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Jessé Souza

A modernização seletiva

Uma reinterpretação do dilema brasileiro

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Liquipc editorial: Airton Lugarinho (Supervisão editorial);

Rejanc dc Meneses (Acom panhamento editorial);Maria ('arla Lisboa Borba (Preparação de originais e revisão);Rainuiiida Dias (Editoração eletrônica); Márcio Macedo (Capa)

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 Impresso no Brasil

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FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

 Reitor  Lauro Morhy

Vice-Reitor  Timothy Martin Mulholland

E d i to r a U n i v e r s id a d e d e B r a s í l i a

 Diretor  Alexandre Lima

C o n s e l h o  E d i t o r i a l

Alexandre Lima, Airton Lugarinho de Lima Camara,Estevão Chaves de Rezende Martins, José Maria G. de

Almeida Júnior, Moema Malheiros Pontes, Reinhardt AdolfoFuck, Sérgio Paulo Rouanet, Sylvia Ficher.

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 Para Lisia

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Sumário

Prefácio, 9

INTRODUÇÃO, 11

P r i m e i r a  P a r t e

S i n g u l a r i d a d e , s e l e t i v i d a d e  e  r e f l e x i v i d a d e  d o

DESENVOLVIMENTO OCIDENTAL

CAPÍTULO 1

MA X W EBE R E A SINGULARIDADE DA CULTURA OCIDENTAL, 1 9

C ultura normativa ou reificação do m undo ?, 35

CAPÍTULO 2 NORBERT E l ia s   e   a   s e l e t i v i d a d e   d o   p r o c e s s o   c i v i l i z a t ó r i o  

OCIDENTAL, 4 3

O processo civilizatório, 43

A seletividade do processo civilizatório, 52

CAPÍTULO 0 3A SINGUILARIDADE OCIDENTAL COMO APRENDIZADO REFLEXIVO:

JÜ R G E N H A B E R M A S E O CONCEITO DE E SFERA PÚBLICA, 59

Gênese da esfera pública, 59

O conceito dua l de sociedade, 68

O direito com o m ediador entre sistema e m undo da vida, 83

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8 Jessé Souza

Ca p í t u l o  4

C HARLES TAYLOR E A TEORIA CRÍTICA DO RECONHECIMENTO, 9 5A crítica ao naturalismo, 95

A configuração valorativa do Ocidente, 104

A dimensão sociológica e política do reconhecimento, 113

S e g u n d a  P a r t e

Ca s o s  c o n c r e t o s  d e  s e l e t i v i d a d e  d o  p r o c e s s o  d e  m o d e r n i z a ç ã o  o c i d e n t a l

Ca p í t u l o  5

O c a s o  d o s  Es t a d o s  U n i d o s , 129

Ca p í t u l o  6

O c a s o  d a  A l e m a n h a , 143

Ca p í t u l o  7

O c a s o   b r a s i l e i r o   c o m o   v i s t o   po r   n o s s a   s o c i o l o g i a   d a

i n a u t e n t i c i d a d e , 159

Sérgio Buarque e as nossas raízes ibéricas, 161

Raimundo Faoro e o conceito de patrimonialismo, 168Roberto Damatta e a vertente culturalista da nossa sociologia dainautenticidade, 183

Ca p í t u l o  8

Uma in t e r p r e t a ç ã o a l t e r n a t i v a d o d ile m a b r a s i l e ir o , 20 5 

Gilberto Freyre e a singularidade cultural brasileira, 209

A modernização seletiva, 252Referências  bibliográficas, 2 7 0

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Prefácio

Todo livro ou produção intelectual é produto de diálogos e interações pessoais, alguns mais outros menos conscientes. No casoespecífico deste livro, minha dívida com algumas pessoas, colegase instituições é especialmente significativa. De certo modo fui levado a um “acerto de contas com minha consciência anterior”, namedida em que compartilhava pressupostos fundamentais com aleoria e a interpretação sobre o Brasil que critico neste trabalho. Nesse sentido, a contribuição generosamente crítica de alguns colegas, como Sérgio Costa, Thomas Leithäuser, Antônio SérgioGuimarães, Simon Schwartsman e Marcos Chor Maio, que leram partes deste trabalho, muito me ajudaram a reformulá-lo e aperfei-çoa-lo até chegar à forma atual. Desnecessário dizer que a responsabilidade dos erros é só minha.

O longo tempo de elaboração da versão final exigiu seis meses.adicionais de pesquisa, tornados possíveis pelo apoio do Departamento de Sociologia da UnB, especialmente dos colegas e profes-sores, Vilma Figueiredo, Luis de Gusmão, Stella Grossi Porto eEnrico Santos. À Fundação Humboldt devo o apoio à temporada de

 pesquisa e ensino na Universidade de Bremen, Alemanha Federal.O DAAD e a Capes ajudaram no financiamento de viagens decurta duração também a Alemanha Federal.

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Introdução

O tema central deste livro é a discussão dos pressupostos da-quilo que considero a interpretação dominante dos brasileiros sobresi mesmos, seja na dimensão da reflexão metódica, seja nas suasmanifestações na nossa prática social. Essa auto-interpretação serádenominada, para nossos propósitos, de nossa “sociologia da inau-tenticidade”, na qual a idéia de um Brasil modernizado “para inglês

ver”, uma modernização superficial, epidérmica e “de fachada”ganha corpo. A concepção de uma modernização inautêntica articula-se de acordo com vários temas que se relacionam como uma“síndrome”, ou como uma problemática de questões que se pressu põem e se relacionam entre si de forma íntima e quase necessária.

Como iremos ver, a sociologia da inautenticidade articula,como seus temas invariantes e centrais, os conceitos subseqüentes

de herança ibérica, personalismo e patrimonialismo. Esses conceitosformam um sistema inter-relacionado com poderosíssima influênciasobre o nosso pensamento social, vale dizer, sobre nossa reflexãosobre nós mesmos, assim como sobre nossa vida prática e institucional.

A concepção que nos guiará aqui não corresponde à noção dosenso comum segundo a qual idéias  são entidades externas às práticas sociais.  Segundo essa concepção, seria constitutiva da nossa

atitude natural1 perante o mundo, a noção de que idéias existemindependentemente das coisas lá fora ,  como se estas se referissemmeramente ao mundo material fo ra de nós sem, no entanto, influên-

1 Sobre a influência do “naturalismo” na prática científica, ver cap. IV da parte Ideste livro.

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Jussé Souza

c i á - l o ou pa r t i c i pa r    ativamente para o fato de o mundo material

externo especialmente o social construído e compartilhado peloshomens  ser precisamente este que existe  e não qualquer outro que

 poderia ter existido em seu lugar. Ao contrário, partiremos do pressuposto  de que existe uma íntima imbricação entre idéias e práticas

e instituições sociais, de tal modo que estas não podem ser conce bidas sem a ação daquelas.

Uma segunda ilusão objetiva de nossa atitude natural no sensocomum é nossa percepção de que valores são criações subjetivas,estando, nesse sentido, à disposição  da faculdade de escolha dosagentes. É claro que, quando pensamos duas vezes, percebemosque valores são criações intersubjetivas e, dessa maneira, impõem-se como uma realidade objetiva a cada um de nós. Mas pouco refletimos no senso comum. A imensa maioria de nossas ações nascem do hábito e de estímulos à ação localizados em algum pontoliminar entre consciência e inconsciência. Isso significa que o agir

consciente exige esforço, um esforço metódico de esclarecimentodas idéias e dos móveis que nos guiam. Liberdade de escolha econduta racional da vida só existe, em sentido rigoroso, no últimocaso.

Problemático para nossos propósitos aqui é o fato de essas ilusões do senso comum não se limitarem a essa dimensão e invadirem, inadvertidamente, a prática científica. Desse modo encontramos abordagens científicas naturalistas,  ou seja, concepçõescientíficas que não refletem adequadamente sobre os pressupostosde sua reflexão e se apropriam, na esfera da ciência, das ilusõesobjetivas do senso comum.

Estou convencido de que precisamente isso acontece com nossa sociologia da inautenticidade. Fato que me levou a dedicar todaa primeira parte deste livro à função de esclarecimento de pressu- postos. Nesta parte discuto, basicamente, quatro autores: Max We-

 ber, Norbert E lias, Jürgen Habermas e Charles Taylor. Nenhumdesses autores foi escolhido pelo seu valor intrínseco (apesar desteser inegável em todos os casos), mas pela possibilidade de extrairmaterial para o esclarecimento de pressupostos que percebo comoinadequadamente desenvolvidos por nossa sociologia da inautenti-cidade.

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A m odernização seletiva   13

Utilizemos alguns exemplos de modo a esclarecer ao leitor a

necessidade do procedimento adotado. Quando Sérgio Buarque deHollanda - para nós se não o fundador, certamente a figura maisinfluente, precisamente pelo seu singular talento e sofisticaçãoanalítica do que estamos chamando de nossa sociologia da inau-tenticidade - refere-se a Portugal, para ele nossa influência maiscontinuada e profunda, como sendo, ao lado de outros países, umadessas zonas fronteiriças “de transição, menos carregada, em alguns casos, desse europeísmo que, não obstante, mantém como um patrimônio necessário”,2não está, certamente, sendo incorreto. Noentanto, ele está sendo impreciso em relação ao ponto central detodo o seu argumento no Raízes do Brasil.

Imprecisões são inevitáveis em qualquer estudo. Uma imprecisão em relação ao argumento nuclear de uma teoria tem no entanto,as mais graves conseqüências. Em nenhum ponto do livro é definido o que é '‘europeísmo”, nem muito menos, o que Portugal tem de

semelhante ou de dessemelhante em relação a essa tradição. Emalguns instantes temos a impressão que o “outro” de Portugal é atradição calvinista ascética, em outros a própria Espanha. Em todosos casos o argumento de Buarque é convincente, elegante e sofisticado. No, entanto,- no decorrer de todo o livro ele é, também, im preciso. Creio que essa imprecisão é a causa última do fato deBuarque perceber sempre continuidade do personalismo português, por exemplo nas revolucionárias mudanças do Brasil da primeirametade do século XIX, em vez de descontinuidade e novidaderadical.

Essa crítica será aprofundada, em detalhe, no capítulo corres pondente, mas a ajuda de Max Weber, cuja genealogia do racionalismo ocidental merece um capítulo próprio na primeira parte dolivro, será fundamental aos nossos propósitos. Cabe distinguir aqui,sem imprecisões, a diferença fundamental entre um individualismo

empírico, comum a todas as épocas e regiões do planeta, das condições e conseqüências do individualismo moral,  produto da Euro

 pa moderna e burguesa. As condições específicas de articulaçãoentre essas idéias e sua institucionalização pode ajudar a esclarecer 

Sergio Buarque de Uollanda,  Raizes do Brasil.  São Par.o: Companhia das

1*1 ras, 1999, p. 31 .

2

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Jessé Souza

de que modo esse produto datado e circunscrito à sua gênese pode

desenvolver-se em outras regiões do globo.Ainda um outro exemplo. Quando Raimundo Faoro contrapõe

o desenvolvimento abortado, posto que patrimonial, da modernidade entre nós, o contraponto comparativo supoe um desenvolvi-mento singularíssimo,, o dos Estados Unidos da América, como seeste fosse o desenvolvimento ocidental enquanto tal. Os EUA sao a

única nação que logrou se desenvolver sem a presença marcante doEstado como regulador da vida social e econômica. O Estado in-terventor e atuante foi, sem dúvida, uma realidade tardia nos EUA.O mesmo não é válido, no entanto, seguramente com gradações peculiares, para nenhum outro caso de desenvolvimento capitalistaconhecido. Como a noção de patrimonialismo também é imprecisae tende a se confundir com a pura e simples intervenção reguladorado Estado na vida social, a presença do Estado enquanto tal passa aser sinônimo de patologia social. Descura-se, nesse esquema, que o

contraponto não é válido por ser excepcional, o qual dá o mote,inclusive, para um tema importante da historiografia e da sociologia modernas, qual seja o tema da excepcionalidade americana,uma viva controvérsia desde a obra máxima de Tocqueville sobre oassunto.

 Nesse sentido, além de determinarmos o que marca a singularidade européia e ocidental, torna-se necessário enfatizar a varie-dade e multiplicidade histórica nas quais esse desenvolvimento serealizou em cada caso particular. A obra de Norbert Elias em com- binação com o argumento weberiano nos pode ajudar a percebei asrazões e as precondições dessa multiplicidade. A feição nacional decada forma de desenvolvimento capitalista afirmou-se, na realidade, de forma extremamente peculiar dados os condicionamentos particulares, a estrutura de classes peculiar, as reações internas eexternas ao contexto nacional, etc. A construção de “O” desenvol

vimento capitalista e democrático que reúna em si todas as características mais importantes de processo tão multifacetado é ilusória econduz a equívocos graves como veremos em detalhe.

 Na realidade, nenhum desenvolvimento nacional específicologra reunir todas as virtualidades fundamentais do que chamaríamos hoje de “cultura ocidental”, nem mesmo na sua “versão dou-rada" do excepcionalismo americano. Essa convicção levou-nos à

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A m odernização seletiva   15

leitura de uma segunda parte do livro sob a forma de análise de

desenvolvimentos alternativos, dentre os quais, além dos EstadosUnidos e da Alemanha, incluímos o caso brasileiro destarte suaíorte seletividade em termos comparativos. Quisemos, com esse

 procedimento, ressaltar a importância de criticar-se a noção, implícita na nossa sociologia da inautenticidade, de que a singularidadecultural brasileira se situa aquém e além dp impacto da modernidade ocidental. Nossa tese, apesar da seletividade já aludida, aponta para a tese inversa.

A sociologia do patrimonialismo de um Raimundo Faorocompartilha com a sociologia do iberismo e personalismo de Buar-que premissas fundamentais e guardam entre si um vínculo decontigüidade e continuidade surpreendentes. Também a “sociologia do dilema brasileiro” de Roberto DaMatta parece ser uma versão culturalista do mesmo ponto de partida teórico. Apesar da articulação de teóricos que proponho ser heterodoxa - Roberto

DaMatta, por exemplo, é associado antes a Gilberto Freyre do quea Sérgio Buarque ou a Raimundo Faoro creio que a filiação aqui proposta, como veremos com maior detalhe, é mais convincente.DaMatta continua, na verdade, a tradição do personalismo segundoum registro próprio, e a tese do patrimonialismo é, como expressamente admitida pelo autor, percebida como um pressuposto desuas análises.

Já a minha proposição de uma leitura alternativa da singularidade cultural e social brasileira se apóia, em parte, numa reconstrução do argumento de Gilberto Freyre. Apesar de perceber que ainterpretação dominante sobre o autor o enquadraria precisamentenuma tradição de continuidade em relação ao personalismo e ibe-rismo, acredito ser possível demonstrar que uma leitura alternativanão só é possível, mas também descobre aspectos antes encobertosdo que revelados pelas abordagens mais tradicionais. Essa recons-

trução pretende ser, sem dúvida, seletiva e evita algumas conse-quencias indesejáveis do holismo organicista de Freyre.Outros dois autores foram incluídos na primeira parte por mo-

tivos que ainda necessitam de esclarecimento. Jürgen Habermas étematizado dado ao fato de ser o teórico mais importante das condições estruturais de funcionamento da esfera pública moderna.Essa discussão possibilita a tematização, sem dúvida em caráter 

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Jessé Souza

meramente tentativo e provisório, da atualidade política brasileira a

 parte da expansão da esfera pública nas últimas três décadas, demodo a criticar a concentração da prática política baseada na sociologia da autenticidade na discussão das condições de possibilida-de de Estado e mercado. A novidade temática e conceituai haber-masiana   permite a consideração de uma terceira instituição 

 fundamental da modernidade ocidental  com lógica e objetivos próprios: a esfera pública.

A presença do quarto autor analisado, o cientista político e fi-

lósofo canadense Charles Taylor, deve-se a outras razões. Taylorfoi, talvez, a inspiração máxima dos temas analisados nesse livro.A começar pela concepção do papel das idéias na ciência e na prá-tica política, passando por sua crítica do naturalismo na práticacientífica, até sua presença em cada um dos temas que serão analisados separadamente. Sua relação com Weber é de complementa-riedade e possibilita tornar várias intuições weberianas operacio

nais segundo aspectos e dimensões não levadas a cabo pelo próprioWeber. Sua visão da especificidade da modernidade ocidental permite perceber contribuições nacionais singulares e evita visõestotalizadoras simplificadas. Finalmente, sua releitura do tema he-geliano do reconhecimento não só inaugurou uma escola internacional de crescente prestígio, como também permitiu perceber emnova dimensão os temas centrais da diferença, do multiculturalismoe do aprofundamento das aporias da prática e teoria democráticas.

