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Revista de Letras Dom Alberto, v. 1, n. 3, jan./jul. 2013 Página148 STEVENSON SOB AS PALMEIRAS: UM ROMANCE DE LEITOR ________________________________________________________________ Elaine Cristina Caron 1 RESUMO Neste trabalho propomos uma leitura do romance Stevenson sob as palmeiras (2000), de Alberto Manguel, que enfoca o diálogo intertextual com a obra de Robert Louis Stevenson, autor de A ilha do tesouro e O médico e o monstro. Na narrativa, o escritor Stevenson se torna personagem de uma trama policial. Ele vive, juntamente com sua família, seus últimos anos em Samoa, uma ilha do Pacífico Sul, procurando nos ares tropicais tratamento para a tuberculose que o atormenta desde a infância. Ao passo que se entrega à escrita de uma nova obra e luta contra sua debilidade física, se vê envolvido na morte de uma jovem nativa. Nosso objetivo é observar como esta relação intertextual com a obra de Stevenson ultrapassa o limite temático e se configura na própria estrutura narrativa do romance de Manguel, revelando o leitor por detrás do escritor. Palavras-chave: Coleção “Literatura ou morte”. Robert Louis Stevenson. Alberto Manguel. ABSTRACT This paper proposes a novel reading of Stevenson sob as palmeiras (2000), written by Alberto Manguel, which focuses on the intertextual dialogue with Robert Louis Stevenson´s work, author of Treasure Island and Strange Case of Dr Jekyll and Mr Hyde. In the narrative, the writer Stevenson becomes a character in the police plot. He lives his last years with his family in Samoa, an island in South Pacific, looking in the tropical airs the treatment for tuberculosis, that haunts him since his childhood. While surrenders to write a new work and struggle against his physical weakness, he gets involved in the death of a young native. Our goal is to observe how this intertextual relationship with the work of Stevenson exceeds the theme limit and configures itself in the narrative structure of Manguel´s novel, revealing the reader behind the writer. Keywoords: “Literatura ou morte” Collection. Robert Louis Stevenson. Alberto Manguel. Não podemos deixar de ler. Ler, quase como respirar, é nossa função essencial. (Alberto Manguel) 1 É aluna de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP/Assis. Bolsista Capes. E-mail: [email protected].

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STEVENSON SOB AS PALMEIRAS: UM ROMANCE DE LEITOR

________________________________________________________________

Elaine Cristina Caron1

RESUMO

Neste trabalho propomos uma leitura do romance Stevenson sob as palmeiras (2000), de Alberto Manguel, que enfoca o diálogo intertextual com a obra de Robert Louis Stevenson, autor de A ilha do tesouro e O médico e o monstro. Na narrativa, o escritor Stevenson se torna personagem de uma trama policial. Ele vive, juntamente com sua família, seus últimos anos em Samoa, uma ilha do Pacífico Sul, procurando nos ares tropicais tratamento para a tuberculose que o atormenta desde a infância. Ao passo que se entrega à escrita de uma nova obra e luta contra sua debilidade física, se vê envolvido na morte de uma jovem nativa. Nosso objetivo é observar como esta relação intertextual com a obra de Stevenson ultrapassa o limite temático e se configura na própria estrutura narrativa do romance de Manguel, revelando o leitor por detrás do escritor.

Palavras-chave: Coleção “Literatura ou morte”. Robert Louis Stevenson. Alberto

Manguel.

ABSTRACT

This paper proposes a novel reading of Stevenson sob as palmeiras (2000), written by Alberto Manguel, which focuses on the intertextual dialogue with Robert Louis Stevenson´s work, author of Treasure Island and Strange Case of Dr Jekyll and Mr Hyde. In the narrative, the writer Stevenson becomes a character in the police plot. He lives his last years with his family in Samoa, an island in South Pacific, looking in the tropical airs the treatment for tuberculosis, that haunts him since his childhood. While surrenders to write a new work and struggle against his physical weakness, he gets involved in the death of a young native. Our goal is to observe how this intertextual relationship with the work of Stevenson exceeds the theme limit and configures itself in the narrative structure of Manguel´s novel, revealing the reader behind the writer.

Keywoords: “Literatura ou morte” Collection. Robert Louis Stevenson. Alberto Manguel.

Não podemos deixar de ler. Ler, quase como respirar, é nossa função essencial. (Alberto Manguel)

1 É aluna de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual Paulista “Júlio de

Mesquita Filho” – UNESP/Assis. Bolsista Capes. E-mail: [email protected].

