenas como referência remota. No filme Chinatown, umescândalo real envolvendoo chefedoDepartamentodeÁgua eEnergiadeLosAngeles,ocorrido em 1906: a Violentação do Vale Owens é usado como pano de fundo para atramapolicial fictícia que sedesenrola em1937.Nãohánesse caso a contextualização,masameraalusãoaalgoque, tendoacontecidoemépocadiferente,emprestapontosdecredibilidadeànarrativa.

Em uma outra escala de estidade, mais fiel ao sentido original do termo, estão osdetalhes descritivos aparentemente dissociados da trama. Não aqueles que tentampoetizarcadaelementodapaisagem,esmiuçarmobiliáriosedecoraçãodecada locação,oudiscorrerpáginas epáginas sobre traços físicos e figurinosdospersonagens.Esses jádefinimosno iníciodo capítulo comoexcessivos.Falodo acréscimocirúrgico,pontual,convidativo.

Quando um personagem policial encontra a mãe de um jovem morto pelo vilão dahistória,oqueinteressadeimediatoparaaprogressãodanarrativasãoaspistasqueelapode fornecerparaacapturadoassassino.Elapodeapenasdizerqueseu filho todasasnoitesdavaumapassadinhana lanchoneteFastBurgerquandovoltavado trabalhoparacasa. E digamos que o bandido seja um dos garçons da lanchonete, o que facilitaria oavanço das investigações. Nada mais seria necessário para que a trama fluísse, certo?Agora, algumas pitadas de estidade: o que aconteceria se essa mãe mostrasse fotos doaniversário de 15 anos do filho morto? E se ela caísse em prantos ao ver o vidro doadoçante usado pelo rapaz, registrando que ele tomava exatamente três gotas no café ecostumavadizerquesóocafépreparadopelamãeconseguiaficargostosomesmodepoisdemisturadoaoadoçante?Acabamosdeadicionarumtipodedetalhereservadoaosmaisíntimos, um detalhe que cabe perfeitamente no comentário de umamãe enlutada, quedefineavítimacomofilhoamoroso,algoquenavidarealaconteceriacomfacilidade,umassunto banal alçado à condição de destaque e tornando-se, por sua singeleza,especialmentetocante.

O que esse detalhe acrescentaria à história? Além do óbvio aumento de cargaemocional,estaríamosreforçandoavilaniadoantagonista,incrementandoarelevânciadamissão do policial e, em última análise, elevando todo o potencial de tensão eenvolvimentodanarrativa.

Umahistóriasóébem-sucedidaquandotrazemosopúblicoparadentrodela.Umavezconseguido isso, tudo fica tãomais fácil que até eventuais problemasdeplausibilidadesãogenerosamentedesconsiderados.

NofilmeSeven—Ossetecrimescapitais,escritoporAndrewKevinWalker,dirigidoporDavidFinchereestreladoporBradPitteMorganFreeman,umasériedeassassinatosbárbaros é inspirada pelos pecados capitais. Apesar de nenhum dos crimes sertestemunhadopeloespectador,avisãodasvítimaseasdescriçõesdosperitossãomaisdoque suficientes para nos encher de horror. A cultura literária e a larga experiência dodetetive Somerset (interpretado por Freeman) levam os investigadores até a casa doassassino,mas ele escapa e sónãomata odetetivemais jovem,Mills (interpretadopor

Pitt), porquenão quer. Fica evidente que o criminoso está no controle da situação e sediverteemchocareconfundirapolícia,a talpontoqueeledecideseentregar,anunciamaisduasvítimase se compromete a confessar tudo, semalegar insanidade, seosdoisdetetivesqueoinvestigamoacompanharematéolocalqueeleindicar.Opactoéfeito.Oassassino John Doe, brilhantemente interpretado em seus poucos minutos de cena porKevinSpacey,vainocarrocomosdoispoliciais, indicandoocaminhoedemonstrandoem sua conversa um alto nível de perturbação mental. Depois de dirigirem por algumtempo, chegam a uma região descampada, no meio do nada, quase desértica. Algunsminutosdepois,umfurgãodeencomendasexpressas,estiloDHL,chegaaomesmolocal.Somersetrendeomotoristadoveículo,conferesuaidentidadeeocrachádacompanhiaqueoemprega,everificaqueosujeitosimplesmente foicontratadopara fazeraentregadeuma caixa de papelão. Pacote entregue, omotorista é enxotadodali por Somerset, evolta a pé, muito assustado com a rudeza do policial. Mesmo sem ver o conteúdo dacaixa, todos sabemosqueaencomendaémacabra.Odesfechodo filmeé tãodramáticoque,envolvidosatéopescoçopelatensão,nãodamosamenorimportânciaparaofatodealguémsercontratadoparafazerentregasemumendereçoquenãoexisteeemumaépocaemquenemcomoGPSsepodiacontar.

Avenida Brasil, novela exibida com extraordinário sucesso no horário nobre da RedeGlobo de televisão, pode nos ajudar a entender melhor esse ponto. Tornou-se umfenômeno de audiência tão expressivo que as pessoas desinformadas de sua tramaenfrentavamdificuldadesparaconversarcomosamigos,vizinhosoucolegasdetrabalho.Pareciapautaobrigatóriade todasas rodas sociais.Personagensmuitobemdesenhados,dirigidoseinterpretadostransitavamemumcativanteenredorepletodereviravoltas,queabraçava todas as camadas sociais do Rio de Janeiro: rica, suburbana e miserável. Ocoraçãoda tramabatia emum subúrbio fictício chamadoDivino,maisprecisamentenamansão em que morava com sua família um famoso ex-jogador de futebol, Tufão. AlicozinhavaemfogobrandooplanodevingançadaempregadaNinacontraapatroa,esposade Tufão, Carminha. A mulher que encantava a todos com seu talento culinário era aenteada, que, na fragilidade da infância, fora cruelmente abandonada por Carminha noLixão,localexistentenavidareal,paraondequasetodoolixodacidadeeralevado.NaimundíciedoLixãodanovela,sobrevivendograçasaoquepodiamcatardentreassobrasdapopulaçãocarioca,moravamalgunspersonagens.Reproduzia-senahistóriaachocanteexistênciaderesidentesnoLixãoreal.Pormaisinteressantesediversificadasquefossemastramasparalelas,eranoeixoDivino-Lixãoquepulsavaonúcleodramáticocatalisadordetodasasatenções.

MashaviaalgonoLixãodaTVquesoavaestranho.Paraquemtinhanoçãodoqueeraaquele ambiente na realidade (um razoável número de cariocas), as idas e vindas dospersonagens do subúrbio e até da Zona Sul ao gigantesco depósito de lixo, que maispareciaumaespéciedebairro,eascondiçõesdevidaqueospersonagensdesfrutavamlá,com direito inclusive a festas incompatíveis com o entorno, formavam um gritanteconjunto de implausibilidades. Teria isso atrapalhado de alguma forma a sintonia dopúblicocomodesenrolardahistória?Nemumpouco.

AcargasimbólicadoLixão,representandoosrejeitadossociais,eramuitomaisfortedoque qualquer racionalidade. E, ainda que não houvesse tamanho simbolismo, as

interações entre os personagens, nas cenas que vivenciavam, eram tão poderosas que opúblicopreferiaperdoar,comoperdoou,esseeoutrospontinhosimplausíveis.

Quase toda história os tem. A plausibilidade, indiscutivelmente bem-vinda eincessantemente buscada, nem sempre é alcançável na sua plenitude. Personagens àsvezesagemdeformaincongruenteparapossibilitarviradasdramáticasmaiseletrizantes.Equandoofazemembenefíciodaemoçãoedoimpacto,opúblicochegaafingirquenãopercebeu.Primeiro,porqueotrilhodahistóriaéprioridadeabsoluta.Segundo,porqueatéo que acontece na vida real não consegue se manter cem por cento nos limites doplausível.

A pergunta fundamental é: qual nível de implausibilidade é suportável por umahistória?Atéquepontopodemos ir semqueopúbliconosdesqualifique,desistindodenosbrindarcomsuaatenção?

Comoninguémtemessaresposta,melhorlutarparamanter-seplausívelotempotodoeplanejarcomsegurançaosarquétiposcomosquaisvamoslidar,paraquea forçadeseusignificado nos sirva de escudo na hora que eventuais implausibilidades foremnecessáriasemproldomaiorimpactodahistória.

Dosesmaioresde estidade compensampequenosdeslizesdeplausibilidade.MaisumexemploqueAvenidaBrasilnosfornece.Assituaçõesvividasnosubúrbio,notadamentedurante as múltiplas refeições da família Tufão, geravam créditos de estidade quecobriam tanto a fantasia do Lixão quanto as inverossímeis manobras conjugais de umexecutivo da Zona Sul com suas três mulheres, que caminhavam em uma subtramacômicaàprimeiravistadissociadadonúcleodramáticocentral.

Críticas à obra de João Emanuel Carneiro?Ao contrário, só elogios.As obrigações deumanovela emhorárionobre, queprecisa atender a todo tipodepúblico, equilibrandodrama,suspenseecomédiaemnumerososcapítulosqueconduzamnarrativaeaudiênciaem um crescendo constante, são praticamente incompatíveis com alta qualidade. MasAvenidaBrasildriblouessaquase-regra,consagrando-secomoummarconadramaturgiatelevisivabrasileira.

Capítulo6

QUALIDADEARQUETÍPICA

Umalongahistórianosprecede.OsarquétiposcomeçaramnaGrécia,comPlatão.Designavamasideiasqueserviriamde

modelopara tudoquenos cerca.Noencontrodoneoplatonismocomocristianismo,osarquétiposforamintroduzidosàfilosofiacristãedivulgadosporSantoAgostinho.

NoDicionáriodaLínguaPortuguesa (NovoAurélio,SéculoXXI),arquétipoédefinidocomo“modelodeserescriados,padrão,exemplar,protótipo...”.Adefiniçãoé reforçadacomexemplos como: oparaísoperdido, odragão e o círculo—arquétipos encontradosemdiversascivilizações.Taisexemplossereferemaoque,nafaltadeenunciaçãomelhor,podemos chamar de arquétipos situacionais, que rivalizam em importância com osarquétipos pessoais. Os primeiros, voltados para vivências; os segundos, voltados parapersonagens.

Carl Jung assumiu os arquétipos na psicologia analítica como imagens universaisexistentes desde sempre, cristalizadas em estruturas inatas com que expressamos edesenvolvemos nossos alicerces psicológicos. Constatou sua presença no inconscientecoletivoesuainfluênciadeterminantenasvidas,sonhosenarrativasdetodasaspessoas.Segundoele,osarquétiposseformarampelarepetiçãodeexperiênciasaolongodeváriasgerações,produzindoemnósarepetiçãoautomáticadessasexperiências.Estariam,graçasaessateiadereforçosconstantes,intimamenteligadosanossasintuições.

Apesar da aparência monolítica, Jung realça que os arquétipos funcionam comopotencializadores, não como formas estáticas. O segredo de sua validade através dosséculos está nas reinterpretações que vêm sofrendo, em processo de atualizaçãopermanente. E, dada a autonomia de cada arquétipo, naturalmente alguns vão ficandomais fortes, destacando-se dos demais. Quem não visualiza imediatamente uma figuraquandonosreferimosà“donzelavirtuosa”,ao“guerreirocorajoso”,à“rainhagentil”ouao“grandesábio”?

Os sereshumanos e, consequentemente, os grandespersonagens combinamdiferentesarquétiposempersonalidadesqueelevamseupotencialdeencantamentoàmedidaqueseapresentammultifacetadas,complexasecomalgumadosedecontradição.

Narratologia

Dafilosofiaparaapsicologia.Dapsicologiaparaanarratologia.Tudoestáinterligado.QuandoJungafirmaque“nosmitosecontosdefada,comonosonho,aalmafaladesi

mesma e os arquétipos se revelam em sua combinação natural, como formação,transformação,eternarecriaçãodosentidoeterno”,eledesembocadiretamentenaciênciadostorytellingbatizadacomonarratologia.

A ele se seguiram Joseph Campbell, grande estudioso da mitologia universal, quereuniuprotagonistasdo folclore,dos contosde fada edas religiões comomanifestaçõesdediferentescamadasdeumamesmahistória;VladimirPropp,acadêmicoestruturalistarussoque,dissecandocentenasdecontospopulares,identificouneles31funções,apartirdeseunúcleoeelementosnarrativoscomuns;eChristopherVogler,professor,consultoreroteirista de Hollywood, influenciado por Propp, que nos acolhe em seu website,dizendo:

“Bem-vindoaomundodeTheWriter’sJourneyeStorytechLiteraryConsulting.Estesiteé dedicado a contar melhores histórias e descobrir a sabedoria dos antigos mitos elendas.”

Enquanto Campbel considera os arquétipos praticamente como parte da biologiahumanaeosdefineapartirdo“herói”emsua jornada,Proppseempenhaemdescobrirumpadrãoarquetípicodecomportamentonasestruturasdenarrativapopular,eVogleroscompreende como modelos utilizados pelos personagens segundo as necessidades deprogressãodecadahistória.

Em poucas palavras, o pensamento original de Platão foi se encorpando ao longo dotempo, e teve sua forçaalavancadacomapublicaçãodeOsarquétipos e o inconscientecoletivo, de Carl Jung. Revelou ainda os significados mais profundos do storytelling.Daquele ponto para os domínios do marketing, planejamento estratégico e criaçãopublicitária foiumpulo.BastouMargaretMarkeCarolS.PearsonlançaremseulivroOheróieoforadaleieasportasdasagênciasdepublicidade,brandingeafinsseabriramimediatamenteparaoassunto.

Osarquétipos

OgrandeméritodasduasautorasdeOheróieoforadaleifoirelacionartodooconteúdofilosófico, psicológico e narratológico acumulado, desde tempos imemoriais, com ouniverso das marcas. Agrupando perfis arquetípicos por afinidades atitudinais, comoIndependência/Autorrealização, Pertença/Grupo, Mestria/Risco e Estabilidade/Controle,MarkePearsonidentificaramospadrõescomportamentaisdeváriasmarcasconhecidas,facilitandoumprocessodeanálise tãoútilpara exercíciosdeautoconhecimentoquantoparaanálisedecenáriocompetitivoeplanejamentodemigraçãoarquetípica.

Estavam criadas as condições para um protagonismo planejado das marcas,cuidadosamente alinhado com o inconsciente coletivo e a memória ancestral dosconsumidores, de modo a fazer com que se sentissem participantes da identidade dasmarcascomquetivessemalgumaformadeinteração.

Noprimeiro grupo,direcionadopara Independência/Autorrealização, encontram-seosarquétipos ligados ao individualismo, à reflexão, ao desejo de alcançar uma vidaidealizada.Sãoeles:

Inocente—Asnaturaisassociaçõescom infância,bondade,prazeres simplesdavida,fazemdestearquétipoomais“família”detodos.Costumaatrairconsumidoresdeperfilmais leve e comportado. Entre suas marcas, encontramos Disney, Coca-Cola eMcDonald’s.Explorador — Evoca estrada, aventura, descoberta, uma vida sem fronteiras, livre,autêntica.Atraiconsumidoresdeespíritojovem,quecurtemoefeitodaadrenalinanosangue.MarcascomoLevi’s,LandRovereStarbucksfazempartedestearquétipo.Sábio—Suafrase-chaveé“Averdadelibertarávocê”.Valorizaoconhecimento,buscaestar bem informado. Encontra boa aceitação entre consumidores maisintelectualizados. Sãomarcas deste arquétipo: CNN,TheNewYork Times, FundaçãoGetúlioVargas.

No segundo grupo, denominado Pertença/Grupo, estão elencados os arquétipos quelidamcomsituaçõessociais,vinculadosaogregarismoevalorizadoresdopertencimento,como:

Caracomum—Écertamenteomenospretensiosodosarquétipos,fatoqueotornamaisadequado a marcas singelas, que não tentam provar nada a ninguém, exalandodesprendimentoeautoconfiança.Porexemplo:Hering,Gap,Visa.Amante—Arquétipoqueensejaaproximaçõesmaisíntimascomopúblico.Fazojogoda exclusividade, do sentir-se especial. Satisfaz os que gostam de lisonjear e serlisonjeados.Suasmarcas:Godiva,Hallmark,H.Stern.

Bobodacorte—Esteéoespaçodadiversão,dasatitudesengraçadas,irreverentes.Seo“cara comum” é o sujeito na dele, e o “amante” é o que se desdobra em atenções, o“boboda corte” é o gozadorda turma.Marcas que representameste arquétipo:Pepsi,Skol,M&Ms.

Oterceirogrupo,Mestria/Risco, relaciona-secomodesejodeenfrentardesafios, lutarpelossonhos,buscarconquistasmemoráveis.Nelereúnem-seosseguintesarquétipos:

Herói—ApresentadoporCampbell e outros estudiosos como o arquétipo ao qual osdemaissereferem,oheróimuitasvezeséconfundidocomoprotagonista,prejudicandoo entendimento de que todo arquétipo tem o poder e o direito de protagonizar. Osarquétipos são iguais perante omarketing e a comunicação demarcas, não existindoqualquerhierarquiaentreeles.Cadaumtemsuacaracterísticadiferenciadora,só isso.Odiferencialdoheróiésuacrençanopoderdavontade.Sequeralgo,vaiemfrenteatéconseguir. É o arquétipo de quem sai na frente e busca semanter na liderança, semmedodenada.Nike,TagHeuereGatoradeestãoentresuasmarcas.Forada lei—Partedoprincípiodeque as regras existempara seremquebradas.Porsuacaracterísticadestemida,tangenciaconstantementeo“herói”.Gostadechocar,temprazer em desestabilizar. Marcas que aqui se encaixam: Apple, Harley-Davidson,Diesel.Mago — Propõe-se a melhorar a realidade de quem o segue. Transfere podertransformador para seus consumidores.Mastercard, Sky e O Boticário se posicionamnestearquétipo.

E,encerrandoalista,ogrupoEstabilidade/Controleéoquedialogamaisdepertocomaserenidadeeopoder.Senhordesi,semsolavancos,propõe-seadarestruturaaomundo.Seutriodearquétiposéformadopor:

Governante— Para este arquétipo, o que importa é o poder. Estar no controle é suapromessa. Identifica-se com um público elitista. Suas marcas: American Express,Microsoft,IBM.O prestativo — É o arquétipo das marcas que se propõem a cuidar de seusconsumidores. Têm na dedicação e no zelo seus traços principais. São prestativasmarcascomoJohnson&Johnson,GEeAT&T.Ocriador—Dividecom“oherói”opapeldainovação,sóqueofazdemaneiramaiscontida, menos atrevida. É imaginativo, mas evita riscos. Exemplificado por marcascomo3M–Post-it,Faber-CastelleGoogle.

AntonioNúñez,emseulivroSerámejorquelocuentes!,apresentadeformasingularapresençadosarquétiposnopercursodenossaexistência.Segundoele:

ComeçamosInocentes.Maisadiante,vemaadolescênciaenosconvertemosemForasda lei, enquanto aprendemos a ser Heróis para abrirmos caminho pela vida. Emseguida, aprendemos a ser Amantes e a encontrar parceiros. Logo, ao formarmosfamília e assumirmos responsabilidades profissionais, nos tornamos Governantes.Supõe-se que na maturidade sejamos Sábios e Magos, dominando todos osconhecimentos necessários para viver, até que, no fim da linha, voltamos a serInocentes.

Faltamvários arquétipos nahistorinhadeNúñez, provavelmente por uma questãoderitmonarrativo.Comumpoucodeimaginação,nãoédifícilincorporá-losaotexto.

Importante:Osarquétiposnãosãoexatosnemestáticos,eexistea possibilidade de vários deles conviverem na mesma marca.Assemelham-se nesse aspecto aos signos do Zodíaco, queapresentam tendências de personalidade, nem sempreconsistentes no dia a dia, além de habitualmente mostraremcaracterísticasdeumsignoprincipalmescladascomasdeoutrosigno afim. É comum dizer-se que fulano é do signo X, comascendentenosignoY.Omesmoocorrenocampoarquetípico.

Marcassãopersonagens,ouseja,sãocomopessoas.Natural,portanto,quehajamarcascomoarquétipodominanteZetraçosdoarquétipoV,talvezatéflertandoumpoucocomW. Do mesmo modo, há marcas que nascem dentro de determinado arquétipo e, porcircunstânciasvariadas,acabammigrandoparaoutro.Amadurecem,crescememdireçõesinesperadas, são surpreendidas por mudanças bruscas na concorrência... há inúmerascausaspossíveis.Qualquerquesejaomotivo,mudardearquétipoésempreumamanobraarriscada. Se for para acontecer, convém fazê-lo de forma voluntária, consistente,coerenteeminuciosamenteplanejada,outudopodeacabaremumirreversíveldesastre.

Igualmente importante:Odiagnósticodasmarcasusadascomoexemplos de cada arquétipo pode conter equívocos, gerardúvidas,provocardebates.Ninguémgarante,porexemplo,queoGoogle seconsidereGovernante,deteste severcomoCriadorou planeje mudar para qualquer outro arquétipo neste exato

momento.QuemsabetrocandodeposiçãocomaMicrosoft,cujaautopercepção conduz mais para Criador do que paraGovernante? Tudo é muito relativo nesse campo. Uma marcaHerói, comoNike, pode ter seusmomentos Fora da lei, certoscacoetesdeMago,eporaívai.

Se combinações são possíveis, variações de percepção e interpretação tambémacontecem com frequência. Nas apresentações de definição arquetípica que fiz a váriosclientes, prevaleceram com larga vantagem as reações de excitação e aplauso,mas nãoeram raros os diretores que rejeitavam uma ou outra característica, poucas vezesreprovando a análise como um todo, mas ocasionalmente abrindo discussões internasmuitosemelhantesàsgeradasemterapiaspsicanalíticasgrupais.Aproveitandoamençãoa “grupos”, vale registrar que é maior a ocorrência de combinações ou desvios entrearquétipospertencentesaomesmogrupo.

Um mundo de possibilidades: Arquétipos não são territóriosexclusivos.Aexclusividadeaserbuscadaestánaformacomqueos arquétipos se expressam. Personagens e marcas Heróismanifestam seu heroísmo de maneiras distintas, o mesmoocorrendocomAmantes,Criadoresetc.

Não existe também correlação imediata entre arquétipo de marca e categoria deproduto.Nosegmentodeinseticidas,porexemplo,amarcaRaidpodesecomportarcomo“Herói”noestiloChuckNorrisaoafirmarque“matabemmorto”,enquantoamarcaSBPpode adotar o perfil de “Prestativa” com traços de “Inocente” ao se apresentar como“terrível,contraosinsetos”,enfatizandoinsistentementequesuapreocupaçãoprincipalénãooferecerqualquerriscoàsaúdedeseususuários.

Perigo: O uso descontrolado dos arquétipos pode levar ànegativação de suas qualidades. Assim, o Inocente pode setornaringênuo,oExploradorpodeperderorumoesecomportarcomo um incapaz de assumir compromissos, o Sábio pode setransformar em um teórico desconectado da vida real, o Caracomumpodecairnaarmadilhadesersimplista,oAmantepodetantosermanipuladoquantomanipulador,oBobodacortepodevirarsuperficial,oHeróipodepassaraverinimigosemdemasia,oForadaleipodeseconsagrarcomoagressor,oMagopodese

encantar com seus próprios poderes, o Governante pode serevelar um tirano, o Prestativo pode sufocar os outros comsuperproteção, e o Criador pode se enredar em umperfeccionismodoentio.

Aplica-se, portanto, aos arquétipos a famosa advertência expressa na propaganda debebidas alcoólicas:Aprecie commoderação. Como tudo na vida, os arquétipos têm seuladosombrio.

Feitasasressalvaseesclarecimentos,éindiscutívelqueasintoniadosarquétiposcomocomportamentodasmarcasabrangetudooquelhesdizrespeito,daslinhasdeprodutoàdistribuição,daembalagemaopontodevenda,dapropagandaaospatrocíniosdeeventos,brandedcontents,productplacementseintegrations...absolutamentetudo.Quantomaiscoerência e harmonia em suas manifestações, mais significado terá a marca, maissustância,impactoememorabilidadeterásuahistória.Exatamentecomoospersonagensdeficçãoquenosmarcam.

OfamosoForada leiRobinHoodnãoalcançariaareputaçãoearepercussãoquetevese, de ummomento para o outro, abandonasse seu princípio de roubar dos ricos paradistribuir aos pobres, ou se transformasse em um medroso protetor dos tesourosarrecadados em Sherwood, passando de líder de bando a gestor de um fundo deinvestimentos.Romeu,típicoAmante,perderiasuarelevânciacomoinesquecívelpardeJulieta se deixasse de ser um romântico apaixonado para adotar um estilo garanhãoinsaciável.EDmitriFiodorovitchKaramázov,outroForadaleicomfortesinfluênciasdeInocenteeExplorador,nãoteriaaforçaquelevouOsirmãosKaramázovaserconsideradoporNietzsche eFreud comoamaior obrada literaturamundial seperdesse seu caráterimpulsivo,agressivo,radicalefalastrão.

Sem coerência e consistência, perde-se a qualidade arquetípica; sem essa qualidade,perde-seosignificado;e,semsignificado,nenhumahistóriaficadepépormuitotempo.ComodizRobertMcKee,“aartedodesigndahistóriaestánoajustedascoisascomunseincomunsàscoisasuniversaisearquetípicas”.

É com a qualidade arquetípica que se atinge uma experiência humana universal— ajoia buscada por escritores, roteiristas e criadores de campanhas publicitáriasinternacionais, a que damos o nome de “Human Truth”. Lembra quando falamos de“verdade”nocapítuloanterior?Averdade se revelaporestranhosmeios,mostra-senascontradições entre o consciente e o inconsciente dos personagens, mostra-se nasdualidades, nas diversas camadas, nos heróis que fraquejam, nos vilões que têmmomentosdebondade.Mostra-se em tudoque reconhecemoscomo inerente à condiçãohumana:natriplanegaçãodePedroaJesus,nosuicídioarrependidodeJudasIscariotes,na oscilação entre pátria e Al-Qaeda do fuzileiro Nicholas Brody em Homeland, nos

tormentosdeRaskólnikovemCrime e castigo, nas fragilidades, quedas e reerguimentosquecompõemnossaexistência.

Para os autores, a verdade se esconde nas frestas do processo criativo, se disfarça deelementonarrativo,viveinventandotruquesparaescapar.Paraopúblico,elasecomportade maneira oposta. Apresenta-se ou denuncia sua ausência, logo de cara. Mesmo semracionalizar,opúblicoidentificaaverdadesobreanaturezahumananoexatoinstanteemqueavê.Seissoacontece,tudovaibem.Senãoacontece,simplesmentenãovai.

É sintomático queTomBernardin eMarkTutsel, da LeoBurnettWorldwide, tenhambatizado de HumanKind o método de abordagem de sua agência de publicidade,apresentando-o emum livro commaisdeduzentaspáginas. Lá eles afirmama respeitodaspessoascomquemtrabalham:

Àsvezesseuspensamentossãograndiosos,genéricoselimitados.Qualéosignificadodavida?Porqueàsvezescompartilhamos,cobiçamoseescondemos?Porqueàsvezesamamoseodiamosamesmapessoa?Ecomoépossívelamareodiaramesmapessoaaomesmotempo?Mas, em outras ocasiões, seus pensamentos são granulares e extremamente focados,aprofundando-se cada vez mais para alcançar uma verdade humana essencial einquestionável.

Quando William Faulkner afirma que “a natureza humana é o único assunto quejamaisenvelhece”,eleescancaraafontedopoderdesuaobra,edetodasasoutrasqueseinstalaramemnossoarquivodeexperiênciasemocionaissignificativas.

Capítulo7

ESTRUTURANDOAHISTÓRIA

Começano“Eraumavez”,terminano“foramfelizesparasempre”,epronto.Nomiolo?Bem,aliagentecolocaasideias.

A adaptaçãoda velhapiada sobre como escreverum texto se aplicaperfeitamente aodesenvolvimentodeumahistória,atéporquetodahistóriaéantesdetudoumtexto.Semescritores, não há livros. Sem roteiristas, não há filmes. Sem redação, não há jornalimpresso, nem televisivo, nem radiofônico, nem on-line, assim como não há nenhumadas formasdepublicidade.Tudo éprecedidodeum texto. E todo texto éprecedidodeumaideia.

Écertoquejornalistas,assimcomodocumentaristas,largamnafrentedosficcionistas,por já terem as histórias em estado bruto diante de seus olhos. Mas o trabalho delapidação e a escolha da melhor maneira de contá-las requerem habilidades criativasmuitosemelhantesàsdosdemaisnarradores.

No fundo, tudo se resume a respeitar o manual de instruções de cada forma deexpressão.

Oromancistapodesedaroluxodedescreverepoetizaroquelheparecermaistocante,instigante, interessante, por quantas linhas achar conveniente, considerando que seutrabalhopoderáserapreciadoporumperíododetemposobocontroledoleitor.

O autor teatral pode rebuscar, só que não tanto quanto o romancista, sob pena dedesconectar-sedaspessoasquesaíramdesuascasasepagaramingressosparaseentreter,duranteumperíodopreestabelecidode tempo,comahistóriaqueele temacontar.Suavantagemépoderproporjogoscomaplateia,determinando,porexemplo,queumatrocadeluzsignifiquemudançadecenário,ouummesmoatorrepresenteváriospersonagens,identificadospor códigosde figurino, iluminação, trilha sonora,ou singelasnuancesdevoz,gestos,posturafísica,expressãofacial.

O roteirista de filmes, séries ou novelas tem que sacrificar o estilo linguístico paraenfileirareventosdamaneiramaisclaraesucintapossível,deformaqueessasequência

deeventosresulteemumaexecuçãoaudiovisualquesegureaatençãodeseupúblicoporcercadeduashorasnocinema,ousabe-seláquantoscapítulosdequantotempodiantedequaistelas.

Opublicitáriotemqueconciliarohistóricodeumaempresaanunciantecomahistóriade marca, encontrando a narrativa mais adequada para criar envolvimento com seupúblicodeformaageraridentificação,admiração,interaçãoevendaemumnúmerocadavezmaiordeplataformas epontosde contato.E, de todosos storytellers, é o quemaisnecessita de concisão para inserir a macronarrativa da marca emmicro-historinhas depoucos segundos e mínimas palavras. Entre os criadores publicitários, não é raroencontrarmos contistas e roteiristas de curtas-metragens, gêneros narrativos maisapetitososparaosqueconvivemcomapermanentenecessidadedesintetizar.

Já o jornalista tem que organizar os fatos da forma mais exata, objetiva, atraente epalatávelpossível,oque incluiapossibilidadederomantizá-los,provocara imaginaçãodo público sobre eventuais lacunas em sua apuração, apontar mistérios, sublinharencantos, enfim, exercitar um pouco de sua verve literária. Tom Wolfe e Gay Talese,expoentes do New Journalism, reduzem a quase nada as fronteiras entre jornalismo eliteratura,brindando-noscomlivrosmaravilhosos.Articulistas,cronistas,biógrafos...sãomuitososprofissionaisdaimprensaqueultrapassamoregistrodosfatosparatransformá-losempuraarteliterária.

No finaldascontas, todossãostorytellers.E todosusamamesmamatéria-prima,queé...Pensouempalavra?Nadadisso.Amatéria-primadetodososquesededicamacontarhistóriaséavida.Adiferençaentreelessóaparecequandonosfixamosnosobjetivosdecadatexto,nosformatos,nosestilosenasespecificidadesdemanuseiodalinguagem.

Ideia

Discorrendosobreaartedaficção,HenryJamesressaltaque“otrabalhoébem-sucedidoàmedidaquea ideiaopermeiaepenetra,o informaeanima...Ahistóriaeo romance,aideiaeaforma,sãoaagulhaeofio...”.

Nãoédifícilcompreenderaposiçãonucleardaideianaelaboraçãodahistória.Masnapráticacostumasercomplicadoidentificá-la.Muitoscriadores,nãoimportadequeárea,balançam,pigarreiamesuamfrioquandoperguntadossobrequaléaideiacentraldesuaobra. Difícil resumir algo que se localiza em um ponto de partida distante, de ondebrotaram tantas ramificaçõesanosconfundiravisão.Cadêa sementedepoisqueela setornaárvore?Porincrívelquepareça,sãoinúmerososcasosemqueadefiniçãodaideiacentral de uma história acaba delegada à crítica, ao público ou a quem quer que sehabiliteaprocurá-la.

Agarrar-seàideiadesdeocomeçoéamaneiramaissimplesemaislógicadetrabalhar.Esótrazbenefíciosaoautor.Énomomentoinicialdeenunciaçãodaideiaquesedefineatrajetóriadotrabalho,podendo-seinclusiveperceber,atempodeabortá-lo,seelevaiounãonoslevaraalgumlugar.

Com uma ideia clara na cabeça, tudo flui commais naturalidade, tudo faz sentido econverge para uma narrativa bem-sucedida. Antes de escrever o “Era uma vez”, bastatermosnapontadalínguaarespostaaduasperguntas:

1.Sobreoqueéahistória?Nestaanálise,écomumconfundira ideiacomo tema.Sãoníveisdeanálisediferentes.Emumahistóriacujotemaseja,porexemplo,“asagrurasdavelhice”,aideiapodeser“avida cobra de nós os erros cometidos na juventude”. Em uma história sobre “amoresimpossíveis”, a ideiapode ser “vale apenaviver emorrerpor amor”.O escritorMilanKunderadizque“umtemaéumainterrogaçãoexistencial”.Digamosqueaideiasejaumadaspossíveisrespostasaessainterrogação.

2.Oqueahistóriatemdeespecialqueafazmerecedoradesercontada?Aqui entra o fator diferencial, o ineditismo. Ideias absolutamente novas são cada vezmaisraras,ejásedissequesóAdãotevecertezadeseroprimeiroaproporalgumacoisa.Masaformadeabordá-lasoualgunsdeseusaspectosrelevantesprecisamserdiferentes,para surpreender e despertar interesse no público. Todos estamos habituados a amoresnão correspondidos, litígios entre irmãos, esportistas que se desdobram para sair doostracismo e voltar à glória, assassinos seriais com traumas de infância, famílias rivaisque se consomem em atos de violência recíprocos, choques políticos, de gerações, decrenças, de posição social etc. Esses e outros temas continuam válidos, desde que asideias que os embasem e a forma encontrada para discorrermos sobre eles tenham umtoquedecriatividadequecauseimpactonopúblico.

Comissoemmente(oquenãoépouco),podemosseguiradiante,semtantomedodasincertezas inerentesaoprocessocriativo,permitindoqueaprópriaestradanosensineoqueaindanãosabemos.ComodizE.L.Doctorow,“escreverumromanceécomodirigirumcarroànoite.Vocêsóconsegueenxergaratéondealuzdosfaróisalcança,maspodefazeraviageminteiraassim”.

Narrativaéonomedojogo

Final de campeonato. Duas equipes entram em campo. Antes de chegarem até ali,enfrentaramdiversosdesafios,tiveramquesuperarváriosadversários,sofreramreveses,eagoraétudoounada.Torcedoresdeambososladosroemasunhas.Algunsdosjogadoresnão estão no melhor de sua forma, outros nem puderam ser escalados por questõesdisciplinares ou contusões, há boatos em torno de negociações milionárias deste oudaquele atleta com clubes rivais. Os técnicos de cada time representam escolas

estratégicasdistintas:umadeptodapressãonoataque,outroconvictodequeomelhoréser forte na defesa para se lançar em contra-ataques rápidos e fulminantes. Tensão eexcitação dominam a atmosfera em que todos esperam vencer, mas ao mesmo tempotemempelopior.E sobre todaessa excitaçãopairao “pesodas camisas”,nomepoéticodado à história pregressa de cada equipe, suas conquistas e feitos heroicos, a mágicaescondida na tradição, que pode exercer seus poderes a qualquer momento, sobrequalquerdoscontendores.Estãolançadososelementosdeumaboanarrativa.

Todahistóriaéumabusca.Nãoconheçodefiniçãomaissimplesdo que essa, e infelizmente não sei quem a formulou; li emalgum lugarhábastante tempo, e ela grudounaminha cabeça.Buscas pressupõem a existência de um objetivo (goal, eminglês). Daí a analogia com o jogo, qualquer jogo. Daí oentendimento imediato das paixões despertadas pelascompetições esportivas e pelas boas histórias. O que aconteceemuma lutadeboxe senãooduelo final,onde se resolveráoconflitoinsufladopelascoberturasjornalísticasepordeclaraçõesprovocativas cada vezmais comuns entre os lutadores?TouroIndomável,Rockyesualongasequência,quantosfilmesjáforamproduzidosmostrandoosdramasdeboxeadores,comoclássicodesfecho que se assemelha ao que vemos nas grandes disputasde cinturões? A questão narrativa é tão bem demonstrada noesportequeaténowrestling,luchamexicanaoutelecatch,comoficou popularizado no Brasil há algumas décadas, ela semanifesta com extraordinária veemência. Nessas lutas,personagens, claramente definidos como heróis e vilões, seenfrentam teatralmente, fantasiados segundo os papéis querepresentam, encenando reviravoltas, burlando as “regras” efazendo com que a plateia se identifique com o protagonista etorçaporele,mesmosabendoquetudoaquiloéficção.

Grandes clássicos da literatura foram escritos em doses homeopáticas publicadas emjornal(aprincipalmídia,antesdaconsolidação,primeiro,dorádioe,depois,daTV).Eofrisson causado por suas histórias garantia a venda das edições posteriores. Todosqueriamsaberoque acontecerianos capítulos seguintes, quedestino aguardava aquelespersonagens que gradativamente aumentavam sua intimidade com os leitores. Muito

parecidocomofenômenodastelenovelasedosseriadosdehoje.Comopassardotempo,mudou a mídia principal, mas o conteúdo que mobiliza o público continua sendo omesmo:história.

Odesconhecimento sobre o que vai acontecerno final é o quenos faz acompanhar opercurso. Como ápice da narrativa, o final tem que ser marcante, impactante esurpreendente.Contrariaraexpectativadamaioria,portanto,éumaopçãoqueprecisaserconsiderada.Que graça teria um jogo decisivo se soubéssemos de antemão qual seria oresultado? Que destino teriam obras como Madame Bovary,Anna Karenina, Romeu eJulieta e tantas outrasde indiscutível qualidade emerecida repercussão se seus autoressucumbissemàtentaçãodelhesdarumfinalfeliz?OqueaconteceriacomoChinatown,roteirizadoporRobertTowneedirigidoporRomanPolanski, seelesnão resistissemaoinstintodepunirovilãoJulianCross?

Felicidadeéoquecadaumdenóstemcomoobjetivo.Senossavidafosseumfilme,éclaroquebuscaríamosum final feliz.Senosso timedocoraçãoestiverdisputandoumapartida,nadamaisnaturalquetorçamosparaqueelevença.Masavidaestálongedeserperfeita. E, sendo metáforas da vida, as histórias não podem sempre acabar bem.Felizmente.Quando, através das histórias, podemos viver vidas diferentes das nossas ecom issoaprenderumpoucomais sobrea artedeviver,nadamaismaravilhosodoquepodertestemunharodestinodospersonagens,pormaistrágicoqueseja,nasegurançadeconfortáveispoltronas,comumsacodepipocaeumcopode refrigeranteaoalcancedamão.

Objetododesejo

Emumjogodefutebol,oobjetivoimediatoécolocaraboladentrodametaadversária,enãopermitirqueoadversário façaomesmoconosco.Consideradasasvariáveisdeumapartida, onde os esforços do adversário também podem ser recompensados, nossatisfazemosse,aofinaldojogo,tivermosconseguidochegaraogolmaisvezesquenossooponente.Essaéumaconvençãobásica,reconhecidaportodos.Significavencerojogo.