Finalmente, cabe ressaltar, para evitar mal-entendidos, que não pretendi fazer uma história do pensamento social brasileiro. Nãohouve nenhuma pretensão de reunir, por ordem cronológica, os

 principais teóricos da formação social brasileira, nem sequer dis-cutir todos os comentadores dos próprios autores analisados aqui.O interesse que persegui neste texto foi sistemático. Pretendi defender uma tese e a escolha do material, intensiva e extensivamen-

te, obedeceu a esse critério pragmático. Nada ficou mais longe domeu interesse do que a pretensão de ser exaustivo. Estou cons-ciente de que várias das idéias aventadas neste trabalho são meramente provisórias e tentativas, especialmente na sua conclusão,necessitando de correção e complementação. É esse aprendizadodialógico que gostaria de estabelecer com o leitor.

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Parte I

Singularidade, seletividade e

reflexiv idade do desenvo lv im en to

ocidental

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Capítulo 1

Max Weber e a singularidade dacultura ocidental

É certamente incorreto imaginar a importância da esfera religiosa para Weber como uma inversão da causalidade econômicamarxista. Tal saliência para Weber não é causal, mas sim heurística.  Sendo o fundador da sociologia compreensiva, que procura ainterpretação das ações individuais a partir do sentido dado peloagente, nada mais natural que o interesse pela esfera social - emque identificou a gênese da produção do sentido  social por excelencia durante milênios - tenha tido a primazia do seu interesse

genético e compreensivo.Procurarei fazer uma leitura neo-evolucionista da sociologia

religiosa weberiana de modo a perceber onde Weber localiza a superioridade evolutiva ocidental nos campos moral e cognitivo.Esse ponto vai ser fundamental para que possamos compreender o que constitui a modernidade e onde reside sua validade universal. O neo-evolucionismo weberiano, como veremos, é formal e não

material, ou seja, pretende-se universalidade apenas para as estru-turas de desenvolvimento. Os conteúdos destas podem ser, ao con-trário, particulares. As estruturas de desenvolvimento que nos inte-ressam se referem tanto às formas de consciência (moral ecognitiva) individuais, como às concepções de mundo societárias.

Temos aqui, portanto, a junção das perspectivas ontogenética(desenvolvimento individual) e filogenética (desenvolvimento

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Jessé Souza

societário ou da espécie). Esse tipo de leitura pode ficar mais com-

 preensível ao  leitor contemporâneo se nos lembrarmos das suasafinidades com  a psicologia do desenvolvimento cognitivo de Piaget ou Kohlberg. Assim, a racionalização interna à esfera religiosa p o d e   percebida como uma forma de resolver o dilema da inter-ação do homem com os meios social e natural. Esse processo deaprendizado pressupõe um aumento do grau de consciência e reflexividade sobre a realidade que nos cerca, assim como do grau deautonomia da consciência moral que nela atua.

 Nesse contexto, não pretendo examinar todo o conjunto defatores materiais e ideais que tenham desempenhado de algumaforma um papel relevante nessa transição, concentrando-me nadiscussão da especificidade do desenvolvimento religioso ocidental, visto que, segundo penso, a racionalização religiosa já propiciaelementos suficientes para a demonstração da especificidade dodiagnóstico weberiano do desenvolvimento ocidental. O peso par

ticular da variável religiosa nesse processo - sem que com isso seesteja pleiteando uma dominância dessa esfera em relação a outrasnesse processo de transição - deve-se ao fato de nas condições daconcepção de mundo tradicional em que a “doação de sentido aomundo” tem fundamentos fortemente religiosos, uma mudança deconsciência ser impensável sem uma contribuição especificamentereligiosa para a mesma.1

O significado da especificidade do desenvolvimento ocidentalcomo fio condutor de suas análises é enfatizado por Max Weber já.na primeira frase do prefácio ao conjunto de estudos de sociologiareligiosa.

 No estudo de qualquer problema de história universal, um filhoda moderna civilização européia sempre estará sujeito à indagação de qual a combinação de fatores a que se pode atribuir olato de na civilização ocidental, e somente na civilização ocidental. haverem aparecido fenômenos culturais dotados (como

WolfgangSchluchter, Die E n t w i c k l u n g d e s O k z i d e n t a l e n R r a i o n a l i s m u s , ,  1979, p. 254.

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A modernização seletiva   21

 pelo menos queremos crer) de um desenvolvim ento universal 

em seu valor e significado.2

Apenas no Ocidente temos ciência empírica, música racional,imprensa, Estado e, sobretudo, a forma econômica do capitalismo.A atenção de Weber dirigi-se à genealogia desse processo: por queapenas no Ocidente, melhor, por que apenas no Ocidente modernotemos a vitória daquilo que Weber chama “racionalismo da domi-nação do mundo”?.3  Essa questão confere o impulso para as suas

abrangentes investigações comparativas em sociologia da religião.Weber não pretendeu com esses estudos, com certeza, desenvolveruma “teoria geral” sobre todas as grandes civilizações. Os estudossobre as religiões orientais devem servir apenas como “contrapartida comparativa” de modo que apenas os aspectos que estão emcontradição com o desenvolvimento ocidental e, portanto, passíveisde enfatizar sua especificidade, são objeto da atenção de Weber elimitam, desde o início, o campo de estudo.

Esses estudos, portanto, não pretendem ser análises completasde culturas, mesmo que breves. Pelo contrário, eles procuramdestacar propositadamente em cada cultura aqueles aspectos nosquais diferia e difere da civilização ocidental. Orientam-se, pois,definitivamente para os problemas que parecem importantes para a compreensão da cultura ocidental, deste  ponto de vista.Tendo em vista esse objetivo, não parecia possível qualquer

outro procedimento. Mas, para evitar mal-entendidos, deve-sedar uma ênfase especial à limitação do citado objetivo.4

Weber preocupou-se, inicialmente, com a influência diferencial das doutrinas religiosas sobre a conduta prática. Essa direção darelação causal foi perseguida no seu texto seminal sobre “a ética protestante e o espírito do capitalismo”. Mais tarde, no conjunto de

textos que tratam da ética econômica das grandes religiões mundial. T e mos também a consideração da relação causal contrária.5

2Max Weber, Gesamm elte Aufätze zur Religionssoziologie, v.  I, p. 1.

3 Idem, ibdem. p. 534.

4  Idem, ibdem , p.13.

5  Idem, ibdem , p.12.

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Jessé Souza

 Nesses textos, temos, por um lado, em contraste com a “ética pro-

testante, os trabalhos sobre as religiões mundiais orientais, e,numa relação complementar àquele trabalho pioneiro, o estudosobre o judaísmo antigo.

Pode-se imaginar as duas direções da relação causal que estamos halando, a meu ver, da seguinte forma: por um lado temos osimpulsos psicológicos, religiosamente determinados da conduta devida prática, especialmente da conduta econômica, e, por outro,encontramos a relativa autonomia e a positividade específica do

nível econômico. Este último é pré-formado por dados econômico-históricos e económico-geográficos que são independentes dequalquer determinação “interna” da ação econômica e influenciam, por sua vez, o ethos  econômico prático. Tendo em vista a dificuldade de determinação de todos os fatores políticos, econômicos oueconomicamente determinados que influenciam a ética religiosadecide Weber tomar a estratificação social6 ou, melhor dizendo, os

 principais elementos da conduta prática não religiosamente motivada dos estratos sociais que, na realidade, influenciaram e portaram as éticas religiosas, como uma espécie de “representantes” deIodas as determinações socioeconómicas da ação religiosa.

A noção central para a interpretação dessa complexa multicau-salidade é o conceito de “afinidade eletiva” ( Wahlvenvandschaft).Esse conceito permite a Weber, em distinção por exemplo em relação a Marx, tratar das relações de reciprocidade entre as diversas

esferas da sociedade sem reduzir uma a simples funções de outras,assim como evitar premissas teleológicas e de filosofia da históriatípicas do evolucionismo do século XIX. Em vez necessidadesou funções refere-se Weber sempre a “chances” ou “probabilidades". Também em contraposição ao marxismo ortodoxo não existenenhum vínculo a priori  entre o mundo material e simbólico, ouseja, entre idéias e interesses. Também aqui fala Weber apenas de

“chances”.Decisivo, no entanto, para os nossos interesses aqui é a sua re-cusa  do evolucionismo sociológico clássico ao criticar o normati-vismo das etapas sucessivas e evitar qualquer noção de necessidadehistórica. A minha recepção da sociologia das religiões weberiana

6  Idem, ibdem, p.239

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A m odernização seletiva   23

vai privilegiar, precisamente, sua antecipação, neste campo, das

teorias assim chamadas “neo-evolucionistas” do século XX. Asinterpretações evolucionista e neo-evolucionista da teoria weberia-na foi levada a cabo nas últimas três décadas por FriedrichTenbruck, Wolfgang Schluchter e Jiirgen Habermas, o que contri

 buiu decisivamente para a reposição de Max Weber no centro dodebate sociológico atual e estimulou a releitura e reinterpretaçãodesse clássico a partir de uma visão de conjunto das suas teses principais.7

Segundo a reconstrução da sociologia religiosa weberiana a partir dos pressupostos neo-evolucionistas de uma lógica do desenvolvimento,8  pode-se perceber a progressão das concepções domundo - e das estruturas de consciência correspondentes - comoum movimento que parte da concepção de mundo mágico-monista,

7 A interpretação weberiana de W. Schluchter ocupa uma posição intermediáriaentre as interpretações tradicionais de cunho anti-evolucionista, como podemosnotar nos trabalhos de Reinhardt Bendix, Günther Roth ou Johannes Winckel-mann, e a inovadora recepção evolucionista de Max Weber levada a cabo por Friedrich Tenbruck. Apesar de Schluchter concordar, em princípio, comTenbruck sobre o conteúdo evolucionista da teoria weberiana, discorda, por

outro lado, de três aspectos essenciais da interpretação desse último autor: I)inicialmente refuta a opinião de Tenbruck de que tenhamos em Weber uma teoria da formação e desenvolvimento de todas  as grandes culturas mundiais.

Contra esse “programa evolucionista máximo “defende Schluchter um “pro-grama mínimo” referente unicamente à singularidade do desenvolvimento ocidental; 2) também rejeita ele o lugar dominante, uma “astúcia” (List) das idéiasem relação aos interesses e ao mundo institucional; 3) finalmente, Schluchterrefuta ainda a seqüência necessária de etapas de desenvolvimento, o que marcasuapostura postura neo-evolucionista.  O objetivo de sua interpretação reconstrutiva édefinido, pelo próprio autor, como uma tentativa de enriquecer o ponto de pa rtida teórico weberiano a partir do diálogo com correntes teóricas contempo-râneas de modo a enriquecê-lo enquanto alternativa teórica.Ver WolfgangSch luchter, 197 9, p.1-14.

8

O  neo evolucionismo baseado na lógica de desenvolvimento distingue-se doevolucionismo tradicional na medida em que diferencia lógica de desenvolvi-mento  e dinâmica de desenvolvimento, no sentido de evitar-se a idéia de umasequência  necessária de etapas a partir de um critério hierárquico-normativoem fa vor de uma mera retrospecção de processos históricos contingentes. O primeiro distingue-se do último também por diferenciar as estruturas de des-senvolvimento dos seus conteúdos de modo que apenas as primeiras podem p re tender universalidade enquanto os últim os podem ser particulares.

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24 Jessé Souza

 passando pela teocêntrica-dualista, até a moderna concepção do

imanente dualismo.9 Esse processo reproduz a progressão da civili-zação ocidental como um movimento que parte do mito passando pela teodiceia até a antropodicéia. Irei tentar percorrer esse cami-nho por meio da racionalização religiosa de modo a explicitar os

 pressupostos da especificidade do desenvolvimento ocidental.Ao falar da gênese das religiões, Weber esclarece que não

 pretende tratar da “essência” da religião, senão indagar sobre ascondições e efeitos desse tipo de ação comunitária. De acordo com

o seu enfoque abrangente, o ponto de partida são sempre as vivências e representações subjetivas dos indivíduos-atores, ou seja, o“sentido” dado à ação pelos sujeitos Esse “sentido”, pelo menosnas primeiras manifestações da religião e da magia, é dirigido a“este mundo” criado com a expectativa de que as coisas possam “ir bem e que se viva longos anos”.10

O elemento religioso ainda se encontra entranhado em outros

aspectos da vida quotidiana, especialmente naqueles de naturezaeconômica. Esse é o reino do naturalismo pré-animista, no qualcoisas e significados ainda não se separaram e o “sentido do mundo” enquanto problema ainda não aparece. Apenas a maior ou menor quotidianidade dos entes é objeto da cognição mágica. O elemento apartado da familiaridade imediata do quotidiano é o queWeber chamará de “carisma”.11

O naturalismo pré-animista baseia-se na crença de que criatu

ras determinam e influenciam o “comportamento” das coisas ou pessoas habitadas pelo carisma. Esse é o núcleo da crença nos espí-ritos, segundo o qual o espírito representa sempre algo indeterminado e material. A etapa seguinte, do ponto de vista lógico, é aimaginação de uma alma que propicia a transição do pré-animismoao animismo em sentido estrito. Na crença nas almas, que pressu põe a prática dos magos, ocorre uma separação entre a idéia de

entidade sobrenatural e os objetos concretos, os quais, agora, passam a ser apenas habitados ou possuídos.

9Wolfgang Sch luch te r ,  R a tion a lism us d er W eltb eh errsch u ng , p . 9 -40 . Vertambém idem, 1979, especialmente p. 59-103.

10 Weber, W irtschaft und G esellschaft, p.245.

11  Idem , ib id em , p. 247.

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A m odernização seletiva 25

O desenvolvimento cognitivo seguinte representa um salto

qualitativo e implica a passagem do naturalismo ao simbolismo.O simbolismo pressupõe uma crescente abstração dos poderes so- brenaturais, dispensando, assim, qualquer relação com objetosconcretos. Decisivo para esse movimento em direção à impessoalidade da representação das forças sobrenaturais é a circunstância deque, "agora não apenas as coisas e fenômenos que estão aí e acon-tecem representam um papel na vida, mas também coisas e fenô-menos que significam algo e porque precisamente significamalgo” 12

Como enfatiza Godfrey Lienhardt, o simbolismo propicia aosujeito, pela primeira vez, uma forma de controle sobre o objeto daexperiência por meio de um ato de conhecimento,  levando a que sesupere a relação naturalista do homem em relação ao seu meio porforça da autonomização do conceito em relação à coisa.

Um animal ou o homem pré - re l ig ioso pode apenas r es i s t i r pass ivamente à exper i ênc ia do sof r imento e de ou t ras l imi t ações

impos tas pe l as suas condições de ex i s t ênc ia . O homem re l ig io

so, ao cont rár io , pode, a t ravés de sua capacidade de s imbol iza-

ção , de ce r ta fo rm a “ tr ansce nde r e dom inar” con segu indo , desse

modo, uma l ibe rdade em re l ação ao seu própr io meio imposs í

vel no p as sa d o 13

O aparecimento dos poderes sobrenaturais - almas, deuses edemônios - na sua relação com os homens, possibilita a constitui-ção da esfera ou do campo de ação religioso. A relação das divin-dades com os homens é, nessa fase de desenvolvimento, marcada pela relativa ausência de distância. Distância esta que, no momentodo ritual, desaparece completamente quando “o qualquer hora” setransforma no “agora”.14 A ausência de distância indica a existên-cia de uma mera “duplicação” entre o mundo das coisas e fenôme-

12 Idem, ib id em ,  p. 248.

13 Apud  Robert Bellah, “Religiose Evolut ion”,  Religion m ut Gesellschqftliche  Entweicklung  p. 274 . 

14 Idem. ib d e m ,  p. 278.

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26 Jessé Souza

nos e o mundo dos poderes sobrenaturais, denotando a existência

de uma concepção de mundo monista.15Essa circunstância leva a que a esfera religiosa nao possua

ainda nenhuma força propulsora capaz de canalizar a conduta prática para uma determinada direção. Ainda assim, pode-se falar deuma “ética mágica” no sentido amplo do termo, como Weber ofaz,16na medida em que, por força da proibição dos tabus, produz-se alguma forma de regulação das condutas. Essa primeira formade positividade religiosa possui uma eficácia apenas estereotipada,no sentido de que serve, antes de tudo, à proteção de interessesextra-religiosos, faltando ainda a referência a um “mundo” especificamente religioso.