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Alberto Manguel nasceu em 1948, em Buenos Aires, mas passou a infância em

Tel-Aviv, visto que seu pai era embaixador argentino em Israel. Aos sete anos retornou

com a família à Argentina e neste país ele concluiu seus estudos. Alberto queria viver

entre os livros, que considerava seu lar, pois, desde pequeno, estivesse ele em qualquer

parte do mundo, a leitura o abrigava e o fazia se sentir em casa. Não foi por acaso,

portanto, que em 1964, com dezesseis anos, conseguiu emprego em uma livraria de

Buenos Aires chamada Pygmalion. Nesta época conheceu o escritor Jorge Luis Borges,

que era cliente da loja. Borges estava quase completamente cego e, por isso, fez um

convite ao jovem Manguel. Em Uma história da leitura, ele conta esta passagem:

No final, ele se virou e pediu-me vários livros. Achei alguns e anotei outros, e então, quando estava para sair, perguntou-me se eu estava ocupado no período da noite, porque precisava (disse isso pedindo muitas desculpas) de alguém que lesse para ele, pois sua mãe agora se cansava com muita facilidade. Eu respondi que leria para ele. Nos dois anos seguintes, li para Borges, tal como o fizeram muitos outros conhecidos afortunados e casuais, à noite ou, quando a escola permitia, pela manhã. (MANGUEL, 2010, p. 30-31).

Manguel, que já era um leitor voraz, conheceu, nestas noites e manhãs com

Borges, alguns dos que seriam seus livros favoritos, além de descobrir o prazer de ser

um “leitor profissional”, algo que viria a se concretizar em seus anos vividos na Europa.

Após 1968, viveu em diversos países como Espanha, França, Inglaterra e Itália,

ganhando a vida como leitor para várias editoras.

Em seu livro No bosque do espelho (2000), Manguel conta o que significa para ele

aliar o prazer da leitura ao trabalho:

Resenhar livros, traduzir livros, editar antologias são atividades que me proporcionaram alguma justificativa para esse prazer culpado (como se um prazer precisasse de justificação!) e, às vezes, até me permitiram ganhar a vida. “Este é um mundo excelente, e eu gostaria de saber como ganhar duzentas libras esterlinas por ano vivendo nele”, escreveu o poeta Edward Thomas para seu amigo Gordon Bottomley. Resenhar, traduzir e editar permitiram-me algumas vezes ganhar essas duzentas libras. (MANGUEL, 2000a, p.14).

Uma de suas obras que exemplifica isto é O livro e os dias: um ano de leituras

prazerosas (2005), um misto de diário pessoal e ensaio crítico, em que reuniu notas de

leituras e observações do mundo por meio da leitura de doze romances – um para cada

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mês do ano – em que mistura vários gêneros e estilos de narrativas, indo de Adolfo Bioy

Casares a Cervantes, passando por Goethe e por nosso Machado de Assis.

Como pode ser observado, Manguel antes de tudo é um grande leitor, suas obras

são recheadas de citações e alusões em que recobra sua biblioteca particular. E esta é a

característica que envolve seus escritos, dentre os quais destacamos o romance

Stevenson sob as palmeiras (2000).

O escritor escocês Robert Louis Stevenson não era um personagem novo para

Manguel quando este aceitou o convite da editora Companhia das Letras para fazer

parte da Coleção “Literatura ou morte”. Ao percorrer as páginas de seus livros em que o

tema predominante é a leitura, não são raras as vezes em que nos deparamos com uma

citação ou um comentário envolvendo Stevenson e suas obras. Em algumas passagens

Manguel comenta que Borges escolhia livros de Stevenson para suas leituras e que ele

passou a gostar ainda mais do escritor escocês de quem havia lido poucos romances até

então.

Em ambos os excertos abaixo, em que obras de Stevenson são citadas, Manguel

está discorrendo sobre o processo de leitura, sobre a significação da obra e como ela

pode variar ao longo do tempo e de acordo com a biblioteca particular de cada um:

A experiência pode vir antes e, vários anos depois, o leitor encontrará o nome para designá-la nas páginas do Rei Lear. Ou pode vir no fim, e um vislumbre de memória desencavará uma página que tínhamos esquecido de um exemplar maltratado de A ilha do tesouro. (MANGUEL, 2000a, p. 25)

Algo semelhante à redescoberta de Emerson acontece agora, quando pego O homem que era quinta-feira ou O médico e o monstro, e os encontro novamente, como Adão cumprimentando sua primeira girafa. (Idem, p. 30)

A ilha do tesouro (1883) e O médico e o monstro (1886) são as obras mais

conhecidas de Stevenson e que lhe renderam reconhecimento e respeito ao redor do

mundo. Em uma, o gosto pela aventura e, na outra pelo fantástico, mas ambas

trabalhadas a partir de uma percepção da alma humana que o leva a construir, de forma

dramática, uma análise psicológica dos personagens.