Masdigamos que seja uma final de campeonato emquenos baste empatar ouperdercompoucadiferençadegols.Oobjetivomaiorpodenosfazercomemorarmesmodiantedaderrota.Aidentificaçãodoobjetodedesejodoprotagonistadásentidoatodososseusatoseescolhas,enosfazcompartilharseussucessosefrustrações.

Selidamoscomumpersonagemqueestáàsvoltascomumagrandedescobertanuclear,não precisamos que ninguém nos dê aulas de física. Basta sabermos que aquilo éimportante para o personagem, para a trama, talvez para o futuro da humanidade. Semmaioresexplicações.Nadamaischatoquenarrativasprofessorais.

AlfredHitchcockdefiniucomoMacGuffinaquelemisteriosoobjetodedesejoquelevapersonagens a matar, morrer, se envolver em situações complicadíssimas, sem que emnenhummomento fique claro do que se trata. São os personagens fugidios, os lugaresobscuros, os projetos sinistros, as pastas, os quadros,mapas, papéis,microfilmes e pen

drives,cominformações tãosecretasquenemos roteiristasseatrevema imaginar.Paraquê?Sócomplicariaoritmodahistória.

Namesmacategoriase incluemosdocumentos inexplicáveis,comoadisputadaCartadeTrânsitodo filmeCasablanca, quepermitiria a seuportador escapardas autoridadesnazistas rumoapaísesnãoafetadosdiretamentepelaguerra.TudoemCasablanca é tãoconvincente — embora sem qualquer compromisso com a realidade histórica — queengolimos a tal carta como fato consumado e ficamos torcendo para que caia em boasmãos.

Todahistóriacaminhanadireçãodeumobjetivo.Saberdoquesetrata,mesmoquenãoocompreendamoscomexatidão,éoquenosbasta.

Transformação

Otrajetodeumahistóriadopontoinicialaopontofinal(lembradametáforadaviagem?)não pode evoluir em linha reta, sem turbulências e sem que alguma transformaçãoaconteça. Se existe algo que nos mobiliza nesta vida são as transformações: físicas,emocionais, culturais, profissionais, sociais, espirituais, de toda ordem. Algumas sãodesejadas, perseguidas até, mas nem por isso destituídas daquele medinho queacompanha tudooqueénovo.Gostamosdevê-las se realizandonashistórias,paranosprojetarmos nos personagens com que desenvolvemos maior identificação, paraanteciparmosasensaçãodenossossonhossetornandorealidade.Casamentos,mudançasde emprego, grandes paixões, viagens, enfrentamentos com situações de opressão estãoentreosmuitosexemplosdessastransformaçõesbem-vindas.

Outrassãorejeitadas,evitadasaomáximo,nosaterrorizamapontodequerermosvê-lasacontecendonashistórias,paracompreendermosmelhorcomoocorremeaprendermosaevitarasarmadilhasemqueospersonagenssedeixaramenredar.

Transformaçãoéo resultado inevitáveldoscaminhosquepercorremos.Oacúmulodeexperiênciasnos transforma,opassardo temponos transforma,queiramosounão, tudosetransforma,oupelomenosnosajudaarevelarnossaverdadeirapersonalidade.Issosechamao“arco”dopersonagem.

Tempo

Aodefinirastrêsunidadesdeaçãodramática,Aristótelescomeçoucomotempo.Depoisdele,vêmespaçoeação.

Toda história é um corte no tempo. Escolhemos a fatia em que se desenrola umasequênciadefatosqueresultaemumenredointeressante,eali ficamos.Sendotempoa

matéria-primadavida,evidaamatéria-primadahistória,nadamaisnaturalqueotemposejaaunidadebásicasobreaqualtantoavidaquantoashistóriassedesenvolvem.

Históriastêmdoistempos:onarrativoeoexpositivo.Oprimeirocompõeatessituradahistóriaedelimitaoperíodoemqueatramaacontece

(a resoluçãodeumcrime,aduraçãodeumacriseconjugal,oprocessodesuperaçãodeumadoençaetc),masnadaoobrigaaserlinearcomonavidareal.Paranossafelicidade,o tempo narrativo pode ser fragmentado, pode dar saltos para a frente e para trás,flexibilizando-seaosabordoestiloedoritmoqueadotamosparacontarnossahistória.

Eelenãotemnadaavercomotemporeal.CemanosdesolidãopodemserdescritosporGabrielGarcíaMárquezemmenospáginasdoqueumúnicodiadoUlissesdeJamesJoyce.AsmaisdeduasmilpáginasdeGuerraepaz, deLeonTolstói, nos contamumahistória que se passa em um período de 15 anos. Famoso tanto pela qualidade doconteúdoquantoporsuaextensão,oromancefoiadaptadoparaocinema,transformando-se emum filme lançado em1956, com208minutosdeduração, bemmais longoque amédiadosfilmes,porém,comoacontececomtodasasadaptaçõesdeobrasliteráriasparaa tela, bemmais rápido do que o tempo de leitura exigido pelo livro. Curiosamente, aautoria do roteiro faz lembrar as longas listas de compositores de samba-enredo noCarnavalbrasileiro.Nadamenosqueoitoroteiristasrecebemocréditoporessetrabalho:Bridget Boland, Robert Westerby, King Vidor (que também assina a direção), MarioCamerini, Ennio de Concini, Ivo Perilli, Gian GaspareNapolitano eMario Soldati. Umúnico autor original versus oito adaptadores, sinal evidente das profundas diferençasexistentes entre as duas formas de narrar, e da enorme dificuldade de se contar umahistóriaemformareduzida.

Cinema, teatro, música e dança são exemplos de artes temporais. Acontecem em umtempofixo,eopúblicoalocaessetempoexatoparaapreciá-las.Cabeataisformasdeartemanter o público conectado, interessado e satisfeito durante o período preestabelecido.Esteéotempoexpositivo.

Na literatura,o tempoexpositivoestá sobcontroledo leitor.Um livro tantopode serlido em algumas horas quanto em vários meses, dependendo da velocidade, dadisponibilidadeedométodode leituradequemoconsome.Obviamente,o tamanhodeum livro influencia o tempo médio de sua leitura. O mesmo começa a acontecer noconsumo de filmes ou teledramaturgia via streaming, onde cada pessoa pode degustarcenas e episódios no seu próprio ritmo, comdireito a ver tudode uma vez, espalhar aexperiência por vários dias, semanas,meses ou anos, rever o que quiser quantas vezesquiser,comosefolheasseoscapítulosdeumaobraliterária.

Outrapossibilidadedeliciosaéadecriarmoshistóriasquenãotêmfim,desconstruindoarelação entre tempo e finitude. Super-heróis, por exemplo, tendem a nos mostrar suaorigeme,apartirdaí,seeternizarem.TodomundosabequeoSuper-HomemjáfoiSuper-Boy,masninguémtemnotíciadeumSuper-Ancião.Umavezestabelecidoopersonagemque cai no gosto popular, ele para no tempo, e suas histórias podem ser narradas eminfinitosepisódios.AtoresqueinterpretamJamesBondenvelhecemesaemdecena,masoagente007continuasemprenamesmafaixaetária,enfrentandoinimigoscadavezmaispoderosos.

Episódios ilimitados também acontecem em alguns seriados de TV, como Grey’sAnatomy,CSIouTwoandaHalfMen. Sua estrutura é criadapara existir até quando aaudiênciasemantiverfieleacriatividadedosroteiristascontinuarefervescente.

No território da comunicação de marcas ocorre algo semelhante. As narrativas dasmarcas têm começo, mas são planejadas para nunca terem fim. Nenhuma marcaconfessaria a seupúblico que se imagina foradomercadodaqui a vinte ou trinta anos.Quando o indesejável acontece, adota-se o caminho das séries televisivas: troca-se oelenco,procura-seadespedidamaisdignapossíveloumuda-sedeassunto.

Umaquestãoderitmo

Tempoeritmosãomedidasmusicais.Enãoporacasoaparecememnossaconversa.Háumamusicalidade latenteem todasas formasdecomunicação, talvezpelo fato se

sermosatingidospelamúsicaantesdequalquerexpressãoartística.Quemaindanãoviuumbebêsacudindoocorpinhopeloefeitodamúsicaouseacalmandocomumacançãodeninar?Desdeostemposuterinos,acriançaemformaçãoéembaladapelasbatidasdocoraçãomaterno,depoisaprendearespirarritmadamente,aandaremcompassobinário,abaterpalmas,eporaívai.Tudonavidaéritmo,desdeadançadosastrosnocéuatéasondasdomareosmovimentosdoatosexualgeradordobebêdequefalávamoshápouco.

Afalatemmusicalidade,ostextostêmseuritmo.Énaturalqueashistóriasseincluamnisso.

Histórias contadas em ritmo acelerado tendema sermais tensas.Ritmosmais suavescombinamcomhistórias românticas.Háuma lógica rítmicaem todanarrativa, tantonoaspectogeralquantonaalternância.

Exatamentecomoacontecenamúsica,qualquerquesejaoritmodominante,osegredodaemoçãoresidenaspausasevariações.Sãoasinterferênciasnoandamentopadrãoquenosaguçamossentidos.Umaviradadebateria,porexemplo,correspondeaumasucessãomais ágil de fatos que nos acelera o coração. Esse efeito emocional só ocorre porque,usada na hora certa, a quebra de ritmo nos surpreende. Músicas e histórias empermanenteestadodeagitação,emvezdeexcitar,cansam.Deixamdeser interessantes,tanto quanto músicas e histórias em monótona lentidão. Tensão e relaxamento, emplanejadaalternância,valorizam-sereciprocamenteenosmantêmligadosnatrama.

Em uma representação gráfica, teríamos algo semelhante a montanhas-russas oueletrocardiogramas,oquetambémocorrecomachamada“curvadramática”,que,emboranem sempre siga o desenho rítmico da narrativa, varia em intensidade, favorecendo oenvolvimentodopúblicoeoresultadoemocionaldaobracomoumtodo.

Primeiro, define-se uma batida, depois, de acordo como número de partes em que aobraédividida,definem-seaspossíveisvariações.Começarbeméfundamental,terminarsuperbemidem.Osegredodaboanarrativaéseratraentenoinícioerecompensadoranofinal, o que não é tarefa dasmais fáceis. Se “Satisfaction”, sucesso dos Rolling Stonescomposto por Mick Jagger e Keith Richards, fosse uma história, teríamos um senhorcomeçoquesemantémcontagianteatéo final.Fenômenopreciosoeraríssimo, tantonamúsica quanto no storytelling. O desenho rítmico das melhores histórias geralmentesegue a fórmula das grandes canções, como os hits dos Beatles “Yesterday”, “Help”,“PennyLane”,entretantosoutrosquehabitamoplaylistdemilhõesdepessoas:começosedutor,mioloenvolvente,finalláemcima.

Encaminharanarrativaparaumgranfinaleéoquetodosesperamdeumcontadordehistórias,eécomessaexpectativaderecompensaqueopúblicoidentificaotom,degustaamelodiaeentranadança.

Comapalavra(emdoistempos),oconsagradoescritorargentinoJulioCortázar:

Achoqueoelementofundamentalaoqualsempreobedeciéoritmo.Nãoéabelezadaspalavras,amelodia,nemasaliterações.Oquemepreocupaéanoçãoderitmo.O conto tem que chegar fatalmente ao seu fim, como chega ao fim uma grandeimprovisaçãodejazzouumagrandesinfoniadeMozart.

Conflito—Opoderdosvilões

Foi Aristóteles quem disse: “Sem conflito não existe ação, sem ação não existepersonagem,sempersonagemnãoháhistória.”Ouseja,nãoexistehistóriasemconflito.Mesmo que se passe no íntimodo protagonista, que seja a culpa que o leva a conflitarconsigo mesmo, que seja uma doença, um vício, o enfrentamento da gula para perderpeso, uma limitação como a gagueira de George VI emO discurso do rei. Fenômenosexternos naturais, como furacões, tsunamis, vulcões, catástrofes diversas, comoincêndios, naufrágios, a luta pela sobrevivência dos que se perdem na selva, emmontanhas nevadas, não importa em que condições de adversidade, é sempreindispensável a presença do conflito. E ninguém melhor para conflitar do que umpoderosovilão.

Oqueseriadenóssemosvilões?Sãoelesquenosdesafiame,nasnarrativasclássicas,nosdãooprazerdevê-losderrotados.Sãoelesquefascinamescritores,atoresediretoresde cena, porquemexem tanto comnossosmedos e são conduzidospor sentimentos tãosombrios que frequentemente se tornam mais humanos que os heróis. Não por acaso

multiplicam-se os exemplos de histórias protagonizadas pelo vilão, ou por seu parentepróximo, o anti-herói. E aumenta a demanda por heróis mais complexos, que ganhamdimensãoporseusconflitosinternoseconquistamaidentificaçãocomopúblicograçasasuasimperfeições.

Hávilõesmotivadospredominantementeporvaidade(amadrastadeBrancadeNeve),vingança (Capitão Gancho), distúrbios psiquiátricos (Norman Bates), aberraçõescomportamentais (Hannibal Lecter), ambição (todos os que buscam posição de poder,dinheiro,vantagenseconômicas).Háosvilõesquesãovítimasdesuanatureza(Godzilla,Drácula,otubarãofamintodeJaws,asferasemgeral),osvitimadosporinjunçõessociais(Corleones, Sopranos e tantos mafiosos e gângsteres que povoam nossa galeria demalfeitores), e os que lutam por uma causa, estes os mais questionadores, como osterroristas, os empunhadores de bandeiras opostas às do protagonista, nãonecessariamenteerradas(nosantigoswesterns,eracomumverosíndiosretratadoscomovilõeseosbrancosqueosoprimiamfazendoasvezesdeheróis).Hávilõessemmotivaçãoaparente, ancorados apenas na objetiva frieza de sua maldade (Anton Chigurh, oimpiedoso assassino interpretado por Javier Bardem emOnde os fracos não têm vez),assimcomoos temáticosadversáriosdoBatman,doHomem-Aranhaoude JamesBond.Quanto mais complexos, e quanto mais intrincadas forem suas motivações, maisinteressantes são os vilões. Quanto mais empenhados em uma disputa pessoal com oprotagonista,mais contribuem para uma narrativa excitante. Quantomais ambiguidadehouver emprotagonistas e antagonistas, apontodevezporoutra se confundirem,maisricoseráoconteúdodanarrativa.

Histórias são trajetórias de busca, vilões são obstáculos ao sucesso dessas trajetórias.Quantomaioresosobstáculos,maisemocionantesesignificativosse tornamosesforçosdoprotagonista,emelhorsetornaahistória.

Políticosadoramtervilõesparasustentarsuasperformances.Ahistóriaamericanaeramaisfácildecontarnaépocadaguerrafria,rendendoinclusiveótimoslivrosefilmes.Ahistória de Fidel Castro foi tão beneficiada pelo antiamericanismo que vários outroslíderes latino-americanos decidiram pegar carona, fazendo fila para bravatear contra osEstadosUnidos, em um oportuno surto de bolivarismo. Quando há problemas internosemexcesso,meter-seemdisputasinternacionaistemajudadováriosgovernosadesviaraatenção do povo, e a colocar a culpa de tudo o que dá errado em algum ponto além-fronteira.

Dilema,escolhaoseu

Se quisermos apoio filosófico, há respaldo tanto no existencialismo pagão de Sartrequantonolivre-arbítriocristãodeSantoAgostinho.Nocentrode tudoestãoasescolhasquefazemos,definindooquesomos,gerandoconsequênciaspessoaisesociais.

Personagens são o resultado de suas escolhas. É através delas que percebemos quemelesrealmentesão,doquesãocapazes,semerecemounãonossaempatiaousimpatia.

O professor de filosofiaMichael J. Sandel tornou-se um fenômeno pop introduzindostorytelling em suas aulas. O entusiasmo das plateias que disputam suas aulas e dosleitores de seus livros foi conquistado principalmente pela proposição de dilemas. Umbonde desgovernado; cinco operários desavisados sobre os trilhos, prestes a serematropelados;umhomemgordopertodevocê(opersonagemcentral)emumaponteacimadostrilhos,entreobondeeosoperários;estãodadososelementosdeumsenhordilema.Duasopçõesseapresentam:deixarqueoscincooperáriossejamatropeladosouempurrarohomemgordoparaqueseucorpodetenhaobonde.Comcenasdessetipo,afilosofiadoprofessorSandelganhaqualidadesnarrativas,literárias,cinematográficas,ganhavida.

Poucospersonagensforamcolocadosdiantededilemastãoseguidoseintensosquantoo Jack Bauer da série televisiva 24Horas, criado por Joel Surnow e Robert Cochran, einterpretado por Kiefer Sutherland. Somando-se à ousadíssima estrutura de ação emtemporeal,que,porsisó,deixaaaudiênciaeletrizada,acompanhamosoprotagonistaemsucessivasdecisõessobrequemsalvarxquemsacrificar,segurançadafamíliaxsegurançado presidente da república, deveres familiares x deveres profissionais, sobrevivência xética, razão x emoção. A cada decisão, vamos construindo nossa opinião sobre opersonagem, ele sobe ou desce no nosso conceito, nos obriga a refletir sobre comoagiríamosemseulugar,acimadetudo,aumentasuacargadehumanidadeeveracidade.

Na literatura e depois no cinema, uma história foi tão fundo nesse aspecto que,explicitando-ono título, se tornou expressãopopular designadoradasdecisõesdifíceis.Quem lê ou vêA escolha de Sofia jamais esquece o pesadelo vivido pela personagemnascida no romance deWilliam Styron, e adaptada para o cinema por Alan J. Pakula,ondefoibrilhantementeinterpretadaporMerylStreep.

Vamosporpartes

Histórias costumam ser divididas em atos. O teatro nos habituou a essa nomenclatura.Atossãoasmacrodivisõesdanarrativabaseadasemmudançasdeterminantesnavidadospersonagens (casamento,acidentegrave,perdadoemprego,conquistadeposiçãosocial,grandessaltosnotempo,grandesperdas,grandesvitórias,descobertas-chaveetc).Emumlivro,osatoscostumamserchamadosde“partes”.Nassinfonias,osatossãochamadosde“movimentos”. Nos filmes, eles também existem, só que não tão explícitos para opúblico.Umahistóriapodeserdivididaemquantosatosquisermos, inclusivesepassaremumúnicoato,masaestruturamaisutilizadaéadetrêsatos.

Primeiro ato: apresentação da situação, ocorre o incidenteincitante,surgemosproblemas.Segundo ato: a situação se complica, os problemas se agravam, personagens tomamatitudespararesolvê-los,tudodesembocaemumagravecrise.

Terceiroato:clímaxdahistória,algoinesperadoacontece,asituaçãoseresolve.

Osatossesubdividemem“capítulos”(naliteratura)ou“sequências”(nocinema),queseguemalógicadosnúcleos-chavedeaçãodentrodecadaato.Eoscapítulosesequênciasse subdividem em cenas, elementos fundamentais na evolução da história, que sãoformadasporcélulasdeaçãochamadas“beats”.Nãomergulharemosatéosbeats,chegaràscenaséosuficienteparanossaanálise.

Toda cena temumpapel a cumprir no avançodanarrativa. Se for apenas cosmética,transforma-senoquechamamosde“cenagratuita”,ouseja,deveserjogadanolixo.

Esse é o arcabouço de uma trama. Nas histórias multitramas, tudo isso ocorresimultaneamentecomvárioseixosdeação,quepodemprogrediremparalelo,cruzando-se ou não em determinados pontos. Filmes comoCrash,Amores Perros e Pulp Fictionexemplificambemacomplexidadeeariquezadasmultitramas.

O storytelling aplicado a marcas fica mais claro quando o enxergamos pelo viésmultitramático, e entendemos as ações de comunicação como cenas, que podem fazerpartedesequências,quepodemsesomarematosdemaiorenvergadura.

Fórmulas

Hávárias.Nãohánenhuma.GuydeMaupassantéimplacávelaoafirmarque

osartistasdeprimeiralinha,semdúvida,nãosãoaquelescujasideiasgeraissobrearteestejam constantemente na ponta da língua — aqueles cujos preceitos, apologias efórmulassejamabundantesequemelhorpossamdizerasrazõesefilosofiadascoisas.Habitualmenteconhecemososmaioresartistasporsuapráticavigorosa,pelaconstânciacomque aplicam seusprincípios, e pela serenidade comquenosdeixamprocurandoseusegredonailustração,noexemploconcreto.

Vacinados que estamos, desde a primeira página, contra ambições teórico-didáticas,aquivãoalgunsexemplosquesepropõemanosauxiliarnaestruturaçãodeumahistória.

Começando pelo básico do básico, toda história pressupõe a existência de três fases:introdução, desenvolvimento e desfecho. O que, aplicado ao storyline (maneira maissintéticadeseapresentarumahistória),naanálisedodramaturgoBenBrady,noslevaatrêsmomentosfundamentais:

•Algumacoisaacontece;•Algumacoisaprecisaserfeita;•Algumacoisaéfeita.

Simplesdemais?OK,vamosalgunspassosadiante.Selecionei dois autores que formulam suas recomendações estruturais com letrinhas

mnemônicas:AliceAdamseJamesScottBell.Aliceescolheuaquase-ordemalfabética:ABDCE(Ação,Base,Desenvolvimento,Clímax

e Encerramento), onde alarga um pouco mais a trilogia “introdução, desenvolvimento,desfecho”, acrescentando na largada da história uma “ação” que capte a atenção dopúblico,otalbomcomeçoque,semprebem-vindo,mereceserdestacado.

Jamesseprendemaisaosingredientes,espertamenteenfeixadosnapalavraLOCK:Lead(personagem principal), Objective (objetivo do personagem), Conflict (conflitos,obstáculos,oposiçõesencontradaspelopersonagemnabuscadoseuobjetivo),KnockoutEnding(finalimpactante).

Qualquer que seja o modelo adotado, ou ainda que se prefira escapar de todos osmodelos,valetersempreemmentearecomendaçãodeLuisBuñuel:

Oessencialemumroteiroparece-meointeressemantidoporumaboaprogressão,queprende a atenção dos espectadores o tempo todo. Pode-se discutir o conteúdo de umfilme, sua estética (se a tem), seu estilo, sua tendência moral. Mas ele nunca podeentediar.

Osmuitosmeiosdesecontarumahistória

No capítulo de abertura deste livro, vimos a definição de storytelling formulada porAntonio Núñez, e como ele defende estarmos lidando com uma ferramenta. Emboraprefiraatecnarteusadaemminhasdefinições,concordoqueficamaisnaturalusarmosaideiade“ferramenta”nestemomentoespecífico.

Poisbem,osmeiosdisponíveisparausodessaferramentasãopraticamenteilimitados.Históriaspodemsercontadasemconversaspessoais,porescritoemmeiosimpressosoueletrônicos, através de peças teatrais, filmes, transmissões em telas de cinema, TV,computador, tablet, celular, ou qualquer outra capaz de nos mostrar imagens e sons.Histórias também são contadas através das artes plásticas, da música, dos enredos deescolas de samba, das celebrações populares e religiosas. Renato Russo, ao compor“Eduardo e Mônica”, talvez não adivinhasse que a história contada na música seriaencenadaemumcurta-metragemdemuitosucessonainternet,emcampanhapublicitáriada Vivo para o Dia dos Namorados. Talvez também não imaginasse que seu “FaroesteCaboclo”setornariaumexcelentelonga-metragemdirigidoporRenéSampaio.

Mas não é necessário ser tão explicitamente narrativo. Todas as canções, de algumaforma, contam histórias, algumas até fazendo questão de colocar isso no título, como“MinhaHistória”,deChicoBuarque.

O famoso Guernica de Picasso é um quadro extremamente narrativo. Pinturas eesculturas, aludindo a personagens reais ou fictícios, integram-se imediatamente às

históriasqueenvolvemaquelespersonagens.AFestadaUva,asBierfest,oRockinRio,as procissões católicas, as homenagens a Iemanjá no Réveillon, os rituais da SemanaSanta, do Natal, do Yom Kippur, do Halloween, de Cosme e Damião, do Dia doTrabalhador, de Finados, de Ação de Graças, do Dia das Mães... tudo tem narrativaprópriaepodeserencaixadocomocapítulodeoutrasnarrativas.Oritualdocasamentoéhistória, como também é o das debutantes, dos aniversários em geral, das formaturas.Cantar “parabéns”, mentalizar um desejo, apagar as velas, jogar o buquê, estourar ochampanhe, brindar com taças cheias e tomarumgole em seguida... hajahistória, boaslembrançaseexpectativas.

Históriassevalemdemitoseritos,recheiamdesignificadoosmomentosmarcantesdepessoas,grupossociais,cidadesenações.

Comstorytelling,avelhaestruturadocircofoitransformadaemCirqueduSoleil.Easmarcasqueusamosnodiaadiasetornampartedoenredodenossasvidas.

Capítulo8

UMMUNDOCOMBILHÕESDEPROTAGONISTAS

Oescritor japonêsHarukiMurakami,emsuaobra1Q84,nosapresentapersonagensqueoscilamentremundosparalelos.Umdeles,Tengo,escritoreprofessordematemática,emdeterminadomomentorefletesobreocérebroeseusmecanismosaserviçodanarrativa.AsreflexõesdeTengo(personagemficcional)partemdeverdadescientíficas(reais),comoo expressivo aumento do volume do cérebro humano ao longo demilhões de anos e agritantedesproporçãoentreoseupeso(apenas2%damassacorporal)eseuconsumodeenergia (40%, segundo o personagem; 20%, segundo estudos científicos recentes).Independentementedorealconsumodeenergiadocérebro, jáqueoscientistasàsvezesapresentam mais discrepâncias entre si do que com a ficção, basta sabermos que opercentualébemmaiselevadodoquesupõemseusexíguos2%demassa.Esãodiversasas razões apresentadaspara isso,desdeomaior consumode gordura animalpornossosantepassadosatéanecessidadedotrabalhoemequipe,odesenvolvimentoda linguagemetc.

Mas,voltandoaopersonagemdeMurakami,oqueimportaparaeleéque,graçasaessaevoluçãocerebral,oserhumanodesenvolveu,entreoutras,asnoçõesdetempo,espaçoepossibilidade. E suas observações fizeram-no concluir que o tempo pode se distorcerenquanto avança. É linear, mas torna-se mais lento, pesaroso, ligeiro ou agradávelsegundonossapercepçãodesuapassagem.Tengo tambémnos lembraquenós,algumasvezes, alteramos a sequência dos fatos, e chegamos até a eliminar momentos como senunca tivessem ocorrido, ou acrescentamos em nossas histórias passagens que jamaisaconteceram.

AindasegundoTengo,oaumentodotamanhodocérebronosproporcionouoconceitodetemporalidadee,simultaneamente,nosensinouaalterarereorganizarotempo.

Olhandoomundoquenoscerca,temosqueconcordarcomopersonagemmurakamianoedenovo sublinhar o quanto realidade e ficção caminham lado a lado,mesmoquandodescrevemosepisódiosconcretoscomoaviagemdefériasquefizemosháumano.

NãoporacasoapáginaqueresumenossahistórianoFacebookéconhecidacomo“linhadotempo”.Otempofaztodadiferença.Paracadaumdenós,éointervaloqueseparaoberçodotúmulo,e todasassubdivisõesaqueesse intervaloestásujeito.Énesse tempomacro, ou em segmentos escolhidos dentro dele, que acontecem as histórias, flutuandosegundonossacapacidadederetenção,interpretaçãoereproduçãodosfatos.Parailustraresse pensamento, vale novamente o auxílio de Miguel de Unamuno. Em determinadoponto de seu livroComo escrever um romance, ele diz: “Minha lenda! Meu romance!Querdizer,a lendaeoromancequeosoutroseeu,meusamigosemeusinimigos,meueu amigo e meu eu inimigo, fizemos conjuntamente a respeito de mim, Miguel deUnamuno, ouàquele que chamamosassim.”Epáginas adiante, completa: “Por acaso avidadecadaumdenósémaisdoqueumromance?Existeromancemaisromanescodoqueumaautobiografia?”

Linhadotempo

Todos os frequentadores de redes sociais, neste exato momento, estão contando suashistórias. Nos capítulos passados, têm registrados textos e fotos do que consideramrelevante compartilhar. O conjunto da obra dá uma ideia do que esses personagensconsideram relevante em sua existência, e ficapendurado, atéprova emcontrário,parasempre,novaralcibernéticoaquechamamos“linhadotempo”.

Oqueanteserarelatadoemdiscretosdiárioseguardadoempoucomanuseadosálbunsde fotografias agora é aberto a um grande público. Na medida em que esse públicoaplaude,comentaepropagaosepisódiosdenossavida,ficamosmaismotivadosaseguirnarrando,enossentimosmaisprotagonistasdoquenunca.

No século XXI, todos são heróis, todos têm opiniões sobre os mais diversos temas,todospodemterseguidores,todossãomídiaeconteúdo.Éumfenômenodonossotempo,que se evidencia na linha do tempo on-line de cada um de nós. De um modo geral,independentemente da qualidade narrativa, somos todos storytellers e, comoparticipantesdeumahistóriaemconstrução,tambémstorybuildersestorydoers.

Capítulo9

SIGNIFICADO

Quando começava a me firmar na carreira publicitária, fui incumbido de dirigir umdocumentárionaTanzânia, o quemeproporcionou experiências profissionais, sociais epessoais muito marcantes, como a que passo a descrever. Em um dos intervalos defilmagem,visitandoumatendadeartesanato,ovendedor,quetudoindicavaserdonodoestabelecimento,seencantoucomminhacamiseta.Eraumacamisetasimplesdemalha,estampadacomomapadometrôdeNovaYork,nadadegrandevalorfinanceiro,nadadegrife,nemlembrodequemarca.Masestávamosnosanos1980e,naquelaépoca,peçasdevestuáriodochamado“mundoocidental”tinhamstatusderaridadeemsolotanzaniano.Ovendedorinsistiaconstrangedoramenteparaqueeutrocasseacamisetaporumnúmerocada vez maior de objetos artesanais cujo valor excedia em muito o preço da minhamodestaroupa.Chegoua fazerpropostasporminhacalça jeansepormeutênis,queeuobviamenterecuseipornãopoderdesfilardescalçoedecuecaspelosarredoresdeDarEsSalaam,antigacapitalondemeencontrava. Issoovendedorcompreendia.Masa recusaemnegociaracamisetapareciaofendê-lo.Oproblemaéqueacamisetatinhahistóriae,porterhistória,significavamuitoparamim:erapresentedeDiadosNamorados,recebidodeminhaesposa,queestavagrávidadenossaprimeirafilha,aguardandomeuretornoaoBrasil,oquelevariaumlongomêsparaacontecer.Simplesmentenãoerapossíveltrocá-lapornadaqueaquelenegocianteinquietopudessemeoferecer.

Antes deme tornar publicitário, emminha breve atuação como advogadode família,dentreoscasosdeseparaçãoqueacompanhei,ummechamouespecialatenção.Ocasaldecidiacivilizadamenteapartilhadeseusbens.Nenhumproblemaquantoaos imóveis,veículos, objetos de alto valor. A reunião fluía na maior tranquilidade, até que nosdeparamoscomoálbumdefotografiasdocasamento.Pronto,manifestou-seadiscórdia.Não importava que fosse um casamento desfeito, aquelas imagens eram muitosignificativasnahistóriadeambos,edessesignificadonenhumdelesqueriaabrirmão.

Quem não tem objetos de estimação,músicas que desencadeiam lembranças, lugaresespeciaisondefatosrelevantesaconteceram?

Histórias ficcionais, espelhadas como são na realidade, não têm finalidademaior doqueade transbordar significado.AGrandeLiteratura,porexemplo,édefinidaporEzraPound como “linguagem impregnada de significado no maior grau possível”. Umadefiniçãoquecertamenteabrangetodasasplataformasdeconteúdonarrativo.

Bons roteiros de cinema, assim como boas campanhas publicitárias, são construídossobreumaideiacentral.Afrasequeexpressaessaideiaéachavedeseusignificado.Nãoé a big idea sempre necessária, não é o tema da história, nem algo parecido com umslogan. É o trilho onde desliza a narrativa em uma camada mais profunda, dando-lheespecial relevância, flertando com o filosófico, algo do tipo “O amor é mais forte quetudo”, “Quem humilha será humilhado”, ou “O mal é mais atraente que o bem”. Umponto de vista defendido por aquela narrativa específica, muitas vezes contrário àsconvicçõesdopróprioautor,sempretensãodeserafamosa“moraldahistória”,masquenoslevaaalgumareflexão,aindaqueimperceptível,sobreavidaeanaturezahumana.Éali, naquele ponto equivalente ao que os profissionais de marketing e comunicaçãoconhecemcomomanifestaçãodo“propósitodamarca”,queseencontraosignificado.

Significadoéapérolaminúsculadentrodeumaconchagigante.Dizer que uma pessoa significa muito para nós é dar-lhe um atestado de especial

importância.Qualificarummomentocomosignificativoédestacá-loemnossa linhadotempo.Invertendooângulo,pensenacargadepreciativadapalavra“insignificante”.

Digitando “significado” em um site de buscas, percebemos o quanto as pessoas seinteressampelosignificadodosnomes,dossonhos,detudoquenoscerca.

Significar, além do imediato sentido de “querer dizer”, também é o próprio sentido.Não se limita ao “dar a entender”, chegando ao próprio “ser”, “constituir”. É o verboperfeito para evocarmos a Torre de Babel visitada em nossas primeiras páginas,relembrando o uso da metáfora idiomática para “significar” a dificuldade humana decomunicarsentimentoseatuarcoletivamente.

E é aqui que concluímos a primeira parte deste livro, exatamente no ponto queinteressaaomarketing,nossofocoprincipalapartirdeagora.

Porqueasmarcasacordaramparaostorytelling?Porque perceberam que não é suficiente simbolizar este ou aquele produto. Porque

precisam de Significado (com “S” maiúsculo), muito além de sua funcionalidade,praticidade, ingredientesoupreço.Asmarcasdescobriramquevalempoucoe tendemàextinçãoprecocequandoserestringemaumrelacionamentopragmáticoesuperficialcomas pessoas. Por isso, correm para organizar suas histórias, redimensionar seu valorintrínseco,adquirirnovossignificadosque lhespossibilitempapéisdemaior relevâncianas narrativas da vida de seus usuários, transformando-os em multiplicadores,conarradorese, emúltima instância,definidoresdoqueamarca significa.Sim,háumaguinadade180grausnaposiçãonarrativaentremarcaeconsumidor.ComobemdestacaMarkBateyemseulivroOsignificadodamarca,“emboraasempresascriemidentidadesde marca, o significado desta é criado pelas pessoas. O significado é o cerne docomportamento do consumidor e está sempre aberto à negociação e à interpretação”.Complexo, mas inevitável. É o mesmo autor quem conclui em outro momento: “Osindivíduos não são receptores passivos de significados criados por algum agente ou

autoridadeexterna.Aocontrário,envolvem-seativamentenoprocessodesignificação—aproduçãodesignificadoquepodeserevasivo,vago,flutuareserdifícildedefinir.Nãoimporta: a busca pelo significado, em todas as suas formas, está entranhada em nossapsique.”

Em outras palavras, estamos tratando de narrativa compartilhada, storytellingcolaborativo, exigência de um mundo que substituiu o “eu falo, você ouve” por “nósdialogamosarespeitodahistóriaquemelhortraduzoquesignificamosumparaooutro”.

ParteII

MARCASQUECONTAM

“Umaempresasemumahistóriaégeralmenteumaempresasemestratégia.”

BenHorowitz

Capítulo10

CADAMARCAQUECONTEASUA

Pessoas jurídicas são ficções registradas na forma da lei. Decidem seu capital e suacomposiçãoacionária,escolhemumnome,têmumendereço(sede),cumpremostrâmitesburocráticos e começam a existir.A partir daí, exercem a atividade a que se destinam,abrem contas bancárias, fazem investimentos, contratam empregados, montam umaestrutura,produzem,pagamimpostos,ganhamumahistória.

Algo semelhante acontece com as marcas. São entidades ficcionais exploradas namaioria das vezes por pessoas jurídicas, personagens que habitam o mundo real eesbarramconoscoatodomomento.

Comoacontececomaspessoas,físicasoujurídicas,todamarcatemumahistória,dissonão há como escapar. Mas existe a opção de deixar que a história seja contada einterpretada livremente por usuários e concorrentes, ou seja moldada pelos donos damarca.

Moldadaseriaumeufemismoparafalseada?Dejeitonenhum.Tomemos por exemplo os artistas. Todos têm uma imagem pública que precisa ser

cuidada,enãocorrespondeexatamenteàrealidade.ImagineoqueseriadeLadyGagase,dentro de sua casa, ela fosse obrigada a usar os figurinos e manter as atitudesextravagantes que a consagraram nos palcos. E Madonna? E David Bowie? Quandonomeamososexcêntricos, ficamaisfácil,mastodasas figuraspúblicas,nãosónomeioartístico,emmaioroumenorgrau,semantêmdentrodospersonagensquetraçaramparasi.Emúltimaanálise,sãomarcas.Seé lícitoaumpolítico,ummagistradoouumlíderreligiosocomportar-sepublicamentedeformadiversadaquesecomportanaintimidade(faloaquisomentedaliturgiadoscargos,nãodosaspectoséticosemorais),porquenãoserialícitoaumamarca,queéfictíciadesdeonascimento,fazeromesmo?

Muitoantesdeostorytelling ingressarnovocabuláriodapublicidadeedomarketing,DavidOgilvydefiniumarca como “a soma intangível dos atributosdeumproduto: seu

nome,suaembalagemepreço,suahistória,suareputaçãoeaformacomoéanunciada”.(destaquenosso)

Marcastêmodireitodecriarumahistóriadozero,elaborarsualendaeseusmitos.Ouficarcaladas,deixandoqueboatosforadecontroledelineiemsuaimagem,oqueémeiocaminhoandadoparaodesastre.

Marcas são personagens.QuandoDavidMcKeena sintetiza a equação fundamental dopersonagemcomodesejo+ação+obstáculo+escolha,percebemosoquantoessesquatroelementossãocomunsàsmarcas.Todaselasnascemcomodesejodecumprirseupapelno mercado, precisam se colocar em movimento para que esse desejo seja atendido,normalmente encontram uma série de obstáculos e são forçadas a fazer escolhas, detecnologia, de público, de tom, de área geográfica, de comportamento perante aconcorrência, escolhas das mais variadas em forma e conteúdo. É desse quarteto deelementosquedecorreseustorytelling.

Sempre que possível, asmarcas devem aproveitar elementos factuais que reforcem acredibilidadede suahistória.Emnomeda eficácianarrativa, comovimos antes,não sepode descuidar da estidade, o que obviamente, insisto, se aplica a todas as pessoaspúblicas. Ernest Hemingway não seria um escritor tão cultuado se não tivesse seenvolvido diretamente em conflitos como a Guerra Civil Espanhola. Charles Bukowskiteria diminuída a força de sua escrita se não fosse o alcoólatra de vida desregrada quedestilavanos textos sua experiênciapessoal. Pense emalguém famoso, e aí estarámaisum exemplo de correspondência entre vida real e imagem projetada, uns mais, outrosmenos.Quantomaioraancoragemnarealidade,mais firmes,autênticas,convincenteseenvolventesserãoashistórias.