Esse estado de coisas é decorrente do fato de o “desempenho”do simbolismo limitar-se ao mundo do ser, à distinção entre coisa econceito, cuja importância já foi enfatizada, e ainda não abranger adistinção entre ser e dever ser. Esse passo pressupõe, precisamente,

uma concepção de mundo dualista, a qual irá ser produto das religiões de salvação, e representa, em termos de lógica de desenvolvimento, um passo evolutivo decisivo em relação a uma concepçãode mundo mágica. Em lugar de uma simples duplicação, temosaqui uma efetiva dualidade, na medida em que, "o contrário domundo mágico, a esfera transcendental, especificamente religiosa,contrapõe-se à empírica, reivindicando para si uma positividade e

eficácia próprias. Mais ainda, a esfera transcendental passa a servista como a “mais importante”, implicando desvalorização daesfera empírica enquanto reino passageiro das criaturas. A “verdadeira” realidade passa a ser a do “além” em oposição à empírica, aqual vale, desde então, como passageira - nas religiões de salvaçãoorientais - ou como o reino do pecado - nas religiões de salvaçãoocidentais.

 Na introdução à ética econômica das religiões mundiais Weber

vincula esse processo de “autonomização” da esfera social religiosa à transformação peculiar do sentimento impulsionador fundamental da ação religiosa, o qual passa a ser o sofrimento. No iníciodo desenvolvimento do campo religioso o sofrimento era valoriza-

15 Schluchter, op. cit.,  1980 p. 15.

16 Weber, op. cit.,  1985 p. 264.

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A m odernização seletiva   27

do negativamente, como se pode observar pelo comportamento das

comunidades arcaicas em festividades, ocasiões em que os doentese sofredores, em geral, eram tidos como legitimamente punidos

 pelos deuses, sendo, portanto, objetos do ódio e do desprezo geral,não sendo aceitos como participantes nessas ocasiões. A religiãoservia então aos desejos dos poderosos e saudáveis de ver legitimada a própria felicidade.17

O caminho para a mudança radical dessa concepção começacom a distinção, relativamente tardia, entre a cura de almas, entendida como culto individual, e o culto coletivo, que cuida apenasdos interesses mais gerais da comunidade. A cura de almas preo-cupa-se com a questão da imputação causal da culpa do sofrimentoindividual, a qual foi assumida por dinastias de mistagogos ou

 profetas de uma divindade. A partir dessa especialização podemagora os especialistas vincular seus próprios interesses materiais eideais aos motivos e necessidades da plebe.

Um passo seguinte consuma-se com a construção de mitos desalvação do sofrimento continuado, os quais permitem, pelo menostendencialmente, uma interpretação racional do sofrimento. A matéria-prima original dessas construções são os mitos primitivos danatureza que, a partir de sagas de heróis ou espíritos intimamenterelacionados com fenômenos naturais, são interpretados comocultos de salvação. De uma maneira geral, foram formados a partirdas esperanças de redenção, uma “teodicéia do sofrimento”, emevidente oposição às teodicéias da felicidade anteriores, que se

 baseavam, ainda, em fundamentos rituais e não éticos. Com o novosentido do sofrimento, agora como sintoma de felicidade futura,abrem-se as portas para a conquista do imenso público de sofredores e oprimidos em geral.

Com a precedência da compreensão da religião como “teodicéia do sofrimento”, inclinam-se os ricos e poderosos a abraçar

outras fontes de legitimação da sua condição como, por exemplo, ocarisma do sangue. Os sofredores, ao contrário, saem em busca daidéia religiosamente motivada de uma “missão” confiada especialmente a eles.18

17  Idem, op. cit. ,  1947, p. 242.18

 Id em , ibidem, p. 248.

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28 Jessé Souza

A teodicéia do sofrimento, como resultado da crescente racio

nalização das concepções de mundo religiosas, substitui, comouma metafísica tendencialmente racional, as concepções de mundomíticas, abrindo espaço, dessa forma, para o desenvolvimento deuma ética em sentido estrito. O pressuposto dessa passagem é umoutro desenvolvimento cognitivo fundamental - como na transiçãodo naturalismo ao simbolismo - que permite, agora, a distinçãoentre as esferas do ser e do dever ser. Como conseqüência temosuma mudança radical na relação dos homens consigo mesmos, com

os outros e com seu ambiente. Desse momento em diante, constitui-se uma nova esfera moral, mais ainda, temos o aparecimento damoral, enquanto tal, como esfera autônoma com uma positividade

 própria, na medida em que suas finalidades se separam de todas asoutras finalidades mundanas.

Com a concepção de mundo dualista, por força da distinçãoentre o sagrado dever ser e o profano mundo do ser, constituem-se

duas esferas concorrentes e paralelas, abrindo espaço para uma“rejeição religiosa do mundo”, na medida em que o elemento em pírico da realidade profana passa a ser desvalorizado pelo dever sersagrado.

Uma primorosa análise das conseqüências e direções das rejeições religiosas do mundo é levada a cabo por Weber nas Considerações intermediárias à ética econômica das religiões mundiais. Todas as religiões de salvação, sejam ocidentais ou orientais, têmcomo base concepções de mundo dualistas, embora, certamente,com as mais distintas conseqüências.19 A diversidade dessas con

19 Dois aspectos parecem-me decisivos na análise das influências diferenciais daética religiosa sobre a condução da vida prática. Por um lado, temos um elemento imanente à mensagem religiosa, nomeadamente, a concepção da divin

dade. A investigação comparativa descobre um Deus pessoal e transcendenteno Ocidente e um Deus imanente no Oriente. Essa distinção, entretanto, ganhatoda a sua força apenas vinculada ao conteúdo da promessa religiosa e do caminho da salvação. Por outro lado, um elemento extra-religioso assume im portância central, nomeadamente os portadores sociais da ética re ligiosa . Aquiimporta saber que interesses ideais e materiais do estrato social em questãodeterminam a ética religiosa. Todos esses aspectos se condicionam mutuamente. Importa muito, por exemplo, se o estrato social portador da promessa edo caminho da salvação religiosa privilegia uma interpretação intelectual

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A m odernização seletiva   29

seqüências e influências sobre a conduta prática proporciona, até

mesmo, o fio condutor de toda a sociologia da religião weberiana,assim como explica o peso heurístico da esfera religiosa para aexplicação da especificidade cultural do Ocidente.

A resolução desse dilema é o núcleo do problema a ser enfrentado por toda teodicéia. Duas soluções extremas para essaquestão contrapõem-se aqui: uma solução mundana imanente euma solução mundana transcendente. O hinduísmo, para Weber,seria a solução mais conseqüente do ponto de vista imanente.

O mundo profano é uma mera parte do mundo sagrado, o que im plica ausência de estímulos ético-religiosos para modificá-lo.A solução transcendente mais conseqüente é a calvinista, comoveremos, e a conseqüência é a interpenetração ética do mundo emtodas as esferas da vida. Uma outra distinção fundamental paraWeber, na determinação das relações entre ética e mundo, é a oposição entre misticismo e ascetismo.

Os dois caminhos mencionados anteriormente são intramun-danos. Mas enquanto o primeiro é místico, o segundo é ascético.Para este último é importante a noção de ação, ou seja, uma concepção do fiel como “instrumento”-divino. No primeiro, o aspectofundamental é a noção de “estado”, ou seja, a visão do fiel como“vaso” da divindade, sendo percebido como em alguma forma de“união mística” com’este. Tanto o caminho místico como o ascético admitem também variantes extramundanas. A mística extra-

mundana implica “fuga do mundo”, como no caso dos monges budistas. Já a ascese extramundana, como no caso dos mongescatólicos da Idade Média, leva a uma radical diferenciação entrecomportamento cotidiano e extracotidiano. Ambos os caminhosextramundanos, no entanto, acarretam uma diferenciação extremaentre os virtuosos religiosos e os leigos, impedindo, portanto, aconformação ética da ação mundana.

A especificidade do racionalismo ocidental, para Weber, resulta da forma peculiar segundo a qual a religiosidade ocidentalsoluciona o seu dualismo específico. O dualismo na sua versãoocidental é potencialmente tensional, ou seja, ao contrário do dua-

(como no Oriente) ou prática (como no Ocidente) dos mesmos. (Ver Weber,op. cit.,  1947, p. 536-573).

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30 Jessé Souz a

lismo oriental, a ênfase é potencialmente mais ética do que ritua-

lística. Nesse sentido, abre-se a possibilidade de um conflito abertoentre a positividade ético-religiosa e as demais esferas mundanas.É esse o tema de “Considerações intermediárias ao conjunto deestudos sobre sociologia das religiões”.‘°

Apesar do calvinismo ter sido o desenvolvimento mais conseqüente dessa característica cultural, Weber identifica suas raízes no judaísmo antigo, o que explica de resto seu interesse especial noestudo do judaísmo. Nele Weber encontrou o primeiro passo na

direção de uma tensão entre ética religiosa e mundo que abriu caminho para a conformação ética deste último. Fundamental no casodo judaísmo antigo é a própria concepção de divindade. Jeová nãoé um Deus funcional qualquer, mas o Deus da guerra de uma pequena nação cercada de inimigos poderosos. A desobediência aJeová significava conseqüências políticas e militares imediatas.

Dois elementos ajudam a explicar sua força como divindade:

a) o caráter ético de sua mensagem por meio dos mandamentos quevisavam à constituição de uma conduta ética cotidiana; e b) o contrato (berith) sagrado e coletivo firmado entre Jeová e seu povocomo coletividade, e não como indivíduos isolados, o que favoreceu enormemente a pressão coletiva para sua obediência. Essasduas condições combinadas foram decisivas para a vitória sobre oscultos concorrentes e outras divindades.21

Fundamental para a vitalidade do componente ético implícito

no judaísmo antigo foi, para Weber, a atuação da profecia judaica.E que a constituição de um estamento sacerdotal, o qual exerciasua atividade religiosa em templos, tendia a propiciar uma ênfasena atividade de culto, o que era contrário ao ensinamento de Jeová.Apenas o componente ético da obediência irrestrita aos mandamentos interessava a este. E precisamente esse fato é que era lem

 brado com toda a insistência pelos profetas. A salvação só era pos

sível coletivamente e por meio do cumprimento estrito dosmandamentos divinos e não por meio de técnicas de salvação econtemplação.

20Este texto foi publicado em português com o título “Rejeições religiosas domun do e sua s direções”, idem, En saios de sociologia,  1979, p. 371-413.

 Id em,  1923, Gesamm elte Anfátze zur Religionssoziologie,  p. 126-149.21

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A m odernização seletiva   31

A novidade profética, portanto, não se dirigia ao “conteúdo”

da mensagem religiosa, a qual já havia sido sistematizada pelossacerdotes levitas no Tora.  O trabalho dos profetas era dirigido àradicalização do componente ético e seu efeito no comportamentocotidiano. Weber refere-se aos profetas éticos do judaísmo antigocomo os primeiros homens que haviam logrado se libertar do “jardim mágico” em que toda a religiosidade primitiva se inseria. Havia a tentativa de conformar as esferas mundanas segundo os mandamentos da ética religiosa. Ao profeta Jeremias, por exemplo, não

interessavam compromissos; as lógicas mundanas deviam conformar-se e subordinar-se à mensagem religiosa. Para Weber, boa

 parte da extraordinária sobrevivência dos judeus como povo-páriase deveu à eficácia de seu elemento ético.

O cristianismo primitivo e o medieval, herdeiros da tradição judaica, aprofundaram, por um lado, e inibiram, por outro, algumascaracterísticas que seriam constitutivas da cultura ocidental moder

na. O cristianismo primitivo contribuiu decisivamente para o universalismo da mensagem ético-religiosa. Esse componente já eraelemento central da noção de amor universal da pregação de Jesuse foi reforçado pela missão paulínia ao propiciar a constituição decomunidades universais e abertas, evitando o sectarismo judaico.Já o catolicismo medieval contribuiu com o racionalismo intelectual e jurídico das tradições grega e romana, as quais foram incor

 poradas pela Igreja.

O fator inibidor da herança ética no catolicismo medieval foiresponsável pela secundarização da tensão entre ética e mundo.E que o princípio da igualdade dos irmãos de fé foi interpretadocomo uma igualdade pré-social, a qual não estava prejudicada porqualquer forma de desigualdade concreta. Esse compromisso, aomesmo tempo, foi o pressuposto mesmo da força integradora docristianismo, ao mesmo tempo em que se abria possibilidade,

 pelo menos como idéia regulativa, para a “idéia” de igualdade concreta. O elemento tradicionalista do compromisso com os poderes ea lógica das esferas mundanas, no entanto, impediu uma conformação ética conseqüente da vida cotidiana.

 Nesse sentido, temos apenas com a revolução protestante um ponto de inflexão fundamental em direção a uma conseqüente interpenetração entre ética e mundo. Apesar do caráter tradicionalista

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32 Jessé Souza

da pregação luterana, já com Lutero e o luteranismo temos avanços

importantes em relação ao catolicismo. É que Lutero, ao traduzir aBíblia para o alemão, produziu a junção de duas noções bíblicas, anoção de “trabalho” (Tátigkeif)  e de “chamado divino” (Berufung  

 zit Gott ), na noção de “vocação” ( Beritf ). Esse passo foi decisivo para a transformação de uma noção de ascese extramundana, comoa católica medieval, em benefício de Uma noção intramundana damesma.

Se o trabalho era sagrado, então o fiel pode agradar a Deus de

sempenhando sua atividade cotidiana no mundo. No entanto, ainterpretação luterana do trabalho intramundano era tradicionalista.O fiel deveria cumprir suas obrigações cotidianas e aceitar em todos os sentidos a ordem mundana criada por Deus. Nesse sentido, anoção tradicionalista de vocação significava a aceitação das relações de trabalho já existentes e o compromisso com as estruturas patrimoniais de poder então vigentes. Desde então temos, a partirdessa constelação de fatores, duas características marcantes do“caráter alemão”: o sentimento de dever e a subserviência em relação à autoridade.22  Ao mesmo tempo, como iremos ver com maisvagar adiante, também essa concepção propiciou uma interpretação peculiar do “indivíduo” ocidental ao enfatizar a “dimensão interna”da personalidade.

Mas não é esse protestantismo tradicionalista que Weber temem mente quando fala da “revolução protestante”. A versão lutera

na do protestantismo é, ainda hoje, dominante na Europa central,inclusive Alemanha, e na Europa do norte, especialmente os paísesescandinavos. A vertente ascética e individualista do protestantismo, para Weber, teve sua origem especialmente na Inglaterra e nosPaíses Baixos, sendo depois transportada para os Estados Unidos,onde desenvolveram-se ao máximo todas as suas potencialidades.

A reinterpretação calvinista da reforma protestante adapta a

noção luterana de vocação no sentido de uma concepção ascéticade ativismo intramundano. Aqui o fiel é visto, tal qual judaísmoantigo, como “instrumento” divino e não mais como “vaso” dadivindade, como no luteranismo. No protestantismo ascético temosnão apenas a clara noção da primazia da ética sobre o mundo, mas

Ver, sobre esse tema, o capítulo 2 da parte II deste livro.22

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A m odernização seletiva   33

também a mitigação dos efeitos da dupla moral judaica (uma moral

interna para os irmãos de crença e outra externa para os infiéis).A coerência e a disciplina da influência do comportamento prático pela mensagem religiosa podem, então, ser muito maiores. O desafio aqui é o de a ética querer deixar de ser um ideal eventual e ocasional (que exige dos virtuosos religiosos quase sempre uma “fugado mundo” como na prática monástica cristã medieval) para tornarse efetivamente uma lei prática e cotidiana “dentro do mundo”.

O que está em jogo em termos de desempenho cultural é uma

 primeira experiência histórica de moldar eticamente o mundo e, deforma conseqüente, transcender o dualismo religioso por meio dasua realização prática na sociedade. O dogma mais característicodo calvinismo é a doutrina da predestinação .23 Este diz que apenasalguns homens são eleitos para a vida eterna, sem que se possa teracesso aos motivos que levaram Deus a fazer tal escolha. ComoWeber enfatiza, essa doutrina implica uma distinção radical tantoem relação ao catolicismo como ao luteranismo, na medida em queambos defendem não só uma outra concepção de divindade, mas,também, um conceito essencialmente distinto da piedade divina.