Em A ilha do tesouro, que se passa na Inglaterra do século XVIII, o jovem Jim

Hawkins, a pedido de alguns cavalheiros narra as aventuras que viveu na Ilha do

Tesouro. Ele e sua mãe cuidavam da estalagem Almirante Benbow – que era de seu pai,

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já muito doente – quando receberam como hóspede, um marujo que vivia embriagado e

guardava em seu quarto uma arca. O tal marujo pediu a Jim que ficasse atento à chegada

de um pirata de uma perna só e por este trabalho lhe dava todo mês uma moeda.

Capitão Billy Bones, o hóspede, sentindo-se cada dia pior por causa do excesso de bebida

e alertado pelo médico de que não viveria muito tempo se continuasse bebendo,

confessou a Jim ter servido no navio de um temível pirata, o Capitão Flint, de quem havia

herdado o mapa de um tesouro. Billy Bones vivia com medo de ser encontrado por seus

antigos companheiros. Um dia, no entanto, os piratas realmente aparecem, trazendo

para o capitão a marca negra, um aviso macabro que anunciava a hora de sua morte.

Naquela mesma tarde, depois de passar muito mal, Billy Bones morreu. Jim, sabendo que

os piratas retornariam, fugiu em busca de ajuda, levando consigo o mapa do tesouro e

algumas moedas de ouro que estavam no baú do pirata. Unido ao Dr. Livesey e ao Lorde

Trelawney, conseguem um barco e uma tripulação, seguindo, assim, rumo à ilha do

tesouro. Não sabiam eles que dentre a tripulação se encontravam os mais perigosos

piratas, que também queriam o tesouro do Capitão Flint. A narrativa segue repleta de

aventuras, batalhas e a prova da coragem de Jim, que consegue salvar seus amigos e

retornam com parte do tesouro para a Inglaterra.

O médico e o monstro, por sua vez, é uma das mais célebres narrativas de horror

de todos os tempos, tendo sido largamente traduzida e adaptada para o cinema, assim

como para o teatro. No artigo “Os médicos e os monstros: Dr Jekyll and Mr Hyde em

versão brasileira”, Ana Julia Perrotti-Garcia, estuda as várias adaptações para o teatro e

também aborda as traduções que a obra teve no Brasil, inclusive explorando a questão

do título, que em inglês é The Strange Case of Dr Jekyll and Mr Hyde, e no Brasil ganhou

várias traduções:

No Brasil, como veremos de modo mais pormenorizado adiante, existem traduções que receberam o título “O Médico e o Monstro”, mas há também algumas intituladas “O Doutor Jekyll e o Monstro” (Paulinas, 1968); “O Estranho Caso do Dr. Jekyll e do Sr. Hyde” (Editora Tecnoprint, 1971); “Dr. Jekyll e Mr. Hyde” (Newton Compton Brasil, 1996), este último impresso em português, na Itália, para a coleção Clássicos Econômicos Newton. (PERROTTI-GARCIA, 2011, p. 2)

Na Londres no final do século XIX, o respeitado Dr. Henry Jekyll acredita que

todo ser humano carrega dentro de si o bem e o mal e em uma de suas experiências

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tenta separar as duas naturezas. Quando acredita ter alcançado êxito em seu

experimento, chegando à fórmula química capaz deste feito, decide ele mesmo tomar a

poção. Neste momento surge o monstruoso Sr. Edward Hyde, um assassino cruel e sem

remorsos, que causa calafrios naqueles que o olham ou escutam sua voz. No início Dr.

Jekyll acredita que pode controlar seu alter ego, mas aos poucos percebe que isso se

torna cada vez mais difícil, principalmente quando é impossibilitado de reproduzir a

poção. A trama é narrada por um amigo do Dr. Jekyll que, a princípio, desconhece o

experimento do médico, acreditando que o Sr. Hyde mantém seu amigo prisioneiro ou o

matou. Somente nas últimas páginas todo o mistério é revelado.

As duas narrativas são amplamente conhecidas mesmo por quem não as leu

integralmente, mas o leitor Manguel não conhece somente estas obras, ele leu também

ensaios críticos, poemas, contos e outras narrativas ficcionais do escritor escocês que

teve uma produção bastante fecunda. O último trabalho, em que se empenhava quando

uma repentina hemorragia interrompeu-lhe a existência, é considerado um de seus

melhores.

Os ecos dessas leituras são encontrados ao longo de seus textos, algumas vezes

implicitamente, outras com destaque. Além dos já citados, não podemos deixar de

mencionar a coletânea que organizou, Contos de horror do século XIX, publicado pela

Companhia das Letras, em que não deixou de fora este que foi um dos pioneiros do

gênero, com o conto “O rapa-carniça”, de 1884.