No fim das contas, tudo é ficção — o que não significa falsidade — e deve seralicerçadoembasesverdadeiras.Fantasiaerealidadesecombinamdemodoaestimularaimaginação do público e favorecer a boa receptividade da marca. A despeito dessacombinação, é prudente enxergar com clareza o limite entre história de percurso(hereditária, factual, real no sentido estrito da palavra) e história de sustentaçãoatitudinal (planejada, filosófica, ficcionalnosentidoestritodapalavra).Adivisãoentreambas pode ficar imprecisa ou mesmo invisível em certos momentos, o que, emborapareçaruim,éaltamentedesejável.

Capítulo11

UMALIVRARIAÀBEIRADOSENA

37 Rue de la Bucherie, Paris. Na Rive Gauche, vislumbrando do outro lado do rio aCatedraldeNotreDame,existeumapequenaecharmosíssimalivraria.InauguradacomoMistralem1951,adotoupoucomaistardeonomequeostentaatéhoje:ShakespeareandCompany.

Seu fundador,umamericanocujavidacheiadeviagense reviravoltaspareceextraídadeumromance,chamadoGeorgeWhitman,tornou-sefiguralendárianosmeiosliteráriosparisienses.Passava todososseusdiasna livraria, respirava livrose recebeuem2006otítulodeOfficierdesArtsetLettresconcedidopeloMinistériodaCulturadaFrançaporsuacontribuiçãoàsartes.Morreuem2011,nodiscretoapartamentosituadoemcimadalivraria,doismesesapóssofrerumderrame,duranteosquaismanteve-sefielaohábitodaleitura,cercadopelafilha,osamigosedoisanimaisdeestimação:umcãoeumgato.

A primeira sensação causada pela Shakespeare and Company é de encanto. Pareceresultado de uma viagem no tempo, com suas instalações que poderiam estar em ummuseu, e as prateleiras repletas de obras selecionadas por um critério que contraria astendências do business livreiro, escapa dos best-sellers, concentra-se nas raridades. Asegundasensação,inevitávelapósalgunsminutosdecontato,éummistodecuriosidadeepreocupação.Comoconseguiramsobreviveratéhoje?Comocontinuarãosobrevivendo?

Aúnicarespostaqueparecefazersentidoé:história.Começandopelonome,umahomenagemà livraria abertano iníciodo séculoXXpor

SylviaBeach, que ajudou apublicarUlysses de James Joyce quando todas as editoras orejeitavameacolhiagenerosamenteescritoreseaspirantes,emprestando-lhesoslivrosdequenecessitassem.Paramelhordimensionamento,bastadizerque,alémdeJoyce,ErnestHemingway, Scott Fitzgerald e Gertrude Stein figuravam entre seus frequentadores ebeneficiários. Capítulo triste: a livraria original foi fechada durante a Segunda Guerra.Virada no roteiro: George Whitman decide renomear sua Mistral em homenagem ao

estabelecimentoeàmulherquetantoadmirava.Umaadmiraçãotãoprofundaqueolevouabatizarsuaúnicafilha,nascidaem1981,comoSylviaBeachWhitman.

AfidelidadeatodososfundamentosdaShakespeareandCompanyoriginal,inclusiveodoacolhimentoaosquebatalhavampelaescrita,fezcomqueWhitmanrecebesseemsualivrariaalgunsastrosdaGeraçãoBeat,comoAllenGinsbergeJackKerouac.Tudoali,atéhoje,sinalizacomprometimentopessoalcomaliteratura,efoicertamenteessecaráterdeautenticidade que levou a pequena loja a se tornar cenário privilegiado de outrasnarrativas.

Antesdopôrdosol(BeforeSunset), filmede2004, roteirizadoemparceriadodiretorRichard Linklater com a produtora Kim Krizan e os atores protagonistas Julie Delpy eEthan Hawke, deu grande destaque à livraria. Meia-noite em Paris, sucesso escrito edirigido por Woody Allen, lançado em 2011, é outro filme que alimenta o poder deseduçãodaqueleicônicoendereço.

Obviamente, também na literatura a Shakespeare and Company garantiu seu espaço.Pariséuma festa (AMoveableFeast), deErnestHemingway, lançado em1964, relata aíntimarelaçãodoautorcomalivrariaaindaemseuendereçoinicial,sobocomandodeSylviaBeach.E,antesdele,aprópriaSylvialançouem1919aautobiografiaShakespeareandCompany—UmalivrarianaParisdoentreguerras.Muitashistóriasconvergindoparaomesmoponto,trazendovisõesdiferenteseconteúdocadavezmaissignificativoparaamarca que, até onde se sabe, nunca fez do marketing sua bússola, mas sempre foiconduzidaporapaixonadospelostorytelling.

Comoumautorquecompetentementeescreveaprópriahistória,GeorgeWhitman,aobatizar sua filha com o mesmo nome da fundadora da primeira Shakespeare andCompany, reatou a realidade presente ao passado distante, adicionando ainda maismágicaaofeitiçoacumuladoportantosanos.

Em minha primeira visita à livraria, Whitman andava de um lado para o outro,ajeitando livros, cuidando das coisas. Vestia calças largas como as de umpijama e umcamisãosolto, roupasquepareciam ter saídocomelediretamentedacama.Uma figuraexcêntricatotalmenteàvontadeemseuhabitatnatural.

Na última visita, em 2013, ele já havia partido. Mas bem na entrada, painéissequenciais em inglês, com tipologia que remete ao manuscrito, apresentavam aospassantes um resumo da história do lugar, contada pelo próprio Whitman, aindasaudável, mas já cuidando da sucessão. Sob o título “Paris Wall Newspaper”, lia-se adata,1ºdejaneirode2004.

Emumatraduçãolivre,diziaele:

Algumas pessoas me chamam “O Dom Quixote do Quartier Latin”, porque minhacabeça está tão alto nas nuvens que posso imaginar que todos nós somos anjos noparaíso, e em vez de ser um livreiro bem-intencionado, eu soumais uma espécie deromancistafrustrado.Esta loja tem cômodos, como capítulos em um romance, e o fato de Tolstói eDostoiévskiseremmaisreaisparamimdoquemeusvizinhospróximos,eaindamaisestranho para mim ser o fato de que, mesmo antes de eu ter nascido, Dostoiévski

escreveuahistóriademinhavidaemumlivrochamadoOIdiota, edesdeentão lê-lotemsidobuscaraheroína,umagarotachamadaNatasiaFilipovna.Cemanosatrás,minhalivrariaeraumalojadevinhosescondidadoSenaporumanexodoHotelDieuHospital,quefoidemolidoesubstituídoporumjardim.Maisatrás,noano1600,nossoedifíciointeiroeraummosteirochamado“LaMaisonduMustier”.Nos temposmedievaiscadamosteiro tinhaumfrade“lampier”,cuja funçãoeraacenderoslampiõesaocairdanoite.Eutenhofeitoissoporcinquentaanos.Agora,éavezdeminhafilha.

Este é o exemplo de storytellingmais simples que encontrei. Narrativa fácil de umahistória cheia de conteúdo. Totalmente baseada em fatos reais, em um ambiente quereúneliteraturaepersonagensapaixonadospeloquefazem.

Uma livrariazinha só, diriam os dirigentes de empresas complexas. Com muito aensinaràsgrandesmarcas,digoeu.

Shakespeare and Company é uma história de superação, um exemplo de resistênciaque,comobemmetaforizaWhitmanemseuspainéis,acendeseuhumilde lampião todofinaldetarde,driblaaescuridão,atuacomofarol.

Na categoria de marcas alicerçadas em histórias de percurso,guardadasasproporções,tambémestãoosestabelecimentosqueganharam fama por seus fundadores e frequentadores. Nomesmo Quartier Latin de Paris, encontramos o café Les DeuxMagots,favoritodeSartreeBeauvoir;orestauranteLeProcope,fundadoem1686,que, senão tivesseacolhidoclientes ilustrescomo Rousseau, Voltaire, Robespierre, Danton, BenjaminFranklin, Thomas Jefferson e Napoleão Bonaparte, continuariasendohistóricoporsuaimpressionantelongevidade.

Mudando de Paris para Liverpool, quem já não ouviu falar doCavernClub?O pontomais icônico da cidade, conhecidomundialmente graças aos Beatles, continua atraindomultidõesde turistas.Apoucosmetrosdali,naesquinadaMathewStreet,umhotel sebeneficiadahistóriaedamúsicaqueaindaecoanavizinhança.OHardDaysNightHotelse reveste da mística dos Fab Four em todos os detalhes. Da recepção aos quartos,passandoporumabelaexposiçãodefotosescadariaacima,tudoremeteaosBeatles,cujorepertório é tocado em todos os ambientes, revivendo a trilha sonora da vida de tantoshóspedes.

Falandode hotéis, temos os que ocupam castelos, antigosmosteiros, se localizamnocoração de pontos históricos, os que ostentam respeitáveis listas de hóspedes, queabrigaram pensadores, artistas, políticos, megaempresários, ou encontros significativos

para as artes, apolítica, a economia, enfim, algo suficientemente relevantepara ocuparespaçoprivilegiadonamemóriadaspessoas.

Casas tradicionais dedicadas a diferentes atividades integram uma rica lista deexemplos transformados em atrações turísticas, como o Gran Café Tortoni, em BuenosAires, e a Confeitaria Colombo, no Rio de janeiro. Outras, menos históricas, masigualmente ancoradas na tradição, incluem restaurantes como a Famiglia Mancini, emSão Paulo. E, independentemente do grau de tradição, nada é mais comum do querestaurantesqueexibemfotoseautógrafosdeseus frequentadores famosos,ounomeiampratosemhomenagemàsreceitasprediletasdestaoudaquelacelebridade.

Há as padarias que apregoam algum famoso pãozinho, os bares badalados pelocurrículo,pelochopetiradodeumjeitodiferente,ouporalgumcarinhoespecialcomosclientescultivadoaolongodotempo.HáoBracarenseeoJobinoLeblon,oSãoCristóvãona Vila Madalena, tantos e tantos por inúmeros bairros e cidades, cujas histórias seentrelaçamcomasdeseushabitués.

Assistaaquiaovídeoqueilustraestecapítulo:

Capítulo12

PEQUENOSGRANDESMUNDOS

Asmarcas alavancadas por contextos históricos se beneficiam emmoldes semelhantesaosdascidades?Certo.

Querdizer,então,quenãopodemoslhescreditaroméritoporseustorytelling?Errado.Antesdemaisnada,cidadestambémsãomarcas.Têmhistóriasdepercurso:fundadore

datadefundação,episódiosepessoasquesedestacam,proezas,heróis,característicasdeque se orgulham.Assim como têmhistóriasde sustentação atitudinal, com sua cotademitologia construída. Todas as cidades convivem com essas duas narrativas; umas commais evidência em certos aspectos, outras com menos; umas narrando com maiscompetência,outrascommenos.

Varginha,nosuldeMinasGerais,cujosprimeirosdocumentosdatamde1780,écidadecomfortevocaçãoagrícola,destacando-senaproduçãodecafé,produtodoqualsetornouimportante exportadora. Indústria e serviços gradativamente aumentaram suaparticipação na economia local, mas nada que a impulsionasse além da posição desimpáticomunicípiodemédioporte,oulhetrouxessefamaespecial.Atéque,em1996,surgiuseugrandealavancadordenotoriedade:umET.Falso?Verdadeiro?Testemunhado?Imaginado? Não importa. Estejamos nós diante de um fenômeno a ser celebrado porufólogos,umaalucinação,umdelírio,ounãomaisqueuminterplanetáriomal-entendido,o fatoéqueoETdeVarginha tornou-seograndepersonagemdacidade,astrodeváriasversões, suposiçõeseespeculações.Graçasaessamisteriosahistória,Varginha temhojeummonumento em formadedisco voador euma estátuade seu famosoET, atraindo aatençãodevisitanteseestimulandoafabulaçãoemtornodacidade.

OK, não é sempre que uma cidade recebe um protagonista descido do céu. Vamoscontinuarnomesmoestado,visitandoagoraOuroPreto.Ah,não!Covardia,dirãoalguns.OuroPretoé a essênciadacidadehistórica,PatrimônioCulturaldaHumanidade,berçoda Inconfidência Mineira, respira história em cada detalhe arquitetônico. Tudo isso éverdade, como tambémé inegável que a cidade faz excelente usode seupotencial e se

mantém encantadoramente jovem. Comparando-a com outras cidades históricasbrasileiras,semjulgamentosmaiscomplexos,podemosperceberqueopercursohistóricosozinho não faz milagres. Os bons resultados dependem essencialmente de como ahistóriaénarradaepreservada.

Mudemos então de categoria, partindo para Itu, no interior de São Paulo. Não háregistro de fatos extraordinários, nem de ETs encontrados na cidade. Mas houve umimportantepersonagemquetransformousuapercepção,chamadoSimplício.Em1967,oator Francisco Flaviano de Almeida, que atuou no primeiro programa de humor datelevisão brasileira (A praça da alegria, na TV Tupi), chegou à TV Globo. Na novaemissora,seupersonagem,Simplício,passouase referira Itucomoa terraonde tudoégrande.Apartirdabrincadeirahumorísticacomsuacidadenatal,oatorfezcomqueItuadquirisse essa fama, que se tornou seu principal patrimônio de comunicação, gerandoinúmeras histórias e produtos de tamanho exagerado que continuam até hojerealimentandoomito.

Nooutro extremodomundo, amilenarPequimsedáo luxode terdentrode siumaoutra cidade. Diante da Praça da Paz Celestial, ergue-se imponente a Cidade Proibida,antigo reduto imperial.Andar por ali é como voltar no tempo, ou passear pelo famosofilmedeBernardoBertolucci,Oúltimoimperador.Sim,independentementedabagagemhistórica trazida por qualquer cidade, seu envolvimento em quaisquer outras narrativastemgrandeefeitopotencializador.QueodigaLosAngeles,abrigandoemseusdomíniosamáquinanarrativadeHollywood.Ali,umahistóriapuxaoutra,osbastidoressãotrazidosparaoprimeiroplano,comose fossemestrelasarrastadasparaumpasseio interminávelnacalçadadafama.

Atravésdos filmes,muitascidadesse tornamtãoíntimasquepassama fazerpartedenossahistória pessoal.Nãohá comovisitarNovaYork e não se sentir dentrode váriascenas, não perceber que existe ali uma proximidade construída a distância. Muitoscineastas fizeram de Nova York seu campo de trabalho.Woody Allen o fez commaisintensidade,eoresultadofoitãopositivoqueoutrascidadespassaramalheencomendarnarrativas.Graçasaisso,oscinéfilosforambrindadoscomVickyCristinaBarcelona,ParaRomacomamor eMeia-noite emParis. Sem contar com a obra anterior a esses filmes,MatchPoint,que,mesmosemfoconacidade,nosmostraumaLondrescontemporâneaesedutorararamenteapresentadanastelas.

Enfim, Londres. Sherlock Holmes parece ainda morar em Baker Street, os BeatlesparecematravessardiariamenteafaixadepedestresdeAbbeyRoad,atrocadaguardaemBuckingham segue acontecendo como em um ritual de conto de fadas, enfeitado porcarruagens,reis,rainhasecasamentosdesonhosprincipescos.Pergunteaumamenininhade 5 anos como ela gostaria de se vestir em uma festa à fantasia e a probabilidade deouvir “princesa” é enorme.Ashistórias infantis estão repletasdeprincesas, apontodefazer com que a palavra se tornasse sinônimo de beleza, e em nenhum outro lugar amonarquia é mais celebrada do que em Londres. Graças à literatura, ao cinema, àstradições mantidas, aos símbolos que desfilam pelas ruas, como táxis diferenciados,cabinestelefônicas,ônibuspitorescos,eatéaosgrandesassassinos,acomeçarporJack,oEstripador,Londreséumcaldeirãodehistórias.Algumasreais,outrasfictícias,todassemisturando em uma atmosfera que permite sair de ummuseu ultramoderno para fazer

uma excursão por lugares mal-assombrados, passar no Globe Theatre para reverenciarShakespeareedepoisassistiraperformancesexperimentaisemalgumrecantohi-tec.

Voltandoàimportânciadamúsicanostorytelling,nuncaédemaisrecordarosclássicoscomo“NewYork,NewYork”,“ILeftMyHeartinSanFrancisco”,“GarotadeIpanema”e“Sampa” e, entre outros, que tanto enriquecem a imagem e as histórias das cidadeshomenageadas.

Cidades de todos os tipos e tamanhos podem se beneficiar do storytelling. Bastaconsultar seuhistóricoembuscadealgo relevante.Esenadahouverquepossa resultaremumaboahistória, sempre existe apossibilidadede criarummito, desenvolverumanarrativae,apartirdaí,fazercomqueseushabitantesvivamfelizesparasempre.

Capítulo13

TEMÁTICOS

Toda história parte de um tema. Vale para tudo, desde países, estados e cidades, atéhotéis,restaurantes,parques,marcascomerciaisepessoas.

QuandosevaiaoHardRockCafé,PlanetHollywood,AllStarCafé,RainforestCafé,T-RexCafé,ouqualqueroutroqueadoteumtemaespecífico,afomeasersaciadaémuitomaisdeexperiênciadocontextodoquedealimento.Nenhumdosexemploscitadospartedefatoshistóricos,mastodos tentamseapropriarde fragmentosdahistóriadorock,docinema, dos esportes, das florestas, dos animais pré-históricos, e é na ambiência queresidesuamágica.

HotéistemáticossãomuitocomunsemLasVegasenaszonasdeinfluênciadosgrandesparques de diversão, embora também caibam em cidades como Liverpool, conforme jávimos.

Parques,pelaamplitudedesuainteraçãocomopúblico,sãoosqueconseguemextrairmaisbenefíciosdatematização,abrigandoemsuaáreahotéiserestaurantesqueaderemàsua temática, colocando personagens em contato direto com os frequentadores,transformandohistóriasemexperiênciassensoriais.

Empresas comoDisney eUniversalmudaram radicalmente a percepção da cidade deOrlando.ElasdesenvolvemmundosdefantasiaeentretenimentoondesepodeparticipardeumaaventuracomoHomem-Aranha,andarnamontanha-russainspiradapeloIncrívelHulk, despencar com o elevador de um hotel-fantasma da série Além da imaginação(TwilightZone),viajarcomDumbo,voarcomPeterPan,esbarrarcomPopeye,vivercenasdefilmescomoStarWars,Tubarão,Devoltaparao futuro, Indiana Jones,HarryPotter,ser encolhido emuma experiência científica atrapalhada, ou simplesmente flanar entrepaísesnoSmallWorld(paracriançasmaisnovas)enoEpcotCenter(paraadultos,jovensecriançascommaiorcapacidadedecompreensão).

Nosparquestemáticoshátangibilizaçãodehistóriasecriaçãodemundos,enenhumaempresa conseguiu atuar nessa área com mais competência que The Walt Disney

Company.

Capítulo14

DISNEY.

Simplescomodesenharumrato

Eraumavezummeninoamericanoquenãotinhacertidãodenascimento.Seupai,muitorigoroso, lhe impunha castigos tão pesados que ele passou a acreditar que havia sidoadotado.Antesdecompletar18anos,participoudaPrimeiraGuerraMundial,dirigindoambulâncias da Cruz Vermelha na França. De volta aos Estados Unidos, estudou arte,trabalhou em agências de propaganda, até ser contratado por uma companhiacinematográfica,ondeatuavanaproduçãodecartazes.

Talvez influenciado pelo convívio publicitário, adotou para si um slogan que diziamuito sobre suapersonalidade:Keepmoving forward. E, nessa determinação de avançoininterrupto,tornou-sedublador,roteirista,animador,produtorcinematográfico,cineastaefundadordeumadasempresasmaisinfluentesdomundo.Tãoinfluentequecriouumoutro mundo, onde as pessoas podem se refugiar do mundo real, regido pelas regrasbásicasdamagiaedafantasia.

Quandodescobriuquelevavajeitoparaanimarfigurasdesenhadas,WalterEliasDisneyabriuumapequenaprodutoracomossóciosRob(seuirmão)eUbIwerks(seuamigo).Suaespecialidade:animarcontosdefadas.Osprimeirospersonagensdesucessocriadospelaempresa— a menina Alice, que contracenava com desenhos animados, e Oswald, umcoelhodemuitasorte—foramroubadosporumcontratante,que,alémdeseapresentarcomo autor dos personagens, levou consigo toda a equipe de Walt. Um grande revés,capazdederrubarqualquersonhadornoiníciodesuaarrancada,masnãosuficientementeforte para desanimar um especialista emhistórias de superação, educação ematuração.Foi-seAlice,foi-seOswald,mastudosearredondounaformadeumrato.MickeyMouse,desenhado a partir de círculos, surgiu dos labirintos da imaginação para o estrelato,

abrindocaminhoparanovospersonagens,animaishumanizados,quepovoariamomundofantástico,concebido,produzidoeconduzidoporumanovaempresachamadaTheWaltDisneyCompany.

O elenco de personagens originais Disney, onde, no rastro de Mickey, brilham suanamorada,Minnie,oPatoDonaldcomMargaridaeostrêssobrinhos(Huguinho,ZezinhoeLuizinho),Pateta,TioPatinhas,ProfessoresPardal eLudovico,Pluto, e osvilões JoãoBafo-de-Onça, IrmãosMetralha,ManchaNegra,MagaPatalógica, e tantosoutros,parecenãoterfim.Háosquecorremporfora,comooscriadosparahomenagenspontuaiscomooZéCarioca,osdesdobramentosdepersonagenscomooSuper-Pateta,eosquenãoparamdesurgiremumasequênciaimpressionantedenarrativas.Alémdecriar,aDisneynuncadeixoudebuscarhistórias,comoaprofundamentearquetípicaCinderela,cujaautoriaseperdenotempoentreversõesquevêmdesde860a.C.,naChina,atéadeCharlesPerrault,em 1697, na França, passando por outra italiana e finalmente desembocando na alemã,dosirmãosGrimm.LevadaaocinemaporDisney,Cinderelaconquistoucoraçõesefixouseu castelo no centro dos parques com que a empresa tornaria tangível seu universoficcional.

Tambémdeautoriaindeterminada,enovamentepassandopelosirmãosGrimm,ABelaAdormecidaeBrancadeNeveeosSeteAnões tornaram-seclássicosDisneyacolorirossonhos românticos de crianças nomundo inteiro. Pinóquio,Peter Pan, Bambi, Dumbo,Mogli e A Bela e a Fera são outros exemplos de histórias preexistentes que forampotencializadaspelosdesenhosanimadosDisney,assimcomoWinnie—oUrsinhoPooh(criadopeloescritorAlanAlexanderMilne),Apequenasereia (baseadaemumcontodeHans Christian Andersen), A dama e o vagabundo (baseado em um conto de WardGreene), 101 dálmatas (baseado no livro de Dodie Smith), Aladdin (baseado em umtradicional conto árabe), enfim, uma interminável relação de histórias edificantesdestinadasàfamília.

Não poderíamos deixar de reverenciar O Rei Leão, um dos maiores sucessos naanimaçãocinematográficadetodosostempos,quetratadaascensãodeSimbaaotronodafloresta, em trama com influências shakespearianas (Hamlet), e o doce Bambi, outropersonagemDisneymaltratadopelamortedochefedafamília.OReiLeão,embaladoporuma trilha sonoradealtíssimonível, saiudas telasparao teatromusical, conquistandolugar de honra também na Broadway. E a morte da mãe de Bambi continua sendoconsideradaumadascenasmaistristesdocinema,aumentandoemmilhõesdecriançasavalorizaçãodapresençamaterna.

Mas os domínios dessemundo encantado não se restringem aos desenhos.A ilha dotesouro,Vintemilléguassubmarinas,MaryPoppinseSemeufuscafalasseilustrambemoquantoaempresafoialémdailustração.

RecordistadoOscar,com59indicaçõese22estatuetasarrematadas,WaltDisneycriouaDisneylandnaCalifórnia,queresultounaDisneyworlddaFlórida,quesedesdobrouem11 parques temáticos, que partiram dos Estados Unidos rumo a França, Japão e HongKong.

Osucessopossibilitouaaberturadeváriasfrentes:produçãodefilmesadultos,redesecanais de televisão. Foi exatamente quando tudo parecia possível que a Disneydemonstrou o absoluto domínio de sua história. Já era grande e forte o suficiente, jádetinha uma poderosa rede de TV aberta (ABC) e um canal de esportes (ESPN), mas

manteve sua marca a distância. Preferiu reservar o nome, construído com letrasarredondadasemacias,aoDisneyChanneleseusdesdobramentosnaturais.

Nocinema,encarregouaTouchstonePicturesdeproduzirosroteirosdestoantes,aindaque por pequena margem, da narrativa Disney, como Três solteirões e um bebê, Umacilada para Roger Rabbit,Sociedade dos poetasmortos,Uma lindamulher e Bom dia,Vietnã.

Em1994,um filmequebrouvárias regras, ganhando imediato statuscult.Chamava-sePulpFiction e contava trêshistórias interligadas:VincentVega e a esposadeMarcellusWallace,ORelógiodeOuroeASituaçãoBonnie.AnarrativafragmentadadoroteiristaediretorQuentinTarantinoerarepletadeviolência,drogasediálogostensos,apimentados,engraçados.Um filme tão ousado que aTriStar Pictures, que a princípio o distribuiria,desistiudefazê-lo,classificando-onoprimeiromomentocomo“dementedemais”,emaisadiante como “a pior coisa já escrita [...]muito longo, violento e infilmável”. Sorte daDisney, que, tendo na época adquirido a Miramax, pôde participar dessa quebra deparadigma, totalmente incompatível com seu território narrativo, através da empresarecém-adquirida.

MasnemtodasasassociaçõesdaDisneyaoutrasempresassedestinamaoalargamentodepúblicooudopotencialdeousadiatemática.Nooutroextremo,daperfeitaadequaçãoe sintonia, encontramos a Pixar. O oxigênio trazido pela inovadora empresa ao perfiltradicionaldaDisney resultouemumaquímica espetacular,deonde já surgiramobras-primascomoToyStory,ProcurandoNemo,Vidade inseto,Monstros S.A.,Os Incríveis,Wall-E, Ratatouille e Up — Altas aventuras. Muitos dos personagens nascidos dessaparceriaconvivemnamaisabsolutaharmoniacomosgrandesclássicosdaDisney,ejásetornaram atrações nos parques temáticos da empresa. É comum encontrarmos, nasparadas da Disneyworld, Woody, Buzz Lightyear, Jessie e o casal Cabeça de Batata,desfilandoaoladodeNemo,Pateta,CapitãoGancho,DonaldeBrancadeNeve,todossobo comando do mesmomaestro que regeu “O Aprendiz de Feiticeiro” no abusadíssimoFantasia,de1940.

Em artigo publicado em janeiro de 2012 no Ad Age / blogs, Al Ries menciona umapesquisa da Interbrand realizada em 1996, que apresenta um ranking das marcas maisvaliosasdomundo.AprimeiraposiçãodesserankingéocupadapelaDisney.Depoisdelavem a Coca-Cola. De lá pra cá, outras marcas surgiram e a situação certamente semodificou,masaDisneycontinuavalendoumafortuna,todaelageradapelacapacidadedecontarhistóriasepelafidelidadeàimagemconstruídaaolongodotempo.

Quandocriança,euliarevistasdoMickeyedoPatoDonald,eviaseusdesenhosnaTV.Meus filhos não viveram essa experiência, mas quando os levei à Disneyworld pelaprimeira vez, eles conheciam aqueles personagens como velhos amigos. Hoje em dia,continuomedeliciandocomosfilmesDisney/Pixar,econheçováriosadultosquefazemquestãodeiraocinemaparaassisti-los,mesmoquenãotenhamcriançasaseuladocomopretexto.SãonumerosososrelatosdemarmanjosquechoramcomcenasdeToyStory, ecada vez mais entusiasmados os elogios à qualidade dos roteiros produzidos pelacompanhia. A animação computadorizada realiza milagres, mas nenhum milagre épossívelquandofaltaumaboahistória.

Em 2001, a Leo Burnett North America criou para a Disney um comercial de TVchamado “PillowTalk”.Nele, umamulher demeia-idade, recostada na cama, acorda o

marido de madrugada, dizendo que não consegue dormir. Ela está angustiada porentender que o casal está se afastando gradativamente, perdendo amágica; ele diz queestá tudo normal entre eles; ela reclama de que os dois só conversam sobre as coisaspráticasdodiaadia;elepacientementeinsisteemqueavidaéassimmesmo;elanãoseconforma,dizqueelenãofalamaisdojeitoquefalavaantes.Faz-seumapausa.Omaridoreflete.Algunssegundosdepois,eleseinclinanadireçãodaesposaefalanoseuouvidoimitando a voz do Pato Donald. Seu “I love you”, dito daquela forma, faz com que amulherestampenorostoumsorrisoemocionado.Acenaescurece.Sobrepõe-seoletreiro“MagicHappens”.

CreionãohaverdúvidasdequeaDisneyéumaempresa storytellerpor excelência, oque a habilita a participar da história de todos que com ela interagem. Nasceu assim,pelas mãos de um homem que queria fazer história, e fez. Começando por um rato,simpático, ingênuo e de traço simples, cuja personalidade pavimentou a trajetória damarca,nãopermitindoqueeladerrapasseatéhoje.

Assistaaquiaosvídeosqueilustramestecapítulo:

Capítulo15

APPLE.

Opoderdatentação

EntraemcenaomaioracionistaindividualdaTheWaltDisneyCompany,omesmoquehavia comprado a Pixar em 1986. Sujeito atrevido, inquieto,meteu-se na casa paterna,ocupando parte dos cômodos, além da garagem, com o sócio, seu xará de sobrenomeWozniak. Levou a reboquemais alguns loucos, e de lá só saiu quando se sentiu forte osuficienteparadesafiaraIBM.Deixouissobemclaroaolançarsuamaisfamosalinhadecomputadores com ametáfora de uma atleta que invade um auditório repleto de gentemesmerizada pelo Big Brother, personagem do livro 1984, de George Orwell. A jovementracorrendo,perseguidaporumatropadesegurançasqueemnenhummomentoparecepróxima de alcançá-la.Quando chega a uma distância razoável da tela que hipnotiza aplateia,nossaatletaarremessasuamarreta,transformandoaimagemdolídernatelaemumaexplosãoesfumaçada,destruindoseupoderdominador.Aação,muitobemfilmadapeloàépocajáconsagradoRidleyScott,éconcluídacomoseguintetexto:

“Emjaneirode1984,aAppleComputerslançaráMacintosh.Evocêveráporque1984nãoserácomo1984.”

Esteéconsideradoomaiorcomercialdetodosostempos,eleitopelaTVGuide epeloAdvertising Age, com a concordância, imagino que unânime, do mercado publicitáriomundial.Seuprincipal criador,LeeClow (que trabalhouemdupla comSteveHayden),tornou-se uma lenda viva da propaganda, levando consigo ao pódio a imagem de suaagência,ChyattDay.Todomundoganhaquandoparticipadeumagrandehistória.

SteveJobsnãodesconfiavadetersidoadotado,comoWaltDisney.Eletinhacerteza.Àpercepção de que fora abandonado pelos pais de sangue contrapunha-se a insistentedeclaração dos pais adotivos de que ele era especial. Foi criado como tal, com os pais

adotivos sacrificando suasmodestas economiaspara atender aos caprichososdesejosdojovemmimado.“Intenso”éumdosadjetivosmaisrepetidospelaspessoaspróximasqueodescrevem,umaintensidadeimpacientequeofezsairdeLosAltos,naCalifórnia,paraestudar na distante Portland, Oregon, no seleto e dispendioso Reed College, do qualdesistiu,largandoosestudosporrejeitaralgumasmatériasqueoenfastiavam.Intensidadequeolevouausardrogas,aabraçarafilosofiazen,adecidirtomarbanhoapenasumavezporsemana,aandardescalçoemalcheiroso,aseragressivocomnamoradasecolegas,eafazerdietasradicais.Nãoobstanteseuperfilesguio,Stevejejuavacomalgumafrequência,e se entregava com regularidade a regimes alimentares forado comum.Por contadessaobsessão,acaboubatizandosuaempresa,duranteumperíododerefeiçõesexclusivamentefrutíferas,comonomedemaçã.

Aseurespeito,declaraobiógrafoWalter Isaacson:“Jobsnãoeraummodelodechefeouserhumano,bemempacotadoparaemulação. Impulsionadopordemônios,eracapazdelevaraspessoaspróximasàfúriaeaodesespero.Massuapersonalidade,suaspaixõeseseusprodutosestavamtodosinter-relacionados,assimcomotendiamaseroshardwareseos softwaresdaApple,comose fizessempartedeumsistema integrado.Dessemodo,suahistóriaétantoinstrutivaquantoadmonitória,cheiadeliçõessobreinovação,caráter,liderançaevalores.”

Prezavaaintuiçãomaisdoquequalqueroutracapacidadementale,provavelmenteporisso,dentreas frutasquecompunhamseucardápionomomentodeescolheronomedaempresa, optou pela de maior carga simbólica. Divertido, despretensioso, simples,surpreendenteparaumaempresadetecnologiacercadadeconcorrentessisudos,onomeescolhidonãopodiasermaisarquetípico.Olhandoagoraatrajetóriadamarcaeoquantoela simboliza de sedução e mudança nos hábitos da humanidade, parece óbvio tê-laassociadaàfrutaquelevouAdãoeEvaaabalaremasestruturasdoparaíso.Aúnicafrutaincluídanosdoze trabalhosdeHércules,desafiadoa levarmaçãsdeourodo jardimdasHespérides para Euristeu, amesma fruta com que Nova York (Big Apple) se apresentacomoacidademaistentadoradomundo,afrutaescolhida:pelosBeatles,paradarnomeasuagravadora;pelarainhamadrasta,paraenvenenarBrancadeNeve;pelosdesafiantesdeGuilhermeTell, para ser colocada sobre a cabeçade seu filho, comoalvoda setaqueoheróidisparoucommilimétricaprecisão.

Nasceumícone

QuandoJobseWozniakaindaengatinhavamcomseusAppleIeAppleII,umnovosócio— o único com recursos financeiros e conhecimento de marketing — se uniu aoempreendimento. EraMikeMarkkula. Coube a ele escrever o documento intitulado “AfilosofiademarketingdaApple”,alicerçadoemtrêspontos:1.Empatia—conexãoíntimacomosclientes(sesubstituirmos“clientes”por“público”,estamosdiantedeumfundamentodostorytelling).

2.Foco—umadaspalavrasmaisusadasatualmenteparanosprotegerdeummundoemquetudoconvocaàdispersão.3. Imputar — palavra extraída do jargão informático, aludindo ao efeito dos sinaisemitidosporumamarcanapercepçãoqueaspessoastêmdela.Aimagemquetemosdeprodutos,pessoas,personagens,países,cidades,detudo,inclusivemarcas,écriadapelasucessão de inputs que recebemos. Ilustrando o conceito de maneira bem básica,Markkula recorria ao velhodito popular, afirmando que “as pessoas de fato julgamumlivropelacapa”.

Atentoaosensinamentosdosócio,Steve Jobspassouadedicaratenção especialíssima a todos os detalhes (inputs) de seusprodutos.Anosmaistarde,eledeclararia:“Quandovocêabreacaixa de um iPhone ou iPad, queremos que a experiência tátildefinaotomdecomovocêpercebeoproduto.”

Seguindoesseraciocínio,logoapósaentradadeMarkkulanasociedade,conclui-sequeamarcaprecisavaserurgentementemudada.

A primeira logomarca da Apple havia sido desenhada em estilo vitoriano por RonWayne, o terceiro sócio inaugural, que, mal iniciou a empresa, abandonou o barco,preocupado com os investimentos que seriam necessários. Era uma ilustração de IsaacNewton, o grande cientista de quem se conta ter sido inspirado por umamaçã que lhecaiu sobre a cabeça. Nada a ver com a imagem de contemporaneidade e simplicidadeprojetadapelafilosofiademarketingimplementadaporMarkkula.

Contratado para fazer a nova programação visual, o prestigiado publicitário RegisMcKenna,incumbiuRobJanoff,diretordeartedesuaequipe,decriaranovalogomarca.Foramapresentadasduasversões,absolutamentesimples:umamaçãinteiraeumamaçãmordida.Jobspreferiuamordida.Estavainseridaainterferênciahumanaemsuamarca.

São muitos os tipos de maçã catalogados. O site “Washington Apples”(www.bestapples.com),em2013,dácontadaexistênciademaisde7.500variedadespelomundo.Logoemseguida,omesmoendereçovirtualseconcentranasespéciesproduzidasno estado de Washington: Red Delicious, Golden Delicious, Gala, Fuji, Granny Smith,Braeburn, Honeycrisp, Cripps Pink, Cameo, Criterion, Empire, Jonagold, Macintosh,NewtonPippin,RomeeWinesap.

Jef Raskin, encarregado por Jobs de dirigir um pequeno projeto chamado Annie,discordandodoviésmachistadedarnomesfemininosaoscomputadores,resolveubuscarnaalma,oumelhor,namaçãdaempresaumnomealternativo.Detodasasvariedadesdemaçãs,umalheagradavaespecialmente.Escritaoracom“a”,orasem“a”,aindatinhaocomplicadordeexistiremoslaboratóriosdeáudioMacintoshpararoubaraoriginalidadedonome,masmesmoassimfoiaescolhida:Macintosh,com“a”,anosmaistardetratadacarinhosamentecomoMac.

Nomeiodoprojeto,JefseindispôscomJobsedeixouaempresa.Suavisãodoprodutofoisubstancialmentealterada,Stevetentourebatizá-lo,masapropostanãocolou.Onome

doprodutopermaneceuintacto,soavacomodecorrêncianaturaldamaçãcomquetodaahistóriacomeçou.

Macintosh

ChegamosàreuniãoemqueSteveJobsapresentaàsuaequipedevendasocomercialdelançamentodoMacintosh.Nodiscursoqueantecedeaprojeção,elenosbrindacomumbelomomentodestorytelling.

Começacomumabrincadeira,saudandoaplateiacomosefosseumdesconhecido:“Hi,I’mSteveJobs!”

Depois,adotaumtomquaseépico,comahabilidademotivadoradosgrandesoradores,quesabemusarsuapaixãoparaempolgaropúblico.

Emumatraduçãolivre,elediz:

É 1958. A IBM despreza a chance de comprar a jovem e inexperiente empresa queinventou uma nova tecnologia chamada xerografia. Dois anos mais tarde, nasce aXerox,eaIBMtemchutadoasimesmadesdeentão.Dez anos mais tarde, final dos anos 1960. DEC — Digital Equipment Corporation, eoutros, inventam ominicomputador. IBM dispensa ominicomputador como pequenodemaisparafazercomputaçãoasério,eportantoirrelevanteparaoseunegócio.ADECcresce para se tornar umamulticorporação de centenas demilhões de dólares, antesqueaIBMfinalmenteentrenomercadodeminicomputadores.Estamosagoradezanosmaistarde,finaldosanos1970.Em1977,aApple,umajoveme inexperiente empresa da Costa Oeste, inventa o Apple II, o primeiro computadorpessoal como conhecemos hoje. A IBM considera o computador pessoal pequenodemaisparafazercomputaçãoasério,e,portanto,irrelevanteparaoseunegócio.Iníciodosanos1980.1981.Apple II se torna o computadormais popular domundo e aApple evolui paraumaempresade300milhõesdedólares,tornando-seacorporaçãodecrescimentomaisrápidonahistóriadosnegóciosamericanos.Com mais de 50 concorrentes disputando uma fatia, a IBM entra no mercado decomputadorespessoaisemnovembrode81,comoPCIBM.1983.AAppleeaIBMemergemcomoosmaisfortescompetidoresdaindústria,cadauma vendendo aproximadamente 1 bilhãode dólares com computadores pessoais em1983.Cadaumaprojetandoinvestirmaisque50milhõesdedólaresemR&D(ResearchandDevelopment)eoutros50milhõesdedólaresempropagandadeTVem1984,emumtotaldequaseumquartodebilhãodedólarescombinadas.Asacudidaestáforte.As primeiras grandes empresas começam a quebrar, enquanto outras balançam nabeirada.