A doutrina calvinista da predestinação pressupõe uma compreensão tal da divindade que, bem no sentido que esta possui no Velho Testamento, implica um abismo intransponível entre Deus e oshomens, trazendo, como conseqüência, uma extrema intensificaçãoda experiência humana da solidão. Um outro efeito, talvez o mais

importante, é a eliminação de toda mediação mágica ou sacramental na relação Deus/homens. Para Weber, esta última circunstânciafoi absolutamente decisiva para a superação do ethos católico e, emcerta medida, também do luterano24  no sentido de que a ausênciade mediação determina o fechamento dos espaços de “compromisso”. O crente é deixado a si mesmo e apenas humildade e obediência em relação aos mandamentos da divindade podem decidir sua

salvação. A totalidade da condução da vida enquanto unidade é oque conta para que se alcance a salvação e não a soma de açõesisoladas.

23Weber, op. cit.,  1947, p. 90.24

 Idem, ib id em, p. 94-95.

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34 Jessé Souza

O patético isolamento individual cria, no entanto, uma sensação de insegurança insuportável para as necessidades emocionais

do homem comum. Para um virtuoso como Calvino não existiaesse problema, posto que ele estava seguro da própria salvação.Para os seus seguidores, no entanto, a questão da dúvida da própriaeleição ganha um significado central, propiciando a elaboração dadoutrina da “certeza da salvação” ( Bewarimgsgedcmke). Esta confere um sentido sagrado ao trabalho intramundano ao interpretá-locomo meio para o aumento da glória de Deus na 'ierra, de modo adar ao crente a segurança de que seu comportamento é não apenas“agradável a Deus” (gottgewollt ), mas, acima de tudo, “fruto diretoda ação divina” (gottgewirkt ), possibilitando a fruição do bem maiordessa forma de religiosidade, qual seja, a certeza da salvação .‘5

A noção de vocação ganha, assim, um novo entendimento, namedida em que passa a contar como “sinal da salvação”, mais ainda, como sinal da salvação a partir do desempenho  diferencial.O objetivo da salvação e o caminho para alcançá-la passam a exer

cer uma influência recíproca de tal modo que uma condução devida metódica religiosamente determinada pode aparecer.

Com isso temos não só a superação da concepção tradicionalista de vocação em Lutero, mas, também, do próprio ethos tradicionalista enquanto tal. Em lugar de uma percepção da salvação segundo a acumulação de boas ações isoladas, temos agora a

 perspectiva de que a vida tem de ser guiada a partir de um princí pio único e superior a todos os outros: que a vida terrena deve valerapenas como um meio (e o homem um mero instrumento de Deus)

 para o aumento da glória divina na Terra. Todos os sentimentos einclinações naturais devem subordinar-se a esse princípio, representando o protestantismo ascético, desse modo, uma gigantescatentativa de racionalizar toda a condução da vida sob um únicovalor.

o ascetismo puritano, como todos os tipos de ascetismo “racional”, tentava a habilitar o homem a afirmar e a fazer valer osseus “motivos constantes” especialmente aqueles que foram ad-

5Weber fala mais precisamente de caminho  para a orteza da salvação (op. cit.,  p. 110).

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A modernização seletiva   35

quiridos em contraposição aos sentimentos. Sua finalidade, aocontrário de algumas crenças populares, era habilitar a vida

alerta e inteligente, enquanto a tarefa imediata de anulação dogôzo espontâneo e impulsivo da vida era o meio mais impor

tante da ascese na ordenação da conduta dos seus adeptos.26

Ao contrário da ascese monástica medieval, que significa umafuga do mundo, temos aqui uma ascese intramundana que direciona toda a força psicológica dos prêmios religiosos para o estímulodo trabalho, segundo critérios de maior desempenho e eficiência

 possíveis. O elemento ascético age como inibidor do gozo dosfrutos do trabalho, sendo o desempenho diferencial compreendidocomo atributo da graça divina e um fim em si. A passagem domundo religiosamente motivado para o mundo secularizado, noentanto, é um ponto central e controvertido do diagnóstico webe-riano da modernidade.

Cultura normativa ou reificação do mundo?

A interpretação dominante, ao perceber a influência do capitalismo não apenas no mundo do trabalho ou na economia em sentido estrito mas também em todas as esferas da vida, defende a teseda “reificação” da vida em geral como conseqüência do processode secularização. Afinal, trata-se aqui, no sentido forte do termo,

de uma “recriação” do mundo na medida em que uma nova “racionalidade”, especificamente ocidental, passa a permear todas asesferas de atividade humana. Nesse sentido, Schluchter entendeque o significado cultural da ética protestante para a modernidadeocidental deve ser considerado antes no favorecimento por partedesta de um “espírito da reificação” do que de um “espírito docapitalismo”.27

Causas da reificação veria Weber, antes de tudo, na essencialnão-fraternidade do caminho da salvação do protestantismo ascético e na suspeita de divinização das criaturas contida em toda doa

26  Idem, ib idem,  p. 117.

27 Wolfgang Schluchter, op. cit.,  1979, p. 229.

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36 Jessé Souza

ção de valor para relações humanas. O efeito desse tipo de estudo

 psicológico leva ao que se poderia chamar de “dominação da im pessoalidade”. As relações intersubjetivas entre os sujeitos perdem,crescentemente, a sua característica emocional e, com isso, a pró

 pria peculiaridade das relações entre homens.

qualquer relação puramente emocional - isto é, não motivadaracionalmente - baseada em uma relação pessoal de um homemcom outro, facilmente cai, na ética puritana, assim como em

qualquer outra ética ascética, na suspeita de idolatria da carne.Em adição ao que foi dito, isto é mostrado bastante claramenteno caso da amizade pela seguinte advertência “It is an irrationalact and not fit for a rational creature to love any one further thanreason will allow us...It very often taketh up men's minds so ashinder their love to God” (Baxter: Christian Directory, IV,

28 p. 235). Encontramos repetidas vezes tais argumentos.

A reificação e a conseqüente atitude instrumental em relação asi e aos outros e à natureza seriam, portanto, resultados do específico caminho de salvação da ética protestante. A concepção demundo teocêntrica e dualista seria desvalorizada pela absolutizaçãodo ponto de partida do racionalismo da dominação do mundo motivado religiosamente, o que expressa o caráter autodestrutivo daética protestante. O mesmo mundo que foi “encantado” por meiodo simbolismo viria a ser, por força da necessidade do reconheci

mento das leis específicas que o regem, desencantado. Nesse contexto, seriam possíveis duas atitudes fundamentais de conformidade com as novas condições da época:29  os homens exclusivamenteinteressados no sucesso, seja sob a forma de poder ou dinheiro, eaqueles que procuram encontrar um equilíbrio entre sucesso e convicção ética. Essa última atitude só é possível para as existências

28Max Weber, op. cit.,  1947 I, p. 98-99.29A religião não desaparece simples e automaticamente no desenrolar desse pro cesso. Ela vive, agora como antes, da carência e das lim itações im postas àcapacidade interpretativa humana no seu sentido mais geral, as quais não podem ser sanadas pela ciência nem por esquemas de interpretação de fundo secular. Entretanto, como conseqüência do desencantamento do mundo, a religião e ncon tra-se na defensiva, sendo apenas uma alternativa entre outras de paradigma interpretativo.

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A modernização seletiva   37

que buscam definir-se na tensão entre o ser e o dever ser e entre arejeição do mundo e o reconhecimento da legalidade própria domundo desencantado.

As conduções da vida que privilegiam apenas a atitude orien-lada ao sucesso seriam precisamente os “últimos homens”, no sen-tido nietzschiano do termo apropriado por Weber, que renunciam aqualquer fundamentação ética para suas ações,30 os quais, nas palavras de Schluchter, promovem uma dominação “inconsciente” domundo.31 Uma atitude “consciente” de dominação do mundo exigi

ria a elaboração reflexiva da tensão, típica para as formas de consciência peculiares da concepção de mundo moderna nos termos deum imanente dualismo entre orientação para o sucesso e atitudeclica, ou seja, uma mistura bem temperada entre sucesso e moralidade. Trata-se, aqui, da necessidade típica de um antropocentrismodualista, ou seja, que se mantenha a tensão entre se. e dever ser, dereconhecer o conteúdo ético da problemática do autocontrole e dadominação do mundo e de pautar seu comportamento de acordocom essa dualidade necessariamente instável.

A partir da destruição da concepção de mundo dualista-teocêntrica teríamos, como única possibilidade de atitude ética, acondução consciente da vida enquanto personalidade a qual pressupõe a necessidade de escolhas morais e ações meditadas quelevam em conta as suas conseqüências na realidade.32 Desse modo,a antropodicéia no sentido weberiano pressuporia uma “antropolo

gia”, a qual, segundo Dieter Henrich, espelha uma doutrina dohomem como ser racional. Racionalidade significa aqui o impera-tivo de qualquer existência humana de se tornar uma personalidadena medida em que a corrente de decisões últimas que conferem, emultima instância, o sentido da individualidade de uma vida passa aser conscientemente executada e mantida.33

Os “últimos homens”, no sentido da “ética protestante”, seriam,ao contrário, aqueles que renunciam à escolha dos valores que

30Max Weber, 1947 I, p.204

31 W olfgang Schluchter, op. cit.,  1980, p. 36.

32Dieter Henrich, 1950,  Die G nmdla gen der wissensschafislehre Max Webers,

(mimeo.), p. 202.

33 Idem, ib idem,  p. 205.

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38 Jessé Souza

regem a própria vida, abdicando em suma à autodeterminação pela

 prática de uma crua acomodação aos estímulos pragmáticos exteriores.34 A nova concepção dualista do mundo, típica da modernidade desencantada, renuncia à noção de um além, o que justificariasua designação de “imanente”. Para Henrich, o homem que perdesua ligação orgânica com motivos religiosos só pode encontrar os“seus” ideais dentro do “próprio peito”.35 A concepção de mundomoderna continua dualista, na visão de Weber, precisamente pela

 permanência do confronto entre um mundo da causalidade natural

e um mundo “postulado” de uma causalidade compensatória defundo ético. No entanto, ao contrário do dualismo anterior, religiosamente motivado, temos agora um dualismo imanente,36  já que omundo da realidade ética postulada é pelo próprio homem desenvolvido acarretando, conseqüentemente, uma “responsabilidade” bastante peculiar com respeito à esfera ética.

Com a reificação do mundo, como conseqüência do processo

de desencantamento ou “desmagificação” (Entzauberung), teríamos a perda da capacidade de convencimento das éticas materiaisde fundo religioso e o aparecimento das precondições indispensáveis para o individualismo élico. A transição para o individualismoético fundamenta, até mesmo, a forma peculiar da auto-consciênciaocidental e, com isso, o significado específico do seu desenvolvimento cultural, cujo aparecimento se deve decisivamente, entreoutros fatores, ao poder reificador da mensagem protestante.

O desempenho civilizatório específico do racionalismo ocidental moderno foi o desencantamento do mundo. Esse ponto im

 plica na atualização mais conseqüente, até aqui na História, doconflito valorativo. Uma forma de consciência que, já nos inícios do racionalismo ocidental, encontrava-se formulada nocontexto da concepção de mundo helénica e que acompanhou ohomem de forma latente desde que ele começou a simbolizar

foi, na constelação do racionalismo ocidental moderno, definitivamente descoberta e radicalizada (...) Com isso, o aparecimento e o desenvolvimento do racionalismo ocidental moderno

34 Id em , ib idem,  p. 200.

35 Id em , ib idem,  p. 206.

36 W olfgang Schluchter, op. cit., 1980, p. 35-36.

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A modernização seletiva   39

 p arecem rep resen tar, para W eb er, um a ru p tu ra de p rinc íp io na

forma da consc iênc ia , ou se j a , um “desenvolv imento” das fo r

mas de consciência , cor respondendo, por sua vez , ao nível das

concepções do mundo , a um “desenvolv imento” t ambém dessas

úl t imas . No lugar dos deuses pessoais temos t 'gora os poderes

impessoais .37

Apenas o Ocidente consegue superar os limites de uma concepção de mundo tradicional e da forma de consciência que lhecorresponde. A aquisição de uma consciência moral pós-tradicionalé o que está em jogo na passagem da ética da convicção, típica desociedades tradicionais legitimadas religiosamente segundo umamoral substantiva, para a ética da responsabilidade, que pressupõecontexto secularizado e subjetivação da problemática moral. Esta passagem é “espontânea” apenas no Ocidente. O seu produto maisacabado é o indivíduo capaz de criticar a si mesmo e à sociedadeem que vive. Esse indivíduo liberto das amarras da tradição é o alfa

e o ômega de tudo que associamos com modernidade ocidental,como mercado capitalista, democracia, ciência experimental, filosofia, arte moderna, etc.

Contra essa posição dominante defende Richard Münch umainterpretação alternativa. Münch percebe a relação entre ética emundo não como desintegração daquela neste, mas sob a forma deuma “interpenetração” ética do mundo. A interpenetração significa

certamente a limitação da positividade própria a cada esfera sociala partir da influência ética modificadora. No entanto, também oinverso seria verdadeiro. Ao interpenetrar-se com as esferas práticas, os imperativos éticos tendem a influenciar-se pelos imperativos dessas mesmas esferas. Isso implica a interpenetração reciprocam entre ética e mundo.

É que a interpenetração entre ética e mundo não poderia servista como uma subordinação unilateral do mundo à esfera ética.

Em sociedades que já apresentavam graus significativos de diferenciação social, como a sociedade pré-moderna ocidental, só podemos falar de uma interpenetração recíproca entre ética e mundona medida em que as esferas mundanas se tornam éticas e a ética

37  Idem , 1979, p. 35.

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40 Jessé Souza

religiosa adquire, por seu turno, “relevância prática”. É precisamente essa relevância prática que possibilita e radicaliza seu efeitointramundano.

Para Münch, uma interpretação do processo de secularizaçãocomo a que Schluchter, por exemplo, propõe equivale a secundari-zar os elementos éticos do racionalismo da “dominação do mundo”. Münch demonstra como a cidade medieval ja havia criado as

 precondições para um processo de interpenetração recíproca entre

ética e mundo. É que a cidade medieval ocidental era, ao contrárioda cidade oriental, uma comunidade de cidadãos.  Esta última, aocontrário, era, antes de tudo, o centro da dominação patrimonial eapenas secundariamente um centro comercial e artesanal. Münchreleva, portanto, a possibilidade do desenvolvimento de um universalismo conseqüente nas esferas econômica, política e cultural a partir desse fundamento.

  Nesse sentido, a cidade medieval vinculava todos os cidadãosàs mesmas normas jurídicas, o que implicava no fato de a ordemsenhorial e patrimonial medieval sofrer, nos seus domínios, umarefração importante. Também na cidade surgiu pela primeira vez o

 Homo Oeconomicits,  com sua ênfase na continuidade, calculabili-dade e segurança nos negócios; o direito raciona! como forma deordenar a vida econômica; uma primeira forma de autonomia política, conquistada contra a dominação patrimonial; e, finalmente, a

revitalização da vida cultural, na medida em que se retoma a herança da antiguidade clássica, transformando-a em estímulo fundamental para a renascença italiana e o humanismo.

  A ênfase de Münch na importância da cidade medieval serve para demonstrar sua tese da interpenetração recíproca entre ética emundo. E que na cidade medieval já existiam pressupostos importantes da cultura ocidental antes mesmo do protestantismo ascético.

  A norma da eqüidade, por exemplo, que implicava universalizaçãoe igualdade na esfera econômica é um pressuposto da própria possibilidade de tornar o tráfico econômico normatizável segundoregras universalizáveis. Assim, não seria decisiva apenas a existência de uma ou outra característica, mas a interpenetração entre várias, como no Ocidente a partir da cidade e do universalismo cristão, que seriam responsáveis pela posterior construção de uma

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A m odernizaçã o seletiva   41

cultura normativa  com as características de ativismo, universalis

mo, racionalismo e individualismo.38De acordo com essa linha de raciocínio, a doutrina religiosa

 protestante ascética partiria do dado da existência de uma civilização comercial burguesa  direcionando sua doutrina a esse tipo devida econômica. Isso não implica no fato de a religião ter sido usada  para conferir substância moral à vida econômica. Esse fato significa apenas que a mensagem religiosa ascética se dirige àquelessegmentos citadinos e burgueses cuja condução de vida estava emconflito secular e constante com a ética tradicionalista da doutrinacatólica. Nesse sentido, levar em conta as necessidades desse estrato não significa subordinar   a mensagem religiosa às suas necessidades, mas direcionar   a doutrina religiosa a esse tipo de vidaeconômica. Essa referência da doutrina em relação as necessidadescotidianas desse estrato explica, precisamente, em que medida se pode lograr uma “moralização da economia”, moderando os estí

mulos à atividade econômica descontrolada e propiciando, pormeio do controle dos desejos e paixões, a entronização do princípioda responsabilidade individual e da conduta racional e metódica.