Transformando o escritor em personagem, Manguel cria uma trama na qual

encontramos um Stevenson ao mesmo tempo feliz e atormentado; escrevendo sua

melhor obra e perdido em alucinações; escritor vigoroso e homem de saúde frágil. Uma

trama em que aparentemente nada acontece, ao passo que várias histórias vão

emergindo.

Por causa da tuberculose, Robert Stevenson se instalara já havia alguns anos no

Pacífico Sul, em Samoa, onde os ares eram melhores para seus pulmões, tendo como

companhia sua mulher Fanny, os dois enteados Lloyd Ousborne e Belle Strong, e sua

mãe sra. Thomas Stevenson, já viúva.

A família habitava uma casa em que móveis e objetos trazidos da Europa

reproduziam a maneira de viver dos britânicos e, desta forma, mesmo cercados pelo sol,

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pelos flamboaiãs e pela nudez das mulheres com sua "pele escura, brilhante e dura como

pedra vulcânica" (p. 15), num lugar onde “as coisas apodreciam num esplendor obsceno”

(p.14), conservavam, dentro de casa, “o decoro que convém a um cavalheiro escocês, sua

esposa americana e sua família” (p. 15).

Stevenson estava rodeado por livros e leitores em sua casa, pois além de sua

esposa, Fanny era sua leitora e critica. Em sua escrivaninha ele passava horas

trabalhando em seu novo livro e deixando se levar pela imaginação, esquecendo por

alguns momentos seu estado de saúde cada vez mais grave.

Disse a Fanny que não almoçaria; ia deitar-se para ver se a dor passava. Depois disse-lhe que havia escrito uma coisa muito diferente e perguntou se ela gostaria de ler. Aquilo se tornara um hábito: ela sempre lia tudo o que ele escrevia, e era a aprovação dela que salvava ou não uma história. (MANGUEL, 2000b, p. 27)

Stevenson, que lutou a vida toda contra sua debilidade física, começa a ser

assombrado mais de perto pela “bruxa da noite” que fazia seus pulmões sofrerem tanto.

É de forma poética que nos é revelada pela primeira vez a gravidade do estado de saúde

do escritor. A flor, símbolo de vida, é transformada em anúncio da morte, cada vez mais

próxima, ao ser comparada com a mancha de sangue expelida no lenço:

Todo o seu corpo sacudia-se; subia-lhe até as têmporas e descia pela costela abaixo. [...] Por um longo momento, sentiu que seus joelhos fraquejavam, e no instante imediato antes de perder a consciência ele viu, no lenço que levou à boca, uma mancha grande, de um vermelho tão vivo quanto o da flor que a jovem usava no cabelo. (MANGUEL, 2000b, p. 22)

A presença desta mancha vermelha no lenço do escritor pode ser lida como um

diálogo estabelecido entre a narrativa de Manguel e a do próprio Stevenson: em A ilha do

tesouro, o personagem Capitão Billy Bones também recebe uma mancha estampada em

um pedaço de papel – a mancha negra – e ambas são anúncios da morte para aqueles

que as recebem.

Stevenson era um homem conhecido por sua alegria de viver. Chamado de

Tusitala, “o contador de histórias”, pelos nativos de Samoa, era adorado por sua

honestidade e inteligência. Mas isso iria mudar no dia em que um crime entristeceu a

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aldeia: uma jovem e bela moça fora encontrada morta, após ter sido deflorada e, perto

de seu corpo, fora encontrado o chapéu do escritor, manchado de sangue.

O escritor não consegue entender como seu chapéu fora parar naquele lugar, nas

montanhas, já que na única vez em que lá estivera, ao lado do pai da jovem assassinada,

estava com a cabeça descoberta e Tootei chegou a achar que ele estava se acostumando

com o sol de Samoa. Para o escritor não havia nenhuma conexão entre ele e a jovem

Vaera. No entanto, Tootei, acusa o escritor de tê-la observado dançar na festa da aldeia, a

qual compareceu com toda a sua família. Ela dançava enfeitada de flores ao som dos

tambores, ria com as amigas e foi ao longo da festa perseguida, com desejo, pelos olhos

do escritor:

Durante o resto do dia, Stevenson ora reencontrava a moça, ora a perdia de vista, nos momentos mais inesperados. Ficou a sua procura durante o longo discurso pronunciado pelo magistrado e também depois enquanto bebiam kava e comiam porco com inhame, porém não a encontrou. Então ela surgiu de repente, com um prato de fruta-pão cozida, e mais tarde, entre as mulheres mais velhas, penteando os cabelos de alguém, e depois, por um momento, rindo com umas amigas à sombra de um flamboaiã. Uma vez Stevenson virou-se e a viu olhando para ele, mas nesse exato momento a jovem saiu correndo. (MANGUEL, 2000b, p. 21)

Ainda sem conseguir acalmar os nativos, mas protegido pelo magistrado, outro

crime mácula o nome de Stevenson: muitos afirmam tê-lo visto atear fogo no mercado

da aldeia, onde outro filho de Tootei morreu.