Ototaldeperdasdaindústriaem83superamesmoos lucroscombinadosdaAppleedaIBMcomoscomputadorespessoais.Agora,1984.ParecequeaIBMquertudo.Ocomércio,queantestinharecebidoaIBMcombraçosabertos, agora temeum futurodominadoe controladopor ela e recorreàApplecomoaúnicaforçacapazdelhegarantirumfuturocomliberdade.AIBMquertudo, e está apontando sua artilharia contra o último obstáculo para controlar aindústria,aApple.A Big Blue vai dominar toda a indústria de computação? Toda a era da informação?GeorgeOrwellestavacertosobre1984?

Encontrei ovídeodessa apresentaçãonoYouTube. Impressionaobrilhonosolhosdoapresentador,pareceummeninocomumbrinquedonovo.Aplateiavemcomele,reageempolgadaemalgunstrechos,respondecomofiéisdeumaseitaàstrêsperguntasfinais,comcrescentes“No!”,eexplodeemaplausosapósaprojeçãodofilmequecomentamosnoinício.Quegrandemomento!

É curioso queSteve Jobs, emumahora tão decisiva de sua empresa, se refiramais àIBMdoqueàApple.São13mençõesaorival,semcontaroapelidodeBigBlueincluídonodesfecho.Seriaverdadetudooqueeledisse?Olhandofriamente,soaexagerado.Massurtiuefeito.ObreverelatodeJobsdefineaIBMcomoGolias,enquantoDavi—aApple—ganhamusculaturaparaoconfronto final.AIBMéapresentadacomtraçosevidentesdevilania,aopassoqueaAppleseautodefinecomoaúnicaquepodesalvaromundodasgarrasdaBigBlue.Eas trêsperguntas finais?Parecemsaídasdeumlocutordeseriado,atiçandoasexpectativasparaospróximoscapítulos.

Osucessoestrondosodocomercialcombinacomareaçãodaplateiaqueoassistiaemprimeiramão,masdestoatotalmentedoefeitocausadonoConselhodeDiretores.Aovê-lo,emreuniãoposterior,amaiorpartedosdiretoresconsiderouqueeraopiorcomercialjávisto,echegaramacogitaradispensadaagênciaqueohaviacriado.Naopiniãodeles,era uma insanidade produzir umapeça publicitária para lançar umproduto que sequeraparecianofilme.Umafortunagastaemprodução,paracitarMacintoshumavezsó,bemnofinzinho,semqualquerexplicaçãoouadjetivo,eterminartudocomaimagemisoladada maçã mordida, era abusado demais. Jobs brigou, insistiu, pressionou, até conseguirumaúnicaexibição,duranteoSuperBowlXVIII.Somenteumaveiculação, impactandoquase 100 milhões de telespectadores, e na mesma noite três redes de TV nacionais ecinquentaredeslocaismultiplicaramoimpactoinicial, tratandoapropagandadaApplecomo notícia. O filme, que ganharia o Grand Prix do Festival de Cannes e se tornariacélebrenahistóriadapropagandamundial,porpouconãofoipararnalatadolixo.

Ovilão

A eleição da IBM como vilã de sua narrativa não se restringe ao lançamento doMacintosh.

QuandooPCda IBM foi lançado, aAppleveiculouumanúnciodepágina inteiranoWall Street Journal, cujo título era: “Bem-vinda, IBM. Sério.” A ironia da peça,pontuando que a líder do mercado chegava atrasada ao segmento dos computadorespessoais, deixava claro o quanto a Apple se considerava preparada para a briga. Umatípica declaração de guerra, que atropelava outras empresas de porte semelhante ao daApple, alavancando a desafiante para a disputa da liderança, direto, sem escalas.Nadanovo como estratégia, mas sempre um movimento de alto risco, reservado aos maisatrevidos.

AestocadadoMacintoshcontraa IBMfoiespetacular, eoqueaconteceua seguir foisurreal.Olançamentodoprodutosurpreendeu,comasvendassuperandoosprognósticosmaisotimistas.Nosegundosemestre,porquestõestécnicasdoprodutoquenãoatendiamàs expectativas do mercado, as vendas caíram. Paralelamente, os problemas derelacionamentodeSteveJobscomseuscolegasdetrabalhocresciamexponencialmente,eesseconjuntode fatores resultouem,nadamaisnadamenos,queoafastamentode Jobsda Apple. Em 1985, no ano seguinte ao de sua consagração, rompia-se o eloaparentementeindestrutívelentreogoldenboydaindústriainformáticaeaempresaqueelecriou.Umrompimentotraumáticoqueduroumaisdeumadécada.

Nos 12 anos em que esteve longe da Apple, Steve Jobs montou uma empresa paraconcorrer com a antiga, chamada NeXT, onde passou a produzir computadores dequalidadealtaepreçosidem.Aomesmotempo,adquiriu70%dadivisãodeinformáticada Lucasfilm, transformando-a na Pixar. Tornou-se grande fornecedor de hardware esoftwareparaosEstúdiosDisneye,apoiadopelogêniocriativode JohnLasseter, fezdaPixar uma revolucionária produtora de filmes de animação que rapidamente passou àinvejávelposiçãodecoautoradosmaioressucessosrecentesdaempresafundadaporWaltDisney.Dezanosdepoisdesuasaída,Stevevoltavaaosrefletoresemgrandeestilocomolançamento de Toy Story. No ano seguinte, a Apple, que nitidamente perdera força,decide fazer uma oferta para comprar a NeXT. Acertadas as bases do negócio,concretizava-seoretornodeJobsàssuasraízes.

No mesmo ano de seu retorno, 1997, Steve manobrou internamente para ocupar apresidênciaexecutivadaApple,recontratouaagênciaChiat/Day,quehaviaacrescentadoTBWAaoiníciodeseunome,eencomendouaomesmoLeeClow,quecriaraoantológico1984,umnovoataqueàIBM.

“Think”(Pense)eraecontinuasendoamarcaregistradadaIBM,usadaostensivamentepela companhia, não só como moto corporativo impresso em peças publicitárias ematerial promocional, mas também na denominação de produtos: a linha decomputadoresportáteisThinkPadforalançadaem1992.

OquefezaApple?Afrontouo lemadaconcorrentecomumapoderosacampanhaemváriasmídiasquediziaaopúblico:“ThinkDifferent.”

Inteligentemente, o duelo foi levado não para a comparação de produtos,mas para operfil de público. A questão passou a ser a destinação dada pelos usuários aoequipamento, e a Apple se posicionou como parceira dosmais criativos, daqueles quepensamdiferente.

Usando imagens de pessoas que mudaram a história, como Thomas Edison, MartinLutherKing,Gandhi,DalaiLama,Einstein,Picasso,Chaplin,BobDylane JohnLennon,alémde outros notáveis, como JimHenson (criador dosMuppets),Maria Callas, BobbyKennedy e Frank LloydWright, aApple se colocou emumpatamar de state-of-the-art.LarryElisson,cofundadordaOracle,disse,apropósitodessacampanha,que“Stevecriouaúnicamarcadeestilodevidadaindústria tecnológica”.Mascomoobteroendossodepersonalidadesdessecalibresemlidarcomrecusasedisputasjudiciáriascomosprópriosastrosouseusherdeiros?Homenageando-os.

O texto dos filmes é uma obra-prima, com um conteúdo tão inspirador que se tornapraticamente impossível rejeitá-lo.Na voz “off” deRichardDreyfuss, originalmente eminglês,assimfalavaaApple:

Isto é para os loucos. Os desajustados. Os rebeldes. Os encrenqueiros. Os pinosredondosemburacosquadrados.Osqueenxergamascoisasdeumjeitodiferente.Elesnãogostammuitoderegras.Elesnãorespeitamostatusquo.Pode-se citá-los, discordar deles, exaltá-los ou difamá-los. A única coisa que não sepodefazeréignorá-los.Porqueelesmudamascoisas.Eles inventam. Eles imaginam. Eles curam. Eles exploram. Eles criam. Eles inspiram.Elesempurramaraçahumanaparaafrente.Talvezeles tenhamqueser loucos.Dequeoutromodovocêpodeolharparaumatelaembrancoeenxergarumtrabalhodearte?Ousentaremsilêncioeouvirumacançãoque não foi escrita? Ou contemplar um planeta vermelho e ver um laboratório sobrerodas?Nósfazemosinstrumentosparaessetipodegente.E, enquantoalgunsos julgam loucos,nósos julgamos gênios.Porqueaquelesque sãoloucososuficienteparaacharquepodemmudaromundosãoosquemudam.

Na mídia impressa, a campanha se resumia a fotos individuais dos gênioshomenageados, com a frase “Think Different” e a maçã mordida que identificava aempresa.Nadamais.

AIBMsimplesmentenãotinhacomoreagir.

DeixandodeserDavi,fugindodeserGolias

No período em que Steve Jobs se ausentou, o grande movimento de comunicação daApple foiacampanha“ThePower tobeyourBest”.Construídasobreumconceito forteque reforçava a importância do consumidor, tinha filmes muito bem dirigidos, oramostrando situações de trabalho em que determinados personagens surpreendiam seuscolegas e superiores com soluções completas e rápidas, ora mostrando celebridadesrefletindosobreosignificadodopoder.CriadospelaBBDOedirigidosporJoePytka,oscomerciaiscumpriamtodososrequisitostécnicosdosmanuaispublicitários,inclusivenoquedizrespeitoaumacertaempáfia,muitousadaeapreciadaporanunciantesdosmaisvariadossegmentos,masquesobocomandodeJobsserevestiadetoquesousadosesutisquefaziamamensagemsoartalvezmaisautêntica,certamentemaisimpactante.

O “ThinkDifferent” surgiu comodelicadopapeldedar continuidade aodiscursodoempoderamento e, aomesmo tempo, fazer um ajuste na rota, evitando a armadilha deantipatia sempre à espreita dos que crescem. Tudo, óbvio, sem descuidar de sersurpreendente.Assimfoifeito,efuncionou.

Àquela altura, o porte da Apple não justificava mais a posição de desafiadora. Suapercepção erade liderança, sua atitude idem.Chegava odifícilmomentode ser grandesemperderofrescor,serfortesemsetornarvilã.

Logo,em1998,foilançadooiMac,mostrandoqueo“ThinkDifferent”nãoeraapenasretórico.Sucessoarrebatador.

Em2001, nasceu aAppleStore, loja-conceito onde a experiênciade compra levava oconsumidorparaouniversomágicodamarca.Lembroudosparquestemáticos?Émaisoumenosisso.

Tambémem2001,convencidodequeopapeldocomputadoreracentralizaravidadousuário, acolhendo, entre outras coisas, suas fotos, vídeos e músicas, foi lançado osoftwareiTunes,eumnovoaparelhinhoquequebravaaexclusividadedoscomputadoresnavidadaApple:oiPod.

Os computadores continuaram evoluindo, os iPods ganharam versões cada vez maisatraentes,em2007veiooiPhone,em2010,oiPade,noanoseguinte,Stevefoivencidoporumcâncerdiagnosticadodesde2003.AduplajornadasuportadaentreAppleePixardurante alguns anos teria sido, segundo ele, o fator desestabilizador de sua saúde. E avontadedeseguirrealizandograndesproezasfoi,provavelmente,oquelhedeuoitoanosdesobrevida.

Eanarrativadamarca,nesseperíodoturbulento,comoficou?DeixadaaIBMdelado,oduelopassouasertravadoentreMacePC.Antesquetodosse

voltassem contra a Apple, ela tomou a iniciativa de se contrapor aos demaiscomputadores pessoais. Migrando do “Think Different” para um convite explícito àmudança, posicionou-se como uma categoria à parte, quase sem concorrente, à qualestariam vinculados os consumidores commaior capacidade intelectual, senso estéticomaisdesenvolvido,gentemaischarmosaeevoluída.

A partir de 2006, a campanha “Get a Mac” despejou uma grande quantidade decomerciaisnamídia,comparandodiretamenteocomputadordaApple(representadopelosimpáticoedescoladoJustinLong,emtrajessimplesedescontraídos)comacategoriaPC(representadapelocaretaeatrapalhadopersonagemvividopor JohnHodgman,vestindoumterninhomal-ajambrado).

Emumaespetacularjogadademarketing,ojovemMac,JustinLong,surgianastelasdecinemaem2007comLiveFreeorDieHard,conhecidonoBrasilcomoDurodematar4.0,ao ladodeBruceWillis, interpretandoumpersonagemque sabe tudode informática e,graças a essa intimidade com a tecnologia, livra o famoso John McClane (vivido porWillis)degrandesenrascadas.

A longacampanha,comtrêsanosdeduração,manteveacesaachamadacompetição,sóqueagoracolocando-aemumaatitudeatécertopontosolidáriacomocoitadodoPC,quesempreacabasemetendoemsituaçõesembaraçosaseridículas.

Semseugrandeprotagonistaenarrador,ospróximoscapítulosdahistóriadaApplesãoumaincógnita.Aexpectativa,comonãopoderiadeixardeser,seguecadavezmaisalta.

Assistaaquiaosvídeosqueilustramestecapítulo:

Capítulo16

NIKE.

Treinar,competir,vencer

Tantas são as coincidências entre as histórias da Nike e da Apple que elas acabaramconectandotênisdecorridacomiPodnovitoriosoprojetoNike+.Masessaéapenasumadasmuitasimprobabilidadesqueambasasmarcastornarampossíveisemsuastrajetórias.

PhilKnightnãoépolêmiconemagressivocomoSteve Jobs.Mas tambémcomeçoudonada, encontrando um diferencial poderoso que o projetou em um segmento muitodisputado.EraumbomcorredordemeiadistâncianaUniversidadedoOregon,masnãoseconsideravacomosatributosnecessáriosparasetornarumcampeão.

Estimulado pelo treinador Bill Bowerman, Phil começou a pensar em um calçadoesportivo que facilitasse a vida dos corredores. Já formado, durante seu MBA naUniversidadedeStanford, concluiu que os tênis japoneses tinhamgrandepossibilidadede agradar aos atletas e seriam competitivos contra as marcas alemãs dominantes nomercado. Apresentou-se, então, aos fabricantes dos tênis Tiger, tornando-se seudistribuidor oficial nos EstadosUnidos. Chegados os primeiros pares do Japão, Phil osenviou a Bowerman acreditando que ele os compraria.O que recebeu de volta foi umaproposta de sociedade: o treinador queria enviar suas ideias de design ao fabricantejaponês.SurgiaassimaBlueRibbonSports,que,emlinhasgerais, funcionavacomPhilvendendoostênisnamaladeseucarroeBowermanrasgandoalgunsdelesparapesquisarcomopoderiamelhorá-los.

O negócio era pequeno, os dois sócios tinham outros empregos que lhes garantiam osustento (Bowerman na universidade, Phil em um escritório de contabilidade).Precisavam de alguém cem por cento dedicado à empresa. Phil lembrou-se de um

corredor que conhecera em Stanford, convidou-o, e assim Jeff Johnson passou a fazerpartedasociedade.

Omovimentomelhorouumpouco,orelacionamentocomosjaponesesfoiesfriando,eotriodaBlueRibbontevetempoparasecapacitaraproduzirseuspróprioscalçados.

Umaideiaqueveiocorrendo

EscolheronomedadeusagregadavitóriaparasuanovaempresadeixavaclaroondeosBlueRibbonqueriamchegar.

PediramaumaestudantedePortland,CarolynDavidson,paradesenharumamarca,eela apresentou uma espécie de pincelada gestual, larga na curva e fina nas pontas, quepoderia ser associada a um bumerangue, ou a uma lua semicrescente arremessada poralgumapotênciacelestial,algoqueinequivocamenteremetiaamovimento.Aqueletraçoabstrato recebeu o nome de Swoosh e representava o momento em que um corredorultrapassaooutro.Claroquenenhumconsumidorentenderiaseusignificadosemajuda,maseramoderno,ousadoe,depoisdeexplicado,continhaumamicronarrativa.Emumaempresacomandadaporapaixonadospelacorrida,faziatodosentido.

Tinhamumnomeeumamarca,faltavaumdiferencialdeproduto,problemaresolvidoporumamáquinadewaffle.Observandoaformadecolmeiadoswaffles,BillBowermanimaginouoqueaconteceriaemtermosdereduçãodeimpactoseassolasdostênisfossemdaquelejeito.Substituiuamassadewaffleporborracha,ligouamáquina,edeuograndepassodaempresaquerevolucionariaomercadodecalçadoseroupasesportivas.Onovotênis Nike estreou em 1972 sendo distribuído em uma competição a alguns corredoresparaqueoexperimentassem.Foiaprovadocomlouvor.

O endosso de um grande atleta poderia ser o alavancador de que precisavam paraaceleraropasso,eStevePrefontainepareciapredestinadoaessamissão.Eraumfamosocorredor olímpico de média e longa distâncias, também do Oregon, treinado porBowerman,equenuncahaviaperdidoumaúnicacorridaemsuapistadeorigem.

Com Nike nos pés, Prefontaine fez a marca subir em vários pódios, ser aplaudida eadmirada.Atéqueumtrágicoacidenteautomobilísticootiroudecenaprematuramente,aos24anosdeidade,em1975.

Protagonistas

Em vez de desenhar seus protagonistas, como Walt Disney, ou tornar-se o principalprotagonista de sua marca, como Steve Jobs, Phil Knight e Bill Bowerman preferiram

patrocinar as estrelas que os levariam às alturas. Era ótimo para amarca, e combinavaperfeitamentecomapaixãodeambospeloesporte.

Curiosamente,foinomesmoanoemblemáticoquemarcouaarrancadadaApple,1984,que aconteceu a aproximação da Nike comMichael Jordan, inaugurando uma parceriaque, além do prestígio, rendeu a linha de produtos Air Jordan. A palavra “air”, apropósito,aludindoaossaltosquasevoadoresdograndeJordan,remetiaprincipalmenteàlevezadoscalçadose,emsegundoplano,àpreservaçãodo fôlegodosatletas.Comtodaessagamadesignificados,éfácilentenderporquetantosprodutosdaempresaseabrigamsobadenominação“NikeAir”.

A estratégia de patrocínios rendeu à Nike um extraordinário elenco de mitos emmodalidadestãodiferentesquantocorrida(CarlLewis,SebastianCoe),basquete(MichaelJordan, Kobe Bryant), tênis (André Agassi, Pete Sampras, John McEnroe, MariaSharapova), golfe (TigerWoods), ciclismo (LanceArmstrong), artesmarciais (AndersonSilva, Júnior dos Santos) e futebol (Ronaldo, Mia Hamm, Cristiano Ronaldo, Drogba,Ibrahimovic,Balotelli,Rooney).Osnomes citados são apenas exemplosdamultidãodeatletasabraçadospelamarca,eaelesseguiram-seasequipes.ANikepatrocinatodosostimesda ligade futebolamericano—NFL;asseleçõesdebeiseboldaCoreiadoSul;decríquete da Índia; de basquete do Brasil, Canadá, China, França, Israel e Lituânia. Ofutebol,esportemaispopulardoplaneta,entrouatrasadona lista,mashojeocupa lugarnobre, com seleções do porte de Brasil, Inglaterra,Holanda, França, Croácia,Austrália,Estônia,Grécia, e clubes comoCorinthians, Santos, Internacional, Bahia, Coritiba, BocaJuniors,ManchesterUnited,ManchesterCityeParisSaint-Germain.

O que tantos patrocínios rendem, além dos óbvios endossos demarca, visibilidade evínculoemocionalcomtorcedores?Rendemhistórias.Odramadecadapartida,osaltosebaixosdecadaatleta,atémesmoosescândalosemquealgunsseenvolvem,tudofazpartedamultidimensionalidade dos protagonistas, humanizando-os, tornando-os personagensmaisricos,maispolêmicos,maiseletrizantes.

Vilão

Encontrarvilõeséapartemaisdifícilnaconstruçãodostorytellingdemarcas.Valorizarconcorrentes é temerário. Sinalizar alguma possível dificuldade enfrentada éinconveniente.

Para aNike, bastou consultar o drama íntimo dos atletas e o problema foi resolvido.Seuvilãoestádentrodecadaumdenós: é a inércia (acompanhadade seuscomparsas:acomodação,preguiça,conformismo,apatia,receio).

Relembrando a primeira parte deste livro, onde falávamos da natureza humana, aquiestá um excelente exemplo. Quem não reconhece como verdadeiro o sentimento deoposiçãoaoesforçofísicoquefrequentementesemanifestaquandonospreparamosparainiciarumaatividade?

Comoumtreinadorquegritaincentivosaseusatletas,provocando-osadaromelhordesi, sem mimá-los, a Nike simplesmente nos diz Just do it. O slogan criado por DanWieden é a síntese da marca, apresentado de forma tão perfeita que se espalhou pelomundo,semqueninguémsentisseanecessidadedetraduzi-lo.

Parceriadealtaperformance

Oprimeiro anúncio emmídia impressa assinadopelaNike foipublicado em1977.Seutítulo dizia “There is no finish line”. Criado pela agência JohnBrown andPartners, deSeattle,nãomostravanenhumproduto,massinalizavaoníveldahistóriaqueaempresacomeçava a contar. Uma história que começava noOregon e se alastraria pelomundo,massemperdercontatocomsuasraízes.Ouseja,aagênciadeSeattlenãoeraexatamenteencaixávelnoroteiroideal.

A fidelidade da Nike a suas origens oregonianas viria a se confirmar pouco adiantetambémnapropaganda.

Em1980,quandoo redatorDanWiedencomeçoua fazerdupla comodiretorde arteDavid Kennedy, na McCann-Erikson de Portland, ninguém imaginava que dois anosdepois eles abandonariam o emprego naquela grande multinacional para montar suaprópria agência, e era aindamais difícil imaginar que seu único cliente na época, umaempresademédioporteespecializadaemcalçadosesportivos,setransformarianagigantequehojeconhecemos.Apartirdaquelemomento,ahistóriadaWieden+KennedyestavaumbilicalmenteligadaàdaNike.

Crescendojuntas,enquantotambémcresciamoconhecimentoeaconfiançarecíprocos,ambas ganharammusculaturapara em1987veicularnaTVamericanaumcomercialdealtoimpacto,cujatrilhasonoraera“Revolution”,dosBeatles.Emjulhode1988,emumcomercial estrelado pelo famosomaratonista de San Francisco,Walt Stack, surgia pelaprimeiravezoJustdoit,escolhidopelaAdvertisingAgecomoumdoscincoslogansmaisimportantesdoséculoXX.

Nos anos 1990, agência e cliente se tornaram referências mundiais de excelência eousadia.

A instalação da sede com oito edifícios da Nike em Beaverton, nos arredores dePortland,em1990,mostravacomquecoerênciaedisposiçãoaempresaseempenhavaemconquistar o mundo. O campus da Nike tinha instalações esportivas de alto nível,permitindo aos seus colaboradores a prática de exercícios físicos mesmo durante oexpediente. Todos eram considerados responsáveis para cumprir suas tarefasindependentementede terem jogadoumapartidadebasquetenomeioda tardeou feitoumacorridinhaantesdoalmoço.Nomesmoano,foiinauguradaaprimeiraNiketown,emPortland,quandolojas-conceitoerampraticamentedesconhecidasdopúblico.

Em 1991, aWieden+Kennedy foi eleita Agência do Ano pelaAdvertising Age. E nãoparoudeconquistarprêmiosimportantesatéhoje.

Em1994,aNikefoieleitaAnunciantedoAnopeloFestivaldeCannes.Naqueleano,ofestival promoveuuma corrida pela principal avenida da cidade. PhilKnight estava lá,correndodemanhãerecebendoseutroféuànoite.

Em 1995, David Kennedy decidiu se aposentar, deixando seu nome na porta e DanWiedencomoplenocomandodaagência.ANikeassinoucontratodepatrocíniocomasseleçõesdefuteboldoBrasiledosEstadosUnidos.

Em1996, foi assinado o contrato comTigerWoods e a segundaNiketown abriu suasportasemBeverlyHills.

No final da década de ouro, duas notas negativas: o Brasil, que pela primeira vezdisputavaumaCopadoMundosobopatrocíniodaNike(1998),depoisdeumacampanharepleta de intrigas, fez uma irreconhecível partida final contra a França, gerandoespeculações de que a patrocinadora teria prejudicado a equipe com excesso decompromissosextracampo.Eemdezembrode1999,navésperadoNatal, veioa grandetristezacomamortedeBillBowerman.

OnovomilêniochegoucomaNikeesuaagência,ambas,comandadasporapenasumdeseusfundadores.

Minha experiência mais profunda com a marca aconteceu nesse período crítico. Emjunho de 1999, a Nike Brasil, após disputadíssima concorrência, entregou sua contapublicitária àGiovanni, FCB, agência da qual eu era sócio e diretor de criação.Após afestejadavitória, passeiuma semana comoutros três colegasde empresano campusdeBeaverton,ouvindováriosdiretoresdonovoclienteacontarsuahistóriaedemonstraroquanto estavam comprometidos em se manterem fiéis à estrada percorrida até ali. Foiumaoportunidadeímpar,emquepudeesbarrarcomPhilKnightduasvezesnorefeitório,frequentadoindistintamenteportodososníveishierárquicosdaempresa.

Umaspectoquemechamouespecialatençãofoiofortevínculoentreagênciaecliente.Em 1997, por razões não reveladas, aNike dividira sua conta publicitária, transferindoalgumas linhas de produto para aGoodby, Silverstein, de San Francisco. Eu tinha sidojuradodefilmesnoFestivaldePublicidadedeCannesnoanoseguinte,1998,exatamenteo ano da mal explicada Copa da França. E o Grand Prix de filmes fora ganho pelacampanha de estreia da Goodby na conta da Nike, gerando muitos comentários ecomparaçõesentreasduasagênciasqueatendiamaqueletãodesejadocliente.

CoincidiucomminhavisitaàsededaNikeoanúnciodequeacontaestavasaindodaagência de San Francisco e voltando a se concentrar totalmente na W+K. Curioso porsaber o que havia acontecido, ouvi de um diretor da Nike a singela explicação de queaquele curto período de parceria com a Goodby havia deixado neles uma sensaçãoparecida com a de estar cometendo adultério. Independentemente da exatidão daresposta,foiocomentáriomaisromânticoquejáouviumanunciantefazerarespeitodesuaagência.

Doisdiasdepois, recebidoporDanWiedenemseuescritório,queestavaprestesasertrocado por outro ainda maior, percebi a perfeita afinidade que solidificava aquelarelação.Umúnicodetalheéobastanteparaentreverograudeconexãoentreasempresas:aprincipalsaladereuniõesdaagênciatinhaaformadeumameiaquadradebasquete.

Politicamenteincorreto

São vários os exemplos polêmicos da Nike, algo bastante coerente para quem parecetrazerodesafioemseuDNA.UmdosmomentosmaisprovocativosdamarcaaconteceusobaauradasOlimpíadasdeAtlanta,em1996,quando,contrariandooidealolímpicodo“importante é competir”, a Nike chocou atletas, dirigentes e público, veiculando umcomercialdeTVquedizia:“Vocênãoganhaprata,vocêperdeouro.”

Na virada do milênio, outro filme da empresa mexeu com coisa muito séria. Ofantasma do momento era a possibilidade de um grande colapso em todos oscomputadores do mundo causado pela confusão provocada nos programas por um anoterminado em 00. Bancos, aeroportos, sistemas de transporte e arquivos em geral, tudodesapareceriaoudeixariadefuncionarapósacontagemregressivadoréveillonde1999.Obugdomilênioreforçavaotemordeque2000(ouY2Knaabreviaturaamericana)seriaoanodoapocalipse.

Foi nesse clima tenso que a Nike veiculou um comercial de sessenta segundos,TheMorningAfter,quemostravaumrapazacordandoderessacanodia1ºdejaneirode2000.A trilha sonora era um melancólico arranjo instrumental de “Auld Lang Syne”, doescocês Robert Burns, tradicionalmente cantada nos réveillons anglo-saxônicos,conhecidanoBrasilcomo“Valsadadespedida”,naversãodeAlbertoRibeiroeBraguinhafeita em1941.Opersonagemdo filme acordameio zonzo como toquedodespertador,pegaumvidrodeaspirinaqueestáporpertoevaiseprepararparasuacorridamatinal.Quandofechaaportaatrásdesi,misturadoaoutroselementosdecorativosdefimdeano,emumaresidênciamuitobagunçadapelafestadavéspera,vemosumcartazquediz“Y2Kit’llbeOK”.Narua,umtanquedeguerra,passandoenquantooprotagonistadofilmesealonga,indicaqueascoisasnãoestãomuitobem.Indiferenteaocaos,elecorrenamaiortranquilidade enquanto testemunha caixas eletrônicos jorrando dinheirodescontroladamente,colisõesdeveículosporcontadossinaisdetrânsitoempane,lojassendosaqueadas,explosõesefocosdeincêndio,policiaisebombeirostentandolidarcomotumulto,genteenlouquecidaportodolado.Cansado,elefazumapequenapausaemumpontoaparentementemaistranquilodacidade,esegueseuexercício,vendopassarsobresuacabeçaummíssildesgovernadoeumagirafaqueatravessaaruaassustada,antesdecruzar com outro corredor e ambos se cumprimentarem como se nada de anormalestivesseacontecendo.Justdoitaparecenatela,encerrandoapeça.Oefeitodetamanhaousadia transcendeu os limites da propaganda, levando o filme a ganhar não apenasváriosprêmiospublicitários,masoprimeiroEmmyAwardsconquistadopelaNike.

Em2002,aNikeganhariaumsegundoEmmycomocomercialMove,produzidoparaasOlimpíadas de Inverno, e aWieden+Kennedy apareceria noGunnReport (relatório queranqueia as agências com base nos mais expressivos festivais publicitários) como aagênciamaispremiadadomundo.

Umahistóriaquesealimentadedesafio

AperseverançaecoerênciadaNikeemsuanarrativafazemcomquetenhamosasensaçãodequeelasempreusouoJustdoit.Emumainterpretaçãomaisprofunda,seriaverdade.Masosloganvemconvivendocomoutrosemmudançaspontuais.

A campanhaproduzidapara aCopade2010,por exemplo, assinavaWrite the future,convidando e desafiando o público a compartilhar o peso do papel representado pelosastros do futebol mundial. Cada lance decisivo dos grandes craques é cercado dasexpectativasde glória ouostracismo,dependendododesfechoda jogada.A sedede sereternoémostradacomoprincipalelementomotivadorparaqueelesdeemomelhordesi.

ParaosJogosOlímpicosdeLondresem2012,asestrelasdoesporteforamsubstituídasporgentecomum,que seesforçadiariamentenocumprimentode suacotadeatividadefísica,encarandodesafiosaparentementepequenos,masmuitosignificativos,emlugaresecircunstânciasdesglamourizadas.Aassinaturadessacampanha,quesemanteveapósofinaldasOlimpíadas,éFindyourgreatness.

Duas grandes campanhas apoiando eventosmundiais patrocinados pelamarca, certo?Errado. ANike não patrocina nem a Copa doMundo nem asOlimpíadas.Mas vem seespecializandoemdesafiarospatrocinadoresoficiaiscomestratégiasdecomunicaçãotãoimpactantes que o grande público acaba por percebê-la como patrocinadora, ou pelomenos guarda lembrança mais nítida de sua mensagem do que da mensagem de seusconcorrentesqueinvestemfortunasempatrocínios.

Expondo-seariscosesinalizandoconstanteestadoderebeldiaquesemanifestaemumestilo quase marginal, a Nike escapa do seu próprio tamanho. Ela se recusa a sermainstream, porque ser grande não é inspirador. Ela está sempre se colocando comoparceiradopúbliconoenfrentamentodainércia,daacomodação,doexcessodepeso,dovilãopresentenahistóriadetodosnós.

Vejamos o que diz o texto original do filme de abertura da campanha Find yourgreatness,emtraduçãolivre:

Nãohágrandescelebraçõesaqui.Nenhumdiscurso,nenhumafrasebrilhante.Mashágrandesatletas.De alguma forma começamos a acreditar que a grandeza era reservada para poucosescolhidos,paraassuperestrelas.Averdadeéquegrandezaéparatodosnós.Issonãoébaixarasexpectativas,éelevá-lasatéoúltimodecadaumdenós.Porquegrandezanãoestáemumlugarespecial.Nãoestáemumapessoaespecial.Grandezaestáondequerquealguémestejatentandoencontrá-la.

A cena que encerra esse filme é a de um menino hesitante antes de saltar de umaplataforma à beira de uma piscina qualquer, aquele clássico momento de superaçãovividoporquasetodasaspessoas.

Outrofilmedacampanhacausoubastantepolêmicaaomostraroenormeesforçodeummeninode12anos,maisvelhoqueosaltadordapiscina,porémobeso.Elecorrelentaesofridamente por uma estrada vazia, a câmera apenas espera que ele se aproxime osuficienteparaquevejamosdequemsetrataepossamoscompreenderagrandezainteriornecessáriaparafazertodoaquelesacrifício.

Concordandoounãocomaexposiçãodeumacriançanessa situação, é indiscutível aconsistência da Nike em sua atitude de provocar e inspirar. Uma consistência que seevidenciaquandojuntamossuastrêsassinaturasepercebemosqueelassãosequenciaiseharmoniosas, como se alguémnos dissesse de uma só vez: Just do it.Write the future.Findyourgreatness.

Seria cansativopercorrer todaa trajetóriadecampanhasarrebatadorasdaNike.Receberduas vezes o título deAnunciante doAno no Festival de Cannes (1994 e 2003) é umaproezaquedispensacomentários.

Coladanahistóriadegrandespersonalidadesdoesporteedecadapessoaqueusaseusprodutosnodiaadia,aNikeescrevesuahistóriacomextremacompetência.Seufamosocomercial “Good × Evil”, onde uma seleção de craques de futebol enfrenta um timeformado por figurasmonstruosas e violentas, sinaliza bem o quanto amarca domina ojogonarrativoesabeadministraroarquétipodoherói.NãoporacasoaempresamantémentreseusaltosexecutivosalguémcujocargoéChiefStoryteller.

Assistaaquiaosvídeosqueilustramestecapítulo:

Capítulo17

COCA-COLA.

Felicidadedentrodeumagarrafa

QuemprocuraasatraçõesturísticasdeAtlantaencontraTheWorldofCoca-Colaentreasvisitas imperdíveis. O museu da marca fica ao lado do Georgia Aquarium, em plenoPemberton Place, um complexo de entretenimento cujo nome homenageia o criador daCoca-Cola,JohnPemberton.

Não, não vamos encontrar um novo visionário empreendedor que impulsiona suamarca. John Pemberton era farmacêutico, sem maiores pretensões. Em 1886, quandotentava criar um xarope, acabou por acaso inventando a fórmula da Coca-Cola. Puraserendipidade, que nos remete às histórias mágicas da infância. Clima perfeito para odesenvolvimentodeumanarrativaenvolvente.

Percebida no início comouma espécie de tônico cerebral que aliviava os sulistas emseus esforços de reconstrução pós-Guerra de Secessão, com umpouco de sorte emuitacompetência de marketing e comunicação, a Coca-Cola atingiu o status de produtosímbolodeumaAméricapróspera,orgulhosadeseusvaloresefeliz.

Amisteriosafórmula

Mistério é um ingrediente maravilhoso para as grandes histórias, e a Coca-Cola soubeexplorá-locommaestria.Tratarsuafórmulacomosegredoabsoluto,guardá-laemcofres

bancários,alimentarespeculaçõesaseurespeito,divulgarqueapenasdoisexecutivosdaempresa têm acesso à fórmula, tudo isso contribui para um desejável processo demitificação.

OTheWorldofCoca-ColatemalgumasemelhançacomasatraçõesdosparquesDisney,fazendo-nos percorrer a história da marca como quem se aproxima de revelaçõesfantásticas. A parceria das duas marcas durante tantos anos é a consagração de suasafinidades, algo perceptível desde as tipologias escolhidas para representá-las. Há umaevidenteconexãoentreelas.Ambas têmaespontaneidadedomanuscrito:Disney,vindade seu fundador, grande desenhista; Coca-Cola, vinda de um contador. Como queabençoadosporumafada,umfarmacêuticodescobriua fórmulamágica,eumcontador,FrankRobinson,deu-lheumnomeeformatousuaassinaturadeprópriopunho.Comonãoera artista, Frank lançou mão do tipo Spencerian Script, tradicionalmente adotado emcorrespondênciasdenegóciosnosEstadosUnidosdoséculoXIX.AfórmuladatipologiamaismarcantedomundonadamaisédoqueacaligrafiadeFrankRobinsonaplicadaaumestilousadoemváriascartascomerciaisdesuaépoca.

NomundodaCoca-Cola,ascoisasacontecemdeumjeitotãoencantadorqueparecemobradeficção.

AcreditandoemPapaiNoel

Tudo começou com um problema: a queda das vendas no período de inverno. O friodesestimulavaoconsumoderefrigerantes,daíanecessidadedecriaralgumestímuloparaqueaspessoascomprassemCoca-Cola,especialmentenoperíododoNatal.

O personagem Papai Noel nasceu na Turquia no século IV, inspirado no arcebispo,depois canonizado, SãoNicolau deTaumaturgo. Sua atuação em favor de famílias comdificuldadesfinanceirassófoivinculadaaoNatalmuitosanosmaistarde,naAlemanha.Por isso, as imagensdePapaiNoel inicialmenteapresentadasaomundoeramem trajesepiscopais,tendomaistardeassumidoroupasdeinvernonacorverde.FoinaAlemanhaque o cartunista ThomasNast o desenhou pela primeira vez com roupas vermelhas. Aimagem,publicadanarevistaHarper’sWeeklyem1886,começouentãoaseespalharpelomundo. Para quem gosta de coincidênciasmágicas, a configuração duradoura do PapaiNoelsurgiuexatamentenomesmoanoemqueafórmuladaCoca-Colafoiinventada,semquenenhumarelaçãoexistisseentreosdoisfatos.

Sóem1931ograndeencontroaconteceria.FoiquandoaCoca-Cola,tirandoproveitodailustração avermelhada com detalhes brancos do personagem criada por Thomas Nast,que remetia às coresde seu rótulo, lançouumagrandecampanhapublicitáriadeNatal,estreladaporninguémmenosqueele,PapaiNoel.Acampanhafoiumenormesucesso,asvendas aumentaram apesar do inverno, e a estratégia de usar o bom velhinho em suascomunicaçõesnatalinasfoimantida.

A dobradinha da Coca-Cola com o famoso pintor e ilustrador Norman RockwellalavancoudetalformaaidentidadeentrePapaiNoeleamarcaquemuitagentepassoua

acreditar que a Coca-Cola teria criado o personagem. Seumérito, que não é pouco, foiidentificar a oportunidade, investir pesado nela e se tornar a maior divulgadora daimagemque,atéhoje,enfeitaossonhosdascriançaseascelebraçõesnatalinasnomundointeiro.

Amigosursos

O Natal, com sua carga simbólica de união familiar, manteve espaço privilegiado nocalendário da Coca-Cola. Mas isso não fez com que a empresa abrisse mão de buscaroutros personagens associados à data, além do consagrado Papai Noel. Foi assim quesurgiuasimpáticafamíliadeursos-polares.

Apesarde já ter aparecido esporadicamente em sua comunicaçãodesde1922, ourso-polar só ganhou forma, família e ocupou posição de destaque com a campanha daCreativeArtistsAgency,deLosAngeles,em1993.