Esse aspecto é fundamental para a tese da interpenetração recíproca. E que, nesse novo quadro, o mundo secularizado das gerações seguintes não seria apenas regulado pelos estímulos empíricosde mercado capitalista e Estado racional-burocrático, como na teseda coisificação do mundo secular. Essas gerações seguintes seriamtambém influenciadas pela ética subjacente e já incorporada e materializada por essas instituições fundamentais. Assim, todo o potencial normatizador da vida contratual moderna, ancorado nomercado, e o respeito a direitos humanos generalizáveis, comoliase do Estado democrático moderno, remetem a esse contextomoral que é o pressuposto mesmo da existência dessas esferas.

Uma visão da modernidade secularizada como incapaz de

qualquer consenso ético descura, na opinião de Münch, nesse par-licular seguindo os passos de Talcott Parsons, o fenômeno da “generalização valorativa” típica da modernidade. Segundo essa tese, amodernidade secularizada implicaria a superação do particularismoetico e não da ética enquanto tal. Ao moderno sistema escolar e

38Richard Münch,  Die Kultur der Moderne,  1993, p. 96-127.

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4 2 Jessé Souza

  universitário caberia o ancoramento institucional possibilitador do

 princípio da generalização normativa e da autonomia da personalidade. Para Münch, é precisamente a constituição desse sistema profissional baseado na escola e na universidade que, em consonância com as necessidades do mercado e do Estado, permite amanutenção em escala ampliada da cultura normativa e do valor daauto-responsabilidade.39

Apesar de Münch conscientemente ir mais adiante, na sua argumentação em favor da permanência de uma cultura normativa

como pressuposto do mundo moderno secularizado, do que umainterpretação estrita da sociologia weberiana permitiria, essa discussão é interessante para nossos propósitos de várias maneiras.Inicialmente, ela lembra-nos que o arcabouço institucional domundo individualista e burguês moderno, se por um lado não pressupõe, necessariamente, uma cultura normativa substantiva, poroutro, é enormemente facilitado por ela. Depois, tal discussão per

mite um ponto de partida interessante para a análise dos diversoscasos empíricos de modernização que efetivamente ocorreram noOcidente. Esse ponto de partida nos permite, por exemplo, comparar experiências históricas concretas segundo a forma mais ou menos conseqüente na qual a cultura normativa da modernidade logrou se institucionalizar e permear o pano de fundo valorativo enormativo de cada sociedade singular. Com relação a esse último

 ponto, podemos examinar casos concretos alternativos de desen

volvimento ocidental, como efetivamente faremos na segunda partedeste livro, perguntando-nos sobre a articulação específica entrecultura normativa e padrões de institucionalização.

Acredito ser possível demonstrar que o caso brasileiro é umavariante peculiar dessa lógica de desenvolvimento, e não o “outro”dela, ou seja, um exemplo do sociedade intrínsecamente personalizada e pré-moderna, portanto, como defende nossa sociologia da

inautenticidade. E isso é verdade apesar do caro brasileiro apresentar um alto grau de seletividade comparativa, como veremosadiante.

39São precisamente as profissões que demandam maior auto-responsabilidade asque exigem maior tempo de permanência no complexo escola/universidade.

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Capítulo 2

Norbert Elias e a seletividadedo processo civilizatório ocidental

O processo civilizatório

A noção de civilização para Elias é, antes de tudo, uma gene-ralização que serve a uma função principal: expressar a autocons-ciência do Ocidente e legitimar sua superioridade em relação aoutras culturas.1 Civilização caracteriza tudo aquilo em relação aque a sociedade ocidental explicita sua autenticidade e singularidade e, acima de tudo, tudo aquilo em relação a que o Ocidente se

"orgulha”. Já esse ponto de partida o diferencia de Max Weber:não é um progresso da razão que caracteriza o Ocidente, mas umamera “progressão”, uma linha de desenvolvimento comandada pornecessidades de distinção social e prestígio. A dinâmica do processo civilizatório é vista, basicamente, como uma luta entre estratossociais e depois nações concorrentes por poder relativo.

Também ao contrário de Max Weber, o qual enfatizou a com paração do Ocidente com outras culturas, interessa a Elias, antes detudo, perceber a dinâmica interna do processo civilizatório do Ocidente.

Elias percebe o processo civilizatório ocidental como um con- tinuum, representando uma nova fase no desenvolvimento da auto-

1 Norbert E lias, Über den Prozess der Zivilisation,  1989, p. 1. Toda a discussão

a seguir e todas as citações serão feitas a partir dessa edição.

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4 4 Jessé Souza

consciência e da autolegitimação de uma cultura específica. Fases

anteriores do mesmo processo seriam, por exemplo, a separaçãoentre cristãos e infiéis, que enseja o surgimento das cruzadas comouma guerra de colonização e expansão. Já essa divisão traz em si eleva a um estágio posterior a lembrança de um passado comum,latino e cristão, que influenciou todos os grandes povos europeus.É a partir dessa herança comum que será possível pensar as naçõeseuropéias, a despeito das diferenças nacionais que serão muitoimportantes, como veremos, como constituintes de uma culturaespecífica.

Será precisamente essa unidade básica européia que ensejará anecessidade de uma língua comum aos estratos cultos das diversasnacionalidades: de início o latim, depois o italiano e, por fim, no

 período descrito por Elias, o francês.O ponto fundamental da argumentação de Elias é que o com

 portamento individual corresponde a certas formas de estrutura

social. Compreende-se o comportamento atual das pessoas, assimcomo a economia emocional relacionada a essa forma de comportamento, a partir da estrutura macrosocial que a determina. Seu ponto de partida é “sistêmico”, portanto, e não da teoria da ação.

Os aspectos estruturais que interessam a Elias para a explicação da transição da sociedade tradicional para a moderna têm basicamente uma dimensão socioeconômica por um lado e política, poroutro. Na dimensão socioeconômica temos como fundamental,como em Georg Simmel e Karl Marx, a intensificação da divisãosocial dó trabalho e o advento da economia monetária. Na dimensão política temos uma leitura muito pessoal de Elias (apesar delembrar Max Weber em vários aspectos essenciais) do processo decentralização política a partir do advento do Estado nacional.

A sociedade feudal ou estamental obedecia a um princípio deorganização política que Elias denomina de “mecanismo da des

centralização”. Esse mecanismo é típico de uma sociedade baseadana economia natural e com pouca divisão social do trabalho, naqual a terra e não o dinheiro é o elemento fundamental da dominação política.

Apesar de o ímpeto de conquista de novas terras ter estadosempre presente nessa fase histórica, sendo até mesmo a obsessãoonipresente dos senhores feudais, as conquistas territoriais eram

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A modernização seletiva   45

estruturalraente passageiras. O “mecanismo de descentralização”

age de modo a produzir sempre novas ondas de fragmentação dosterritórios conquistados pela necessidade mesma ua delegação deautoridade. O representante do líder militar conquistador irá sem- pre tentar transformar seu domínio direto sobre a nova posse demodo a torná-la direito hereditário, de tal modo que a conquista e a|preservação de territórios têm de ser renovadas, com enorme esforço, a cada geração. É essa circunstância estrutural que explica ocaráter fragmentário da sociedade feudal.

Com o desenvolvimento paulatino da divisão social do trabalho e da economia monetária vamos ter a possibilidade de umamudança estrutural nas formas de dominação. Afinal, é a partir deum aumento da interdependência intersubjetiva ocasionado pelodesenvolvimento da divisão social do trabalho, quando trabalho edistribuição se autonomizam, quando os elos de ligação social sealongam, que se necessita do dinheiro como meio universal de

troca. A sociedade expande-se, por assim dizer, internamente eaumenta sua densidade.A substituição da economia natural pela monetária, por sua

vez, vai permitir, por meio da cobrança de impostos, a inversãocompleta do princípio fragmentador anterior. O Estado cobrador deimpostos vai poder pagar a seus representantes e delegados emmoeda, o que os mantém atrelados e dependentes do interesse doEstado. Agora o domínio sobre grandes territórios e populações

 passa a ser não só possível mas crescentemente funcional para adominação política, permitindo a acumulação e concentração derecursos sociais sem riscos de fragmentação.

 Nesse novo contexto entra em cena o “mecanismo centralizador” que terminará por levar à criação dos Estados nacionais euro peus. A formação paulatina desses monopólios de dominação éexaminada por Elias antes de tudo no caso exemplar da França. No

entanto, o mecanismo centralizador toma todo o continente, levando a que o jogo de poder saia do seu nível local e ganhe o espaçoregional, na formação por exemplo dos grandes ducados francesesentre os séculos XII e XV, e alcance os níveis nacional e até supranacional. Ao final da Idade Média se contrapõem na Europa apenaso império da casa vitoriosa na França e a casa Habsburgo na Áus

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46 Jessé Sou za

tria, dividindo as zonas de influência européia entre Ocidente e

Oriente.Fundamental para a compreensão do argumento de Elias nesse ponto é que essas mudanças estruturais iriam permitir que a “sociedade” enquanto tal ganhe poder em relação aos “indivíduos”,

 percebidos como “corpos desejantes”. Com a transformação dasociedade feudal guerreira baseada na violência, temos uma crescente “pacificação” da vida social. A necessidade objetiva primordial continua a ser a luta por recursos escassos. Mas a luta pelos

mesmos são crescentemente regulamentadas de modo pacífico.É precisamente a influência dessa transformação macrossocialfundamental sobre a economia emotiva individual e sobre a regulação das trocas intersubjetivas que interessa a Elias explicar. O interesse sociológico e político da investigação do autor está todo dirigido ao esclarecimento dessa questão fundamental: Qual é oimpacto da pacificação da vida social sobre “psique” individual e

 portanto sobre a relação dos homens entre si? Perceber a mudançaexistencial e política que as novas condições implicam é o fio condutor da curiosidade do autor.

É precisamente o esclarecimento dessa dinâmica que permiteestabelecer a singularidade do desenvolvimento ocidental paraElias. Os mecanismos sociais em jogo na Idade Média são os elementos que explicam essa especificidade. Nesse sentido, não existecontinuidade com relação ao mundo antigo. Antes de tudo não

havia escravos, pelo menos em número considerável, na IdadeMédia européia como era o caso da Antiguidade. Para Elias, umasociedade escravocrata obedece a automatismos muito peculiares.Antes de tudo, a dependência recíproca dos estratos superiores einferiores e, desse modo, toda a economia emocional e instintivaassociada a esse fato se desenvolvem segundo linhas bastante peculiares. Iremos voltar a esse ponto mais tarde no exame do caso

 brasileiro.A especificidade da situação feudal para Elias baseia-se emrelações sociais muito peculiares. De início, falta qualquer basematerial para o exercício do Direito como conhecemos hoje.A aplicação de um Direito universal pressupõe uma instituiçãocentral organizada. Obrigações sociais existiam apenas em relaçãoa ordem de vassalagem, sob sua forma dupla: pretensão de prote-

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A m odernização seletiva   47

ção a partir de cima e exigência de serviço em relação aos subordi

nados. Isso era válido tanto para a relação dos senhores entre sicomo para a relação dos camponeses com os senhores em geral.A única lei, portanto, é a lei da espada, e a economia emocio

nal correspondente é a da expressão mais ou menos direta dos im pulsos naturais e agressivos. O gozo do momento é a palavra deordem. Não só na relação entre poderosos e oprimidos em termossociais, mas também na relação entre os sexos. Entre estes reinama inimizade e a estranheza, sendo a idéia de amor romântico ainda

inexistente. Será também a repressão da violência como meio legí-timo que permitirá o aumento da significação social da figura feminina.

Alguma forma de controle comportamental é perceptível apenas nas cortes dos senhores mais poderosos, que passam a disputarnão apenas guerra mas também prestígio entre si. Esta é a fasehistórica da courtoisie. Aqui existe, ainda que em grau mínimo, se

comparada com épocas posteriores, alguma convenção, algumaregulação dos afetos e da conduta. E precisamente a relativa insta bilidade desses grandes domínios, constantemente ameaçados pelos efeitos desagregadores do “mecanismo descentralizador” des-crito anteriormente, que impede uma regulação de conduta mais profunda e estável como ocorrerá mais tarde.

Elias percebe, nesse sentido, três fases distintas de sociabilidade e de tipos de personalidade que correspondem a fases distintas

do processo descrito anteriormente. Além da courtoisie,  teríamos acivilité  e, finalmente, a civilisation, assumindo essa última, especialmente na França, um modo cortesão aristocrático e uma posteriorreinterpretação burguesa e democrática. Essas fases distintas vin-culam-se a formas estruturais peculiares, fazendo corresponder,desse modo, mudanças quantitativas no tamanho e na intensidadede estruturas macrossociais a mudanças qualitativas na forma da

sociabilidade intersubjetiva.Pela impossibilidade mesma de determinar-se um ponto zerona história das mudanças comportamentais, parte Elias da alta Idade Média, mais precisamente dos escritos de Erasmo de Roterdam.Erasmo é tão significativo por escrever sobre normas de comportamento em uma época de rupturas, ainda dentro do contexto me-

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48 Jessé Souza

dieval mas já antecipando, no entanto, formas de comportamento

do período seguinte.O período histórico que serve de base para sua análise empírica é o da renascença e, portanto, da transformação ocorrida nocomportamento dos estratos sociais superiores desde o paradigmade uma covrtoisie, que designa o código comportamental da sociedade feudal dos cavaleiros, em favor de uma civilité,  já apontando

 para a transição em direção à sociedade cortesã. Os escritos de“boas maneiras” de Erasmo revelam a fronteira entre as duas so

ciedades, sendo seu estudo especialmente relevante para Elias.Em Erasmo, já temos a análise do comportamento como “es

 pelho da alma”, ou seja, uma abordagem psicológica que enfatiza adimensão matizada e nuançada da personalidade humana em oposição à relativa indiferenciação anterior. A modificação social correspondente é a da transição da sociedade feudal cavaleiresca emdireção à sociedade cortesã. Essa transição é fundamental para

Elias. Ela representa, como vimos, a progressiva substituição do primado da violência por meios pacíficos na competição social pelos recursos escassos. A pressão coletiva sobre o comportamentoindividual aumenta e o comportamento adequado transforma-se em

 problema e em arma central na competição social.Essa transformação da sensibilidade social produz-se primeiro

nos estratos superiores, tanto como uma forma de distinção socialoperante dentro desse estrato como em relação aos estratos inferio

res. Esse movimento ganha um motto  próprio na medida em quedado parâmetro de comportamento passa a ser imitado tanto pelosindivíduos do estrato superior como pelos estratos inferiores emconjunto. Na medida, no entanto, em que o próprio sucesso, ouseja, a imitação generalizada do comportamento distinto consolida-se, perde esse, simultaneamente, seu valor diferenciador. Cria-se,nesse sentido, uma dialética entre inovação e disseminação que se

constitui na dinâmica específica do processo como um todo.2

2Em primoroso texto sobre o fenômeno sociológico da moda, Simmel parte de pressuposto semelhan te para explicar a dinâm ica típica desse processo . Vertexto homônimo em Georg Simmel, “O indivíduo e a liberdade”, Jessé Souza eBerthold Õelze, Simmel e a m odernidade,   1998.

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A modernização seletiva   49

Elias analisa exemplos de mudança de comportamentos em

várias esferas distintas do agir humano: o comportamento à mesa,o uso de talheres, o hábito de se assoar, de cuspir, a forma de dormir, a forma da relação entre os sexos, a agressividade, etc. O queestá em jogo em todas essas manifestações parciais é uma mudançade fundo comum: o movimento em direção a um aumento da sensibilidade em relação ao que é penoso observar nos outros e ao que produz vergonha no próprio comportamento. E o “avanço” dessafronteira (Vorrücken der Peinlichkeitsschwelle)  que aprendemos a

 perceber como um “refinamento” do comportamento. A direção do processo de refinamento já é conhecida. Tudo que lembra a origemanimal do homem é reprimido ou reservado a espaços próprios: acozinha, o quarto de dormir, o banheiro.