Ela [madame Verdein] tem a impressão de que o viu, ainda há pouco, no mercado. (MANGUEL, 2000b, p. 64) Uma das mulheres da multidão apontou com o dedo e gritou. Várias cabeças viraram-se para olhar. De repente Stevenson deu-se conta de que estavam olhando para ele. A mulher não parava de gritar. Outras vozes juntaram-se à dela. A turba foi se aproximando de Stevenson. Mais que depressa, o magistrado agarrou-o pelo braço. “Vamos embora.” “O que houve? O que é que estão dizendo?” “Vamos embora. Ela diz que viu o senhor aqui, carregando um lampião a óleo. Acusa-o de ter provocado o incêndio.” (MANGUEL, 2000b, p. 67)

Em meio a tudo isso, estranhas conversas com um Sr. Baker, personagem envolto

em mistério, fazem Stevenson refletir sobre suas convicções e sua literatura, e o fazem

também escrever compulsivamente, entre uma crise e outra.

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Desta forma, as tensões entre o recato e a desinibição, entre o pecado e a

naturalidade, entre o fato e a ficção, entre o modo europeu e o modo dos nativos

viverem, são instaladas no romance, de forma a trabalhar a dualidade tão recorrente na

obra de Stevenson, que ganha seu ponto alto em O médico e o monstro.

Borges, em Cinco visões pessoais (1987), quando discorre sobre a forma do conto

policial, mostra que o conto policial clássico possui duas histórias que vão se

entrelaçando: uma visível, que é construída em primeiro plano e outra secreta e que

estas duas histórias vão se entrelaçando ao longo da narrativa.

Podemos utilizar esta imagem proposta por Borges ao ler Stevenson sob as

palmeiras, pois Manguel, inspirado por Stevenson, constrói sua trama, tendo como

substrato motivador a narrativa do próprio escritor escocês: O médico e o monstro. Esta

obra se torna a história secreta que se entrelaça ao drama sofrido pelo personagem

escritor. A questão do duplo, ganha destaque nos personagens Stevenson e Baker, que a

exemplo de Dr. Jekyll e o Sr. Hyde, parecem compor duas partes de uma mesma

personalidade.

Em Stevenson sob as palmeiras, o personagem Stevenson é um homem que

embora tenha sido criado em um ambiente austero e extremamente religioso, aceitou a

forma dos nativos viverem, respeitando suas festas, suas crenças e ausência de roupas:

Ali em Samoa, tudo o que outrora fora oculto, sussurrado, abotoado no mundo protegido de sua infância era escancarado – descarado, às claras – e de início aquilo havia sido demais para os seus sentidos, sufocava-o, tal como perturbara Fanny, deixando-a impaciente e zangada. Porém eles haviam ficado, e com o passar dos anos aquele mundo berrante passou a encantá-los e acabaram se acostumando com a falta de reserva [...] agora rejubilavam-se com a explosão de cores e sons lá fora, ao ver um mundo que parecia estar constantemente se abrindo, como um flor de perfume pesado. (MANGUEL, 2000b, p.15-16)

Em contraponto, surge este outro personagem, também branco, escocês e que

“usava um chapéu de aba larga semelhante ao que o próprio Stevenson tinha na cabeça.”

(p.11), mas que defende uma posição exatamente oposta a do escritor, se estabelecendo

na narrativa como uma espécie de alter ego de Stevenson, um espectro que aparece para

lembrá-lo sobre a preservação dos valores morais e religiosos aprendidos em

Edimburgo, na casa de seu pai.

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Desde o primeiro encontro entre os dois escoceses, à primeira página do

romance, vemos que o Sr. Baker é um homem singular: bastante enigmático, responde às

perguntas do escritor de forma reticente e nunca lhe dá detalhes de sua vida particular,

nem onde pode ser encontrado:

Quando foi que o senhor veio de Edimburgo? 2, perguntou. [Stevenson] Há tanto tempo que prefiro nem lembrar, respondeu o outro. [Sr. Baker] (MANGUEL, 2000b, p.12-13) Mas o senhor está satisfeito com suas instalações? [Stevenson] Tenho conforto suficiente. Nunca vejo meu anfitrião e ele jamais me vê, e desse modo nos damos muitíssimo bem. Ele não é culto, mas há alguns livros do senhor na casa dele. [Sr. Baker] (MANGUEL, 2000b, p. 25-26)