Dezoitoanosdepois,em2011,aempresadecidiuunirseuspersonagensfictíciosaumaaçãonomundoreal,abraçandoacausadapreservaçãodosursos-polares.Eem2013elesforamtrazidosdevoltaàmídia,dessavezemcomemoraçãoaoDiadasMães.

Estadodaarte

Como se não bastasse uma tipologia tão forte, que, independentemente do que estáescrito, sempre nos remete àmarca (camisetas com “cachaça” estampada nas letras daCoca-Cola são um exemplo bem-humorado desse efeito), a empresa se deu o luxo deadotarumagarrafacomdesignexclusivo.

Maisumacasonalongalistadamarca.Começouem1894,comabebidasendovendidaem uma loja de doces, em garrafas de vidro que tinham o nome da engarrafadora emautorrelevo:BiendenharnCandyCompany.Apesardo sucessoda iniciativa, vários anossepassaramatéqueaoportunidadesaltasseaosolhos.Oprocessodeengarrafamentoseespalhougradativamenteporváriasempresasecidades,despertandoaCoca-Colaparaanecessidadedeumapadronização.Realizadoem1916umconcursoparaaescolhadesuagarrafaoficial,RaymondLouise,inspiradonafrutadocacau,sagrou-sevencedor.

A marca manuscrita aplicada a um exclusivo design de garrafa deu ao produtoaltamente industrializadoum caráter artesanal, como que realçando origens fictícias.Aevolução do artesanal para o artístico deu-se pelas mãos do grande Andy Warhol.Notabilizadopela reproduçãomecânicade figuras icônicascomoMarilynMonroe,ElvisPresley,CheGuevara,PeléeMonaLisa, entreoutros,doisprodutosmuitopresentesnacultura americana integraram-se à sua lista de celebridades: Sopas Campbell’s e Coca-

Cola.Quadroscomuma, três,cinco,até210garrafasdeCoca-Cola,ouamera tampinhado refrigerante, assinados por Warhol, deram à marca uma inestimável aura desofisticação pop. Aderindo a esse primeiro movimento, muitos outros artistasdesenvolveramobrasbaseadasnaslatasdorefrigerante,naestilizaçãodegarrafas,coposou borbulhas, fazendo da Coca-Cola, com o acréscimo do fartomaterial produzido porNormanRockwell,amarcalíderderepresentaçõesnasartesplásticas.

AinserçãonocontextoculturaldeuaindaàCoca-Colaodireitodeparticipardocenáriomusical mundial em alto estilo. A marca é citada em “Come Together” (The Beatles),“BillyBoola”(U2),“DesecrationSmile”(RedHotChiliPeppers),“TheStaticAge”(GreenDay)e“AnotherColdandWindyDay”(BeeGees),estaúltimatãoelogiosaquesoacomoumjingle.Outrosgrandesnomes,como Julio IglesiaseCyndiLauper,engrossama listadecelebridadesquecantamCoca-Cola.

Tendo adotado a música como elemento constante em sua comunicação desde osprimeirosanos,aCoca-Colapareceterprovocadoumaespéciedereciprocidadeporparteda classemusical, ou estabelecido um convívio tão íntimo que a tornou bem-vinda nouniverso da sonoridade. Seu primeiro comercial de TV produzido no Brasil, em 1955,enfrentando a resistência natural de bebida estrangeira em um país onde guaraná erasinônimo de refrigerante, foi totalmente impregnado de música. Nele, o locutor eapresentadorCarlosHenriquenosapresentaosinstrumentosbásicosdococonordestino,em estratégica reverência a um ritmo local, preparando a entrada da cantora DórisMonteirocomumcoromasculino.Comoemumtípicoprogramadeauditóriodaépoca,opúblico foibrindadocomum jingle,cujo tema“Isso fazumbem”respondiaàsdúvidasqueincomodavamapopulaçãosobreasaudabilidadedoproduto.

Amarcaseguiucantandoeconquistandoespaçoporaqui,atéqueCaetanoVeloso,em“Alegria,Alegria”, lhe deu umpresente inestimável ao dizer “eu tomoumaCoca-Cola,ela pensa em casamento”. A química entre Caetano e os Beat Boys no palco do teatroParamount de São Paulo, transmitida para todo o país pela TV Record, arrebatou opúbliconasegundaediçãodoFestivaldaMúsicaPopularBrasileira,em1967,tornando-seummarcodoiníciodoTropicalismo.

Vários de nossos compositores e cantores também incluíram a Coca-Cola em seusrepertórios,masnadacomparávelaoqueaconteceriaquasevinteanosdepois.Quandosepensava ser impossível glorificaçãomaior do que a proporcionada por Caetano, RenatoRussoeDadoVilla-Lobosderamumpassoadiante,chamandode“GeraçãoCoca-Cola”amúsicaqueviriaaconectaramarcacoma juventudedosanos1980econsagrá-lacomoidentificadora de uma geração. Por ironia do destino, a música foi lançada em 1985,exatamente no ano em que amarca sofreria um de seusmais graves reveses. EnquantobrilhavanasparadasdesucessobrasileiraspelavozdaLegiãoUrbana,asituaçãodaCoca-Colaemseupaísdeorigemdesafinavaeatravessavaoritmo.

Oantagonista

EmseulivroTheRealThing—TruthandPowerattheCoca-ColaCompany,ConstanceL.Haysdizqueháconflitonaprópriaessênciadoproduto,umconfrontoíntimodeforças.Segundoele,umgoledeCoca-Colaéaomesmo tempodoceeácido, sua fórmula reúneelementos tão banais quanto açúcar e tão exóticos quanto noz de cola. Descontados osexcessospoéticos,jáéumbomcomeçoparaaconstruçãodahistória.Masissonãoeximenossa protagonista de enfrentar sérios e concretos antagonismos externos, que só fazemacrescentaremoçãoànarrativa.

Tendoalcançadoa supremaciaabsolutanomercadode refrigerantes,aCoca-Cola,pormuitos anos, agiu de forma conservadora. Sua comunicação, esmerada nos valores deprodução, tendiaaoslicesoflifebásico,geralmenteapoiadoporumabelamúsica.Nadamuitoousadoquepudessepôremriscosuafolgadaposiçãodelíder.

Aproveitando-sedabrechacausadaporesseconservadorismo,nofinaldosanos1970,aPepsiabriufogocontraaCoca,deflagrandooquepassouaserconhecidocomoaGuerradasColas.

Nascidaem1893,portantoapenaspoucosanosmais jovemdoquesuaconcorrente,ecoincidentemente também fruto da tentativa de criar um medicamento, no caso paracombater a dispepsia, a opositora da Coca-Cola adotou a estratégia típica das marcasdesafiantes. Foram anos e anos apresentando-se, de forma bem-humorada e muitoagressiva, como a eleita dos jovens, aomesmo tempo que rotulava a líder do segmentocomoultrapassada,antiquada.

Aolongodosanos1980e1990,aPepsibrindouomercadopublicitáriocomtrabalhosantológicos de propaganda comparativa. Archaeology, de 1985, é um dos maisemblemáticos.Mostra umprofessor e seus alunos visitando ruínas de nossa civilizaçãoem um futuro distante. Com latas de Pepsi namão, que lhes aliviam a sede enquantoparticipam do estudo, os alunos vão encontrando objetos empoeirados e desconhecidospelo caminho, pedem informação ao professor, que nunca titubeia em lhes ensinar onome e a aplicação de cada um dos objetos encontrados. Até que uma garrafa muitodeformada pela passagem do tempo é encontrada. Perguntado sobre ela, o professorconduza turmaaumaparelhoque lhe revelaa formaoriginal.Cresceaexpectativaemtornodaqueladescoberta.Vemosquese tratadeumaclássicagarrafadeCoca-Cola,masparaospersonagensdofilmeparecealgovindodeoutroplaneta.Àinsistentecuriosidadedosalunossobreapeçaexaminada,oprofessor,intrigado,limita-seadizerquenãofazamenor ideiadoque seja.Ocomercial é assinadocomo temaquemelhor exemplifica alinhaadotadanessesanosdecombateexplícito:Pepsi—AEscolhadaNovaGeração.

ACoca-Cola,queatéentãovinhaacertadamenteresistindoà tentaçãoderesponderàsprovocações,parasurpresadetodos,nomesmoanode1985,lançouumprodutochamadoNew Coke, a primeira alteração de sua fórmula original em 99 anos de existência. Naocasião,oCEOdacompanhiaeraoprimeiroestrangeiroaassumirocomando.Chamava-seRobertoGoizueta,umengenheiroquímiconascido, logoonde?,emCuba.Convencidode que os jovens preferiam o sabor de Pepsi e de que os novos tempos clamavam pormudança, Roberto não se atreveu a dar passo tão grave sem antes obter o aval dolegendário Robert Woodruff, responsável pela internacionalização da empresa.Fragilizadoporseus95anosdeidade,masaindainfluentenoboard,ondeeraconhecidopor sua aversão a mudanças, o decano do império de Atlanta acabou cedendo aoentusiasmodoexecutivocubano.

Oefeitonãopoderiatersidomaisdesastroso.Cercadetrêsmesesapósseulançamento,oprojetoNewCokefoidestruído,bombardeadoporcentenasdemilharesdetelefonemasecartas,pelaimprensaeatéporFidelCastro,queenxergounaquelanovidadeumsinaldedeclíniodocapitalismo.Antesdo recuo forçado,nosegundomêsde implementaçãodonovosabor,RobertWoodruff faleceu, reforçandoa sensaçãodemovimentoamaldiçoadoque se abateu sobre amarca.Mudar o sabor da Coca-Cola eramexer com a emoção demilhõesdeamericanos,algocomoultrajarumsímbolonacional.TantoqueoanúnciodavoltadosabortradicionalmereceunotíciaemediçãoextraordináriadarededetelevisãoABC,interrompendoatransmissãodesuafamosasériedramáticaGeneralHospital,alémdo solene pronunciamento do senador David Pryor, classificando aquele como “ummomentosignificativonahistóriadosEstadosUnidos”.

Atentativaderejuvenescimentoacabousetornandomotivoparaodeclíniodasvendas,e um gancho para que a Pepsi apregoasse queDavi novamente havia vencidoGolias. ÉsintomáticoqueotemaquesubstituiuAEscolhadaNovaGeraçãotenhasido,em1987,OSabordeVencer.

Para tornar a vida da Coca-Cola ainda mais difícil, um impressionante elenco decelebridades foi contratado pela Pepsi, reforçando sua conexão com o público jovemnesseextensoperíododeguerra.Madonna,Michael Jackson,BobDylan,BritneySpears,Beyoncé,DavidBowie,Rihanna,JenniferLopez,TinaTurner,Shakira,JustinTimberlakee Spice Girls são apenas alguns exemplos dos aliados Pepsi contra o império da Coca-Cola.AelessejuntarampersonagensdeficçãocomoosimpáticoET,deStevenSpielberg,eosconsagradospersonagensdeGuerranasEstrelas,DarthVadereMestreYoda.Enfim,um ataque de peso que também convocou atletas, entre os quais os brasileirosGustavoKuerten,Pelé,Kaká,Denilson,RobertoCarloseRonaldinhoGaúcho.

Sob intensobombardeio, restouàCoca-ColadesistirdefinitivamentedaNewCoke, sepossível esquecê-la, retornar com todas as forças à tradicional fórmula sob o nome deCoca-Cola Classic, entrincheirar-se em suas bases e deixar que a Pepsi gastasse seuarsenal,enquantonovosraciocíniosdecomunicaçãoeramformuladosparaque,poucoapouco,opoderdamaiorindústriaderefrigerantesdomundoesvaziasseoímpetodeseuadversário.

Discursosborbulhantes

Foi declarando You can’t beat the feeling, em 1988, que a Coca-Cola reafirmou aomercado, e principalmente a seus fãs, que estava forte e com elevada autoestima.Contrapunha-se diretamente ao “sabor de vencer” proclamado pela Pepsi, e partia paraumanovafasedeconquistas.NoBrasil,osloganfoitraduzidocomoEmoçãopravaler,echegouquandoaindaestávamossoboefeitodeouvir“Águasdemarço”,deTomJobim,executada como trilha sonora mundial dos comerciais do refrigerante, desde o anoanterior.Tambémem1987,aCoca-ColaassinouomaiorcontratoesportivofeitoporumaempresaprivadanoBrasilatéaqueladata:patrocinouaCopaUnião.O investimentono

esporte foi tão positivo que, em 1990, a marca assumiria o patrocínio da SeleçãoBrasileiradeFutebolemtodasascategorias.

Reforçando sua imagem nos mais diversos campos de atuação, em 1993, a marca sesentia suficientemente segura para lançar a campanha “Sempre Coca-Cola”, a segundamais longade suahistória, quedurouaté aviradadomilênio.Sóoprimeiro slogan (Apausa que refresca), de 1942, foi mais duradouro que o de 1993, assinando suacomunicaçãopublicitáriapordezanosconsecutivos.

Aumentava a presença da marca e a robustez do slogan, mas o conteúdo dacomunicaçãoseguiaavelhafórmula“música+slicesof life”,queadeixavaemposiçãovulnerávelanovosataquesdeconcorrentesmaisousados.OformatopadrãodosfilmesdaCoca-Colavinhasendoocasionalmentequebradoporheroicasexceções,comoaconteceucom“MeanJoeGreene”,em1979,ondeocontundidoemal-humoradoatletaéabordadopor um pequeno fã, que lhe oferece uma garrafa do refrigerante no vestiário,sensibilizandoograndalhãoparaumaatitudemaisamigável.Eraotempode“Coca-Colaeum sorriso”, que teve a mesma cena reproduzida no Brasil com o jogador Zico. Antesdisso, em1971, umcomercial bemmenos criativo,mas igualmentepoderoso,mostravajovens de diferentes nacionalidades cantando no alto de uma colina um quase hinoreligioso sobre desejos edificantes que desembocava no refrão cuja letra apresentava abebida comoThe Real Thing. Ambas as peças, criadas pela agência McCann Erickson,prenunciavamoqueviriaanortearocaminhodamarcanofuturo.

Passando por temas como Enjoy (2000) e Life Tastes Good (2001), a Coca-Cola iriarevisitarapegadadosanos1970comReal (2003)eMakeitReal (2005).Asequênciadeações bem-sucedidas, que resultou em situação absolutamente dominante no planeta,levouamarcaaassumirumpapelpróximodomessiânico.Logo,noanoseguinte(2006),omundoeraapresentadoaoCokeSideofLife.

Reproduzindo os elementos do violento game GTA (Great Theft Car), o personagemprincipaldojogo,apósumgoledorefrigerante,abandonaatruculênciaquelheépeculiaredistribuiCoca-Colaparasuaspossíveisvítimas.Aosomdemúsicaquediz“yougivealittle love and it all comes back to you”, todo o ambiente se transforma em umacelebração do “ladoCoca da vida”. Este é o resumodo brilhante comercial criado pelaWieden+Kennedy,marcodeumanovaposturacriativa,porémsemabrirmãododiscursootimista-afetivoconstruídodécadasantes.

Depoisdessarupturadeforma,umaenormearquiteturadestorytellingviriaàtona.

HappinessFactory

OqueaCoca-Colavende?Noinício,erarefrigerante.Hoje,éfelicidade.A moeda introduzida em uma vending machine gira dentro da máquina e ativa um

mundofantástico.Essemundoépovoadoporchinoinks(seresparecidoscomlesmasquevoamsustentadosporhélices),mortarmen (os responsáveispelos fogosdeartifícioquemetaforizamasborbulhasdagaseificação),lovepuppies(bolinhaspeludasdominadaspor

grandesbocasespecializadasembeijar),pinguins (osquecuidamdatemperaturageladado produto), operários (cada um dedicado a uma fase da produção, inclusive algunsvoadores, com destaque para o mestre de doçura e os colocadores de tampinhas), emúsicosdeumaextensabandaqueremeteaogêneromarcialfestivodosdesfilesDisney.Dentre os personagens, a posiçãomais parecida com a demestre de cerimônias cabe aWendy, que tem traços próximos do humano e seria uma espécie de baliza da banda.TodoselesrevelamdevoçãoàmissãodeproduzirCoca-Cola,levamasériooquefazemetêm características engraçadas, se atrapalham e provocam momentos de confusãoenquantoatuam.

OlugarmágicoqueseocultanasvendingmachinesdeCoca-Colaéaberto, inspiradorcomo Shangri-lá e se chama Fábrica da Felicidade. Foi criado pela Wieden+Kennedy,produzidopelaPsyoperevelaumadasmaisarticuladasaçõesdestorytellingregistradasno marketing mundial. Surgiu em 2007, ancorado no Coke Side of Life, agoraexplicitamente definido como o lado “felicidade”. Como não poderia deixar de ser, ahistória da Happiness Factory veio acompanhada de uma música, dessa vez apenasorquestrada,cujotemamelódicoprincipalseconverteuemumavinhetasonoradeapenascinconotas.Umbelo trabalhodesoundbrandingquegrudanamemóriacomoosbeijosdoslovepuppies.

Onipresença

2010. A Copa do Mundo acontece pela primeira vez no continente africano. Todos osolhosdomundosevoltamparaaÁfricadoSul.

Ohinooficialdoeventosebaseiaemumtemamusicalaquenossosouvidos jáestãoacostumados.Sãocinconotasquepasseiampelotecidomelódicoecompõemorefrãoemformadeô-ô-ô-ô-ô,muitoadequadoaoqueseesperadetorcedoresemumestádio.Semassumir o fato, a Coca-Cola fez de sua trilha sonora nada menos que o tema do maispopulareventoesportivodoplaneta.

PatrocinadoradosJogosOlímpicosdesdeaediçãode1928emAmsterdã,edaCopadoMundodesde1978,aCoca-Colaépresençaconstantenãosóemeventosesportivos,mastambémnosgrandesespetáculosmusicais,comoéocasodoRockinRio.

Já foi dito por um de seus executivos internacionais que “a Coca-Cola se consideramenos uma engarrafadora de refrigerantes emais uma empresa de entretenimento, queativamentemoldaepatrocinaeventosesportivos,shows,filmesesériesdeTV”.

Comaimportânciacrescentedomundovirtual, tambémporlácirculaintensamenteanarrativa da marca. Seus representantes registram permanente atenção ao storytellingmaisabrangentepossível,declarando,porexemplo,que“a tecnologiapodepermitirumuso da criatividade brilhante e nos oferece ferramentas para vendermos melhoreshistórias e criarmos melhores experiências”. E, ainda, “que a tecnologia mudou aabordagememrelaçãoaostorytelling...aevoluçãodostorytellingdemãoúnicaparaumstorytellingdinâmico”.

AoassumirotemaAbraaFelicidadeemsuacomunicaçãoapartirde2009,aCoca-Coladeclara com todas as letras seu propósito de estar alinhada com o ponto máximo dosanseios humanos. A fórmula secreta, com que iniciou sua trajetória há mais de umséculo, parece autorizá-la a se colocar empatamares jamais ambicionadospor qualqueroutramarca.

Assistaaquiaosvídeosqueilustramestecapítulo:

Capítulo18

JOHNNIEWALKER.

Sobamesmadireção

Umgaiteirode foleescocês todoparamentado tocaseu instrumentoem típicapaisagemde sua terra.Adistânciavemosumhomemque se aproximaapassos firmes, em trajesantigos,quechegafalando:“Ei,gaiteiro!Parecomisso!”

Amúsicaseinterrompeimediatamente.Ohomempassapelogaiteiroesegueandandoenquantofalaparaacâmera:

Estaéumahistóriaverdadeira.SobreumrapazchamadoJohn.Apenasummeninodefazendalocal.Mashaviaalgoespecialnele,umbrilhonosolhos,umfogonabarriga,umainquietaçãonoseupasso.Umdiaelesaiupraumacaminhada.Começouquandoseupaimorreu.Era1819,eeletinhaapenas14anosdeidade.Precisavadeterapia?Bem,esseeraumtempoemqueosrapazeseramenviadosaoscampos...osmoinhos,asminas—temposduros.MasojovemJohneramaisespertoquesortudo.Afazendadeseupai,ondenasceuesecriou,foivendida.Eodinheiro,usadoparaabrirumamercearia.Grande responsabilidade para um garoto. Sua própria loja em Kilmarnock, com seunomenaporta:JohnWalker.OuJohnnie,comoficouconhecido.Naquelaépoca,todasasmerceariasestocavamumavariedadedemalteslocaisúnicos.Maselespodiamser...umpoucoinconsistentes.ParaJohn,issonãoerabomosuficiente.Elecomeçouamisturardiferentesmaltesparaoferecera seusclientesumprodutoúnicoe consistente.Suaartede fundodequintal

logosetransformouemumapropostacomercial.Bemlucrativa.E,porquenãohánadacomoumapropostacomercialparacomoverumcoraçãoescocês,acoisarapidamentesetornouindústria,cheiadeempresáriosambiciosos.John prosperou nesse mercado. E logo seus filhos, Robert e Alexander, também sejuntariam a ele. OsWalkers se afirmaram como grande nome em uma indústria emaceleradaascensão.Ninguémpoderiadetê-los.NoséculoXIX,elescompraramumafamosadestilariaemCardhu,trancada,estocadaegarantindo seu estoque de um suavemalte. Garantindo, principalmente, que nenhumconcorrentecolocariaasmãosnaquelemalte.Mas o jovem Alexander não estava satisfeito em ser apenas o maior produtor daEscócia.Nãoeraobastanteparaele.Não,não.EleconvenceuoscapitãesdenaviodeGlasgowaatuarcomoseusagentes,elevououísquecomonomedeseupaiaoredordomundo.Em 1860, desenvolveu uma garrafa quadrada, agora com o rótulo em um ângulo deprecisamente24graus.“Grandecoisa”,vocêpodepensar.Masvocêestáerrado.A garrafa quadrada evitava quebras e garantia mais garrafas por viagem. O rótulodiagonal significava letrasmais fortes.E tudo isso juntodavaao JohnnieWalkerumapresençainconfundívelemqualquerprateleiradomundo.A garrafa virou ícone, e o rico líquido que ela continha era procurado e consumidoatravésdoglobo.Que personagem, Alexander Walker! Mestre na arte de misturar maltes, ambicioso,irredutível.Neste ponto da fala, o homem passa por uma imagem de Alexander Walker e ocumprimenta:Sr.Walker!Elecontinuaandandoefalandonomesmoritmo:Os netos de John, George e Alexander II, juntaram-se à sua jornada. Conduziram amarcaparaoséculoXX.Em1909,elesdesenvolveramosicônicosRedLabeleBlackLabel.EconvenceramTomBrown,omelhor jovemilustradordaépoca,adesenharumhomemandandoapassoslargos, em um pedaço de guardanapo, durante um almoço de negócios. No traço dacaneta,umlojistavitorianofoitransformadoemumelegantecavalheiro.Em1920,acaminhadade Johnnieo levoua120países.Eelecontinuoucaminhando,através das campanhas publicitárias da marca, nos cinquenta anos seguintes, pelotecidodaculturamundial.Profundamente,nocoraçãoescurodemuitasguerrasenosprazerosos palácios da aristocracia. Eternizado pelas lendas da tela, celebrado peloscriadoresdefilmes,cantores,escritores...ombroaombrocomosmelhoresesportistas,ganhando incontáveis prêmios internacionais por qualidade, e até mesmo sendoconsideradoabebidaoficialdarealezapeloReiGeorgeV.Nãoerapossívelretrocederdepoisdisso.MasretrocedersequerpassoupelacabeçadeJohnnie,oudesuafamília.No finaldo séculoXX, aos consagradosRedLabel eBlackLabel juntaram-seoGreenLabel,oGoldLabele,omaisvaliosodetodos,JohnnieWalkerBlueLabel.No iníciodo séculoXXI, JohnnieWalkernão eraapenasamaiormarcadeuísquedomundo,masumsímbolointernacionaldeprogresso.

O mantra Keep walking da marca foi adotado por protestantes pró-democracia eescritoresdediscursosparlamentares.Oquepensariaomeninovitorianodefazendasobretudoisso?Eleadoraria.Ele pode até ter sido um lojista vitoriano nascido em uma fazenda. Mas ele e suafamília,queoseguiu,tinhamumapoderosaambição,alémdehabilidadeeinteligência.Duzentos anos passaram e Johnnie Walker ainda está caminhando. E não mostranenhumsinaldequevaiparar.

Ohomemsegueandandoporumcaminhoqueparecenãoterfim.Pelaprimeiravez,acâmeradeixadeacompanhá-loemumrecuoconstante,paraqueopersonagemprossigasemela.

Durante a caminhada, quedura quase seisminutos, nãohápausas nem cortes. E nosdeleitamoscomosincronismoentreafaladopersonagemeoselementoscênicosqueeleencontra;desdeotúmulo,quandoémencionadaamortedopaideJohnnie,atéagarrafade 1860, encontrada sobre uma espécie de mesa alta, a tempo de ser comentada,apresentadaemtodososdetalhesecolocadaemumrecipientemaisadiante,exatamentequandoaquelapartedotextoseencerra.Háaportaalusivaàmercearianomeiodonada.Hámonitoresempilhados,quandoé feitaalusãoàpresençadamarcano tecidoculturaldomundo. Há umamistura de precisão, atrevimento e qualidade criativo-execucional,que transforma o que poderia ter sido um daqueles vídeos chatos de empresa em umaobra-prima,ondeostorytellingdamarcapasseiaemaltoestilodiantedenossosolhos.

OatoréRobertCarlyle,odiretoréJamieRafn,eoroteiristaéJustinMoore,daagênciaBBH.

Típica história de percurso, podemos dizer. Onde tudo conspira a favor damarca, apartirdosignificadodonomeWalker.

TernasmãosumprodutoquesechamaJohnnie“Caminhador”,cuja trajetóriaatravésdotemporevelainteressantetramadeamadurecimento,fazotemaKeepwalkingpareceróbvio.Atécertoponto,sim.Masparaumuísque?

Oqueautorizaumabebidaalcoólicadestiladaaseapresentarcomoincentivadoradaspessoasemseuspassospelavida?Aprincípio,nada.Anãoseraousadia.

ParaJohnnieWalker,encorajaropúblicoaseguiremfrentefazsentido,porqueessaéaverdadedamarca.Éissoqueelavemfazendohámaisdedoisséculos.Eosentidodoseulema só faz crescer com a variedade de interpretações criativas que vem recebendo emsuas diferentes fases de comunicação. Atreve-se a enviar mensagens como se fosse opróprio consumidordaqui a cincoanos,no instigante comercial “From the future”.PõeatéomorrodoPãodeAçúcaremmovimento,aproveitando-sedeummomentoemqueoBrasil parecia estar prestes a realizar seu sonho de grandeza, para dizer: “O giganteacordou.”Semsaberquea frase,queantecediaodesfecho“Keepwalking,Brasil”, seriaadotada pouco tempo depois pelos milhares de manifestantes que saíram às ruas paraprotestarcontraaconduçãodopaís.

A metáfora da história como caminho encontra nessa marca sua demonstração,digamos,maisaopédaletra.Desdeobatismo,elasinalizaorumodesuacomunicação,e

vemsabendoexplorarcommuitapropriedadeasmúltiplasalternativasqueseapresentamduranteotrajeto.JohnnieWalkercumprecomopoucosodestinoquelhefoireservado.

Assistaaquiaosvídeosqueilustramestecapítulo:

Capítulo19

REDBULL.

Tourovermelho,OK.Masvoador?

Ahistóriacomeçapelasasas.Elasestãonoslogan,noseventos,naorigem,sobrevoandoamarcaotempotodo.

Quandoem1991aconteceuemVienaoprimeiroFlugtag,algoquesetraduzcomo“diade voo”, aRedBull oferecia a quemquisesse a possibilidadede apresentar empúblicoseus aparelhos voadores feitos em casa, e provar que funcionavam, lançando-se no arcomo se fossem pioneiros da pré-aviação. Curioso verificar que estamos falando domesmoprincípiodahistóriaquemarcouaTorredeGálataemIstambul,narradanoiníciodestelivro,agoracomfinalfeliz.

Orequisitobásicodosaparelhosparticipanteseraseremmovidosunicamenteportrêsforças:muscular,dagravidadeedaimaginação.

Voar é um sonho que nos alimenta desde sempre, manifestado mitologicamente emÍcaro,mas presente na figura dos anjos e de tudo o que se liga à ascensão, seja física,espiritual, econômica,profissional,política, qualquer tipodeascensão.Muita coisavoanesta vida, inclusive o tempo, mas nada vai tão alto quanto nossa capacidade deimaginar.

Nas asas do Flugtag, Red Bull reforçou sua presença em várias partes do mundo,ganhounotoriedadeeinspirouoqueviriamaisadiante.Em2003,outroeventodamarcasurgiu vitorioso, transformando-se em campeonato mundial de um esporte exclusivo.Chama-se Red Bull Air Race, e segue empolgando as cidades onde é disputado, compilotosdepequenos aviões acrobáticosdesafiadospor circuitosde obstáculos embuscadomelhortempo.Umesportequeexigedestreza,domíniotécnicoeprecisãomilimétrica,oferecendoaopúblicoumshowdemanobrasdetirarofôlego.

Deondeveioaideiadecolocaramarcanessatrajetória?Talvezdeumacaso.Voltemos a 1984.Mais um fenômenodemarca ocorrendonomesmoperíodo emque

Nike,AppleeCoca-Colaviviamgrandesmomentosdesuahistória.Naqueleanonasciaoprodutodotourovermelhocomooconhecemoshoje.MaselejáexistianaTailândia,sobo nome de Krating Daeng, cuja tradução para o inglês é exatamente Red Bull. E foidescobertoporcausadeumproblemacausadoporlongasviagensdeavião.

OaustríacoDietrichMateschitz,diretordemarketingdeumfabricantedecremedentalalemão, chegou àTailândia comum tremendo jet lag. Percebendo omal-estar físicodoviajante,ostailandeseslheindicaramumtônicolocal,famosoporaumentararesistênciado corpo e a concentração mental, muito usado por trabalhadores braçais ecaminhoneiros.Dietrichseempolgoucomabebida,descobriuqueelaeraproduzidapelaTC Pharmaceuticals, e não demorou muito para convencer Chaleo Yoovidhya,proprietáriodaempresatailandesa,aformarcomeleajointventureRedBullGmbH,queiniciariaseucaminhonaEuropacomumafundamentalalteraçãodemarketing:deixariade se dirigir aos que executam trabalhos pesados para definir como público-alvo oshomens jovens, entre 18 e 24 anos, praticantes de esportes de aventura, ou de algumaforma atraídos por esse tipo de atividade. De marca originalmente percebida comofuncional,RedBull,comessaguinadaestratégica,ingressounoterritóriodolifestyle.

Aimagemdedoistourosseenfrentando,estampadanaembalagemdoproduto,nãoéaque melhor transmitiria o conceito de leveza. Mas, se a olharmos de relance, os doistouros parecem formar um par de asas. Dependendo do ponto de vista, não é difícilchegar-seàconclusãodequeaforçadamarcasempreesteveassociadaaovoo.

SegundoMateschitz,oslogan“RedBulltedáasas”dizrespeitoàhabilidadeeaopoderpara se conseguir o que se deseja. Um convite para uma vida cheia de atividade edesafios,semmedodetestaroslimites.

Escapandodospadrões

ApresençadeRedBullemmaisde140paísessugereinvestimentosfabulososemmídia,masnãoéissooqueacontece.Pelomenos,nãonosmoldespraticadosporoutrasmarcasdeportesemelhante.

Emvezdepatrocinar,RedBullcriaeproduzseuspróprioseventos.Alémdosesportesaéreosjámencionados,ondeporlicençapoéticatambémpodemosincluirocliffdivingeas grandesmanobras de skate, amarca domina a cena do ciclismo downhill com suascompetiçõesRedBullRampage,RedBullEmpireofDirteRedBullElevation.EsacodeocoraçãodosfãsdemotocrosscomoRedBullX-Fighters.Achasuficiente?Ésóocomeço.

RedBullnãopatrocina timesde futebol,prefere inventá-los:umnaÁustria (RedBullSalzburg),umnosEstadosUnidos (RedBullNewYork),umnaAlemanha (RBLeipzig),umnoBrasil,emCampinas(RedBullBrasil),esabe-seláquantosmaismundoafora.

EnaFórmula1?Nessacategoriadá-seoluxodeterduasescuderias:aToroRossoeadotetracampeãoSebastianVettel(2010,11,12,13)RedBullRacing(RBR).

Essa atitude ímpar proporciona à marca uma gigantesca presença na mídia, gerandoexperiênciasehistóriasdeincomparávelenvolvimentoeteoremocional.

Acontece que a palavra “mídia”, quando se trata deRedBull, adquire outra latitude.Replicandoocomportamentoadotadoemrelaçãoaoseventos,amarcatambémtemmídiaprópria.SeucanaldeesportesnoYouTube,porexemplo,com1,4milhãodeassinaturas—atéomomentoemqueestelivroéescrito—,sóperdeemaudiênciaprocanaldaNBA.

Dentro da divisão conhecida como Red BullMedia House cabem ainda a Servus TV(emissora distribuída na Áustria, Suíça e Alemanha) e a TV de Nova Geração, comconceito de aplicativo, que roda emdevices daApple, smarTVs e outros equipamentosmóveis selecionados. Na ponta da mídia impressa, a revista Red Bull Bulletin édistribuídaem12países.

Como quem tem mídia precisa de conteúdo, a Red Bull não se priva de preenchertambémessecampo.Éoqueveremosaseguir,comdireitoamaisumamídiaexclusivadamarca.

Músicaenergizada,filmesegameseletrizantes

ARedBullMusicAcademyestádefinidaemseusitecomo“umasériedeworkshopsefestivais musicais, viajando pelo mundo: uma plataforma para aqueles que fazemdiferençanapaisagemmusicalatual”.

Naprática,éonomequeabraçatodaaatividademusicaldamarca.Começaporumaemissoraderádioprópriaesecompletacomaprodução integraldo

conteúdoda rádio.Mas não fica só por aí.Na esteira da produçãode conteúdo entramclipespoderososedocumentáriossobreouniversodamúsica,exibidosnasemissorasdeTVRedBull,alémdeumaimpressionantesériedeeventosmusicais.

Todooconteúdogeradopelamarcaestásoboguarda-chuvadaRedBullMediaHouse,que também produz uma razoável variedade de filmes, vários deles repletos deadrenalina.TheArtofFlight,porexemplo,elevouosnowboardingaumpatamarnuncaantes apresentado nas telas. E não nos esqueçamos dos games, outra frente aberta deprodução,quepermitemabsolutainteraçãoentreusuárioemarca.

Cadamúsica, cada filme, cada evento e cada game significamumanovahistória, quevai se somando à macronarrativa da marca, instantaneamente entrelaçada com asexperiênciasvividaspelopúblico.

Acoisafoilevadaatalpontoquechegouàestratosfera.

Stratos

FelixBaumgartneréonomedoprotagonista.Paraquedistaebasejumperaustríaco,queriadeixarseunomenahistóriasaltandodamaioralturadetodosostempos.RedBullentrouemcena,ajudou-oacumprirsuamissãoemostrou,aquemquisesseacompanhar,todooprocessoquelevaumhomematéaestratosferaparaselançaremumaquedaquedesafialimitesetemgrandespossibilidadesdeterminaremtragédia.

Apreparação,ovoodeBaumgartneremumacápsulaespacialareboquedeumbalão,aimagem de nosso planeta visto da estratosfera, a 39 mil metros de altura, com aquelehomem em trajes de astronauta saindo da cápsula e se atirando de lá, a velocidadealucinante da queda livre (1.342 km/h) — outro recorde mundial, a abertura doparaquedas,omonitoramentodaoperaçãofeitoporumaequipequelembravaosgrandesmomentos daNasa, a chegada vitoriosa ao solo, a comemoração dos envolvidos com oherói—oaventureiroacujossonhosRedBulldeuasas.

Os recordes batidos por Felix Baumgartner no projeto Stratos levaram a Red Bull aconquistarumoutrorecorde:odevídeomaisassistidodahistóriadoYouTube.

Dequenegócioestamosfalando,afinal?

Dizer queRedBull é uma bebida energética, a essa altura do campeonato, soa bastantereducionista.Apartirdoproduto ede seu conceito, amarca ingressounosnegóciosdemídia e eventos, colocando-se emumaposição atípica e obtendo resultados financeirosque competemcomonegóciooriginal. Exageradaounão, replicável comoutrasmarcasounão,aindanãosabemos.Ofatoéqueaamplitudedobusiness temsidocompensadapelasolidezdo“tedáasas”,ideiasolitáriaquesustentatodoesseaparato.

Ty Montague, autor de True Story, entende que Red Bull é um dos exemplos maisexpressivos de marcas que ultrapassam os limites do storytelling para atingir ostorydoing,dominadopeloqueelechamademetastory.Navisãodoautor,metastoryéuma terceiraespéciedehistória,colocando-seao ladoda tradicionaldupla ficção enãoficção.Suadefiniçãonãopoderiasermaisobjetiva:Metastoryé“históriacontadaatravésda ação”. Segundo ele, atingir o nível de storydoer permite às marcas reduzirdrasticamente, ou até mesmo eliminar, seus investimentos na chamada propagandaconvencional.

Independentemente da diversificação dos segmentos de atuação damarca, alia-se emparteà tesedeMontagueoDiretordeDesenvolvimentodeNegóciosdaRedBullMediaHouse, Bernhard Hafenscher, ao dizer durante visita feita ao Rio de Janeiro em 2013:“Nãofazemospropaganda,contamoshistórias.”

Assistaaquiaosvídeosqueilustramestecapítulo:

Capítulo20

HAVAIANAS.

Rasteirinha,masdesaltoalto

Esqueçaossapatosdecristal.Cinderelatemumasandáliaqueéoseunúmero.Nascida chinelodepobre em1962,preocupada emexplicar seus atributos funcionais

aopovão,Havaianasdecidiuvirarprincesaapartirde1994.Seusprimeirostrintaanosdevidaforamvividosemmercadosdebairro,deondesaiu

calçandopésquealevavamparapasseiospouconobres.Mas a origem humilde não lhe sufocava a ambição, revelada na própria escolha do

nome. Por que Havaianas e não Brasileiras, Cariocas, Baianas, algum nome condizentecomsuanacionalidade?Osmaisapressadosdirãoqueéporcausadoestilodoproduto,típicodo...Errado.AinspiraçãodassandáliasHavaianasnãoveiodoHavaí,comoeradeseesperar,masdoJapão,precisamentedassandáliasZori,cujastirasdetecidoaplicadasa um solado de palha de arroz dão ao produto um toque artesanal. Produzidas comborrachaeemescalaindustrial,asHavaianastiveramocuidadodeadotarumatexturademicrocírculos no solado, cuja intenção era reproduzir os grãos de arroz do originaljaponêsqueasinspirou.

Por que então embarcar nesse nome? Provavelmente para pegar carona, de formaplanejada ou pormero acaso intuitivo, na história fixada no imaginário de um imensopúblico.Eramosanos1960,o fascínioexercidopelosEstadosUnidossobreoBrasileomundoeraarrebatador,eoHavaíeraolugarmaisparecidocomoparaísoapovoarnossossonhos. Basta lembrar que só Elvis Presley rodou três filmes seguidos naquela região:Feitiço havaiano (em 1961, um ano antes do surgimento da marca), Garotas! Garotas!Garotas!(sincronizadocomonascimentodeHavaianas,em1962)eNoparaísodoHavaí(em1965).OsfilmesdeElvistinhamsuastrilhassimultaneamentelançadasemdiscose,

para dar uma ideia de impacto, “Blue Hawaii” (título original de Feitiço Havaiano)liderou os top 10 mais vendidos nos Estados Unidos por nadamenos que 20 semanasconsecutivas.