É importante notar que, na argumentação de Elias, a sociogê-nese da regulamentação comportamental não obedece critérioshigiênicos ou “racionais”. O processo civilizatório expressa no

máximo uma “racionalização” no sentido neutro de uma relaçãocom valores, ou seja, de uma mera “direção” do processo de desenvolvimento societário. O que é valorável ou civilizado é antes detudo o que é aceito como tal pela elite social. Esse fato, por suavez, não significa de modo algum um controle consciente pelaselites do processo como um todo.  Não existe sujeito no processo  civilizatório.

Dado o constrangimento social de produzir distinções num

contexto de maior proximidade dos homens entre si e dada a crescente proibição da violência como meio legítimo de perpetuaçãodas diferenças sociais, reagem as elites estigmatizando comportamentos e criando tipos de condução de vida acessíveis somente ainiciados, agindo como forma de reconhecimento entre os pares ecomo mecanismo distintivo e legitimador em relação aos subordinados.

De início, nos estágios da courtoisie  e da civilité   só existeconstrangimento social em relação aos próprios pares. Não se sente“vergonha” ou constrangimento em relação aos “inferiores” sociais.A partir de certo grau de interdependência social entre os indivíduoscomo resultado da intensificação da divisão social do trabalho,lemos uma mudança fundamental na direção da sociedade democrática e industrial moderna.

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5 0 Jessé Sou za

É que a dependência dos estratos superiores em relação aos in

feriores se torna insofismável, levando a que também estes últimossejam crescentemente levados em consideração por aqueles.O sintoma intersubjetivo imediatamente perceptível dessa mudançaé que, agora, sente-se “vergonha” também em presença do socialmente subordinado, contribuindo para a superação da dupla moraltípica das sociedades hierárquicas. Apenas numa sociedade democrática (e industrial com avançada divisão social do trabalho) temos a ver com uma moral única válida para todos. Apenas nesseestágio, o da sociedade burguesa moderna, temos também o pressuposto universal de um autocontrole total e automático de todosos indivíduos.

E precisamente com o elemento burguês que a relação com asaúde, o argumento higiênico, começa a ser determinante na legitimação das novas formas de comportamento, precisamente namedida em que o componente aristocrático decresce de valor.

A motivação para o autocontrole passa a ser a preservação da pró pria saúde e da própria dignidade. As neuroses “modernas” só sãocompreensíveis segundo esse novo registro.

A entrada do componente democrático para Elias tem a vercom um fato único na história: a entrada em cena de um estratodominante que “trabalha”, a burguesia. É esse estágio que permiteuma repressão impessoal e totalizante se referindo a todos como a

 própria lei, sendo tal repressão tão abstrata e impessoal como esta.Esse aspecto é interessante para todo o argumento de Elias. Paraele o aspecto precisamente não-reflexivo do desenvolvimento ocidental ocupa o centro da análise. Ele enfatiza o elemento da inter-nalização da repressão, uma espécie de sociogênese da constituiçãodo superego freudiano, como uma resposta automática e irrefletidaa anseios de mobilidade social e medos de perda de prestígio relativo de acordo com regras socialmente estabelecidas.

A contrapartida da constituição do superego na personalidademoderna é a constituição de um “Id” crescentemente reprimido etornado inconsciente, sendo o elemento constituidor de experiências que não podem mais ser vividas de acordo com os novos padrões de convivência e formas de autocontrole. Essas experiências

 passam a ser ocultadas, ou da própria consciência ou da sociedade,

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A m odernização seletiva   51

a partir da constituição progressiva de uma esfera privada enquanto

uma esfera da intimidade.Aqui interessa a Elias a repercussão prática do processo civili-

zatório no habitus dos indivíduos, ou seja, na sua economia afetiva primária. Nesse sentido, o processo civilizatório é sintetizado comouma transformação da repressão externa em repressão interna. A nova topografia da consciência reflete essa transformação fundamental. Em vez de temer a espada do inimigo, o homem moderno só teme perder seu autocontrole. A repressão interna é responsável por uma “razão” peculiar, a partir da diferenciação de umsuperego na própria psique individual regulando a vida impulsiva eo comportamento em todas as suas manifestações. E, antes de tudo,a necessidade de uma “reflexão prospectiva” o que determina areorganização da economia afetiva e a renúncia ao prazer imediato.

Do ponto de vista individual é interessante notara“psicologi-zação” correspondente ao processo anterior. A personalidade ganha

em densidade e profundidade com o maior controle afetivo. Agoraela precisa ser cuidadosamente estudada e analisada. Autores comoProust, Balzac ou Flaubert são os primeiros grandes mestres deuma observação humana de novo tipo. De novo tipo precisamentena medida em que os personagens nunca são retirados das corren-tes de interdependência que dão compreensibilidade a seus com portamentos e atitudes. Os homens são as suas circunstâncias e nãoexistem fora delas.

Esse processo já estava em pleno desenvolvimento na passagem da sociedade cavaleiresca feudal para a cortesã, ou seja, da passagem do uso da violência a meios pacíficos como os únicoslegítimos na luta pelos recursos sociais de riqueza, poder e prestígio. Elias usa todo seu conhecimento sobre a vida da corte francesanos séculos XVII e XVIII (que já havia sido seu objeto de estudona sua tese de doutorado) para exemplificar a enorme regulação da

conduta até nos mínimos detalhes, de modo a ocultar qualquerafinidade ou aversão pessoal, sendo essa arte a regra de ouro para asobrevivência e sucesso na corte.

 Na dimensão social, Elias deixa claro que não cabe falar-se de“ideologia” no sentido de conjunto de idéias conscientes. A mudança de habitus implica transformações tanto na esfera conscientecomo na inconsciente. Elias pretende precisamente levar em consi

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52 Jessé Souza

deração tanto as estruturas pulsionais e afetivas inconscientes como

os elementos conscientes de modo a expor o mecanismo da economia dos afetos na sua imbricação entre indivíduo e sociedade noseu todo. Um indivíduo, assim como uma sociedade, é compostode ambos os aspectos.

A ambigüidade do processo civilizatório para Elias seria que arepressão (necessária ?) dos impulsos não se efetuou como uma“conscientização”, mas como proibição e tabu. Daí o abismo entreimpulsos e consciência que caracteriza o mundo moderno. Apenasquando a consciência é menos permeada pelos impulsos é que osautomatismos pulsionais podem adquirir a forma de compostos a-históricos, quase naturais, que caracterizam o inconsciente. Na suaexperiência com o meio externo, pode a consciência então assumira forma de uma instância relativamente livre de afetos e pulsões,uma instância racional.

Mas para Elias o processo civilizatório não possui apenas uma

dinâmica própria na concorrência social por prestígio e poder relativo no interior de cada sociedade. Também os diferentes países“civilizados” apresentam distinções importantes entre si a partir daforma peculiar com que o conflito entre grupos concorrentes por prestígio e poder se articulou 110 interior da sociedade. E nesse ponto que reside sua importância para o argumento desenvolvidonesse livro.

A seletividade do processo civilizatório

Existe, por exemplo, uma distinção importante no tocante aoque significa civilização entre a Inglaterra e a França, por um lado,e a Alemanha, por outro. Isso implica uma diferença importantequanto ao próprio conceito de “civilização”. Tanto a Inglaterra

como a França lograram cedo a unificação política dos seus res pectivos territórios, processo no qual o conceito de civilizaçãoserviu, primeiro para grupos particulares e depois para a naçãocomo um todo, como legitimação do próprio poder e autoconsciência. A Alemanha, ao contrário, país de unificação e desenvolvimento tardios, sempre teve de se perguntar: o que faz ou qual é anossa singularidade?

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A modernização seletiva

Civilização é o resultado de um processo como vimos. Para os

 participantes desse processo, no entanto, ela é algo vivido, algo queespelha vivências comuns, as quais são percebidas como evidentes para os participantes e incompreensíveis ou simplesmente distantes para os não-participantes dessa experiência. Para Elias, a chave para a compreensão das distinções no seio mesmo da cultura ocidental, como aquelas entre a França e a Alemanha, tem a ver com adinâmica da luta de classes pela hegemonia ideológica (e não pelocontrole dos meios de produção como em Marx) dentro dos res

 pectivos espaços nacionais. Na França (assim como na Inglaterra) a função de definir o

que deveria ser percebido como especificamente francês coube àaristocracia cortesã. Esta classe logrou até mesmo expandir seu prestígio para além das fronteiras nacionais influenciando todos os países importantes da Europa. Dentre esses incluindo a própriaAlemanha, cuja aristocracia não só falava francês como, de resto,

 possuía o gosto e a visão de mundo da aristocracia francesa. Dessemodo, nesse país, a tarefa de definir o que é “especificamente ale-mão” coube a uma classe média, um estrato de pe^oas cultivadas.Esse estrato definiu-se, até mesmo, “reativamente”, ou seja, poroposição ao ideário, agora já supranacional, francês.

Compreendem-se mais facilmente, a partir disso, a tradiçãoalemã da dominância da filosofia nas mais diversas esferas sociaise a influência da figura dos pensadores e poetas como fonte de

orgulho nacional. A palavra alemã Kultur,  a equivalente nacionalda palavra francesa civilization,  possui, nesse sentido, um significado antes de tudo antitético em relação a essa última. Civilizaçãona Alemanha denota um sentido negativo de “exterioridade”, dealgo enganoso e superficial, uma mera cortesia, a qual deve sercontraposta com o sentido das virtudes “verdadeiras”.3

Coube, na Alemanha, a uma classe média de professores uni

versitários e de servidores dos príncipes a tarefa de definir os traços peculiares do “alemão”. É precisamente a partir dessa influência que conceitos como  Bildung  (formação) e Kultur   (cultura)adquirem seu sentido peculiarmente germânico. Esses indíciosmostram que os elementos burgueses adquirem “autoconsciência”

3 Op., cit., p. 10.

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5 4 Jcssé Sou za

e alguma influência cultural, sem lograr adquirir poder nem sequer

ameaçar a estrutura do Estado absolutista, sendo obrigados a desempenhar um papel marginal na política. Esse estrato pode pensare escrever livremente, mas não pode “agir” livremente. Essa circunstância de certo modo condicionará, de forma importante, odestino da Alemanha nos séculos seguintes. A situação social desseestrato para Elias era muito específica: era elite em relação ao

 povo, ao passo que era gente de segunda classe para a aristocracia.Em dois dos maiores personagens alemães, Kant e Goethe,4  a

oposição entre o burguês e o aristocrático passa a ser definidacomo a oposição entre superficialidade, cerimonial, conversaçãosupérflua, por um lado, e profundidade de sentimentos, mergulhonos livros e formação ( Bildung) da própria personalidade.

Também na França temos, na mesma época, uma riqueza extraordinária em personagens importantes. A diferença principal éque as grandes figuras das letras e do pensamento francês foram

mais facilmente acolhidas nos estratos superiores da sociedade daépoca. Na Alemanha, o caminho “para cima” da inteligentsia  foi bloqueado, em parte pela própria pobreza da sociedade cortesãalemã da época, o que inibia suas potencialidades “receptivas” oucooptativas. Na França, a qual relativamente cedo s*1expande “parafora” e precisa assimilar ou colonizar outros estratos sociais e outros países no seu esforço de arregimentação, o orgulho aristocrático permanece, mantendo, em razão da sua riqueza relativa, várias portas abertas ao caminho de ascensão social dos estratos intelectuais.

 Na Alemanha, ao contrário, a universidade transforma-se nocontraponto burguês da corte. O pastor protestante e o professoruniversitário são os elementos principais desse pequeno estrato burguês, o qual produz o que há de mais especificamente nacionalno sentimento de unidade alemão: o movimento em direção ao

espiritual e apolítico, o movimento dirigido ao “interior” da personalidade, para além das preocupações econômicas e políticas.O livro, o objeto livro, é a materialização desse “puro espírito”,

 permitindo sua realização nas esferas da ciência, da filosofia, da

Goethe perceberá, mais tarde, a unilateralidade dos valores em disputa e proporá uma conciliação entre eles.

4

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A modernização seletiva   55

arte, assim como no enriquecimento e formação interna da perso

nalidade individual. Na França, por oposição, o meio de comunicação por excelência é a conversação, transformada em arte da socia bilidade e lugar em que se prova o brilho do espirito.

Sendo a dimensão espiritual e apolítica a mais importante, acrítica burguesa à aristocracia na Alemanha se dirige a objetivosextrapolíticos, concentrando-se antes no comportamento genericamente “humano” do aristocrata, como na crítica a sua superficialidade, por exemplo. Com o desenvolvimento postenor da burguesia

como estrato social suporte do sentimento nacional alemão, a antí-tese entre cultura (Kultur)  e civilização transforma-se de contraposição social interna em contraposição nacional externa.

 Na França o processo é quase antinómico em relação aoexemplo alemão. Afinal é a conversação, as boas maneiras, a socia bilidade brilhante, a elegância e o bom gosto, qualidades cortesãs por excelência, que são retransmitidos e assimilados pelo estrato

 burguês e depois por toda a nação como definidores do caráternacional francês. A burguesia adapta e continua o ethos cortesão equer apenas reformulá-lo, pleiteando uma “verdadeira civilização”em lugar de urna “falsa”. Nesse sentido, a palavra civilizaron passaa ser usada, a partir de 1774, como uma palavra polêmica, de luta,contra a organização “irracional” da sociedade. O conceito burguêsde civilização apropria-se de muito do que existia r.o conceito cortesão de “civilizado”, mas o aprofunda a ponto de abarcar a reforma de toda a sociedade, o Estado, o ensino do povo e, com isso, asuperação de tudo aquilo percebido como bárbaro e irracional. Sena revolução de 1789  a palavra ainda não é usada como arma delula, logo depois (em 1798 Napoleão já a usa como legitimação doesforço expansionista francês), ganha o inundo. A partir de agora, anação conquistadora percebe-se como mediadora de um processo,agora já visto como terminado internamente, para “fora”, para a

colonização de outros povos.Para Elias, portanto, o “caráter nacional” não é nenhuma en-

teléquia, um conjunto de impressões subjetivas metafísicas. Aocontrário, caráter nacional ganha o sentido preciso de um esquemade vida afetiva e espiritual de individuos que são socializados sob a pressão de uma tradição internalizada e institucionalizada de modo particular. Nesse processo, a “luta de classes”, por hegemonía ma-

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56 Jessé Souza

terial e ideológica, é o aspecto principal sem que, convém notar,

tenhamos aqui a tendência marxista e lukacsiana de atribuir categorias da filosofia da consciência a construtos coletivos. Para Elias, aluta de classes por hegemonia dá-se em um contexto quase-sistêmico, em que a noção de subjetividades coletivas construídassob o modelo da subjetividade individual não encontra lugar.

Esse é um aspecto fundamental para nossos propósitos, já que permite perceber a seletividade do processo de modernização civi-lizatória. No caso brasileiro, isso pode ajudar-nos a perceber a for

ma peculiar do processo de reeuropeização que toma conta do paísa partir do século XIX com suas conseqüências atuais. Aqui, aocontrário da Europa, não houve o movimento, comum a todas asnações européias mais importantes malgrado suas diferenças específicas, do processo de equalização entre as classes dentro de cadahorizonte nacional. O fato de a Europa moderna não ter tido suagênese em sociedades escravocratas, como lembra Elias ao ressal

tar sua ruptura em relação a essa herança do mundo antigo, facilitou esse processo de equilíbrio entre as diversas classes e a universalização da categoria de cidadão.

O cidadão é precisamente o resultado do longo processo desubstituição de regulação externa pela regulação interna da conduta. Ele não só tem os mesmos direitos, mas também a mesma economia emocional.  O reconhecimento da interdependência entre asdiversas classes que trabalham,  acordo só possível quando a pri

meira classe dirigente da história que trabalha,  a burguesia, assume o poder, propiciou uma equalização efetiva internamente a cadaespaço nacional. Foi criado um tipo humano uniforme, seja na suaorganização afetiva, seja na sua organização racional e valorativa,uniformidade esta percebida por Elias como o pressuposto estrutural do cidadão moderno. O cidadão moderno é, desse modo, o produto de um desenvolvimento histórico singular e multifacetado.