O Sr. Baker tem acesso aos livros do escritor, mas, no entanto, afirma

categoricamente não ser um leitor de Stevenson, pois, segundo ele, o tempo dedicado à

ficção é um tempo perdido:

Eu nunca os li, e jamais lerei. Não tenho tempo para essas bobagens de romance. Histórias inventadas, ora! Mentiras é o que são, se o senhor me desculpa. Nossa curta passagem por esta terra deve ser dedicada ao trabalho, ao estudo, e não à dissipação e à fantasia. Só existe um Livro, meu senhor, ao qual dedico a minha atenção, e ele não contém fábulas. (MANGUEL, 2000b, p. 26)

Stevenson, a partir destas conversas com o Sr. Baker, ao mesmo tempo em que

escreve cada vez mais convulsivamente, até mesmo quando está fraco e com dores na

mão, começa a procurar justificativas para o que faz e repensar seus escritos e, como se

verá adiante, até mesmo seu passado:

Escrevi umas fábulas morais”, disse Stevenson ao sr. Baker quando novamente se encontraram. [...] “Acho que as histórias ensinam melhor do que os sermões, ou quase isso. As histórias nos dão mais o que pensar, porque são menos diretas. [Stevenson para o Sr. Baker] (MANGUEL, 2000b, p. 29-30)

Diante das palavras do célebre morador de Vailima o missionário não recua,

insiste dizendo que “é menos direta aquela estrada larga e sinuosa”, mas que ele, como

conhecedor de John Knox, sabe para onde ela leva. Segue assim, suas acusações contra a

literatura, citando o exemplo do pai de Stevenson que era engenheiro e não precisava

2 A presença das aspas se configura na narrativa de Manguel como um indicativo de diálogo, portanto, fazem

parte da citação, não tendo sido acrescentada por nós.

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das histórias inventadas pelos escritores, já que “construía com base em fatos e cifras”

(p. 32).

A inserção da figura paterna recriminando o jovem rapaz faz com que os ecos do

passado voltem para assombrar Stevenson. Segundo o biógrafo Eliseu Sgarbossa, por

volta de seus dezessete anos, o rapaz Stevenson matriculou-se na universidade e

seguiria a carreira de seu pai e de seu tio, engenharia naval e hidráulica, mas ele “sentia

em si mais a alma do poeta do que do engenheiro” (SGARBOSSA, in: STEVENSON, 2010,

p. 241) e quatro anos depois abandonou a engenharia pela jurisprudência, “menos

exigente para com a saúde e mais de acordo com o seu caráter.” (Idem, p. 241).

Nesta época também, segundo Sgarbossa, Stevenson começou a apresentar “certa

independência de espírito em relação ao clima puritano” da família (Ibidem, p. 241) e

mais tarde, por volta de 1879, ao apaixonar-se pela americana Fanny Ousborne, jovem

separada do marido e mãe de dois filhos, que conhecera em férias na França, deixa a

casa paterna e parte para os Estados Unidos para unir-se a ela. Stevenson quase morreu

durante a viagem, embarcara em um cargueiro de imigrantes mal equipado e sem

instalações sanitárias.

Não morreu, mas aquela fuga quase clandestina e tudo o que se seguiu abriram-lhe no coração uma chaga pior que a morte: o rompimento com a família e o isolamento afetivo para com a pátria, da qual colhia inspiração para a arte e para a vida mais profunda. (SGARBOSSA, in: STEVENSON, 2010, p. 242).

Voltou para a Europa em 1881, buscando tratamento para sua saúde e

permaneceu até 1887. Quando seu pai morreu decidiu voltar para os Estados Unidos.

Felizmente os dois haviam se reconciliado pouco antes da fatalidade.

Em Stevenson sob as palmeiras, depois de provocado pelo Sr. Baker a respeito das

convicções de seu pai, Stevenson que já está há algum tempo sem conseguir escrever,

relembra quando afirmou que Deus não passava de ficção e o que isso provocara em seu

pai, um presbiteriano severo, que teria lhe escrito:

Para você trabalhei e não medi esforços – para no final de tudo constatar que você se opõe a Nosso Senhor Jesus Cristo... Para mim, dez vezes melhor seria vê-lo morto do que vê-lo abalando a fé de outros jovens e levando a outros lares a desgraça que você trouxe ao nosso. (MANGUEL, 2000b, p. 44)

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A reconciliação entre pai e filho aconteceu, mas os ecos das palavras escritas pelo

pai ficaram na alma do escritor e agora aparece aquela figura também intransigente para

trazer tudo à tona. O duplo de Stevenson, portanto, seria uma materialização dos

questionamentos internos do próprio personagem escritor que, com a alternância entre

lucidez e alucinação, indica que a linha entre a “realidade” e a ficção já não pode ser

estabelecida.