Resumindo,onomeHavaianascontinhaumaspiracionalmaravilhoso,prontoparaserdevidamenteexploradonomomentooportuno.

Nosanos1970e1980, intensificou-seapopularidadedamarca.ChicoAnysio,mestredo humor admirado por todas as classes sociais, tornou célebres as frases: “Nãodeformam, não soltam as tiras e não têm cheiro” e “Havaianas, as legítimas”. Apreocupação dessa última frase em sublinhar o fator autenticidade não deixa dúvidasquantoaosucessodoproduto,quedesdeentãocomeçouaenfrentarumnúmerocrescentedeimitadores.

Não sendo tão difícil assim de imitar e destinando-se a um target mais atraído porpraticidadeepreço,ocaminhoqueseabriaparaamarcaeratãonaturalquantoarriscado:sofisticar.

Sairdopopularparaofashion,depoisdetantosanos,significavaumaviradabruscanahistória da marca, coisa que geralmente resulta em desastre. Só que tudo fez sentidoquando,em1994,ouviu-seosloganHavaianas.Todomundousa.Eraapuraverdade.Aconhecida sandália de borracha ainda não andava pelos lugaresmais refinados,mas jáparticipavadaintimidadedetodasasclassessociais.

Artistas e atletas famosos começaram a aparecer usando o produto na televisão.Havaianastinhaodomdedeixarospésexpostos,transmitindoumquêdeautenticidadenaatitudedosqueausavam.Namídiaimpressa,assandáliaspassaramasermostradasemanúnciostãobonitosebemproduzidosquemaispareciamobrasdearte,tudosempremantendoumtomdeirreverênciaquesintonizavaamarcacomojeitodeserbrasileiro.

O comportamento da marca tornou-a semelhante aos protagonistas de tramas desuperação,personagensquevêmdebaixoevencemváriosobstáculosparachegaraotopo.

CabiamuitomaissignificadoemHavaianasdoqueoatéentãotransmitido.Vieramosmúltiplos modelos, a profusão de cores, as coleções para bebês, as edições temáticas,enfimapercepçãodequeopreçobaratonãoeraincompatívelcomosdomíniosdamoda,equeterváriosmodelosdeHavaianasemcasaeraalgoperfeitamentenormaledesejável.

Para aCopadoMundode1998 foramproduzidas sandálias comumabandeirinhadoBrasil na tira. Golaço. Aquela fornada de Havaianas despertou orgulho na torcidabrasileira e desejo no público estrangeiro. Os nascidos em outros países perceberam alógicadabandeira verde-amarelanospésdopovomundialmente admiradopor futebol,sambaealto-astral.Eassimasportasdomundoseabriramparaamarca.

Em 2000, Havaianas já era sucesso em vários países, com destaque para França,Austrália e Estados Unidos, onde o grande acolhimento no Havaí constituía um avalespecialíssimo.

Nãoparoumaisdecrescer.Espalhou-sepelomundo,atingindomaisdeoitentapaísesdoscincocontinentes.Passouaseradmitidaemfestaschiques,ondecriou-seoritualde,apósumdeterminadoperíodode intocávelelegância, trocarosdesconfortáveiscalçadossociaispelasandáliaquenoslibertaospéseaalma.Em2003chegouaserdistribuídaemumaediçãoespecialparaosparticipantesdaentregadoOscar.E,noextremodoluxo,ummodelocomacabamentoemouro,incrustadodediamantes,foiassinadopelajoalheriaH.Stern.

A cada ano, vemos Havaianas ganhar mais projeção. Quando viajamos, podemosencontrá-la em lojas conceituadas comoHarrods, na Inglaterra, e Galeries Lafayette, naFrança. Apenas nos Estados Unidos a marca está em cerca de 1.700 pontos de venda.Quandoturistasestrangeirosnosvisitam,vemosoquantoassandáliassetornaramobjetodedesejo,quaseumsuvenirobrigatório,adquiridoaquiporpreçosbemmenoresqueospraticadosnoexterior,ecomumatentadoravariedadedemodelos.

Comoessahistóriafoiconstruída?Comabsolutasimplicidade.OscomerciaisdeTVdeHavaianashámuitosanosnosapresentamsituaçõesdivertidas

emqueoprodutoparticipacomintensidademaioroumenor,porémsempredemaneiradespretensiosa. Ora vemos celebridades nas lojas às voltas com vendedores tietes, oratemos celebridades em situações cotidianas, como pegando uma praia em um fim desemana, ora nos deliciamos ao ver brasileiros que não aceitam a participação de umargentinonascríticasfeitasaoBrasil,ourimosdeumafrancesaque,planejandoaviagemde lua de mel, desiste de vir para cá ao ver as fotos das mulheres brasileiras quecertamentelheroubariamasatençõesdomarido.Sãomuitaspeças,todasnomesmotomde identidade com o espírito brasileiro. Pequenas histórias que, juntas, constroemumanarrativa demarca tão bem amarrada que não envelhece, não cansa, não deforma nemsoltaastiras.

Assistaaquiaosvídeosqueilustramestecapítulo:

Capítulo21

DIESEL.

Movidaaideiasalternativas

Fundada em 1978 por Renzo Rosso e Adriano Goldschmied, a Diesel afirmava seguiraprendizados de criatividade italiana, marketing americano e sistemas alemães. Aestranheza de seunome foi justificada pela identificação como combustível, na época,apresentado como alternativo (percepção que a grife desejava para si, contrapondo-seostensivamente aomainstream), e a facilidadede grafia e pronúncia, exatamente iguaisnomundointeiro.

Em 1985, Renzo adquiriu as ações de seu sócio, tornando-se o único proprietário damarca. Sob seu comando, começava a arrancadamundial que nos anos 1990 alcançarianíveisdeousadiaeimpactosurpreendentes.

Forsuccessfulliving

OGrandPrixde filmesdoFestivaldeCannesem1997foiconcedidoadois filmesbemdiferentesentresi,masconsideradoscomocampanhaporseuconteúdotransgressoreporsustentaremamesmaassinatura:Forsuccessfulliving.

Umdeles,chamadoLittleRock,mostravadoispersonagensabsolutamenteantagônicosmomentos antes de um duelo. De um lado, o típico cowboy do bem, jovem bonito,saudável, que se despede da linda namorada e sai elegantemente vestido, esbanjando

simpatia.Dooutro,umrepulsivovilão,queacordaaoladodeumamulherhorrorosanoquartoqueficaemcimadeumsaloon,cospenochão,desceasescadaspuxandodeumaperna,roubaopirulitodeumacriança,chutaumpobrecachorroquedescansanacalçadae se posiciona na rua, para enfrentar o oponente que conta com a torcida de todos.Prontos para o grande embate, o vilão sacamais rápido,mata omocinho com um tirocerteiro,tiraumamelecadonarizerianimalescamente,exibindoseusdentesestragados.

Ooutrofilmeigualmentepremiado,5A.M.MonoVillage,aconteceemcenárioalpino,onde, em um acampamento de adultos vestidos como escoteiros, o toque de despertarencontratodoogrupomuitobemdisposto.Executadosexercíciosdeaquecimentorápidose dançantes, o instrutormusculoso apresenta à turma o tema do dia: respiração boca aboca. Um dos participantes, que não deixa dúvidas sobre sua superioridade física eintelectual em relação aos demais, adianta-se. Aomesmo tempo, por trás do chart queapresentao temada instrução, vemoschegandoapessoaque faráo exercíciodeboca aboca com o galã da turma. É um homem bem mais velho, com cavanhaque que fazlembrarumbodeeaparênciarepugnante.Elesedeitanagramae,quandoorapazbonitãoseaproxima,abreaboca, revelandodenteshorríveis.Apesardisso,oexercícioacontecenormalmente. Quando os lábios dos dois homens se tocam, o rapaz de boa aparênciaimaginaestarbeijandoumabelamoçae,ambosvestidosdebranco,vivemcenacheiaderomantismo. Encerrado o treinamento, quando pensamos que o artifício imaginativousadopelorapazapenasoprotegiadaaversãoprovocadapelocompanheiro,vemosqueosdois homens saem cavalgando romanticamente pela paisagem serrana. O feio, comcavanhaquedebode, sorriparaacâmera, esbanjando felicidadecomaconquistade seupargay.

Teressasduashistóriascomdesfechosque,aprincípio,nenhumamarcagostariadeverassociados à sua imagem, e arrematados com For successful living, era algorevolucionário.

A revolução começou em 1991, quando a Diesel lançou o tema e passou a mostrarpersonagens como o indiano barrigudo, vestido como uma espécie de Elvis brega,anunciando o Super Denim Jeans com texto e imagens de canastrice explícita. Ali seestabeleciaopadrãoDieseldeadotaracontramãocomodireçãooficial.Eessacontramãofoi se aprofundando em uma estética kitsch, repleta de clichês publicitários dos anos1950/1960,queatacavaopoliticamentecorretocomdosescrescentesdeironiaecinismo.

Para exemplificar com mais clareza o jeito Diesel de ser, um de seus comerciaismostrava um diretor de filmes pornô, muito exigente com a performance de atores edubladores. Saindo pela loja usada como fachada após o expediente, o personagem serevelavaumpaidefamíliatodoarrumadinho,cujocarroexibiaoadesivo“família,amor,moralidade”.

AsimagensquesustentavamoForsuccessfullivingeramsempreextravagantes,loucas,e subvertiam o maior número possível de regras. David Lachapelle, com seu estilofotográficosurreal,porexemplo,foiumdosparceirosDieselnarealizaçãodostrabalhosdemídiaimpressa.

Aturdido pelo inesperado, pouco a pouco, o público começou a perceber que estavadiantedomaisprovocativoprotesto contra o lugar-comumdosúltimos tempos.Mesmoparaumjúri formadoporprofissionaisdecriação,comoodoFestivaldeCannes, foram

necessáriosalgunsanosdeabsorçãodaideiaatéqueelaatingisseaconsagraçãodoGrandPrix.

Italiana, comoaBenetton, aDiesel comungavadosmesmosprincípiospolemizadoresda concorrente, só que fazia uso deles de forma bem mais estruturada, produtiva,inovadoraeinteligente.Teveacoragemdeescolhercaminhosperigosos,mas,aoquetudoindica,sempresoubeaondequeriachegar,tantoemcomunicaçãoquantoemestratégiadenegócios.

Foipautadaporessemapadeousadiaque,em1996,amarcadesembarcounomercadoamericano, instalando suaprimeira loja emNovaYork bemem frentedamaior loja daLevi’snacidade.Maisprovocador,impossível.

Eaprovocaçãoviroufilosofia

MantidooSuccessfulliving como temaperenedamarca, faltavadara seusadmiradoresumguiaexistencial.FoiquandosurgiuBestupid.

Em2010, com textosde altavoltagem, aDiesel começouapregarosbenefíciosde seagirestupidamente.

Umdeseusvídeosdizia:

Comobalões,somoscheiosdeesperançasesonhos.Masaolongodotempoumaúnicafraseseinsinuaemnossasvidas...“Nãosejaestúpido.”Éaesmagadoradapossibilidade,omaioresvaziadordomundo.Omundoestácheiodepessoasespertas.Fazendo todo tipodecoisasespertas. Issoéesperto.Bem,nósestamoscomosestúpidos.Estúpidoébuscarsemtréguasumavidalivredelamentação.Espertospodemteroscérebros.Masestúpidostêmoscolhões.Espertosreconhecemascoisascomoelassão.Estúpidosveemascoisascomoelaspoderiamser.Espertoscriticam.Estúpidoscriam.Ofatoéque,senósnãotivéssemospensamentosestúpidos,nósnãoteríamosnenhumpensamentointeressante.Espertospodemterplanos.Masestúpidostêmashistórias.Espertospodemteraautoridade.Masestúpidostêmumaressacadaquelas.Nãoéespertocorrerriscos.Éestúpido.Serestúpidoésercorajoso.

Estúpidosnãotêmmedodefracassar.Estúpidossabemquehácoisaspioresqueofracasso,comonemtentar.Oespertoteveumaboaideia.Eaquelaideiaeraestúpida.Vocênãopodesermaisespertoqueosestúpidos.Entãonemtente.Lembre-se:Sóosestúpidospodemserverdadeiramentebrilhantes.Então,sejaestúpido.

Repareotrecho“Espertospodemterplanos.Masestúpidostêmashistórias”.Aliestáevidenciado o quanto a marca valoriza o fator narrativo. Agora junte os enredosinusitados, àsvezesultrajantes, que sustentamoSuccessful living, e veja comodesde oprimeiromomento a Diesel estava praticando oBe stupid. Percebeu? Tudo faz sentidonesseaparentenonsense.Umatrajetóriadefinidaaindaantesdofamososlogandosanos1990, quando a Diesel em suasmensagens iniciais ao público assinavaOnly the brave.Emboranãomaisusadaempropaganda,Onlythebravepassoua seronomedaholdingcompanyfundadaporRossoparaabrigarsuacrescenterededenegócios.Eleparecefazerquestãodefrisarqueacoragemdetransgredirsemprefoiomaiorpropulsordamarca.

Graçasaesseespírito,grifesdodesigncomoMoroso,FoscarinieZucchicolocaramseutalentoereputaçãoaoladodaDieselparacriarpeçasexclusivasdemobíliaedecoração.Atransposiçãodoestiloconsagradoemvestuárioparaouniversodosmóveis,quetinhatudo para ser um desastre, aconteceu com surpreendente naturalidade. A mesmanaturalidade com que a Diesel, em seu website, nos convida a fazer um teste paradescobrir quantos dias nos restam de vida. E no teste nos pede para responder, entreoutras questões, se bebemos, usamos drogas, dirigimos, fumamos, quantos parceirossexuaistivemosatéhoje,quantashorasdedicamosaosono,seacreditamosemvidaapósamorteesesomosmentirosos.Aofimdoteste,apartirdeumafórmulasecreta,vemosonúmero de dias que nos restam e somos instigados a divulgar o resultado nas redessociais,convidandonossosamigosaparticipar,demodoquepossamossaberquaisdelesviverãomaisoumenosdoquenós.Muitolouco,não?Masandarnolimite,brincarcomtudo, inclusive com a morte, e provocar reflexões sobre o melhor aproveitamento dotempoque temosdevida são ingredientes constantesdahistóriadessamarca.Chocar edivertir,semnuncaperderaessênciadesofisticaçãodebochada,essaéafórmulaquefazdaDieselumaautênticagrifelifestyle.

Assistaaquiaosvídeosqueilustramestecapítulo:

Capítulo22

VEÍCULOS.

Porondetêmandado?

Assim como as histórias, veículos nos transportam a lugares imaginários. Além dovaivémporruaseestradas,dentrodeumcarroouemcimadeumamoto,estamossemprelidandocomprojeçõesinterioreseexteriores.AdocevozdafrancesinhanosdizendoqueCitroëné“creative technologie”nos levaaocharmedeParis, aoscaminhosestreitosdaCôted’Azur,atodaumaambientaçãodeelegânciaassociadaaojeitodeserfrancês.SeriatotalmenteinadequadousaramesmalocutoraemumcomercialdoJeepdaChrysler,porexemplo, modelo que se tornou sinônimo de categoria por nos transportarconsistentementeamontanhas,trilhas,lugaresselvagenseinexplorados,mesmoquesóotenhamosencontradoaovivoemsituaçõesurbanas,deslizandoporviasasfaltadas.AlgoparecidocomoqueocorrecomoLandRover,nascidocomamissãodeatuaremroteirosdeaventura.BemdiferentedosenredosdesegurançaeproteçãofamiliarestreladospeloVolvo. Está claro? Então corta! Ummanobrista de restaurante sofisticado devolve-lhe achave do seu AstonMartin. Você se acomoda no banco do motorista e imediatamenteassumearesdeJamesBond.MasseocarroforumaFerrari,équaseimpossíveldeixardeseimaginar,nemquesejaporumafraçãodesegundo,nogriddelargadadaFórmula1.

Veículos, como não poderia deixar de ser, constituem segmento essencialmentedinâmico. Mexem ao mesmo tempo com questões locais e planetárias que osambientalistas e os grandes congestionamentos de trânsito não nos deixam esquecer.Trata-se, por isso, de uma categoria altamente vulnerável a decisões políticas epeculiaridades históricas, o que nos recomenda conduzir a maior parte deste capítulocomoolharfocadonocontextobrasileiro.

FordeGeneralMotors

OprimeiroautomóvelacircularnoBrasilpertenceuaumgrandenomenacional,alguémdestinado a voar.Alberto SantosDumont, futuro Pai daAviação, foi quem o trouxe daFrança.Ocarro,umPeugeot.Oano,1891.

Importar era a única possibilidade para quem desejasse desfrutar as vantagens doproduto quemelhor simbolizava os avanços da era industrial. Até que ninguémmenosqueHenryFord,ohomemdofordismo,criadordaslinhasdemontagemedamontadoraque leva o seu nome até hoje, decidiu em 1919 trazer a Ford Motor Company para oBrasil.

Em1925, chegou aGeneralMotors, rapidamente introduzindo osChevrolets nas ruasbrasileiras.FordseChevrolets eramosdonosdopedaço, reproduzindoaqui a crescentedominânciaglobaldoseupaísdeorigem.Arelevânciadapresençadessasduasempresasemsolotupiniquimserefletenosaltodafrotadeveículosentre1920e1939noEstadodeSão Paulo, onde ambas se instalaram: de 5.600 para 43.650 automóveis, de 222 para25.860caminhões.

Tudoavançavabem,comasmontadorasamericanastrazendoaspeçasdeforaparaaquimontar seus produtos, até que a Segunda Guerra Mundial atrapalhou o fluxo, e opresidente Getúlio Vargas decidiu proibir a importação de veículos e dificultar a depeças.Osetorautomobilísticosentiuogolpe,oscarrosemcirculaçãonoBrasilforamsetornandoobsoletosealargou-seadistânciaentrenóseospaísesdesenvolvidos.

Só em 1956, por iniciativa do então presidente Juscelino Kubitschek, aconteceu oesperado empurrão na indústria automotiva nacional. Foi criado o Grupo Executivo daIndústria Automobilística (Geia), e inaugurada a primeira fábrica de caminhõesMercedes-BenznoABCpaulista.Trêsanosdepois,outraempresaalemã,aVolkswagen,instalava-seemumpequenogalpãoemSãoPaulo,comapenas12funcionários.Oparqueindustrialbrasileiro foicrescendo,oscarrosnacionaisdemarcas internacionais tiveramgrandeaceitação,eaimportaçãodeveículoserareservadaaosmuitosricos,tãocaraquepodia ser considerada extravagância, pura ostentação. Satisfeitas as necessidades domercado local, não era preciso maior empenho, e novamente os carros nacionaisencontraramumarazãoparanãoacompanharaevoluçãomundial.

Oufanismoseguiuforteatéaditadurade1964,queoreforçoucomaempáfiado“paísque vai pra frente”. Passaram-se os vinte anos de regime militar, recuperamos ademocracia, mas o protecionismo e o isolamento do mercado brasileiro continuavamintocados. Até que, no início dos anos 1990, o presidente Fernando Collor comparounossosautomóveisacarroças.Facilitadaaimportação,aumentaramasopções,cresceuacompetiçãoentreasmarcas,subiuoníveldeexigênciadopúblico,eoBrasilfinalmenteentrouemsintoniacomorestodomundo.

Em termos factuais, esse é o resumo da história. Mas o relacionamento entre umapessoaeseucarrovaimuitoalémdosfatosedautilizaçãocomomeiodetransporte.

Quando a imagem da estrada nos é colocada como metáfora para a vida e para ostorytelling,éinevitávelpensaremveículos.Desdeoscarrinhoscomquesedivertemosmeninos até os carrões com que se deslumbram os marmanjos, eles participamintensamente do universo masculino. E não nos esqueçamos das motos, evolução daprimeirabicicletaquea gentenuncaesquece.Pormaisdispendiosos e refinadosque setornem,osveículos jamaisdeixamde ter seu ladobrinquedo, jamais sedesassociamdeemoção, sensualidade, status e poder. Masculinos de origem, os automóveis têm sidomuitocompetentesematrairasmulheresparasuazonadeinfluência,atéporqueemoção,sensualidade,statusepodertornaram-seconstantestambémnodiaadiafeminino.Carrosnosabraçam,abrigam,protegem,nosvestem.Sãotecnologia,potênciaemoda.Significamumpedaçodenossapersonalidadeanosconduzirpordiferentescenárioseexperiências.

Nadisputaporconsumidoresdeambosossexos,dediferentes faixasetáriaseclassessociais,muitashistóriastêmsidocontadas.

O capítulo inicial é o do encantamento com os americanos, liderado pelos pioneirosFord e GM. Mesmo depois da vinda de fortes concorrentes, o mais cultuado modeloesportivo da Ford foi tema de um hitmusical, composto pelos irmãosMarcos e PauloSérgio Valle, que deu nome ao disco de Marcos lançado em 1969: “Mustang cor desangue”. A música contempla, além do ícone que lhe dá título, um outro modelo damesmamontadora,depreçobemmaisacessívele tambémmuitodesejado.Tratandodaquestão social e industrial, ela empresta ao Mustang os dotes sedutores femininos aodizer:

NofarolvejooseuolharMinhamãotocaadireçãoNopaineleuvejooseuamorEomeucorpoinvadeointerior.

E, logo após essa declaração apaixonada, surge ummomento de infidelidade, com aentradaemcenadooutromodelodaFord:

Aquestãosocial,industrialNãopermitequeeusejafielNavitrineumCorcelcordemel.

Pela GM, o modelo mais recorrente na mitologia automobilística veio do luxo: oCadillac.AeleRobertoCarlosserefereno inícioeno fimdamúsica“Ocalhambeque”.Quemviveua JovemGuardanãoesquecedo“MandeimeuCadillacpromecânicooutrodia”.Detantosimbolizaracategoriadoscarrões,omodelochegouaterseunomeusadopara valorizar as curvas da famosa chacrete Rita Cadillac. O entrelaçamento dosautomóveiscomaculturanãoperdenenhumaoportunidadedesemanifestar.

Brindando o mercado brasileiro por um extenso período com momentos de altainspiração, como o famoso jingle de Zé Rodrix nos anos 1980 (É no silêncio de umChevrolet que omeu coração batemais alto...), tanto a Ford quanto aGM tiveram suastrajetórias atingidas por fatores de mercado e narrativas talvez mais instigantes deconcorrenteseuropeus,notadamenteumalemãoeoutroitaliano.

Apartir da eraCollor, vieramos japoneses, ingleses, franceses, coreanos, suecos...Omercado se fragmentou, ficou mais complicado e competitivo. Mas as boas históriascumprirambrilhantementeopapeldemanterosprotagonistasemevidência.

Volkswagen

Todo publicitário venera o anúncio criado pela DDB nos Estados Unidos para o fusca.Contrariandoa grandiloquênciadoscarrõesamericanos, em1959 (mesmoanoemqueamontadorachegouaoBrasil)eleteveacoragemderecomendar:ThinkSmall.Commaioroumenorintensidade,aVolkswagensempreapelouparaopensar.Suahistóriatemviéspredominantemente racional e se fundamenta na confiança. O famoso slogan Vocêconhece,vocêconfiaeaantológicacampanhainglesaSetudonavidafossetãoconfiávelcomoumVolkswagennãodeixamdúvidasarespeitodessefoco.Algotãofortequelevoua marca a se assumir como Das Auto, assinando suas mensagens mais recentes emalemão, na plena convicção de que já é percebida com suficiente consistência para seafirmarcomoOcarro,aindaqueemumidiomatãodistantedosbrasileiros.Claroqueháumsegundofiocondutornisso:areputaçãogermânicadeexcelênciaerigortecnológico,especialmente no campo automobilístico. Ou seja, uma história (da Volkswagen)confirmadaeapoiadaporoutra(daAlemanha).

Mas o que salta aos olhos nesse cenário de racionalidade é a maneira inteligente ecriativa como ele é explorado. Não é sempre que marcas tradicionais e baseadas naconfiabilidadeseatrevem,porexemplo,areapresentaraopúblicoumafamosasequênciade Forrest Gump, nela inserindo um de seus produtos. Também não é comum queempresas desse perfil nos contemhistórias como a de um cachorro-peixe, para ilustrarqueemumdeterminadomodelodecarrocabetudooquesepossaimaginar.

Foi a Volks que nos deu a Kombi, modelo que criou uma categoria à parte entre osutilitários.TambémdaVolksveioaBrasília,espéciedefuscatamanhofamília,batizadaemhomenagemàcapitalbrasileira,paranãodeixardúvidasdequeoBrasiléimportantepara a empresa, e cantada na cor amarela pela banda de rock humorístico MamonasAssassinas.TivemosoSantana,comseuarexecutivo,onobrePassat,etantosoutroscomlongotempodeestradaemuitahistóriaparacontar.

Voltandoaofusca,queoutromodeloconseguiualgotãoradicalcomovirarprotagonistade um longa-metragem?OHerbie, deSemeu fusca falasse, produzido pela Disney em1968,continuaimbatívelcomocasomundialdebrandedcontent.

Criando seus próprios enredos ou acoplando-se às histórias que circulam ao redor, aVolkswagen consegue aliar tradição e inovação, em uma química muito particular que

privilegia o cérebro,mas não deixa de falar ao coração. Só assim foi possível ao fuscapassartantosanoscomooprimeirocarrodagrandemaioriadosmotoristas—ocarrodainiciação, para retornar na forma do New Beetle, repaginado, cool e com o preço nasalturas. Só assim foi possível emplacar no ano de 1980 outro modelo popular emsubstituição ao fusca: o Gol, cujo formato mais flexível possibilita variações desofisticação e preço na medida certa para um carro que se baseia em praticidade eresistência. E que, a exemplo de seu antecessor, registra notável longevidade eperformancedevendas.Gol,assimmesmo,aportuguesado.Aparentemente inspiradonoGolfeuropeu,massemcairnatentaçãodo“Goal”,queoafastariadaposiçãoconquistadacomo legítimocraquenacionalempopularidade.SimplesmenteomodelomaisvendidodoBrasildesde1987até2013.

Fiat

Fábrica Italiana de Automóveis de Torino, daí vem o nome Fiat. Nada do verboconsagrado em latim pela frase Fiat lux (faça-se a luz), apenas um acrônimo. Mas soabem.Maior grupo industrialda Itália, aFiat tem fábricas emsessentapaíses, figurandoentreasgrandesempresasautomobilísticasdomundo.SeumaiormercadonaturalmenteéaItália.Osegundomaior,Brasil.

AhistóriadaFiatemnossopaísérelativamenterecente.Chegouem1976,quandoosgrandesplayers já estavam solidamente estabelecidos,masmostrandodesde oprimeiromomentosuadisposiçãodeabalarosalicercesdomercadobrasileiro.

Montou uma bela fábrica em Betim, Minas Gerais, fugindo à concentração daconcorrência em São Paulo, e partiu acelerada em busca do consumidor de carroseconômicos,àquelaalturaconquistadopelaVolkswagen.

Coerentecomsuasorigens,antepôsaotradicionalismocerebraldaconcorrentealemãavocaçãoparaodesigneoespíritoapaixonadodos italianos.Oclássicodueloemoção×razão.

Seumodelode estreia, oFiat147,proclamava: “Enfim,umcarrãopequeno.”Tinhaofatornovidadeaseufavor,visualatraente,sistemaavançadodefrenagem,ebebiapouco.Poroutrolado,aaparênciafrágilealgunsproblemasverificadosnosprimeirosprodutosentreguesabriramabrechaparaqueamarcarecém-chegadativesseseuacrônimooriginalimpiedosamentesubstituídonobocaabocapor“FuiIludidoAssimTambém”.

Piada espontânea ou provocada pelos concorrentes? Difícil saber. O fato é que foicontada, multiplicou-se e inseriu-se na narrativa da marca, criando-lhe um duroobstáculoinaugural.Oquefazer?Corrigireventuaisproblemaseinvestirfirmenojeitodeser brasileiro, nas coincidências de personalidade que nos aproximamdos italianos, nabeleza, na leveza, nas cores e na condição que lhe foi imposta pela ordem natural dechegadaaonossomercado:ajuventude.Deucerto.

Em1990,osmodelosUnofabricadosnoBrasilganhavamnossasruaseeramexportadosparaváriospaíses,inclusiveaprópriaItália.ComaCopadoMundosendodisputadaem

solo italiano e o técnico da seleção canarinho ostentando o sobrenome Lazaroni, ostelespectadores brasileiros foram surpreendidos com um comercial de TV, rodado emTorino, que mostrava nosso técnico sendo parado por um guarda de trânsito enquantodirigia láumFiatUno fabricadoaqui.OdiálogoentreSebastiãoLazaronieo incréduloguarda italianoéumapéroladehumor.Primeiro,oguardanãoacreditaquenosso timeseja dirigido por um descendente de italianos, nem que um brasileiro tão importanteestejacometendoinfraçõesdetrânsitonaItália.Depois,elesechocaquandoomotoristainfratordizqueoUnoqueestádirigindofoifabricadonoBrasil.Julgandotratar-sedeumlouco ou, na melhor das hipóteses, um mentiroso gozador, o guarda retribuiapresentando-secomooPapa.Futebolehumornãopoderiamsermaisbemaproveitadosnaquelemomento e com aquelamensagem. E ali estava o trilho narrativo da Fiat. Nãoexatamenteofutebol,masoquelheésubjacenteemnossacultura:apaixão.

“Movidospelapaixão”éafrasequedistingueaFiat.Éoquetranspareceemtodososseus esforços de comunicação, desde o personagem de pelúcia Gino Passione, querepresenta sua assistência técnica, até campanhas como “Vem pra rua”, que, feita paraembalar a festa da torcida verde-amarela na Copa das Confederações em 2013, acabouagradando de tal forma que se tornou tema dos protestos políticos que agitaram o paísduranteaquelacompetição.“Movidospelapaixão”éoquereconhecemosbrasileirosaopremiaremaFiatcommaisdeumadécadadeliderançaemvendas,desde2002.DoPaliodo dia a dia ao icônico Cinquecento importado, passando por outros modelos como oIdea, que, além de sinalizar um compromisso com a criatividade, teve a bênção de serescolhidopeloPapaFranciscoparaselocomoveremsuaprimeiravisitaaoBrasil,aFiatevidencia o quanto a emoção é relevantemesmonas decisões de compra que requeremmaior desembolso e o quanto a paixão pode se tornar elemento fundamental dediferenciação.

BMW,Mercedeseoutrosluxos

OhLord,won’tyoubuymeaMercedes-Benz?MyfriendsalldrivePorsches,Imustmakeamends

Workedhardallmylifetime,nohelpfrommyfriendsSoLord,won’tyoubuymeaMercedes-Benz?

MICHAELMCCLURE

Ser considerado “de luxo” pode custar mais caro a uma marca do que ela desejaria.Costumamos chamar assim carros que aparentam pertencer a uma estirpe nobre, antesinatingível,hojenemtanto,amanhãninguémsabe.

Rolls-Royce,Bentley,AstonMartineFerrari,pelararidadecomquesãovistosepelospreços estratosféricos, claramente integram a cúpula dessa nobreza idolatrada. Jaguar e

Porschecaminhammuitopertodasuperelite.Outros,comoBMW,MercedeseAudi,jásediversificaram o suficiente para alargar o conceito do luxo. Basta andar pela rua eperceber que as três marcas alemãs têm sido competentes em equilibrar prestígio compopularidade, e há muito abriram mão de deixar boquiabertos quem as vê passar.Mercedes-Benz, amais tradicional, com fama suficiente para se tornar título do grandesucesso póstumo de Janis Joplin em 1971, cantando letra do poeta beatnik MichaelMcClure;Audi,acaçula,comboapegadadeproduto,maspoucahistóriaparacontar;eBMW,quemerecedestaqueespecialporumadasmaisousadasmanobrasemstorytellingrealizadasatéhoje.

Em2001e2002,umasériedeoitocurtas-metragenssurgiunainternet.Chamava-seTheHireefoidirigidaportalentosdoportedeAngLee,JohnFrankenheimer,JohnWoo,GuyRitchie, Tony Scott, Alejandro González Iñárritu, Wong Kar-wai e Joe Carnahan. Naprodução, entre muitos outros, Ridley Scott e David Fincher. No elenco: Clive Owen,Madonna, Forest Whitaker, Mickey Rourke, F. Murray Abraham, Gary Oldman, JamesBrown,MarilynMansoneDonCheadle,sóparacitaralguns.Onomepeloqualoprojetoficou conhecido revela a marca por trás desse megaempreendimento: BMW Films. Oimpacto foiestonteante.NenhumadashistóriaserasobreaBMW,masemtodaselasoscarros da montadora entravam em ação, mostrando estilo, performance e features deforma ultracontextualizada. A elevada qualidade dos profissionais envolvidos, a partirdosroteiristas,todoscarimbadosemHollywood,sópodiaresultarnoqueresultou:filmesdealtíssimonível.Eoquemaisgerouperplexidadefoiveresserequintecinematográficoacontecendona internet.AagênciaFallon,deMinneapolis,EUA, foiaresponsávelpelaideia.OtrabalholevoufáciloGrandPrixnoFestivaldePublicidadedeCannesem2002.Masnãoeraobastante,estávamosdiantedealgomaiorquepublicidade.Noanoseguinte,Cannescriouumprêmiodiferenciado,oLeãodeTitânio,quesesobreporiaaosleõesdeouro, prata e bronze e aos Grand Prix. Nesse andar de cima da cadeia de consagraçãoentrariam os futuros inscritos que, como The Hire, fizessem a indústria parar ereconsiderar o caminho a seguir. Instituído o novo prêmio, que passou a ser entregueanualmentedesdeentão,nenhumoutrocasoconseguiu repetiroextraordinário impactodosBMWFilms.

Sobreduasrodas,umfenômeno

“Ineedyourclothes,yourbootsandyourmote-ah-cycle.”Depoisdedizeressetextoaummotoqueiro que mal acredita no brutamontes que está lhe tomando tudo sem a menorconsideração, o personagem de Arnold Schwarzenegger em O exterminador do futuroparte a caráter com sua moto em perseguições implacáveis para cumprir a missão deinviabilizarofuturodahumanidade.Adivinhaamotoqueeleusa.

Não poderia ser outra. A Harley-Davidson destaca-se de forma tão aguda de suasconcorrentesporque se atrevea exploraroqueamaioriadasmarcas se recusa sequer aconsiderar: o lado sombrio do consumidor. Em vez dos comportados caminhos de

segurança, status, sucesso, ela busca o anti-herói ou mesmo o vilão que vive em nós.Quem compra Harley não leva para casa umamotocicleta, leva rebeldia. Adquire umafatiade juventude idealizada,muitasvezesdeixadapara tráshámuitosanos.Ou,comoprega o autor LaurenceVincent, “ganha como recompensa uma narrativa que não podeconstruir”.

O produto é poderoso? Sem dúvida. Mas seu maior poder advém da capacidade dedespertar o fora da lei que habita nos executivos engravatados, loucos para provar aomundosuacapacidadedeintimidaroscaretasdotrânsito,semeandoadmiração,respeitoeinvejapelasestradas.

Como já vimos acontecer com outrasmarcas rompedoras, aHarley-Davidson tambémnasceu por iniciativa de dois jovens: William Harley e Arthur Davidson. Com vinte epoucos anos, em 1903, os rapazes pintaram na pequena garagem em Milwalkee, ondecomeçavam a instalar motores em quadros de bicicleta, o superdimensionado nomeHarley-DavidsonMotor Company. Sua primeiramotocicleta, batizada como SilentGrayFellow,commotorde6,5cavalos,sósurgiriaem1904.

Eramabusadososmeninos, falavamgrosso,nomesmo tomdoroncodosmotoresquefabricariam mais tarde. E, sem ter a exata noção do que faziam ao assumir aquelapresunçosainscriçãonaparede,profetizavam.

Em 1907, com o produto bem mais elaborado, a marca ganhou alguma notoriedade.WalterDavidson,parceiro recém-integrado ao empreendimento,decidiu se envolver emcompetiçõesmotociclísticas e,montadoemumaHD, sagrou-se campeão em importantecorrida.Nadamelhorparadivulgarospredicadosde suamoto.Naquelemesmoano, asHarley-Davidsonscomeçaramaserusadaspelapolíciaamericana.

Outras competições e outros pilotos vieram. Em 1915, Leise Pakhurst conquista umdifíciltroféunoAlabama,eFloydClimerbateorecordemundialdetemponadirttrack,emumaempolgantedisputarealizadaemDodgeCity.Apesardenãopretenderconstruirsua imagem sobre feitos esportivos, as vitórias acumuladas pela Harley davam-lhereputaçãodesolidezepoder.

Masaboa linhaevolutiva traçadaaté alinãopermitia entreveroquantoaindaestavapor vir. Decerto os atrevidos garotos da humilde garagem nunca imaginaram que, nonúmero 400 W da Canal Street, na cidade onde se estabeleceram, funcionaria hoje oHarley-Davidson Museum. Nem que uma simples busca na Amazon Books em 2013revelariaestaremdisponíveisparavendanadamenosque119livrossobreamarca.Oqueteriaacontecidoparajustificartudoisso?

Bem,depoisdaescolhapelapolícia,vieramasforçasarmadas.Seusprodutosatuaramao lado dos militares americanos nas duas guerras mundiais, atraindo uma aura debravura. E foi graças à Divisão 303 de bombardeiros, na Segunda Guerra, que a grandealavancagemaconteceu.Tomandoemprestadoo títulodeum filmeproduzidoem1930,os integrantes da tal divisãomilitar ficaram conhecidosmundialmente como os Hell’sAngels.Ao retornaremvitoriosospara casa, desfilando embandos sobre suaspossantesmáquinas,tiveramagrifeguerreiraadotadapelosmotoqueirosmaismarrentoseexibidosdaAmérica.FoiapaixãodessescaraspelaHarleyqueacabouproduzindoumfenômenoincontrolável.

Com base na atitude destemida e brigona dos heterodoxos formadores de opinião, osnovosusuáriosdaHarley,independentementedeseremcomportadosounão,assumiram

umestiloprópriodesevestirqueperduraatéhoje,eadoramostentaramarca,comofiéisintegrantesdeumaseita.

Difícilsaberoquefoiplanejadoeoqueaconteceuporacaso.Ofatoéque,semjamaister feitomençãoaosHell’sAngels, aHarley-Davidson teve sua imagemdefinitivamenteligadaàdeles,tornando-se,pelohábildesenvolvimentodeumanarrativaoutsider,amaislendáriamarcademotocicletasdoplaneta.

Assistaaquiaosvídeosqueilustramestecapítulo:

Capítulo23

QUANDOOPRODUTOÉAHISTÓRIA

Um homem corre na floresta fugindo de um grupo fortemente armado. As árvores oajudamaescapardosmuitostirosdisparados.Nãohádúvidasdequepretendemmatá-lo.Eleescorregaporumdecliveeaproveitaofatodeterescapadodocampovisualdeseusperseguidoresparasubiremumaárvorefrondosa.Pareceterfuncionado.Asvozesvãosedistanciandoenquantoofugitivo,exausto,peganosono.

O som de umamotosserra o desperta. A árvore onde se abrigou está sendo cortada.Abraçadoaotronco,eledesaba.Mas,emvezdeencontrarochão,cainaságuasdeumrioqueoarrastamjuntoàárvoreflutuante,outravezsobchuvadebalasvindasdamargem.Odesfechodaperseguiçãoestálogoàfrente:umacachoeiraalta,porondepersonagemetroncodespencamemummergulhoaparentementefatal.