Ele é produto de um tipo específico de sociedade e organizaçãosocial. No caso brasileiro, como iremos ver em detalhe, o processo de

modernização que torna a sociedade escravocrata caduca a partirda primeira metade do século XIX. abandona à própria sorte todauma classe, a dos escravos, que a partir de então jamais irá recuperar qualquer função produtiva na nova ordem. É aí que se cria uma

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A modernização seletiva

classe de párias urbanos e rurais que valem, não só para uma elite 

má,  mas, objetivamente, para toda a sociedade sobretudo para as próprias vítimas, menos do que outros.  Nesse contexto não exisle,objetivamente, cidadania, mas apenas sub e supercidadãos. A análise de Elias permite superar o intencionalismo e o subjetivismo danossa sociologia da inautenticidade e perceber a seletividade denossa modernidade na  permanência da desigualdade.  Trataremosdesse tema em detalhe na. segunda parte deste livro.

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Capítulo 3

 A singularidade ocidentalcomo aprendizado reflexivo:

Jürgen Habermas e o conceito

de esfera pública

Gênese da esfera pública

Apesar da enorme divergência com relação ao quadro de referência teórico, existe um ponto em comum na visão dos clássicosdas ciências sociais sobre a peculiaridade da moderna sociedade

capitalista: Estado racional burocratizado e mercado competitivocapitalista são percebidos como as instituições estruturantes donovo sistema social nascente. Apenas mais tarde, já adentrado oséculo XX, é que temos a teorização sistemática e conseqüente deuma “outra” instituição fundamental da sociedade moderna temati-zada sob o nome de sociedade civil ou esfera pública. Talvez amaior contribuição de Jürgen Habermas ao pensamento sociológico tenha sido a análise, que perpassou toda a sua turreira acadêmica, das estruturas específicas de funcionamento da esfera pública.Para ele, esfera pública não se confunde com a interpretação clãssica da sociedade civil como “reino de necessidades” oposto aoEstado. Esfera pública passa a designar a partir da sua obra, seminal para o pensamento sociológico deste século, um “terceiro mo

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60 Jessé Sou za

mento” das sociedades modernas, o qual não se confunde nem com

o mercado nem com o Estado.O tema da esfera pública já é o tema central da tese de livredocência de Habermas, o livro  Mudança estrutural da esfera pública'   datado de 1962. O interesse primário de Habermas nesselivro, em que já encontramos em germe todos os temas que iriamconcentrar os seus esforços nas décadas seguintes, ainda é marcadamente genealógico e histórico. Ele interessa-se em perceber agênese histórica da categoria de “público”. Na Idade Média, a categoria de “público” assume a forma de mera representatividade

 pública. Representatividade aqui possui um sentido literal, de tea-tralização, visto que não se trata de uma representação de autoridade derivada da soberania popular, mas sim de uma representaçãodo poder de fato “perante” o povo. A importância das insígnias, dogestuário, das regras de etiqueta aponta precisamente para esseestado de coisas.

O sentido moderno de público começa a desenvolver-se emcombinação com fatores materiais e simbólicos novos, que seconstituem no alvorecer da modernidade. Desde o início, a categoria de “público” mostra-se intimamente ligada à categoria de “privado”. É apenas a partir da delimitação de uma esfera privada inviolável do indivíduo que temos a possibilidade de perceber a novidade do sentido moderno de público. Uma primeira forma de privacidade com implicações públicas óbvias dá-se a partir da privatização da fé. A liberdade de confissão, duramente conquistada emguerras sangrentas, aponta para uma primeira forma de liberdade

 privada. Esse é o primeiro passo para a constituição daquilo queHabermas irá chamar de esfera pública, ou seja, de uma esferacomposta de sujeitos privados com opinião própria, o que asseguraa possibilidade da contraposição coletiva a decisões discricionáriasdo poder público.

Desse modo, liberdade pública é indissociável da liberdade privada. O que Habermas chama de esfera pública nasce da redefinição dos lugares do público e do privado, formando o Estado e a

 pequena família burguesa as duas instituições fundamentais decada um desses espaços respectivos. Além da liberdade de confis-

1 Jürgen Habermas, Strukturwandelder Õffentlichkeit.

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A m odernização seletiva

são como antecedente principal da liberdade de consciência tipi

camente burguesa, temos fatores materiais importantes em jogo.Acima de tudo, a passagem do capitalismo comercial para o industrial engendra toda uma infra-estrutura de novas formas de trans porte e de troca de informações. Na esteira da troca de mercadorias, desenvolve-se, concomitantemente, um aumento correspondente de troca de informações, de inicio dirigidas a um públicorestrito de comerciantes com notícias de interesse profissional.

Paralelamente, desenvolvem-se, também como conseqüênciada passagem de um capitalismo comercial limitado localmente emfavor de grandes empreendimentos nacionais e internacionais, olistado permanente, baseado em instituições burocráticas e militares, um eficiente sistema de impostos. Todo esse conjunto de novasinstituições era indispensável ao estímulo e proteção das atividadeseconômicas nas esferas interna e externa.

Uma esfera pública de conteúdo não-estatal nasce, no entanto,

apenas a partir da transformação da função da imprensa de umaatividade meramente informativa e manipulativa do que interessava ao Estado tornar público para uma concepção de um veículo, deum “fórum” apartado do Estado. É esse “fórum” de pessoas comcapacidade de julgar que permite a formação de uma opinião pú blica crítica capaz de introduzir, pela primeira vez, a questão dalegitimidade discursiva do Estado.  O que é público, de interessegeral e para o bem de todos, precisa a partir de agora  provar-se argumentativamente enquanto tal. De início, os burocratas do aparelho estatal, profissionais liberais, pastores, professores, etc., formam a base social dessa nova esfera. A esfera pública burguesaque se constitui deve ser entendida, antes de tudo, como a reuniãode pessoas privadas num público.

Essa esfera é regulamentada  pela autoridade, mas é dirigidadiretamente contra  a autoridade política, na medida em que o prin

cipio de controle que o público burguês contrapõe à dominação pretende modificá-la. Em termos históricos, a entrada em cena diurna esfera pública política coincide com a passagem do Estadoabsoluto em direção ao despotismo esclarecido.  Já a evidente contradição dos termos que compõem essa forma de exercício do po-der político evidencia o encontro de uma forma de dominação tra-

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62 Jessé Souza

dicional monárquica, a qual, no entanto, já tem de prestar contas de

seu governo, tem de se esclarecer perante um público.Para Habermas, a demanda política por uma maior reflexividade na formação da opinião coletiva tem como pressuposto experiências privadas que se originam na esfera íntima da pequena família. Este é o lugar no qual se origina historicamente a

 privacidade no sentido moderno do espaço de exercício de umainterioridade livre e satisfeita. O status  do homem privado, comodono de mercadorias e pai de família, completa-se com a compre

ensão política que a esfera pública burguesa faz de si mesma. Antesde assumir funções políticas, no entanto, o processo de autocom-

 preensão das pessoas privadas adquire a forma literária de trocas deexperiências sobre o exercício da nova forma de privacidade. Essaesfera pública literária não é originariamente burguesa, mas simuma herança da aristocracia cortesã transmitida à vanguarda da

 burguesia que mantinha contato com o “mundo elegante”.

O crescimento das cidades  vai possibilitar, a partir da proliferação da cultura dos cafés, dos salões, etc., a institucionalização daesfera pública. Os herdeiros burgueses do humanismo aristocrático,no entanto, logo passam a conferir caráter crítico  às suas conversações sociais, quebrando a ponte entre as duas formas de esfera

 pública e engendrando um elemento historicamente novo: a esfera pública burguesa. A partir de 1750, também as novas formasliterárias dominantes assumem formas especificamente burguesascomo o drama burguês e o romance psicológico, ou seja, adquiremformas que propiciam tematizar a forma especificamente burguesada nova subjetividade que se constitui nessa época. A pequenafamília burguesa representa uma forma de comunidade distintatanto da família aristocrática como da família camponesa. A estasociabilidade original corresponde uma nova forma de arquiteturadas casas, garantindo um espaço de privacidade para cada um dos

integrantes da família, assim como formas de convívio que se destinam a exercitar o novo tipo de individualidade que se constitui.A passagem da carta ao romance psicológico, como forma paradigmática de problematização das questões existenciais e subjetivas, já aponta para o maior grau de abstração e de elaboração dareflexividade que se institucionaliza.

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A m odernização seletiva 63

A esfera pública literária dos indivíduos privados mantém já

uma conexão profunda com a esfera pública política. A subjetivi-vidade literariamente trabalhada do burguês já é desde sempre públi-ca(a passagem da carta ao romance já o demonstra), funcionando

como uma espécie de auto-falante das necessidades e experiênciasmais íntimas. Por outro lado, e até de forma ainda mais fundamental, o público literário implica uma igualdade das pessoas cultascom opinião,  igualdade esta indispensável para a legitimação do processo básico da esfera pública: a discussão baseada em argum e n t o s que subordina a questão do status  social relativo dos parti-

 pantess.Desde essa época podemos perceber como a atenção do jovem

Habermas já se dirige ao estudo daquela inovação social que será para ele a característica essencial do mundo moderno e a cuja análise  de pressupostos dedicará toda sua vida de pesquisador: a des-coberta de uma força interna, capaz de criar obrigações recíprocas

entre os homens, à comunicação, que exige a desconsideração defatores sociais externos como poder, riqueza e prestígio. Essa forçainterna é o caráter vinculante que nasce do melhor argumento ou,como prefere Habermas, já nesse escrito da juventude antecipandoa problemática moral do Habermas maduro, a força interna daquelaracionalidade moralmente pretenciosa que busca vincular a verdade  e a justiça.

O século XIX, em oposição ao século XVIII, testemunha uma

modificação estrutural da esfera pública com efeitos permanentes emúltiplas conseqüências: a ampliação do público que exige a consideração de seus interesses. As massas menos letradas do proletariado emergente que passam a pressionar pela efetivação de seusinteresses de classe quebram por dentro a unidade da esfera pública

 burguesa. Com isso a esfera pública deixa de ser um espaço deconvencimento para ser um espaço de pressão.

Duas respostas clássicas foram formuladas para reagir a essedesafio. Por um lado, temos a posição socialista na qual a teoria deKarl Marx logrou formular a visão mais coerente e conseqüente,Para Marx, todas as instituições burguesas, até mesmo a esfera

 pública, fundamentam-se no encobrimento manipulativo da dissidência básica da sociedade de classes em explorados e exploradores. Aos primeiros cabe a tarefa de transformar radicalmente a in

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64 Jessé Souza

fra-estrutura social que perpetua desigualdades. A socialização dos

meios de produção encontra nessa formulação sua razão de ser.A outra reação clássica ao desafio da ascensão do proletariadoindustrial opera-se no contexto do liberalismo clássico. Com aresignação perante a impossibilidade de resolução racional dosconflitos que agora dilaceram a esfera pública, defendem os liberais uma defesa contra uma eventual maioria na opinião públicasuspeita de possuir um núcleo não-racional. Com a despedida doconceito de crítica, a palavra de ordem passa a ser a da tolerância 

contra um poder de núcleo tendencialmente irracional que ameaçase tornar absoluto. Para Habermas, a resposta liberal é reacionáriano sentido de reagir à tomada do espaço público pelas massas iletradas e despossuídas.

Ainda para Habermas, no entanto, nem a reação liberal nem asocialista permitem apreender em todas as suas conseqüências amudança estrutural da esfera pública. Na passagem do capitalismo

concorrencial para o capitalismo organizado, teríamos, como efeitoespecífico dessa transformação na esfera pública, a destruição dafronteira entre a esfera pública e esfera privada. Seria precisamentea expansão da esfera pública sob o custo da esfera privada, em queesta seria por assim dizer colonizada por aquela, a causa da neutralização do princípio fundamental da esfera pública, qual seja a possibilidade de uma publicidade crítica.

Como vimos, a esfera burguesa desenvolve-se historicamente

como um campo tensional entre Estado e sociedade, mas de talmodo que se mantém como parte da esfera privada. Com a superação da distinção entre Estado e sociedade, a partir do crescenteintervencionismo estatal que marca o século XIX, destroem-se as

 bases de uma esfera privada autônoma e, como conseqüência, aesfera em que as pessoas privadas discutiam assuntos públicos.A decadência das funções políticas da esfera pública advém, por

tanto, desse processo de mudança estrutural nas relações entre asesferas privada e pública. A intervenção estatal avança crescentemente de tal modo que não se pode mais distinguir uma esferasocial apartada da estatal. As esferas estatais, públicas e privadas passam a formar um único contexto funcional, o qual se reflete naindistinção entre direito público e privado a partir da privatizaçãodo Estado (acelerada pela concentração de capitais) e pela estatiza-

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A m odernização seletiva

ção da sociedade pela crescente rede assistencial e de serviçoses-

tatais que se constituem nessa época.Desse modo a família retira-se do processo de reprodução social, tornando-se crescentemente privada nas suas funções, enquanto o mundo do trabalho e do Estado se torna cada vez maissocial. A família reduz-se na realidade a mera instância receptivados serviços estatais e de salário do sistema econômico. Sua funçãotorna-se primariamente consumptiva e passiva e não mais ativa ecriadora. Paralelamente à perda de suas funções públicas e econô

micas, perde a família também sua capacidade de fornecer um lugar para a interioridade pessoal. Com a destruição das bases sociaisda autoridade patriarcal, a família passa a depender crescentementede instâncias extrafamiliares de socialização. Sem a proteção doambiente familiar, o indivíduo vê-se jogado no contexto social sema possibilidade da distância reflexiva que permitia a constituição deuma individualidade autônoma.

Paralelamente a essa destruição da esfera íntima, o capitalismoorganizado expande-se da esfera de produção de bens materiais para a de produção industrial de bens simbólicos, constituindoaquilo que T. W. Adorno havia chamado de “indústria cultural”. No  Mudança estrutural da esfera pública,  Habermas ainda assimila o conceito adorniano de indústria cultural em toda sua extensão.2 Para Adorno, a indústria cultural é a aplicação conseqüente dalógica capitalista da maximização do lucro à esfera dos bens sim

 bólicos. Assim, se na esfera dos bens materiais uma salsicha mantém seu valor de uso como alimento produzido sob condições ca pitalistas de produção, o mesmo não se dá na esfera dos benssimbólicos. A lógica da maximização do lucro, que envolve a pre ponderância do valor de troca de uma mercadoria em relação aoseu valor de uso, aplicada à produção de bens simbólicos, desvirtuao próprio valor de uso do bem cultural que é possibilitar o desen

volvimento da capacidade reflexiva. Desse modo, a mercadoriacultural da indústria cultural precisa abrir mão da complexidadeinerente aos objetos culturais e produzir uma homogeneização

 Nos se us estu dos posteriores, Haberm as vai sempre cuidadosamente separar "oconteúdo verdadeiro” do conceito de indústria cultural de seu uso absolutizantecomo na crítica cultural adorniana da sociedade capitalista moderna.

2

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66 Jessé Souza

 psíquica por baixo, de modo a poder garantir a maior vendagem

 possível ao maior número.A combinação das perdas das funções familiares no cultivo deuma individualidade diferenciada, com a substituição de uma esfera pública literária por uma esfera pseudoprivada de consumo cultural, leva à destruição da base mesma do processo crítico-reflexivo como um todo, seja em relação à vida privada, seja emrelação à vida pública. O lazer torna-se, dessa forma, apolítico,

 posto que embutido dentro da lógica do círculo fechado da produ

ção e do consumo, não permitindo a constituição de uma esfera deinteresses não diretamente determinada pelo mecanismo da reprodução econômica. Para o leitor familiarizado com os textos doHabermas maduro, especialmente com seu livro mais ambiciososobre a teoria da ação comunicativa, é fácil perceber, já nesse escrito da juventude, uma primeira formulação da tese da colonização do mundo da vida, na medida em que a patologia social especí

fica tratada aqui remete a uma forma de invasão dos imperativos daesfera econômica sobre a esfera pública, transformando sua racionalidade específica em mero bem de consumo econômico.