A trama é desenvolvida de forma que não fique claro para o leitor o que

realmente aconteceu com Vaera e com o mercado da Aldeia. Há alguns momentos em

que o leitor acredita ter encontrado uma pista segura a seguir, mas ao virar a página

todas as suas certezas são desfeitas. Ao mesmo tempo em que se busca um culpado,

pergunta-se: há um crime?

A conclusão a que chegamos é que se trata de um romance “aberto”, no sentido

empregado por Umberto Eco (1997), de modo que cabe ao leitor fazer suas próprias

conjecturas, cabe a ele participar ativamente da significação da obra, o que permite

várias possibilidades, de acordo com o repertório de leituras de cada um.

Nossa leitura enfatiza a relação intertextual estabelecida com a obra de

Stevenson com o objetivo de mostrar como essa relação ultrapassa o limite temático e se

configura na própria estrutura narrativa do romance de Manguel, revelando o leitor por

detrás do escritor. Assim, o livro O médico e o monstro, seria uma chave de leitura de

Stevenson sob as palmeiras.

O primeiro elemento que sustenta esta leitura é a forte presença do duplo,

presente tanto na narrativa de Stevenson como na de Manguel e do qual já discorremos

acima. Outro elemento importante é o fato de que os personagens – tanto o de Stevenson

como o de Manguel – passam por uma transfiguração ao longo da narrativa. Esta

transfiguração, que é física, evidencia o estado emocional dos personagens.

Em O médico e o monstro, quando Dr. Jekyll toma a poção e se transforma em

Hyde, essa transformação se dá tanto interna como externamente, pois além de perder

as amarras morais e éticas, seu aspecto físico também sofre grande mutação. Abaixo

temos um trecho em que o Dr. Jekyll conta o que acontecia quando ele tomava a poção:

Sucederam-se as dores mais torturantes: meus ossos eram como que moídos, eu sentia uma náusea terrível, e meu espírito estava aterrorizado a um nível que nem mesmo a hora do nascimento ou a da morte poderiam exceder. Essas

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agonias aos poucos começaram a ceder, e voltei a mim como se saísse de uma grave enfermidade. [...] Eu me sentia fisicamente mais jovem, mais leve, mais feliz [...] Estiquei as mãos, exultante com o frescor dessas sensações; ao fazer esse gesto, subitamente me dei conta de que minha estatura diminuíra. (STEVENSON, 2011, p. 70)

No romance de Manguel, Stevenson passa por momentos de reflexão e luta

interior e também sofre uma espécie de mudança física, depois de uma longa conversa

com o Sr. Baker:

Fanny ficou preocupada ao ver o rosto vermelho e a respiração difícil do marido, mas ele se esquivou de sua tentativa de ajudá-lo a ir para o quarto. [...] Enquanto despejava água na bacia, viu seu rosto no espelho; parecia vermelho, como se queimado de sol. (MANGUEL, 2000, p. 27-28) Meu rosto mudou? (Idem, p. 83)

A última frase, “Meu rosto mudou?”, se encontra no final do romance, quando

Stevenson é atacado novamente por uma forte crise e está em meio à alucinações. A fala

do personagem que aparentemente é uma preocupação com sua aparência, indica, no

contexto da narrativa, uma preocupação com sua identidade. É como se o personagem

estivesse questionando: “ainda sou eu?”. E esta é sua fala derradeira, após enunciar sua

preocupação ele morre.

Com relação ao aspecto físico temos ainda a questão da letra, que nos dois casos

também sofre transformações. Ao analisar uma carta escrita por Hyde, o personagem

Utterson, advogado de Dr. Jekyll, afirma: “Estava escrita [a carta] numa caligrafia

peculiar, as letras bem verticais, e assinada “Edward Hyde”.” (Idem, p. 34). E ao mostrá-

la a seu funcionário, Sr. Guest, ouve: “– Não, senhor – disse ele –, não se trata de um

louco, mas de alguém com uma caligrafia estranha.” (Ibidem, p. 37). Finalmente, ao

receberem um bilhete do Dr. Jekyll, Guest decide comparar os dois papéis: “Bem, senhor

– respondeu o funcionário – há uma semelhança bastante singular; as duas caligrafias

são idênticas em muitos aspectos: só a inclinação é diferente”. (p. 38). Mais tarde o

próprio Dr. Jekyll, quando explica a Utterson tudo o que aconteceu, afirma: “[...] quando,

ao inclinar minha mão para trás, criei uma assinatura para meu duplo, achei que estava

me colocando além do alcance do destino.” (p. 75).