Vamos reencontrá-lo recuperandoos sentidos emuma serraria, agora sóde cueca e t-shirt. A esteira o conduz em direção à serra elétrica. Ele se levanta sobressaltado edesloca-senadireçãoopostaàdaserra,sendoatingidoporummecanismoqueoempurrapara a carroceria de um caminhão carregado de tábuas. Desmaiando novamente, eleacorda semcamisa, só lhe restou a cueca.Está emuma linhademontagem,deitadonaestruturaemformaçãodeumacaixademadeiracomformaaindaindefinida.Aspeçasdefechamentodacaixasãoadicionadasautomaticamente,deixando-opresoládentro.

Sóaícomeçamosaouvirumaexplicação:“Entãoelesmecolocaramemumcaminhão,efoiassimqueeuchegueiaqui.”

Nossopersonagemestádecuecadentrodoarmáriodeumquartodecasal,explicando-seaomaridodamulherqueestádeitadanacamaemtrajesíntimos.

O marido reflete por algum tempo, balançando a cabeça antes de se manifestar: “Éincrível!”Volta-separa amulher,perguntando-lhe: “Vocêouviu isso, querida?”Aoqueela,segurandofirmeolençolquelhecobreosseios,responde:“Sim,ésurpreendente!”

A câmera fecha no protagonista ao som de um acorde vitorioso. Um letreiro oidentifica: Lucas G. Roteirista do Canal +. Encerrada a ação, a imagem vai para fundo

preto, onde se sobrepõe a mensagem final: Nunca subestime o poder de uma grandehistória.

OdivertidocomercialdoCanalPlusfrancêsexemplificabematomadadeconsciênciadovalordostorytellingnaprimeiradécadadoséculoXXIpelosveículosdecomunicação.

Um pequeno intervalo de tempo separa esta ação de ummovimento mais robusto earticuladodaHBO.

There are stories. And there areHBO stories foi o tema lançado em 2008 pelo canalespecializadoemdramaturgia.Esmerando-sehábastantetemponaproduçãodeconteúdoexclusivo,aHBOcorajosamenteassumeacapacidadedecriarecontarhistóriascomooaspectofundamentaladiferenciá-ladosconcorrentes.

Umacena:Homemsenta-seemmesadelanchonete.Garçoneteseaproxima.Elepedeovoscombacon,torradasecafé.

Amesmacenaserepeteemtodososdetalhes.Excetopeloacréscimodavozemoffdohomem, revelando-nos que, após muitos anos buscando a filha, ele a encontratrabalhandocomogarçonete.Etudooqueconseguedizeràmoça,quenemimaginaestardiantedeseupai,seresumeaumpedidodeovoscombacon,torradasecafé.EsteéumdoscomerciaisdacampanhadaHBO,comamesmaestruturamantidaemtodososoutrosfilmes, desafiando a imaginação e a sensibilidade do espectador: sempre uma cenacorriqueira que, quando repetida, nos traz alguma revelação que muda radicalmente oteor emocionalda cena.CriadapelaBBDONewYork, a campanha teve todosos filmesdirigidospeloconsagradoSamMendes.

No ano anterior, o Projeto Voyeur havia preparado o terreno para que se fincasse abandeiradostorytelling.

VerãoemNovaYork.UmedifícionaesquinadasruasBroomeeLudlowrecebeprojeçãosobre uma de suas paredes laterais. O efeito visual equivale ao de um super-raio-Xinvadindo oito de seus apartamentos, distribuídos por quatro andares. Históriasacontecendo ao mesmo tempo naquelas unidades residenciais exibem aos passantessituações e conflitos diversos que envolvem romance, casamento, traição, violência eassassinato.Emboraaparentementeisoladas,astramassãohabilmenteinterligadas.

Uma espetacular degustação. Convida curiosos para a internet, onde as histórias sãodesenvolvidas. Mas antes da projeção várias iscas haviam sido colocadas na própriainternet e em outros meios, teasers pulverizados, estimulando-nos a mergulhar namisteriosaminissérie.UmadaspeçasprincipaisdessepacotedecomunicaçãoéofolhetoimpressoparaWatchers.Nele temoso títulodecadahistóriaeumafrase indicadoradoconteúdoquenosaguarda:1A — The Tempted (O tentado). Uma jovem família tem dificuldades com ocompromisso.1B—TheDeparture(Apartida).Umcasalidoso,amigoportodaavida,aprendeoquesignificadizeradeus.

2A — The Discovery (A descoberta). Enquanto reforma seu apartamento, um casaladoráveldescobrequeseuvizinhodecimatemumsegredo.2B—TheProposal(Aproposta).Emumjantarfino,oanfitriãofazumespetáculoparapedir em casamento sua namorada monumental. A reação dela surpreende a todos,menosaumdosconvidados.3A — The Killer Within (A matadora dentro). Uma solteirona solitária acaricia seuamante.Ousuavítima?Ouasduascoisas?3B—TheGrown-upTable(Amesacrescida).Umgrupodevinteepoucosanos,duranteuma festadestrippoker, sevêcaraacaracomaconsequênciadeseusdesejosquandoelachegabatendoàporta.4A—TheDelivery(Aentrega).Umjovemcasalgrávidosaiapressadoparaoparto,masébloqueadoporumaentrega—seusofá.4B—TheTemptress(Atentadora).Videapartamento1A.

Complexoapontodeconfundiropúblico,eaudaciosoapontodenostornarquasetãoenvolvidosquantooprotagonistadeJanelaindiscreta,deHitchcock.Umemaranhadodeações, com slogan supercerteiro:Veja o que as pessoas fazemquando elas pensamqueninguémestáolhando.

Paraosquequisessemirmaisfundohaviaoblogthestorygetsdeeper.com,ondevídeos,screensaverseseistrilhassonorascustomizadasficavamdisponíveis,ecomentárioserambem-vindos.

Diálogo com o público fora do seu habitat natural, adoção de moldura Big Brother,abraçarumateia inovadoradenarrativas, tudoparasedestacaresemanter fielaotemacentral da marca: “It’s not TV. It’s HBO.” Sem dúvida alguma, ser único requer umesforçogigantesco,especialmentequandosevivenomundodashistórias.

Denadaadiantariausarumtemapoderososeelenãotivesseamparonosfatos.Nascidacomo representante do cinema na TV (HBO são as iniciais de Home Box Office), aemissora carrega a bandeira da ousadia desde seus primeiros passos. QuandodisponibilizarcomrapidezgrandestrabalhosdeHollywooddeixoudeserumdiferencialsignificativo, ela passou a produzir dramaturgia para a TV com o alto padrão antes sóencontradonas telasdecinema.Desdeosroteirosatéaexecução,osassinantesdaHBOforamsurpreendidoscomtrabalhosquedesrespeitavamasregrastelevisivasdosenredospautadospelas expectativas açucaradas dos patrocinadores.Daí vieramos protagonistasvilões, as situaçõesquenemsempreacabambem,osheróisquemorremquandomenosesperamos, as surpresas, um novo estímulo para voltarmos a ver televisão. A perguntadeixou de ser “Como o personagem vai sair dessa?”, tornando-se um inquietante “Seráque ele vai sair dessa?”. Assim, tendo como grande marco a Família Soprano (1999),prenunciadoporOz(1997)eSexandtheCity(1998),vimosnascernaviradadomilênioanova (segunda para alguns, terceira para outros) Era deOuro daTV.As séries daHBOforamas responsáveisporessa revolução,que trouxe temasantesproibidosparaaTVemotivou outras emissoras a entrar no jogo. Sem a iniciativa desbravadora da HBO,dificilmenteteríamoschegadoaosimpressionantesMadMen(2007),BreakingBad(2008)eTheWalkingDead(2010),produzidospelaAMC,ouaDexter(2006)eHomeland(2011),produzidospelaSHO,muitomenosaHouseofCards (2013),produzidopelaNetflix.Aconcorrência ficou pesada, valores de produção hollywoodianos foram investidos emGameofThrones (HBO, 2011), talentos antes exclusivos do cinema, como os astros de

TrueDetective(HBO,2014),elargasfatiasdepúblico,seviramirresistivelmenteatraídospor uma onda de inovação narrativa que, ao que tudo indica, tem muito fôlego paracontinuar crescendo e provocando efeitos imprevisíveis. Protagonizar mudanças dessamagnitude é o que confere àHBOo direito de se proclamar comodistinta daquilo quenormalmenteconsideramosTV.

Oterrenodacomunicaçãoéamploeconvidativo.Nãoserestringeaosveículos,vaiatéosoperadores que disponibilizam canais, as empresas não tradicionais de distribuição deconteúdo, ou as holding companies que abrigam veículos de diferentes naturezas. NoBrasil, por exemplo, uma operadora de TV por assinatura se vale da mesma estratégiausada pela HBO, só que pelo caminho inverso. Enquanto a HBO se afirma como umacategoriaàparte,quenãocabenoconceitodetelevisão,aSkyseorgulhaemproclamar:“TV é isso.” Ou seja, não é a Sky que constitui uma categoria à parte, são seusconcorrentesquenãooferecemumserviçoàalturadoqueelaentendecomotelevisãodeverdade.Umdizendo“EunãosouTV”eoutrodizendo“EusouaverdadeiraTV”,ambostransmitem a mesmamensagem, com discursos opostos que naturalmente conduzem anarrativasdistintas.

Em vez das ações explícitas e de alto impacto implementadas pela HBO, a Skyhomenageia os estilos do entretenimento clássico em seus comerciais de TV. Tudocomeçou em 2009, com a chegada em grande estilo do High Definition ao Brasil. Nosaguão de um aeroporto, o público era surpreendido pela entrada de Gisele Bündchen,queseinstalavaemumsofácomoseestivesseemcasae,acionandoumcontroleremoto,provocavaperformancesaovivoqueevocavamcoberturajornalística,filmesdeguerra,deação,terroremusicais,comdireitoaneveparaencerraremplenoverãobrasileiro.Delápara cá (pelo menos até 2014), as principais campanhas publicitárias da empresa vêmseguindoummodelositcomcompequenosepisódioscontandoahistóriadadonadecasaquevêomaridovoltardepoisdeanosdesaparecidoesentindomaisfaltadatelevisãodoque da esposa, a história de Maria Antonieta às voltas com um assustado Luís XVIvivendosituaçõesqueinseremaTVHDnoclimadaRevoluçãoFrancesa,ouahistóriadeuma cabeleireira em seu movimentado salão de beleza, ou ainda a dona de uma casahabitadapormonstros.Todasashistóriasestreladaspelaübermodelbrasileira,queacabamostrandoaopúblicosuaversatilidadecomoatriz.Masissoéumaoutrahistória.

Noflancodoconteúdoexclusivo,ondeaHBOcravousuagrife,umoutroconcorrentepassoua incomodar.Nãoé canal,nemprovedor.Éo serviçode streamingNetflix, que,nãosatisfeitocomadistribuiçãodefilmeseséries,passouaproduzirsériesexclusivasdealto padrão. Ou seja, mais um player apostando alto no poder das histórias paraconquistaropúblico.

Sejanapropagandaounoprodutoemsi,aqualidadedostorytellingcadavezmaisseimpõecomoelementoindispensável.

TV e entretenimento combinam fácil com a arte de contar histórias. Mas como secomportariaumveículodejornalismoimpressonessecenário?

Em 2012, o jornal britânico The Guardian surpreendeu seu público ao falar dejornalismoaberto.Aformausadaparaabordarotemasurpreendeumuitomaisqueseusleitores, sacudindoospilaresda comunicaçãodemarketing.Dessavez, amensagemdorespeitadoveículoseconcentranãonotradicionaldiscursodecredibilidadeancoradoemgrandesreportagens,masnaconhecidahistóriainfantilOstrêsporquinhos.

Da imagemdeumcaldeirão fervente, somos levados àprimeirapáginado jornal cujaprincipalnotíciaé“GrandeLoboMauCozinhadoVivo”.Quatrosubtítulosintroduzemosdesdobramentosdofato:“Caldeirãodohorroremumacasadetijolossuburbana”,“Porcosalegam ter agido em legítima defesa”, “Família e amigos prestam tributo emocionado”,“Políciaapelaportestemunhascomurgência”.

Acâmera se aproximada fotoda casaque ilustra amatéria.Vemos, então, a açãodapolícia invadindo o local para prender os porquinhos. Imediatamente a página doTheGuardiannainternetregistraaprisão:“Trêsporquinhospresospeloassassinatodolobo.”Uma repórter no site descreve a situação ao vivo. Uma mulher que acompanha acoberturadigita suaopiniãonosite,discordandodaaçãopolicialporconsiderarqueosporquinhos são asvítimas.Novasopiniões semultiplicamna internet:deum lado, “osporquinhos foram longe demais”; de outro, “você tem o direito de defender suapropriedade”;entreessesdoispolos,farturadevariações,emdiversaslínguas.

Apolêmicasetornamundial.Umapesquisapopularpergunta:“Matarumintrusopodeserjustificado?”Aresposta“sim”larganafrente.Peritosfotografamolocaldocrime.Emuma rede social, lemos a postagem: “Se alguém tentasse soprarminha casa, eu faria omesmo.”AtéqueumfilmenoYouTubemostraolobousandoumabombinhadeinalação.Especula-se que omorto sofria de asma. Coitado, eramais frágil do que aparentava. Asimpatiapopularmigradosporquinhosparaolobo.

Dia do julgamento, comoção popular. Os três porquinhos entram algemados notribunal, observados por repórteres e curiosos que se amontoam na entrada do prédio.Enquanto são julgados lá dentro, vaza a informaçãode que eles enfrentavamproblemascomahipotecadacasa.Muitaspessoasseidentificamcomosréusportambémestaremcom dificuldades para quitar suas dívidas imobiliárias. Uma onda de solidariedade seforma a favor dos porquinhos. Começam os protestos de rua contra a ganânciacorporativa.“Osbancosforçaramosporcosafazerisso”,dizumafaixaquesedestacanasmanifestações, assinada pelo grupo autointitulado “Pessoas do mundo unidas contra ocapitalismo”. Os protestos descambam para a violência, a polícia reprime combrutalidade, e o conflito foge ao controle, espalhando-se pelo mundo. Uma últimaimagem do site do jornal noticiando o debate que toma conta do planeta, e estamosprontosparaaassinatura:“TheWholePicture.TheGuardian.”

Partindodaficçãoparaexpressarumaverdadeincontestável.Comofilmequeacabodedescrever, o jornal The Guardian encontrou o jeito mais contundente de retratar arealidadedomundomoderno,adificuldadedesefazerbomjornalismonocontextoatual,

a consciência de sua missão e o compromisso de enfrentá-la com coragem etransparência.

Assistaaquiaosvídeosqueilustramestecapítulo:

PARTEIII

HISTÓRIAQUENÃOACABAMAIS

Escrevasuahistórianaareiadapraia

praqueasondasalevematravésdossetemaresatétornar-selenda

nabocadeestrelascadentes.Contesuahistóriaaovento

cante-anosbaresparaosrudesmarujosolhosdefaróissujos.Escrevanoasfalto

escrevacomsanguegritebemaltoasuahistória

antesqueelasejavarridanamanhãseguintepelosgaris.Abraopeitonadireçãodoscanhões

derrubeosmurosdeBerlimdestruaascatedraisdeParis.

Defendasuapalavraavidanãovalenada

Sevocênãotemumaboahistóriapracontar.

ClaufeRodrigues

Capítulo24

HISTÓRIASCRUZADAS:EU,VOCÊENOSSASMARCAS

Semprefoiassim.Masagoraestámaisassimdoquenunca.Cada pessoa carrega consigo sua própria história, que invariavelmente é a mais

importantedomundo,pelomenosna“imparcial”opiniãodoprotagonista-narrador.Essahistória se cruza com outras, que, por mais paralelas que sejam, exercem múltiplasinfluênciassobreatramaprincipal.Dentreasinfluências,interessam-nosparticularmenteasquedizemrespeitoàsmarcas.Donastambémdesuashistórias(voluntáriasounão),asmarcas fazem de tudo para se conectar aos milhões de protagonistas que povoam oplaneta,oramostrando-secomocoadjuvantesideaisparaacompanhá-lospelasaventurasdavida,orainspirando-osaparticipardouniversonarrativocriadoporelas.Pormaisquetodoserhumanoseja capazdecriar, a criatividadenãoéumbemdistribuídocomessafarturatoda.Porisso,umaboamolduratemáticasugeridaporqualquermarcapodesalvara pele do angustiado consumidor que precisa se inserir na enxurrada de histórias quealagaas relaçõeshumanaspós-internet.É sóembarcarnoclima,epronto:você jáéumastro.

Mesmo nas histórias originais, cem por cento autênticas, não há como negar anecessidadede elementosde apoio.Nossasmelhores cenas jamais funcionariamdireitosenãoacontecessemnolocalideal(cidade,restaurante,shopping,teatro,avião,carro...),semquenossofigurinofossedagrifequemaisgostamos,semqueusássemososadereçoscertos (celular, bolsa, cartão de crédito, relógio, óculos, joias...), o desodorante e operfumeideais,enaturalmenteestivéssemoscomocorpo,ocabeloeatexturadapeleemsuamaisexuberanteforma.Considerandoqueessascenaspodemaconteceremsituaçõesdomésticas,românticas,profissionais,esportivas,sociaisetc,equecadaumadelasrequerindumentária,equipamentos,posturasepessoasdiferentesparacontracenar,éevidenteamagnitude dos cruzamentos possíveis e a vantagem que uma narrativa sedutora e

consistente leva sobre suas rivais na dura missão de atrair para si o maior númeropossíveldepersonagenscomsuashistóriasatiracolo.

Nas sociedades primitivas, isso acontecia apenas no âmbito da tribo,movido a inter-relações pessoais. Com o advento da mídia, a influência foi canalizada pelos grandesdutos dos veículos de comunicação, ganhando dimensões, primeiro nacionais, depoisglobais. Coincidindo com a globalização, vimos a chegada da internet, criando atalhos,possibilidades de interações rápidas entre personagens de realidades sócio-político-econômico-cultural-geográficas tão diversas que algumas delas há bem pouco temposeriam simplesmente impossíveis.Deumahora para outra, começamos a conviver comum boca a boca planetário, onde todos podem emitir opiniões sobre qualquer assunto,inclusive sobre a história do outro, independentemente de o conhecermos bastante ounão.Eoconceitode“outro”incluipessoasemarcas.

Com a internet, todas as barreiras foramderrubadas, concedendo-se a cada indivíduoumpoderosocanaldemídia,ondepodemos registrarnossaemocionantepassagempelaTerra,cenaacena,comasimagensepalavrasquemaisnosfavorecem,paraquenenhumhabitantedoplanetadesconheçaqueconquistamosumprêmio, festejamosoaniversáriodeumparente,estamos felizescomaatuaçãodenosso time,passamosas fériasemumresort paradisíaco ou tomamos um sorvete que nos proporcionou sensações gustativasreservadasaosdeuses.Sim,atecnologiacolocounasmãosdoprotagonistaquehabitaemnós amaispossantemetralhadora giratória jamaismanuseadapeloshumanos, capazdedisparar narrativas em todas as direções, podendo tanto criar celebridades instantâneasquantocausardanosareputaçõesquetalvezsejulgassemasalvoporsemanteremlongedasredessociais.

Aúnicacertezanawebéadequeninguémestáasalvo.E,jáqueaondaéessa,melhorsurfarqueresistir.

Capítulo25

TRANSMÍDIASTORYTELLING

“Opoderdaparticipaçãovemnãodedestruiraculturacomercial,masdereescrevê-la,modificá-la,corrigi-la,expandi-la,adicionandomaiordiversidadedepontosdevista,eentãocirculando-anovamente,devolta

àsmídiascomerciais.”

HENRYJENKINS

Disseram que o rádio mataria o jornal e a revista, que a televisão mataria o rádio e ocinema,logodepoisqueestematasseoteatroealiteratura.Equeainternetmatariatodooresto.

Oassassinatodo livro,portanto,vemsendoanunciadohámuito tempo.Masnenhumdossuspeitosatéagoraconseguiuexecutarocrime.Aocontrário,oe-booktrouxenovasperspectivas para a literatura, e os fartos recursos da internet, apesar da fragmentação,superficialidade e dispersão que provocam, tornam mais aguda a necessidade deaprofundamento e concentração nos temas, diferenciando os bem-aventurados, quepreservamintactasuacapacidadedeler,compreender,assimilarerefletir.Semfalarnosprogressos obtidos com o estreitamento da relação leitor-escritor. Nunca as editoraspuderamouviropiniõescomoagorasobreoquedeveserpublicado,qualamelhorcapa,otema e o formato mais adequados. Nunca os apreciadores da literatura tiveram tantasoportunidadesdecontatardiretamenteseusautorespreferidos,protestarcontraodestinodospersonagens, interferirnastramas,exercerumaespéciedecoautoriacibernéticaquetantoenriqueceeestimulaoprocessocriativo.

Ocinema, inspiradonasérieestreladaporBruceWillis, tambémdemonstraser“durodematar”.Apesardosgolpessofridospelacrescentequalidadedassériestelevisivas,quejáestãoameaçadaspelostreaming,todosfustigadosincessantementepelosgames,quesetornamcadavezmaiscinematográficos.Eeisquevoltamosàreferênciaoriginal.

Não precisa ir muito longe. Você escreve a história de um rapaz apaixonado emdificuldadesparaconquistarsuaamada(Quantasvezesvocêjáviuessahistória?Poiselacontinua funcionando, e pode tanto se apresentar como simples entretenimento comoestaraserviçodeumaouváriasmarcas).Mas,voltandoàforma,eudisse:“Vocêescreveahistória.”Nessaprimeiraversão,elapodeserlidaemlivro,emfascículos,emcapítulospublicados em revistas ou jornais (como acontecia com as grandes obras literárias dopassado),emcomputadores,tablets,celulares,ouemcartazescoladospelacidade.

Digamosquevocê,empolgadocomareceptividadedahistória,decidaroteirizá-lacomofilme. Sua verba é alta, permitindo boa produção e o uso de quantas mídias quiser.Parabéns! Seu filme vai passar no cinema, na televisão, será visto em computadores,tablets,celulares,nosmonitoresqueencontramosemaeroportoseelevadores,projetadonasparedesdeprédios, ganharáversãoemDVDe, se forocaso, será fatiadocomowebsériee/ousériedeTV.

Até aqui estamos falando da mesma história, apenas o básico “leia o livro e veja ofilme”,semteasers,semo incentivoaosurgimentodespoilersquerevelemsegredosdahistória e multipliquem a curiosidade e os debates em torno dela, sem pílulas deenvolvimento com a trama, como outdoors do rapaz declarando-se à amada, perfis dospersonagens nas redes sociais, performances de rua, divulgação da trilha sonora,promoções, enquetes, jogos, material de merchandising, desde roupas até alimentos eobjetosdedecoração.Percebeucomoahistóriaseagiganta?

Arealidadeétãovastaquenelacabemocatastrofismodosqueanunciamadecadênciadatelevisão,emperfeitoconvíviocomosquecelebramaeradaTVeverywhere,quandooconteúdotelevisivopodeserconsumidoemmúltiplastelas,cabendoaopúblicoescolheramaisconvenienteacadamomento.

Aumentamaspossibilidadesdeplataformas,multiplicam-seasmídias,etudooqueashistóriasprecisamfazeréaprenderacircularportodasasestradas.Emoutraspalavras,sebanquetearemcomarealidadetransmídia.

Introduzidoem1991pelopesquisador americanoMarshaKinder, o termo transmediapassouadisputaratençãocomcross-media,queganhoupopularidadecomolançamentodoprogramaBigBrother,definidoporseucriadorJonDeMolcomoumpuroexemplardacategoriacross.Henry Jenkins formulouadefiniçãode transmediastorytelling em2003,houveumesforçoteóricodedistinçãoentreasduasexpressões,masninguémprecisadetantasminúcias emummundo que temmais o que fazer. Simplificando, transmedia ecross-media storytelling são basicamente a mesma coisa: contar histórias através dasmúltiplasplataformasànossadisposição.Ainclusãodotransmediaproducernalistadecréditos dos filmes de Hollywood em 2010 não deixa dúvidas quanto à relevância dotemanouniversonarrativocontemporâneo.

Chegamosaopontoemquetodasasmídiasdialogamentresi,cadaumaaproveitandosuascaracterísticasparamelhorseinserirnanarrativa.Eopúblicoconquistouodireitodeparticipar, interferir, vivenciar,nograuque lheconvier, ashistóriasque julgarmaisinteressantes.

Transmídia pressupõe: envolvimento de várias mídias em um sistema integrado;disponibilização de conteúdo em diferentes plataformas, possibilitando sua fruição deforma independente, heterogênea e assimétrica; contar não necessariamente a mesmahistória,masexporomesmotemaemângulosvariados;concederumapartedaautoriaao

público,gerandoidentificaçãoepertinênciaqueresultem,nomaiorgraupossível,emumsensodecorresponsabilidadeentreemitenteereceptorpelodesenrolardahistória.

Oqueadicionaalgumacomplicaçãoaoquadroéquehojeemdiatudopodesermídia.

Suahistóriaémúsica

Maisumavez,amúsicaaparecenestelivro.Agoracomometáfora.Imagineumagrandeorquestra.Há instrumentosvariados,cadaumcomsuapartitura,

tocando trechos que nem sempre coincidem, mas que se harmonizam e formam umconjuntopoderoso.

Pormais que o piano soe diferente de violinos, flautas, metais, percussão etc, todostocam a mesma música, dentro de suas características individuais, cada um dando omelhordesinaexecuçãodaobra.

Agora imagine essa orquestra gravada e reproduzida em todos osmeios possíveis, datelevisão ao ringtone, passando por rádio, internet, CDs, qualquer situação em que sepossaencaixarumamúsica.Esemprecabeumvideoclipe,cujoroteiropodeconterumahistóriainteressante,talvezumnovoThrillerttàlaMichaelJackson,quepoderiapermitiralterações feitas pelo público, em um grau de interatividade que, se ampliado, talvezdesembocasseemumgame,quemsabe?

Maioraindaseconsiderarmosqueessaorquestrapodeespalharseusinstrumentosporvários pontos da cidade, permitindo ao público que os encontre e os reúna como bementender,eatéquetoquealgunsdeles,integrando-seaoespetáculo.Ouque,aprendendoatocá-la e cantá-la, cada pessoa se sinta à vontade para executar seu próprio arranjo,levando nossa música a eventos fechados como celebrações em escolas ou pequenasreuniõesdeamigos.Curtindo-acadaumaseujeitocominvejávelintimidade,apontodesurgirem novos videoclipes postados no YouTube com arranjos e roteiros que jamaisimaginamos,emumsensacionaldescontrolequeespalhaaideiaoriginaldenossamúsicapelosquatrocantosdoplaneta.

Édessaamplitudededifusãoquetratamosquandonosreferimosatransmídia—umainesgotávelprofusãodepossibilidades.

BingBang

NãoétododiaquesurgeumGoogle.Muitosmecanismosdebuscaatuamnainternetháalgumtempo,massóumdisparounafrente.Conseguiuessafaçanhapormuitosmotivos,mas o principal, a meu ver, foi demonstrar aos primeiros usuários que seus nomestambémestavamlá.EssafoiamaneiracomofuiapresentadoaoGoogle:“Tátudolá,eu,

você... experimenta só”, disse-meumamigo.Digiteimeunome, depois demembrosdaminha família, e uau!, reverberei amensagem: “Tá tudo lá... experimenta só.” Imaginoquantas outras pessoas conheceramoGoogledomesmo jeito.A experiênciadousuárionão tinhaprecedentes, daí seu sucesso avassalador. Eno coraçãodessa experiêncianãoestáahistóriadomecanismodebusca,estáanossa.FoioGooglequenoscolocouempéde igualdade com vultos históricos e artistas, despertando em cada um o orgulho dobiografado,atéentãoreservadoparapoucos.Tornou-seumfacilitadortãofantásticoque,deumahoraparaoutra,jáeraindispensável.Nãoprecisoucriarnemcontarsuahistória,apenas fez algo absolutamente revolucionário. Por isso, é o exemplomais eloquente doquechamamosdeStorydoer.

DiantedesseBigBang,umgigantecomoaMicrosoftnãotinhacomosecalar:lançouoBing.Oproblemaerachamaraatençãodeumpúblicoaindaemluademelcomodonodopedaço.

A estratégia partiu de um livro.Muitos torceriam o nariz ao ver uma plataforma tãoantiga sendo usada para atrair um target predominantemente jovem e encantado comtecnologia.EraaesperadabiografiadorapperJay-Z,intituladaDecoded.EmvezdelançaroBing,aMicrosoftlançariaolivroatravésdoBing,motivandoadesejadaexperimentaçãoque tantos bons frutos trouxe para o Google. Mas lançar um livro não é algo tãoespetacularassim,ealeituranãoestáentreasatividadesprediletasdosjovens...amenosque o livro se transforme em um jogo, diferente dos jogos a que estamos habituados,misturandoon-linecomoff-line,literaturacommúsica,culturacomtecnologia.

Cadapáginado livro foi colocadaduranteummês em13diferentes cidadesdentro efora dos Estados Unidos, antes do lançamento oficial, buscando locais quecontextualizavamanarrativa.Opúblicofoisurpreendidocomasvisõesdeumautomóveladesivadocomumapágina,umaembalagemdehambúrguercomoutra,o feltrodeumamesadebilhar,ospratosdeumrestauranteouo fundodapiscinadoHotelDelano,emMiami, totalmente tomados pelas páginas que descrevem passagens do livro ligadasàqueles ambientes. Jaquetas da Gucci foram forradas com o texto de uma página, umaplacadebronzereproduziuoutrapáginanoMarcyProjects,localondeobiografadoviveumomentos importantes de sua infância. Pontos de ônibus, cartazes e outdoors em geraltambémse juntaramàprofusãodepáginasexpostasaopúblico.Olivroaindanãohaviasidolançado,masjápodiaserlidoporaquelesqueparticipassemdojogo.Tudooqueosparticipantes tinham a fazer é buscar na internet as pistas de onde estava cada página,localizá-la, guardar a imagem e depois colocar todas as páginas na sequência certa.Pronto:umaediçãoinovadoradaobraquesóalgumtempodepoisestariadisponívelnaslivrarias.

Ainiciativafoiumgrandesucesso,oquenãosignificaaderrubadadoGoogleousequerumabalopreocupante.Masninguémesperava resultadomelhordoque sinalizarparaomundo que existe uma alternativa ao todo-poderoso buscador. Muitos outros capítulosaindaserãonecessáriosparaqueoBingconquistemaioresespaços.

O importante é que, além demostrar sua capacidade de atender ao público em suasbuscas,oBingseapresentoucomoumplayeratrevido,antenadocomoqueacontecenouniverso pop, e capaz de transformar qualquer objeto ou superfície em mídia, compersonalidademarcanteerelevânciacultural.

Criaçãodeuniversos

De quantos mundos precisamos? Há o mundo dito real, o espiritual, o virtual e oficcional, que, como sabemos, se confunde facilmente com todos os outros.Quando foilançadooSecondLifena internet, tudooquesebuscavaeraatenderaessanecessidadehumana de dispor de váriosmundos. Nossa vida é insuficiente, daí a inquietação pelatranscendência, a crença de que há uma vida eterna depois desta ou de quecontinuaremosexperimentandoasemoçõesdoexistiremumprocessode reencarnaçõessucessivas onde temos a oportunidade de variar nossos papéis no grande teatro douniverso. O que acontece depois da morte é chamado de “além”, “outra vida”, oudefinidocomocoisasdo“outromundo”.

Gostamos de nos imaginar diferentes, de tentar outras hipóteses, por isso adoramosmergulharemhistórias.

Soapretensioso,masnofundoéoquetodahistória faz:criaruniversos.Sabemosquecadapessoa temumahistória e vive em seuprópriomundinho,não é assim?Pois essemundinhonuncaéobastante.

OmundodeJay-Zficouacessívelaseusfãsatravésdaautobiografiaedaformacomoelafoipré-lançada.OmundodeHarryPotterépovoadodefeiticeirosefazcomquevoaremumavassourasejatãobanalquantoandardebicicleta.EmMatrixsomostransportadospara dois mundos paralelos, onde, junto com os personagens, oscilamos, sofrendoperseguiçõesdetirarofôlego.EmGameofThrones,encontramosnaTVomundocriadopor George R. R.Martin em sua série de livrosA Song of Ice and Fire, e,mesmo semreferênciadeondeouquandoahistóriasepassa,acompanhamosasangrentadisputadepoder que envolve desde soberanos cruéis até povos estranhos, dragões voadores efenômenosclimáticosdevastadores.

Os universos criados pelas histórias, uma vez absorvidos, são vistos por nós comextremanaturalidade.QuemnãosabequeaslâminasdasespadasdeStarWarssãofeitasdeluzemvezdemetal?Equantomaishabilmenteessesuniversossãoconstruídos,maisfacilidadeelestêmparaconvivercomseupúblico.

Querdizer,então,quesóashistóriasfantásticasedeficçãocientíficatêmfuturo?Claroquenão.

Há universos em todas as narrativas. Qualquer pessoa seria capaz de se vestiradequadamente emuma festa à fantasia onde o tema fosseOpoderoso chefão, ouMadMen,ouMacbeth, ou...penseemumaboahistóriaevocêé imediatamente remetidoaoseu clima, às suas relaçõesdepoder, ao comportamento geral dospersonagens, à ética,aosconflitos,figurinos,objetos,sons,enfim,aoestilodominante.

Comasmarcasnãoédiferente.Elastêmhistórias;portanto,têmuniversos.Namedidaem que esses universos são bem delineados, aumenta a facilidade de sua narrativatransmídia.

Nemsempreé fácildiscorrer sobre isso,masbastaolharparaHeinekeneAntarctica,Osklen e Lacoste, Chanel e O Boticário, só para ficarmos com o exemplo de trêssegmentos. Alguma dúvida de que, mesmo cada dupla disputando respectivamente os

mercados de cerveja, vestuário e perfumes, essas marcas individualmente pertençam amundostotalmentedistintos?

Enquantoconstruímoshistórias,ummundodecoisasacontece.Háqueseficaratentoasuasregras,seussímbolos,suahierarquiadevalores.Esseselementosserãoosmarcosdahistória a serem disseminados e constantemente lembrados. Dependendo de como ostrabalhemos,cadaumdelespodeser suficientepara resgataroenredo,a ideiacentraleboa parte das emoções geradas pela narrativa completa. São eles que amarram o queacontece no ponto de venda ao que vivenciamos em um evento esportivo, vemos napropaganda,assistimosnacenadoseriadocomproductplacement,ouabsorvemosquasesemnotarduranteumvideogame.

Capítulo26

GAMIFICAÇÃO

Pergunte ao autor de um romance sobre o que ele pretendia ao escrever sua obra. Aresposta ouvida com frequência será: “Trazer os leitores para dentro da história.”Ambiçãoperfeitamentelegítima.Volte-seentãoparaoleitor,consultandoseuobjetivoaolero romance.Ao ladodealgunspropósitos culturaismaisnobres, certamentevirãoostradicionais “distrair”, “divertir”, que no fundo significam: “Escapar do tédio que arealidadecostumanostrazer.”

Omesmo teste vale para quemproduz e assiste a filmes ou qualquer outra formadecontarhistórias.Chegamos aoponto.Os games sãoumadessasoutras formasde contarhistórias e realizamdemaneira singular a integraçãoentrepúblicoenarrativa.Simplesassim.

Vozesdiscordantesseerguerãodizendoquejogossãoumaatividadeequeaposiçãodequem lê, ouve ou assiste à narração de uma história é essencialmente passiva: autor =emissor, público = receptor. Raciocínio equivocado. Pesquisas científicas comprovam oesforço que as histórias exigem de nós. Pela ação dos neurônios-espelho, os grandesresponsáveis pelos sentimentos de empatia, acabamos sofrendo o que se passa com ospersonagens lidos ou assistidos. Taquicardia, suor, lágrimas, gargalhadas... acontece detudoquandonos envolvemos comumahistória.Quemnunca se encolheuou fez caretaem uma cena de suspense? Ou se inquietou com a personagem que está tomando aestúpidadecisãodeentrarnacasaondeseencontraoassassino?Comosimuladoresquenos preparam para as situações da vida, as histórias exigem de nós participação ativa,mesmoquandonãonosdamoscontadisso.Livros,peçasteatraisefilmes,assimcomoosgames,tantoentretêmquantocansam.

Masvoltemosàsprimeiras linhasdestecapítulo.Oqueosautoresambicionamdesdesemprenão é trazer opúblicoparadentrode sua obra?Mudouo quê, então?Apenas ograu de interatividade, que antes ocorria no âmbito da imaginação, tornando-se menosintelectual,sutiloucoisaqueovalhaaotransformaroreceptordahistóriaemavatarde

personagem. Ele é inserido na trama, enfrenta os perigos que surgem em seu caminho,cai,levanta,corre,pula,mata,morre,eodesfechodatramavaivariandocadavezqueelejoga. Deste ângulo, podemos dizer que o game é a concretização do sonho de todostoryteller.

Calma!Sei que estamos longedo ideal.Os games que conhecemos reduzemo camponarrativo a histórias de ação. Exigem muito mais reflexo do que reflexão, tendendo,portanto,aemburrecerseususuários.

Tudobem,háumprocessoemcursoevaleapenaolharparaoquepodevirporaí.Sehoje os games parecem concorrermais comparques de diversões do que comprodutosculturais, amanhãpoderemos tergrandesobras literáriasconvidandoopúblicoavisitarvirtualmente seusmundos e compartilhar, de joystick empunho, a experiênciade seuspersonagens.

Por princípio, ao abrir um romance, sentar em um teatro ou cinema, estamosconcordandoemparticipardeumjogo.Sabemosqueaquiloquevamosvivenciaralinãotemcompromissocomarealidadeeaindaassimnosdispomosaacreditaremtudo,certo?Alínguainglesaémuitoelucidativaquandousaamesmapalavra(play)parapeçateatral,interpretação de personagem, brincar e jogar. Crianças brincando de casinha estãosimulando a vida adulta enquanto jogamentre si com situações emuladasde seuspais.Algomuitoparecidoacontecequandoelasouvemhistórias.Oquesepassacomseuspaisdurante um game ou a leitura de um livro, guardadas as diferenças de maturidade, éexatamenteomesmo.

Atecnologiausadanosgamesé,portanto,muitobem-vinda.Dámostrasclarasdoquepode fazer a favor da produção cultural e já começa a dotar suas tramas de elementosmaispróximosdaliteraturadoquejamaisestiveram.Multidõesdeadolescentesejovenstêm sido atraídas para a leitura por livros que aprofundam a narrativa de seus jogospreferidos.Livrossãolançadossimultaneamentecomosrespectivosgames,oferecendoaseus leitores a possibilidade virtual de viver a história. Sabemos dos vários filmesproduzidosapartirdegamesevice-versa.Tudoindicaqueoantigo“leiaolivro,vejaofilme e compre o disco” estámudandopara “leia o livro, veja o filme, baixe a trilha ejogueogame”,nãonecessariamentenestaordem.

Gostemosounão,ogameéumaplataformaemfrancaascensão.Seusrecursostécnicosencantam cada vez mais usuários, seus orçamentos de produção já equivalem aos dosgrandesfilmes,osprofissionaisenvolvidosemsuaelaboraçãosãodenívelartísticocadavezmelhor, e— omais importante— suamescla com a vida real, gerando jogadoresespecialistas,trocadeinformaçãoentregruposdeinteresse,etodasortedemobilização,abrecaminhosfantásticosparaumanarrativaqueseinserenodiaadia.

Onde vai dar tudo isso, não sabemos. Pode ser que a cultura saia chamuscada pelahipervalorizaçãodoentretenimento,podeserqueelasebeneficie,atraindoointeressedopúblicojovem.Ou,quemsabe,aspessoassecansemdejogarfisicamente,redescobrindoo prazer dos jogos intelectuais, subjetivos, silenciosos. Novas ondas, embaladas portecnologiasaindadesconhecidas,podemsesobreporaosgames,comotemacontecidoaolongodotemposemquenenhumaformanarrativadesapareça,ecadaumaencontreseuespaço.Porenquanto,ojogoéesse.Façasuasapostas.

Capítulo27

IGREJACATÓLICAAPOSTÓLICATRANSMIDIÁTICAROMANA

Comoeranoprincípio,agoraesempre.Dasnovaspalavrasqueoboomtecnológiconos trouxe,“transmídia” talvezsejaaque

geroumaiorperplexidade.Criarecontarhistóriasjáexigetanto,eagoramaisesta:terqueconversarcommilplataformas.

Novidadeébom,masdáumtrabalho...Seesseraciocíniodesanimadolhepassoupelacabeça,relaxe.AIgrejaCatólicapratica

o transmídia desde quando a tecnologia sequer rondava a humanidade. E o faz comtamanha competência que segue soberana comomelhornarrativa transmídiadoplanetaatéhoje.

Entrenosprincipaismuseusdeartedomundoocidental,especialmenteoseuropeus,epreste atenção às pinturas e esculturas que abordam temas religiosos.Quantas vezes ascenas clássicas da narrativa bíblica são retratadas? Adão e Eva, nascimento de Jesus,flagelo e crucificação, anunciação do anjo Gabriel à Virgem Maria, o massacre dosinocentes promovido por Herodes, os sofrimentos a que foram submetidos os grandesmártires,ospecadoresardendonofogodoinferno,anjosesuasharpas,demôniosesuastentações.

Namúsica clássica, bastaria Johann Sebastian Bach com sua obra tão inundada pelareligiosidade,mas, para que não pareça um caso isolado, vamos deixá-lo acompanhadopelosréquiensdeMozart,Verdi,BrahmseBerlioz,alémdasdiversascomposiçõessacrasdeVivaldi,Haendel,Haydn eGounot. Somam-se aos clássicos o repertório criado parafestas religiosas e atos litúrgicos, onde se misturam algumas composições nascidas noprotestantismo e intérpretes como Take Six, OsMeninos de Deus e outros tantos que,cantando os episódios do Antigo e Novo Testamento, exaltam os benefícios da fé econstroem um poderoso arcabouço narrativo musical. Correndo por fora, o brasileiro

RobertoCarloslevoudospalcosparaasmissasseugrandesucesso“JesusCristo”,alémdeoutrascançõescomtemáticacristã,eváriosastrosde todososestilospelomundoaforaque,emalgummomento,gravarammúsicasnatalinas.Quantasversõesde“Noitefeliz”e“JingleBells”vocêconhece?

Artes plásticas,música, arquitetura, tudo se une em ummosaico que faz os grandesrelatos do cristianismo presentes ao longo do tempo e nos mais diversos pontos doplaneta.Ascidadeshistóricasmineirascomsuaenormequantidadede igrejasbarrocas,onde desponta o trabalho do Aleijadinho; Salvador, na Bahia, com suas centenas deigrejas; todas as grandes cidades do mundo ocidental com suas catedrais; todas aspequenas cidades com suas igrejas como ponto de referência. O que isso traz deawarenessé imbatível.Comoapoiodecadaigrejacomseussinos,nãoháhistóriamaisbadalada que a dos católicos. E dentro dessas igrejas saltam aos olhos as imagens dosprincipais personagens, as cenas da via-crúcis, uma intensa recapitulação da narrativa-mãe,atravésdeesculturas,pinturasevitrais.

O que acontece no interior das igrejas?Missas e sacramentos, onde são lidos trechosbíblicos, são repetidos salmos, são cantados hinos que consistentemente reforçam ahistória.Nasmissas,celebradasdiariamenteeobrigatóriasnosdomingosediassantosdeguarda,alémdasleituras,reflexõeseorações,reencena-seoepisódiodaÚltimaCeia,coma consagração de pão e vinho, que são distribuídos sob a forma de hóstia aosparticipantes,fazendo-osatuarcomoosapóstolosqueestavamrecebendooalimentodasmãos de Cristo em sua derradeira refeição. Que outra história é introjetada em seupúblicodeformatãosignificativa?

Há que se destacar o brilhantismo dos redatores litúrgicos e seu poder de síntese. Aoração do Credo é omais perfeito exemplo de sinopse confessional, onde se repassa omistério da Santíssima Trindade, o resumo da vida de Cristo e o papel da Igreja naintermediaçãodeseusfiéiscomasforçascelestiais.Essaoraçãoestáemtodasasmissas,garantindo que ninguém se desvie do trilho narrativo. Em número menor, mas aindaassim expressivo, os mais devotos rezam o rosário, que é dividido em terços quesublinhamdeterminadosmistérios.Acada segmentodedezave-marias, essesmistériosconvidamàmeditaçãosobreasprincipaispassagensdavidadeJesus.

Pelasruas,páginasetelas

Os eventos públicos (shows, festivais, exposições, bailes, competições esportivas) queproporcionam a experiência de marcas encontram equivalência com o catolicismo nasfestasreligiosascomoNatal,Páscoa,oCíriodeNazaré,asprocissões,ascelebraçõesemhomenagemasantospadroeiroseaté festaspopulares,comoas juninas,que—nãonosesqueçamos—acontecememnomedeSantoAntônio, SãoPedro eSão João.Ano apósano, cumpre-se o calendário litúrgico cujos pilares são o nascimento do protagonista(Natal) e o clímax de sua trajetória, onde se sucedem sofrimento,morte e ressurreição(Semana Santa), ambos precedidos de intensos períodos preparatórios: Advento e

Quaresma. Junto com essas festas estão os símbolos cuja presença desencadeia alembrança da história, dois deles com absoluto destaque: a cruz, logomarca maisreproduzidaeimpactantedomundo,exibidanasfachadasdasigrejas,noscemitérios,emjoiasepeçasdeadornoemgeral,tornadagestoidentificador/protetoraosertraçadacomamãodireitasobrecabeçae troncodocristão(desfechodabiografiade Jesus,associadaàsua morte e ressurreição); e o presépio, presente em paróquias, residências, shoppingcenters epraçasnoperíodonatalino (representaçãodonascimentode Jesus).Naesteirado presépio, protagonizado evidentemente pela Sagrada Família, apresentam-se novossímbolos, comoamanjedourae a estrela-guia, e são introduzidospersonagens sazonais,como os pastores, o galo (que dá nome à mais famosa missa natalina), os burrinhos,ovelhasebovinosquepontuamasimplicidadedacena,eosReisMagos(Belchior,GaspareBaltazar),estescomdireitoaumafestaespecíficacelebradaem6dejaneiro,queensejaencenações folclóricas e comidas típicas emmuitas regiões. “É oDia dos SantosReis”,queTimMaiadeixoutãobemmarcadonamúsicabrasileira.

Naliteraturasãoabundantesostrabalhosqueaprofundamafécatólica,algunsescritosporPapas,outrosporteólogos,porescritoresleigoscomoLuizPauloHortaeRezaAslan,oupadres,entreosquaisverdadeirosfenômenosdepopularidadecomoMarceloRossi.

Enocinema?AoladodasmuitasversõesdavidadeCristo,temosIrmãoSol,irmãLua,de Franco Zeffirelli, falando-nos de São Francisco deAssis; temosSansão e Dalila,OsDezMandamentos,Ben-Hur, JesusCristoSuperstar,Godspell (os dois últimos baseadosem espetáculos de teatro musical) e um sem-número de filmes tratando de milagres,conversões, aparições de santos. Acrescente-se a eles os filmes que, embora sempretensões religiosas, têmo cristianismo integrado à trama.Éo casodosque tratamdeexorcismo,conflitosentreosagradoeoprofano,anjosqueassumemformahumanaetc,sem limitede gênero, comobemexemplificaOLivrodeEli, violenta história de ficçãocientífica em que, no futuro pós-apocalíptico, um último exemplar da Bíblia é alvo dedisputaentreoprotagonista,interpretadoporDenzelWashington(quesededicaalevarolivroaumlugarseguro,ondeserviráabonspropósitos),eovilãointerpretadoporGaryOldman (que pretende se apossar do livro para, amparado em seu poder de influência,dominaroquerestoudomundo).

Vocêpodeestarpensandoqueosfilmesbíblicosjátiveramsuafase,sendosubstituídospelosqueapenasaludemàreligiãosemrealmentemergulharemnotema,equepoucoapoucooassuntoestaráultrapassado.Nãoéoqueparece.Em2014,constatamosque,norastrodosucessodaminissérieABíblia,produzidapeloHistoryChannel,Hollywoodsemobilizaparalançarumainéditasafradefilmescomtemáticareligiosa.DepoisdeNoé,sobreograndedilúvioeafamosaarca(dirigidoporDarrenAronofsky,protagonizadoporRussellCrowe),vemExodus,sobreafugadoshebreusdoEgito(dirigidoporRidleyScott,comChristianBalenopapeldeMoisés). EvemMary, sobre a vida deMaria desde suaadolescênciaatéamortedeJesus(dirigidoporAlisterGrierson);SonofGod,sobreavidadeCristo,extraídadaminissériedoHistoryChannel(dirigidoporChristopherSpencer);East of Eden, recriando o conflito entre Caim e Abel na atualidade (dirigido por GaryGross);Ressurrection, sobre um centurião romano que investiga a ressurreição de Jesus(dirigidoporKevinReynolds);JesusdeNazaré,apresentandoumahipótesediferenteparaagravidezdeMaria(dirigidoporPaulVerhoeven);alémdeGodsandKings,sobreMoisés,

e Pôncio Pilatos, sobre o governador da Judeia na época de Cristo. Um volumesignificativodeproduçõesaatestaravitalidadedotema,tantonocinemaquantonaTV.

Àsmargensdamídiaclássica,milharesdeencenaçõesdaPaixãodeCristoacontecemem paróquias e escolas. Dentre as produções fora do eixo midiático convencionaldestacam-seperformancesturisticamenteconsagradas,comoaqueacontecenobairrodaLapa,noRiodeJaneiro,eamaisfamosadoBrasil,emNovaJerusalém,Pernambuco.

Maisprofundoquetodasessasmanifestaçõeséograudeinterseçãodanarrativacatólicacomosmomentosmarcantesdahistóriadecadapessoa:nascimento(batismo),casamento(rito matrimonial) e morte (extrema-unção, cerimônias fúnebres, missa de sétimo dia,celebrações de finados). Pense na sua história, de quantas cerimônias cristãs você jáparticipou. Agora pense nas obras de ficção que você já consumiu, quantas cenas deconfissão, de funerais, quantos casamentos diante de altares você já viu em filmes enovelas,quantaspersonagensfemininasrealizaramseusonhodeentrarvestidasdenoivaemumaigrejacatólica.Domomentomaisíntimoaomaispúblico,domaisdramáticoaomaisfestivo,ahistóriacontadapelocatolicismoquasesempreestápresente.

Cidadesemaiscidades,atéumEstadototalmenteseu

Não se pode pensar no Rio sem lembrar do Cristo Redentor, nem em Florença semlembrardoDavi,deMichelangelo.Hácidadestotalmenteenvoltaspelanarrativacatólica:Fátima, emPortugal; Lourdes, naFrança;AparecidadoNorte, noBrasil; Jerusalém, emIsrael (cidadedeclaradasantaporcristãos, judeusemuçulmanos).Há inúmerascidadescomnomesdesantos.SónoBrasil são2.500 localidades,entreelasoestadoeacidademaisricosdaAméricaLatina:SãoPaulo.

EháumEstadosededocatolicismo.A farturadeplataformasdostorytellingcatólicoconvergeparaoVaticano,ondeféearteseunemparanãodeixarnenhumadúvidaquantoàexcelênciade suanarrativa.OMuseudoVaticano reúneumacervo impressionante; aBasílica de São Pedro (maior do mundo) guarda, entre outras obras, a Pietà, deMichelangelo; e a Capela Sistina, inspirada no Templo de Salomão, tem, nos afrescospintadospormestresdaRenascençacomoMichelangelo,Rafael,BerninieBotticelli,nadamenosdoqueumadescriçãodahistóriadahumanidadedopontodevista bíblico.Suaimagemmais icônica,concebidaporMichelangelo,nosapresentaomomentodacriaçãodohomem,quandoDeus eAdão estendemasmãospara que seusdedos indicadores setoquem.Ironiaprofética:arepresentaçãopictóricadoiníciodavidahumanasegundoosensinamentosreligiososé,emúltimaanálise,digital.

NoVaticano, osPapas atraemas atençõesdomundo, atuando comochefesdeEstadoem privilegiada situação. Basta dizer que a revista Time já elegeu três Papas comoPersonalidadedoAno: JoãoXXIIIem1963, JoãoPaulo IIem1994eFranciscoem2013,paraconfirmarostatuspopdospontífices.Visitaspapaiscostumammobilizarmultidões,ea JornadaMundialda Juventudeequipara-seaosgrandeseventosesportivosglobaisnaquantidadedepúblicoqueatrai.Nadamaisbenéficoparaapropagaçãodeumanarrativadoquepessoasqueaencarnemeeventosqueacelebrem.

Deondevemtudoisso?

Tudoapartirdeumlivro

A história aclamada, repassada e infinitamente reinterpretada da Igreja Católica seconcentranaBíblia.Eoque temesse livrode tão interessante?Asagadeumpovoquecaminha,caiese levantaembuscada liberdadeedeumrelacionamentobemresolvidocomseuDeus,repletadeprofetas,patriarcas,guerraseintrigasdasmaisdiversas(AntigoTestamento).E a culminânciadessa saga coma chegada aomundodoFilhodeDeus, oherói que,por sediferenciardo comportamento sócio-político-culturalda época, apesardetersededicadoafazerobem,émalinterpretado,presoecondenado.Paraespantodetodos,esseheróiressuscita,vencendoomaistemidoadversáriodahumanidade:amorte(NovoTestamento).Resumindo,essaéahistóriaquevemosdesdobradahámaisdedoismilêniosemincontáveisfragmentos.Esuaaçãosobreavidadealgumaspessoasfazcomqueelassejamconsideradassantas,gerandotramasparalelasquearealimentam.

Comasnovastecnologias,elacontinuaráemexpansão,mostrando-nosque,doaltodesua situação ímpar, temmuitas lições a nos dar sobre storytelling e transmídia. E essacontinuaçãoaconteceespontaneamente, surgindodediversas fontes, semque sobre elashaja necessariamente alguma interferência ou supervisão da Igreja. Dada a história,fixadas suas bases e estimulada sua propagação, as narrativas passam a caminharsozinhas,gerandoimpressionantesdesdobramentos.

Sim, todas as religiões são construídas sobre histórias, esse não é um privilégio doscatólicos.Ospaísespredominantementebudistas,porexemplo,sãorepletosdeimagenserelatosdeBuda.BaseadasnamesmaBíblia,asdiversas facesdoprotestantismo,atravésdedatas comemorativas, leituras, debates, sermõesou canções gospel, interagemcomocatolicismo na macronarrativa cristã. Seguidores do islamismo e judaísmo, quecompartilhamcomocristianismoapenasaprimeirapartedolivro—AntigoTestamento—,tambémcultuamseussímbolosparticulares,suasdatas,seuslíderesetc.

No fundo, todas se valem do storytelling para convencer seus fiéis a adotarem umasériedecomportamentosconsiderados ideaisparaobomconvíviohumano,aconquistadafelicidadeeoalcancedeumavidapós-mortecheiaderecompensas.Todaspregamumjeito de ser, um ensinamento vivencial. Todas se propõem a conseguir o que estáintrinsecamenteligadoànossanecessidadeancestraldeouvirecontarhistórias.

Nãocaiamosnatentaçãodeacharquesetratasódisso.Religiãoenvolvemuitomaisdoqueconteúdosetécnicasnarrativas.Mexecomvaloresinestimáveis,lidacomoessencialeprovocamudançasprofundasnavidadaspessoas.

Mas também não fujamos do elemento cultural presente na religião, com suaparticipação no bolo de inputs recebidos por todos nós de diversas fontes, com anecessidadepermanentedeadequaçãodasexigênciasdaféaosnovostempos.Misturadaaosdemaisintegrantesdocaldeirãocultural,areligiãoinfluenciaeéinfluenciada,esofreo que à primeira vista pode soar como concorrência de marcas que, atendendo a seuinstintodesobrevivência,buscamatrairnovasovelhasparaseusrebanhos.

Háquemfaleemtemplosdeconsumo.Háquempareçadepositarsuaenergiamaisnaaquisiçãodeprodutosqueexibemsuasmarcaspreferidasdoquenosvaloresespirituais.Há, como sempre houve, exageros e distorções. Vamos encará-los como desvios decondutaquenãomerecematençãonestemomento,elidar,semmedodeheresias,comoque há de comum entre os bens do corpo e da alma na luta diária pela conquista deseguidores.

Marcaspregadoras

A paróquia de Santa Mônica, no Leblon, todos os anos, em meados de dezembro,apresentaumgrupodeviolinistasque,poucoantesdoencerramentodeumadasmissasdominicais, executa músicas natalinas. Ali, entre “Noite Feliz”, “Ó Vinde Adoremos”,“GloriaInExcelsisDeo”eoutrosclássicos,umjinglepublicitárioéregularmentetocadoeovacionado.Trata-sedemúsicaqueduranteanosencheuos laresbrasileirosde ternura,criadaparaumbanco—oNacional—quejánemexistemais.Eraamensagemnatalinadeumamarca,comotantasoutrasquefrequentavamecontinuamfrequentandoosbreakstelevisivos nomesmoperíodo,mas que conseguiu sintetizar demaneira única os votosqueasensibilidadedespertadapelaépocanosinspiraaacolhereformular:

QuerovervocênãochorarNãoolharpratrásnemsearrependerdoquefazQueroveroamorvencerMasseadornascerVocêresistiresorrir...Sevocêpodeserassim,tãoenormeassim,euvoucrer

QueoNatalexisteQueninguémétristeQuenomundohásempreamorBomNatal,umfelizNatalMuitoamorepazpravocêPravocê.

OBancoNacionaldesapareceuem1995,massuamúsicadeNatalficouincorporadaàculturapopular,tãoqueridadetodosquefoibemrecebidaaténocultoreligioso.

Agora que visitamos páginas passadas da publicidade brasileira para encontrar umapreciosidade que sobreviveu àmarca para a qual foi criada, vale revisitar algumas dasmarcas que analisamos neste livro.O que você verá ao fazer isso?Verá que nem só deNatal vive a interseçãodasmarcas comouniverso espiritual, verá omarketing em suaconceituaçãomaisprofundasecomportandocomoreligião.

OquefazaNikequandoemumdeseusfilmescriticaopensamentocorrenteafirmandoque“dealguma formacomeçamosaacreditarqueagrandezaera reservadaparapoucosescolhidos, para as superestrelas”, e encerra sua pregação conclamando as pessoas a“encontrarem sua grandeza”? Lembra o jingle do Banco Nacional, “Se você pode serassim,tãoenormeassim...”,nãolembra?

Namesmalinhadaforçainteriorenquadram-seThepowertobeyourbest,daApple,eKeepwalking,deJohnnieWalker.

E a Diesel, quando nos ensina que “só os estúpidos podem ser verdadeiramentebrilhantes”,nuncaseesquecendodenosprometerseuSuccessfulliving? Ironiasàparte,nãoseriaessaaversãopopdaideiadeparaíso?

Bem,paranãonosperdermosemanálisesintermináveis,melhorirdiretoàfórmuladafelicidade.

ExistemarcamaispregadoradoqueaCoca-Cola?Depois demensagens isoladas de congraçamento entre pessoas de diferentes origens,

depoisdeobterlugardedestaquenoseiodasfamíliasduranteosfestejosnatalinos,comdireito à apropriação da figura do Papai Noel, o refrigerante mais popular do mundosentiu-sesuficientementeforteparaincorporaroconceitodefelicidade.Exatamenteisso:oprêmiomáximoprometidopor todasas religiões.Pretensãoexagerada?Tudodependedotom.

Nacampanhaqueapresentaumgrupodecriançascantandoemumasalaquepoderiaser tanto de aula quanto de catequese, ouvimos bela música de Noel Gallagher. Umacançãofalandobasicamentedaliberdadedeescolha.Perfeito.

Sobreessabasemusicaldesfilamimagenscontrapondootimismoaopessimismo,eumtextoquesedizbaseadoemestudomundial:

Paracadapessoadizendoquetudovaipiorar,cemcasaisplanejamterfilhos.Paracadacorrupto,existem8mildoadoresdesangue.Enquanto alguns destroem o meio ambiente, 98% das latinhas de alumínio já sãorecicladasnoBrasil.Para cada tanque fabricado no mundo, são feitos 131 mil bichos de pelúcia. Nainternet,AMORtemmaisresultadosqueMEDO.Paracadaarmaquesevendenomundo,20milpessoascompartilhamumaCoca-Cola.Existemrazõesparaacreditar.OSBONSSÃOMAIORIA.

Lindo, esperançoso, inspirador.Mas o que faz a Coca-Cola em uma listagem de boasnotícias que inclui casais que pretendem ter filhos, doação de sangue e preservação domeioambiente?Colocar-seumrefrigerantecomocontrapontodiretoàvendadearmasfazsentido?Valerefletirarespeito,mas,pelosimpelonão,ésemprereconfortantelembrarque“osbonssãomaioria”.

Voltando ao ponto crucial deste capítulo, vimos que a pregação de Coca-Cola, Diesel,Nike, Johnnie Walker e tantas outras marcas coincide com objetivos acalentados pelahumanidade e, por isso, têm presença garantida nos discursos religiosos. Resta sabercomoumaconvergênciaaprincípiotãoimprovávelfoiacontecer.

Human truth. Já nos referimos a isso na primeira parte do livro. A verdade pura esimples,universalmentereconhecívelecrível,semmaioresesforçosdeseusreceptores.

Grandes movimentos de comunicação buscam verdades comuns a todos os sereshumanos para transmitir suas mensagens. Ao tocar o ponto sensível desencadeador deemoções, as barreiras que nos separam do objetivo tendem a desmoronar, eliminandoquestões como nacionalidade, idioma, fé ou qualquer fator cultural. Toda história compretensões globais parte daí, seja para atrair leitores ou espectadores, seja para encherlojasoutemplos.

Há uma evidente lacuna de causas na vida moderna, tão sufocada por pressa,praticidade e produtividade. As pessoas sentem fome de algo maior, uma fome nemsempre saciada pelas religiões ou correntes filosóficas disponíveis. Esse espaço decarência é convidativo para as marcas, não por mero oportunismo, mas por oferecersoluçãoaumcrescenteproblemacontemporâneo:ovazioexistencial.

A necessidade de estabelecer relações mais íntimas com o consumidor, buscandodefesacontraa indiferençaeocinismoquepairamsobreosrelacionamentosatuais,éoprincipalpropulsordasmarcasemdireçãoao transcendental.Daíoboomdepropósitosnobresquevematingindoasgrandesmarcas.Háurgênciaemapresentarnovasrespostas(ótimo),oquepodeprovocarpressanaformulaçãodasperguntas,nãoraroconduzindoaerrosdediagnóstico,tratamentooudosagem(péssimo).

Antes de sair correndo atrás de uma causa para abraçar, as marcas precisam seassegurar de que têm uma história compatível com sua pretensão. E lembrar-se de quenãoéprecisoserproféticonemheroicoparadialogarcomaessênciahumana.Bastaserautêntico/verdadeiro,eacionarobotão“conectar”.

Se não há um DNA que permita ser tão convincente quanto a Nike, sempre serápossívelatingiroalvocomofezoBancoNacional.Registre-sequeestebancoantecipouváriasdasmodernidadescontemporâneas,dando-nosumimpecávelexemplodebrandedcontent com a chancela do mais importante programa de jornalismo da TV brasileira(JornalNacional),ecomopatrocíniodeumdosmaioresheróisdenossoesporte(AyrtonSenna). Impossível lembrar do grande ídolo do automobilismo em ação sem enxergar amarca do Nacional bem na frente do seu capacete, consciente de que aquela era umaformasoberbadeganharespaçonacabeçaenocoraçãodosbrasileiros.

Na dúvida ou na escassez de recursos, melhor errar para menos. Um pouco deautodepreciaçãocostumatrazerresultadosmaravilhosos,emodéstiacontinuamaiseficazdo que nunca para gerar aceitação, simpatia e engrandecimento das marcas perante osolhos do público. Pregadores renomados não se cansam de nos ensinar essa lição compalavrasegestos.

Capítulo28

TELLERS,BUILDERSEDOERS

Independentemente da ancestralidade, o storytelling, ao reflorescer sua relevância emnossos dias, despertou ânsias de aprofundamentos que podem gerar confusões futuras.Normal.Tudotendeasedesdobraremespecialidades,atéopontoemque,ultrapassadosos limites do razoável, começa o processo de assentamento conceitual. Expansão ×concentração—adinâmicadoefeitosanfona.

Sóotempoécapazdejulgarseasespecialidadessãoduradourasoumerosmodismos.Escritoresseespecializamemdeterminadosgênerosesemostramfiéisaseusestilosháséculos. Roteiristas, além dos gêneros e estilos, às vezes delegam os diálogos a umprofissional, que se dedica apenas a esse aspecto do roteiro. Em propaganda, fora aclássica separação dos criativos em redação e direção de arte, há os que se propõem aatuarprioritariamentenoterritórioon-lineouoff-line,eosquesósededicamaobelow-the-line. Ainda nessa área, a vigorosa chegada dos planejadores no fim do século XXdeve-seaumaespecializaçãoqueseapossoudedoispedaçosdoqueanteseraatribuiçãocompartilhadaentrecriadoreseexecutivosdeconta.

Juntocomasespecialidadesnascemos jargões,que,entrediversasutilidades, servempara manter os intrusos a distância e dar aos frequentadores do mesmo nicho umaconveniente aura de inacessibilidade. Daí surgem os intermináveis neologismostecnológicos,aproliferaçãodesiglaseosapelidosdecargos,reuniõeseprocessosdentrodasempresas.Algonaturalnasorganizaçõeshumanas,quaisquerquesejamasatividadesa que se dediquem. Tão antigo quanto as fartas doses de latim no vocabulário dosadvogados.

Porqueessavoltaenorme?PorqueoStorytellingjácomeçaaterfilhotes.No capítulo dedicado à Red Bull, falamos de Storydoer — aquele que faz a história

acontecer na vida real através da ação, e não da narração. A questão é se estamos nosreferindoaumprotagonistadesuaprópriahistória,queprecisariadeumstorytellerparacontá-la,oudealguémquedeliberadamenteagede formaacomporumahistória.Nestecaso, a ação,maisdoqueumexercíciodoprotagonismo, seriauma formadenarrativa,perfeitamenteintegradaaoelencodaspossibilidadesdesecontarumahistória.Ouseja,purostorytelling.

Oproblemado storytelling, edas atividadeshumanas emgeral, estána interpretaçãorestritiva, ao pé da letra. Reduzi-lo ao “contar” destrói a essência do seu significado. Écomoatribuí-loaquemcontaumapiadasemsequersaberdeondeveioaideiadapiada.Definitivamente não estamos falando demeros contadores de histórias,mas de pessoascom talento e domínio técnico para construir e comunicar histórias. Pronto, quemmandou definir? Esse “construir” motivou uma terceira expressão: Storybuilder — apessoaquemontaahistória,acabeçapensanteportrásdanarrativa.Ouseriaeleapenaso editor, dandomargem ao nascimento do Story-architect, este sim a cabeça pensanteoriginal?Cansativodemaislidarcomtantasvariáveis.

Enquantootemponãoexerceseupapeldepurador,fazmaissentidoconcentrartodasasvertentes sob o guarda-chuva do Storytelling. Os builders e doers são essencialmentetellers, sem firulas.Assim ficamais fácil entenderque,noobjetivomaiorde fazerumahistória acontecer, são storytellers de um filme tanto o roteirista quanto o diretor, osintérpreteseeditores.Seoroteiroébaseadoemumlivro,incorpora-seaogrupooautorda obra literária, que em relação à obra escrita inicial é o único storyteller a serconsiderado.Nadatãomisteriosoassim:obrascoletivastêmváriosstorytellers(cadaumnasuaespecialidade,quenãoprecisa terumnovonome),obras individuais têmapenasum.

Para quem trabalha commarcas e propaganda, não há o que discutir: todas as obrasnessa área são, a princípio, coletivas, multidisciplinares, portanto com grandediversidadedestorytellers.

Capítulo29

PRÓXIMOSCAPÍTULOS

Depoisdetantaconversa,restaaperguntacrucial:oquefazercomtudoisso?Bem,sevocêtemumamarcaparacuidar,aquivãodezsugestõesquepodemserúteis:

1.SigaamáximadeDelfos:“Conhece-teatimesmo.”Não, não estou debochando. Conhecer-se é complicado, mas não precisa ser umconhecimentoperfeito, absoluto.Basta escarafunchar a origemdamarca, os indíciosdesua personalidade, os fatos mais importantes de sua história. Quanto mais jovem for,maisespaçovocê teráparacomeçarahistóriadozero,ouquase.Felizesosque iniciamsua caminhada sabendo o roteiro a seguir, os que definiram o que são e projetam suaimagemdeformacoerentementeplanejada.Plantarahistóriacertadesdeoinícioémuitomelhordoqueajustá-lanomeiodocaminho.

Independentemente da idade da marca e do ponto em que comece a narrativa, oautoconhecimento implica posicionar-se como personagem no enredo do mercado,encontrarumarquétipoquecompatibilizeoqueamarcapensadesicomaimagemqueelaprojetaparaopúblico.

2.Encontreumconflito.Nãoqualquerum,mas algumemque seupúblico esteja envolvidoe emque suamarcapossa tomar partido. Todomundo tem conflitos de sobra, o problema é escolher o quemelhorseencaixanopapelquesuamarcasepropõeadesempenhar.

Olheparaoespaçoexistenteentreoqueaspessoasacreditameoqueelas fazem;aliresidemvários conflitos íntimosque serão imediatamente reconhecidosquandovocêosabordar. Explore os embates entre tradição e modernidade, jogue com as disparidades

comportamentais, comasatitudesquecontrariama lógica.Seencontraruma tarefaquemuitagentesesacrifiqueparaexecutar,coloque-secomofacilitador,oudatarefaemsioudo convívio com a culpa por negligenciá-la de vez em quando, em nome de algo quepareça maior. Se descobrir que seu público enfrenta algum problema, alie-se a ele,tornando-seumparceirodecombate.

Sabendo razoavelmente quem você é, fica mais fácil entender que briga você podecomprar. Essa briga, aliás, pode ser contra um concorrente, a quem você dirigiráprovocações,moduladaspelopotencialdeadesõesdedeterminadacamadadepúblicoàatitudedesafiadoradesuamarca.

Lembre-sedequenãoexistemelhorcombustívelparaashistóriasdoqueoconflito.

3.Busquereforços.Mesmoquevocêtenhacertezadoquedeseja,confirasuascrençascomgentequeestejaasalvodesuainfluência.Recorraaespecialistas,aindaquesejaparaconfirmartudooquevocê “já sabia”, e não se espante se descobrir que você sabiamenos do que imaginava.Acima de tudo, prepare-se para ser surpreendido. Na maioria das vezes, as surpresascomeçam desde a fase do autoconhecimento, quando descobrimos que a imagemprojetadaébemdiferentedaquetemosdenósmesmos.Enfim,dêboas-vindasàcríticaeabraceadiscussãocomoonecessárioconflitoqueolevaráàsmelhoressoluções.

4.Escolhaumconsumidorpadrãocomoseunarrador.Esseéumtesteessencialparachecarsevocêsesaiubemnositens1e2.Imaginecomoaspessoas contarão sua história umas para as outras, como a narrativa se propagará nasredes sociais e como issoaumentaráounão sua interaçãocomopúblicoquevocêqueratingir. Imagine também como as pessoas contarão a história para si mesmas quandoestiveremnoprocessodeautoconvencimentodequedevemcomprarseuproduto.Ouvirahistóriadoângulodeterceiroslhedaráumaperspectivamaisexatadoqueestácorretoedoqueprecisasercorrigido.

5.Avalieseusrecursos.Háum investimento a ser feito, com infinita, e consequentementeperigosa, capacidadede crescimento. Verifique que meios são indispensáveis à sua narrativa e em quemomentoelesdeverãoseracionados.Dêespaçoparaaassimilaçãoeparticipaçãodoseupúblico. Falar exageradamente em curtoperíodode tempopode confundirmais do queajudar.Planejeasetapas,estabeleçametas:Daquiaquantotempotalaspectodahistóriaestarámaduroparaquepossamosavançarrumoaocapítuloseguinte?Quepesodeverátercada fase da narrativa? Estou pronto para realizar o sonho de ter um programa, umamídia,algumaformadebrandedcontentexclusiva?

Nãoseesqueçadequeosoutrospersonagens(osconcorrentes)semovemquandoeparaondequeremsemquevocêpossacontrolá-los,emudançasdecenáriopodemacontecera

qualquer momento. Portanto, reserve fôlego para alterações de rumo que protejam aessênciadesuahistória.

6. Modelada a história central, zele para que todos osmovimentosdesuamarcasejamcompatíveiscomanarrativa.O storytelling demarcas está sempre em aberto, acontece no dia a dia. Se não houveralguém ou um grupo permanentemente atento a esse aspecto, a tendência é perder orumo.Paraissoéimprescindívelcompreenderafundoanaturezadahistóriaqueestamoscontando,quetipodenarrativaparalelaépertinente,quedesdobramentossãopossíveisecomo ela se comporta nos diferentes meios. Adotar uma história gera compromissoatitudinaldetodaaempresaealinhamentodetudooquedizrespeitoàmarca.

Mas fuja dos capatazes que se dedicam mais a patrulhar do que a inspirar. Ostorytellingéumfacilitador,umaceleradordeêxitos.Quandosetornaumadordecabeçaouumgeradordeatrasos,algoestáerrado:ouseusguardiõesouapróprianarrativa.

7.Procurehistóriasirmãs,alie-seaelas.Sua história se encaixará em algum gênero, terá tramas, personagens e cenárioscaracterísticos. Outras histórias frequentarão ambientes temáticos semelhantes e seráótimofazer-lhescompanhia.

Se sua história fala de superação, será excelente ver sua marca em filmes, peçasteatrais, livroscomessamesmamensagem.Seforumahistóriadeaventuraondeobomhumor prevaleça, será perfeito vê-la associada a comédias ou personagens tipo IndianaJones. Mesmo que o contexto seja distante de sua marca, basta um personagem, umasituação. A afinidade pode se limitar a um determinado segmento de público queconsuma tanto seu produto quanto aquela história alheia. Product placement é umaexpressão muito fria para designar algo que, se bem-feito, irrigará sua narrativa demaneira espetacular, aumentando-lhe a capilaridade e a penetração. E, dependendo dahistória,vocêaindarecebedebônusoefeito“diga-mecomquemandas”,cujopoderdealavancageméilimitado.

8.Ofereçaaopúblicoaoportunidadedevivenciarsuahistória.Nadacomoumevento,umafesta,açãoderua,umainteraçãofísicaparadeixarmemóriasagradáveiseinfundirnaspessoasodesejodecontinuarparticipandodoenredo.Sevocêpode ser o donoda festa,maravilha! Convide osmelhores planejadores e produtores, ecomandeoespetáculo.Seainiciativasairmuitocara,semprehaveráeventosdeterceiroscompatíveis com o seu storytelling. Você pode patrociná-los, apoiá-los, arranjar algummeiodecircularnaáreaquandoaspessoasestiveremexperimentandooclimaquevocêse esforça tantopara transmitir.Essaspessoasproduzirão selfies, farão comentáriosnasredessociais,encontrarãoamores,viverãoboasemoções,se tornarãomultiplicadorasdesuanarrativapelosimplesfatodeestaremdegustandoumpedacinhodela.

Vale a pena investir nisso. Incremente o transmídia, lembre-se do quanto as festaspopularessão fundamentaisparaanarrativapatrióticaereligiosa,enãohesiteemfazerusodessepossantealavancador.

9.Respeiteosfatos.Dêasasàficção,masnãotenteinventararealidade.Já vimos o quanto os conceitos de realidade e ficção se mesclam. Não tenhamedo deutilizá-los,masmantenhaobomsensopermanentementeemalerta.

Selecione os fatos que lhe interessam, enquadre-os no ângulomais favorável, usandoumpoucodemaquiagemsenecessário,sempreatentoaoslimitesdaética.Depoisdeixeacriatividade trabalhar. Você verá que a ficção produzida nesse contexto expressaráverdades talvez commuitomais competência do que os fatos, a tal ponto que tudo sefundiráemumaúnicaehonestaobraancoradanamaisplenaautenticidade.

No casode ser tentado a ingressarna crescente ondade açõesdemarketingbaseadasempegadinhascomoconsumidor,pense,repenseererrepense.Levaralguémaacreditaremalgoparaemseguidarevelarquetudonãopassavadebrincadeiraéexporessealguémao ridículo. Pode ofender e — mais grave — pode provocar uma ruptura no elo deconfiança entremarca epúblico, comconsequências altamentedanosas.Ninguémgostadeserenganado,nemfeitodebobo.

10.Prepare-se.Pretendendoounão serumstoryteller, vocêvai terde lidar comnarrativas.Elas fazempartedavida,estãoemtodolugar.

Quer liderar bem um negócio? Suas estratégias serão mais claras, motivadoras eeficazesseforeminseridasemhistóriasbemcontadas.

Quer que sua marca seja desejada e tenha boa reputação? Apure seu critério, estejaprontoparaavaliaraspropostasnarrativasquelheforemapresentadase,umavezadotadauma linha, seja seu mais inflamado defensor. Construa uma boa história e aprenda acontá-ladaformamaisimpactante,convincenteeempolgantepossível.

Líderesquecontagiamsuasequipescomhistóriaspoderosasfazemcomqueocontágioultrapasse os limites da empresa, atinja os consumidores e se alastre emummagníficobocaaboca,físicoevirtual.

Agora, se você quer irmais fundo na história, preste atenção às palavras de StephenNachmanovitch — músico, artista gráfico e autor do livro Free Play — The Power ofImprovisationintheLifeandtheArts:

Apráticanãoésónecessáriaàarte,elaéaarte.[...] Se achar um exercício chato, não fuja dele,mas também não precisa suportá-lo.Transforme-oemalgoquelheagrade.

Sevocêsechateiaemrepetirumaescala,toqueasmesmasoitonotasemoutraordem.Entãomudeoritmo.Depoismudeatonalidade.Vocêestaráimprovisando.[...] Emqualquer arte épossível tomar a técnicamais básica e simples,modificá-la epersonalizá-laatétransformá-laemalgoquenosmotive.[...]Paracriar,éprecisotertécnicaelibertar-sedatécnica.[...] Embora possa parecer um paradoxo, descobri que ao me preparar para criar jáestoucriando;apráticaeaperfeiçãosefundememumacoisasó.

Dito isso, arregace as mangas, ajuste suas antenas, dê um lustre na sensibilidade,observetudoaoredorerecicle-seincessanteeprazerosamente.Trabalhesuahistória(demarca,pessoal,profissional,qualquerqueseja)atésentirorgulhodela,ebomproveito.

Ah, sim!, um último lembrete: havendo conflito entre a técnica e o instinto, apostesemprenoinstinto.Elesabedascoisas.

Nomais,continuemosaprendendo,queaindatemosmuitahistóriapelafrente.

Assistaaquiatodososvídeosqueilustramestelivro:

Bibliografia

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