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Da mesma forma, a letra do personagem Stevenson sofre mutações, após ele ter

escrito convulsivamente por horas. A diferença é tamanha que ao reler os papéis que

encontra em sua escrivaninha, não reconhece a própria letra:

Escrevia sem parar, sua letra quase ilegível de tanto que lhe tremia a mão. Escreveu vinte páginas sem uma única rasura. Parou quando ouviu a voz de sua mulher do lado de fora do escritório. Tinha o rosto coberto de suor. (MANGUEL, 2000, p. 27)

Releu o que havia escrito naquela manhã e as palavras pareceram adquirir vida própria, serpenteando pela página numa letra que ele não reconhecia. (Idem, p. 29)

Além desses aspectos já citados, podemos destacar um outro aspecto formal

recorrente nas duas narrativas. Em O médico e o monstro a narrativa é dividida em

várias partes, nas quais ora é narrado algum fato sobre o Dr. Jekyll e depois outra em

que se destaca o Sr. Hyde, sucessivamente, ou seja, um conflito entre o bem e o mal que

se estende para além do tema, recaindo na própria forma como a narrativa é

estruturada. Em Stevenson sob as palmeiras, por sua vez, também há essa sucessão, entre

momentos em que Stevenson e Baker se encontram e momentos em que Stevenson está

escrevendo, entre o agravamento da saúde de Stevenson e outros em que se sente

vigoroso, entre a lucidez e a alucinação, entre a realidade e a ficção. Portanto, a presença

do duplo, os conflitos entre o bem e o mal também ultrapassam a temática e se

configuram na própria estrutura do romance de Manguel.

Outra característica da obra de Stevenson que Manguel utiliza de forma brilhante

é a presença do elemento visual para compor sua narrativa, é o “nervo óptico” que

comanda a escrita e isto é perceptível desde as primeiras linhas, podemos tomar como

exemplo o trecho em que descreve o cenário que a família Stevenson encontra ao chegar

a uma festa na aldeia:

A aldeia estava enfeitada com palmas e guirlandas. À frente de lençóis de tapa recém-estendidos, os tocadores de tambor, com três tiaras de gardênias na cabeça, estavam ensaiando, com mais animação bem-humorada do que perícia, e algumas moças mais jovens, rindo, requebravam os quadris no ritmo do batuque. [...] Durante algum tempo, ficaram vendo a carne e outros alimentos sendo baixados sobre as pedras quentes, tudo em meio a grandes nuvens de fumaça. (MANGUEL, 2001, p. 22)

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No entanto, a narrativa é tão rica em detalhes que mesmo sendo o nervo óptico

que a comanda, observamos todos os outros sentidos trabalharem, o que faz com que o

leitor imagine o quadro todo. Quadro esse que é vivo, pois ao passo que as cores se

destacam (palmas, guirlandas, gardênias), os cheiros afloram (de carne, de fumaça), os

sentidos se aguçam (com os sons do batuque e dos risos, com o calor dos fornos).

Também há a movimentação das pessoas (tocadores de tambor ensaiando, moças

requebrando). É como se uma janela se abrisse para aquele mundo e o leitor pudesse

espreitar por ela.

Provavelmente, Manguel aprendeu a utilizar o efeito visual com o mestre

Stevenson. Como podemos observar no trecho abaixo, extraído de A ilha do tesouro, o

escritor usa com propriedade o elemento visual:

Atravessara um terreno pantanoso repleto de salgueiros, juncos vergados e árvores estranhas e desconhecidas, e achava-me na extremidade de uma vasta clareira de areia ondulante, com cerca de uma milha de comprimento, onde havia alguns pinheiros e numerosas árvores contorcidas [...] O pântano fumegava sob o sol ardente [...] De súbito, em meio aos juncos, uma espécie de tumulto: um pato bravo voou, soltando um grasnido, seguido por outros, e em breve, sobre toda a superfície do pântano planava uma grande nuvem de aves num alarido de gritos e de círculos no ar. (STEVENSON, 2010, p.101-102)

Stevenson explora a visualidade na sua narrativa, que vai sendo construída de

forma cinematográfica, deixando a simples descrição para destacar o movimento, dar

vida à paisagem e às coisas que vão acontecendo enquanto ele narra. Desta forma, o

leitor pode imaginar o barulho das asas do pato, seu grasnido e todo o alvoroço que as

outras aves fazem em seguida, pois o quadro descrito não é estático.

Portanto, como pudemos observar, todos os elementos que foram tratados ao

longo deste trabalho corroboram nossa afirmação de que o diálogo que Manguel

estabelece com o escritor escocês e sua obra não se dá apenas no plano temático, mas

também no formal. Como é um leitor de Stevenson, ele conhece não só a temática

daquele escritor, mas também seu estilo, as sutilezas que tornam a obra de Stevenson

única e, apoiando-se nisso, recria o universo de seus personagens e o do próprio escritor

de forma bem sucedida.

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Artigo aceito em julho/2013