A mudança estrutural da esfera pública está intimamente relacionada com a mudança estrutural da sua instituição mais importante: a imprensa. Originariamente, como vimos, a imprensa foi a

 parteira da esfera pública ao mediar e lazer o papel de “auto-falante” de um público pensante que discutia suas experiências

 privadas e públicas num “fórum” compartilhado coletivamente. Os jornais e semanários agiam ainda em primeiro plano de acordo como interesse do debate público de questões existenciais, morais e políticas. A passagem da imprensa de opinião para a imprensacomo negócio se dá a partir da necessidade de garantir o aumento eo aperfeiçoamento da técnica produtiva e organizacional. A conseqüente necessidade de assegurar a rentabilidade do novo capital

empregado acarreta a subordinação da política empresarial às necessidades da reprodução ampliada do capital empregado na em presa. O imperativo de assegurar o acesso a cada vez mais leitorestransforma o interesse comercial em fator principal da mudança deuma imprensa pedagógica em manipulativa.

Em vez de ser mera instância de mediação da esfera pública, aimprensa transforma-se em arregimentadora e instrumento de inte-

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A modernização seletiva

resses privados que são expostos como se  fossem públicos. Desse

modo, o círculo discursivo quebra-se no seu  prim eiio e principalelo da transmissão pública dos argumentos. O público de pessoas privadas perde a possibilidade de manutenção do estímulo recípro-co e a antiga esfera pública passa a ser formada, a^ora, de cima 

 para baixo pelos meios de massa. A nova publicidade passa a viver precisamente da indistinção entre os papéis de cidadão e consumidor, gerando aquilo que Habermas chama de refeudalização da esfera pública no capitalismo tardio.  Essa nova publicidade, como

na representação do poder da Idade Média, não significa mais uma produção pública de opinião por  pessoas privadas, mas a produção para  um público de opiniões como se  fossem públicas. A esfera pública tem de ser  produzida   precisamente porque ela não maisexiste.

A reforma desse quadro desolador é percebida por Habermasnessa época, antes, portanto, da construção de um conceito dual de

sociedade que irá procurar separar analiticamente complexidadefuncional sistêmica e espontaneidade social na produção de sentido, como possível por meio de uma democratização institucional.Instituições políticas como os partidos e associações de classe devem propiciar um espaço comunicativo para uma crítica públicaraciocinante. Para Habermas, no entanto, seria impossível pretender-se voltar a uma esfera pública do tipo que vigorava na segundametade do século XVIII. A critica racional e pública da dominação

 política não pode ser restabelecida, em meio aos interesses priva-listas organizados, segundo o modelo das pessoas privadas reunidas num público. A estratégia defensiva deve dirigir-se a uma es pécie de controle recíproco de instituições rivais  que lutam porespaço em meio à luta pelo poder social e político.

O que permite perceber o  Mudança estrutural da esfera pública”  como uma obra de juventude, apesar da exposição brilhante e

da intuição inovadora, é precisamente o fato de os temas expostos,os quais configurarão o leitmotiv que acompanhará toda a produçãoteórica habermasiana nas décadas seguintes, ainda serem perseguidos nesse livro segundo um quadro de referência teórico desenvolvido por outros pensadores. Assim, os temas clássicos dos “velhos"frankfurtianos, como a idéia da família tornada impotenle peloenfraquecimento do poder e do exemplo paterno como uma ponta

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68 Jessé Souza

aberta ao autoritarismo político, ou ainda a idéia adorniana da in

dústria cultural como uma influência absoluta na formação da opinião pública, são apropriados por Habermas ainda de forma umtanto acrílica.

I )csse modo, o “tom” geral do livro se adequa perfeitamenteao pessimismo cultural adorniano, talvez sua influência mais fortenessa época. Também a concepção de política dernocrática é tri

 butária da tradição republicana, não tão diferente nesse aspecto

 particular de concepções (ainda que tão distintas entre si em outrosaspectos) como as de Karl Marx ou Hannah Arendt. O processo dedemocratização ainda é visto como englobando a sociedade comoum todo, incluindo as esferas diferenciadas funcionalmente como aeconomia e a política.

 Na verdade, já existe no livro em germe a intuição que guiaráa produção intelectual habermasiana como um fio condutor: a idéiade que a sociedade moderna engendra formas de sociabilidade

radicalmente novas segundo um padrão de racionalidade inédito. No entanto, essa idéia permanece como uma mera intuição nãodesenvolvida em todas as suas conseqüências. Habermas descreve a relevância histórica de um fato novo, o qual, no entanto, permanece indeterminado analiticamente. Apesar de o livro contar a história de uma decadência, não se percebe com exatidão o que foi destruído  na agonia da esfera pública. Uma determinação precisa

desse aspecto equivale a tornar possível perceber o desenvolvimento ocidental na sua ambigüidade constitutiva,  ou seja, comouma lógica de desenvolvimento com aspectos positivos e dignos deserem preservados. Esse projeto, se desenvolvido com sucesso, permitiria a teoria crítica ir além da mera crítica resignada do dado,além da mera crítica da razão instrumental entronizada.

O conceito dual de sociedade

Esse projeto teórico ambicioso, no entanto, começa a desenhar-se com contornos claros ainda na década de 60. Em 1968,com a publicação de Técnica e ciência como ideologia ,3  temos uma

3Jürgen H abermas, Technik um! W issenschaft ais Ideologie.

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A modernização seletiva

p r ime i r a   tentativa de captar o que a história dos movimentos so-

ciais do Ocidente implicara em aprendizado, algo que deve seridentificado e preservado como guia da ação política.

 Nesse texto, Habermas propõe um conceito dual de sociedadede modo a explicitar o conceito de técnica e ciência, simultanea-mente, no contexto do capitalismo tardio, enquanto força produtivac o m o legitimação ideológica, dando sentido ao conceito de"consciência tecnocrática”, ou seja, a consciência que não percebe

a diferença entre normas internalizadas e apelos externos empíri-cos, ou, em outras palavras, não registra a distinção entre questões prático-morais e técnicas. Essa dualidade é percebida por Haber-mas por meio dos conceitos de trabalho e interação, referindo-se o primeiro tanto à ação instrumental como à escolha racional, enquanto o segundo diz respeito a normas aceitas intersubjetivamentemediadas simbolicamente.

Temos nesse texto de 1968, como novidade marcante em rela-

ção ao “Mudança Estrutural” de 1962, a tentativa de nomear odestruído na unilateral modernização ocidental, resultado conseguido, precisamente, pela separação entre duas dinâmicas: a domundo normativo, possuidor de uma racionalidade própria irredu-tível à lógica instrumental, e a do mundo racionalizado segundo

 padrões formais, para usar a terminologia weberiana. Esse sucessoe ainda parcial e poderíamos alinhar pelo menos duas boas razões

 para críticas: o conceito de interação é meramente descritivo e, poroutro lado, Habermas parte de uma distinção analítica ao nível dateoria da ação diretamente  para o nível societário, criando a ilusãode setores estanques nos quais apenas um tipo de ação social seria possível nos respectivos subsistemas.4

Para uma melhor fundamentação da tese formulada no “Técnica e ciência enquanto Ideologia” empreende Habermas, no decorrer da década de 1970, três passos fundamentais para a constituição

da sua teoria da sociedade como apresentada na sua obra máxima A teoria da ação comunicativa  de 1981. O primeiro passo c asubstituição da explicação hermenêutica da experiência comunica

4 Esse aspecto foi criticado por comentadores sob o nome de uma “falácia  doconcretism o mal colocado” (Falschplazierten K onkretism1) Ver, Axcl Hon-neth, Kritik der M acht,  1986.

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70 Jessé Sou za

tiva pela análise (quase) transcendental das condições de possibilidade do entendimento por meio de uma teoria dos significados peculiar que Habermas irá chamar de “pragmática universal”.A pragmática universal é o estudo dos pressupostos implícitos emqualquer situação de fala ou diálogo. Um estudo da língua como processo, portanto, contrariamente à lingüística que estuda a línguacomo estrutura. A reconstrução racional das condições universaistia comunicação humana é a pedra fundamental da teoria da ação

comunicativa como um todo em quais quer de suas derivações.O resultado das investigações de Habermas sobre esse tema foireunido depois no livro Vorstudien und Enganzuugen zur Theorie des kommwiikativen Handelns.5

Complementar ao papel fundamental da pragmática universal,temos uma teoria da evolução social a qual confere o caráter “dia-crônico” à teoria da ação comunicativa, em contraposição ao caráter “sincrônico” da pragmática universal. Nesse contexto, ganham

relevo a apropriação piagetiana para a sociologia e a distinção entreEntwicklugslogik   (lógica de desenvolvimento) e Entwiklungsdina- mik   (dinâmica de desenvolvimento). O aspecto diacrônico da açãocomunicativa tem a ver com a progressiva racionalização dos trêsaspectos (ou reivindicações valorativas) implícitos na ação comunicativa, a saber: verdade (mundo objetivo); justiça (mundo social)e sinceridade (mundo subjetivo). O conjunto de artigos editado sob

o nome de “Reconstrução do materialismo histórico”6 é uma primeira aproximação do autor dessas questões.0 terceiro e último passo é a apropriação da teoria sistêmica,

destinada a resgatar, ainda que parcialmente, o aspecto da eficiência institucional capitalista, especialmente o mecanismo de mercado e do aparelho estatal, os quais devem ser preservados para oHabermas maduro. Esse ponto, extremamente discutido até mesmo pelos seguidores de Habermas, é o responsável pela mudança deatitude quanto à estratégia adequada nas sociedades do capitalismotardio relativamente à ação política reformadora. A atitude agressi

5Jiirgen Haberm as, Vorstudien und Engcinzungen zur Theorie des komnnmikati-  ven Handehis,  1985.

6  Idem, Z ur Rekonstm ktion des his to rischen Materialis imts.

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A m odernização seletiva ; i

va do início da obra é substituída por uma postura defensiva com

relação ao Estado e do mercado.Esses três passos devem fundamentar melhor a mesma tese já

defendida em “Técnica e ciência enquanto ideologia”, ou seja,trata-se de uma mudança de estratégias teóricas e não de teses.A tese que se mantém é a crítica ao crescimento unilateral da razãoinstrumental (razão funcionalista para o Habermas da “teoria daação comunicativa”) à custa do momento prático-normativo.

A tese da existência de uma racionalidade comunicativa é a base do projeto habermasiano e aponta para uma competência potencial  passível de tornar-se efetiva nas sociedades modernas.O grau em que essa racionalidade pode tornar-se real é uma questão empírica e reflete o jogo das forças políticas em ação, sendo,

 portanto, um jogo em aberto. Ao contrário dos frankfurtianos quenão conseguiram reconstruir um conceito enfático de razão nomundo desencantado, Habermas fundamenta a razão comunicativa

como específica ao mundo moderno e desencantado. A racionalidade comunicativa é vista, nesse sentido, como apenas possívelnum contexto pós-tradicional, sendo meramente procedural, a refletir uma forma de lidar com reivindicações valorativas. Ou seja, éantes uma atitude que um conteúdo. Essa ênfase no proceduralismodesloca o Habermas maduro do campo do republicanismo radical para o de um liberalismo social-democrático.

O que fica como ganho em relação à teoria crítica anterior é precisamente a possibilidade de apreender o mundo moderno paraalém da razão instrumental percebida como totalitária. É exatamente esse pressuposto da teoria crítica anterior, +?nto em Webercomo nos frankfurtianos, que impede de se pensar em formas pós-tradicionais de solidariedade social. Dentro do ponto de partida dateoria social anterior como um todo, é a solidariedade específica àmodernidade tardia que passa a ser impossível de fundamentação

racional. E apenas a partir da possibilidade de se pensar a solidariedade social a partir de um interesse comum racionalmente obtido, a presença do interesse geral no particular como diriaHorkheimer, é que se pode nomear as perdas e o que é destruído nanova modernidade, assim como dar conta da possibilidade mesmada sua crítica.

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72 Jessé Souza

A obra que condensa e consolida os estudos realizados nas dé

cadas de 1960 e 1970 é a Teoria da ação comunicativa7 de 1981.O tema principal do livro é o resgate analítico e histórico do conceito de sociedade dual construído e revisado inúmeras vezes nasdécadas anteriores. O conceito dual de sociedade é a pedra de toque da originalidade da teoria crítica de Jiirgen Habermas. O queestá em jogo aqui é a recusa da visão de que a sociedade como umtodo deva ser democratizada, o que exige uma espécie de “com

 promisso” entre as necessidades funcionais da complexidade sociale formas pós-tradicionais de integração social. Fundamental paraessa empresa passa a ser a distinção entre “mundo da vida” ( Le- benswelt ) e “sistema” (System) enquanto esferas sociais regidas por

 princípios reguladores mutuamente excludentes.Uma exposição dos conceitos de mundo da vida e sistema tor

na-se, nesse sentido, fundamental para que compreendamos a especificidade da teoria crítica habermasiana e, especialmente, para que

 possamos compreender por que o direito irá assumir um papel tão proeminente nos últimos desenvolvimentos de sua teoria deliberativa da democracia contemporânea.

O conceito de sistema na teoria habermasiana é conseguido partir da recepção da teoria sistêmica parsoniana. Essa teoria temcomo noção fundamental o conceito de meio regulativo.  A teoriados meios foi uma idéia que Parsons “importou” da economia para

a sociologia. A economia neoclássica havia criado a idéia da economia como um subsistema relativamente independente que regulasuas trocas e relações com outros subsistemas mediante o meiodinheiro. Para Habermas, a teoria dos meios regulativos que irádesenvolver-se a partir dessa idéia consuma a transformação operada na obra parsoniana da integração social para - integração sistêmica. Em outras palavras, a interação entre os atores sociais passa a ser vista, preferencialmente, não mais como uma relação

intencional dos atores, mas sim como uma rede de mecanismosfuncionais que regulam as conseqüências inintencionais dessesatores.8

7  Idem. Theorie des Kommunikativen Handelns,   v. I e II, 1987.

8  Idem, ib idem,  p. 353.

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A m odern ização seletiva

Para Parsons, no entanto, o dinheiro é apenas o exemplo mais

claro de uma forma de regulação que ele irá estender a todos oscampos da vida social. Assim sendo, o papel do dinheiro na eco-nomia foi analogamente expandido para o poder, no âmbito dosistema político; para a influência, no sistema da integração sociale, finalmente, às obrigações valorativas relativamente ao sistemada preservação de modelos estruturais. A crítica habermasiana àteoria sistêmica parsoniana concentra-se, precisamente, na censura

do exagero na generalização  da noção de meio regulativo. ParaHabermas, se é razoável se pensar no dinheiro como regulador dasrelações e trocas econômicas, assim como, se bem com limitaçõesimportantes, do poder como regulador do subsistema político, ageneralização dessa idéia levaria ao erro e à omissão de desigualdades importantes entre as diversas esferas sociais.9

A vantagem do meio regulador consiste na sua capacidade de,sob certas circunstâncias, substituir com vantagens a comunicação

lingüística. Essas vantagens apontam principalmente para os ganhos de eficiência dos meios reguladores, que diminuem tanto 0

dispêndio que o processo de entendimento sempre acarreta comolambém o risco do fracasso na busca desse entendimento. A sem pre presente possibilidade do dissenso na interação comunicativa éeliminada pelos meios reguladores na medida em que um valorgenérico embutido no subsistema, do qual o meio regulativo é uma

espécie de “representante”, predetermina a orientação dos atoresenvolvidos. A situação que condiciona a escolha dos atores se baseia numa clara relação de interesses que permite que os atoresfundamentem suas decisões exclusivamente a partir do cálculo dosucesso e da maior vantagem possível. A  Alter   (o receptor da pro posta na linguagem parsoniana) restam duas alternativas - positivaou negativa - à oferta de Ego  (o emissor da proposta), o qual, porsua vez, está em condições de dirigir e manipular a escolha de

 Alter  a partir de novas ofertas.10 No caso paradigmático do dinheiro, a situação básica é a troca

de mercadorias. Os parceiros da troca seguem interesses econômicos, a utilidade é o valor genérico e a rentabilidade, 0  critério no

i)

9 Idem, ibidem ,  p. 388

10  Idem, ibidem ,  p. 393.

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74 - Jessé Souza

qual se mede o sucesso. Sob essas condições pode o dinheiro subs

tituir, com vantagens, a interação lingüística como regulador dacoordenação entre os atores nas relações específicas do subsistemaeconômico. Em vez de apelar para uma força motivada racional- mente como no caso do processo que visa ao entendimento, temosuma força motivada empiricamente,  ou seja, a partir da satisfaçãode necessidades por meio de bens materiais e palpáveis. A separação do meio dinheiro do contexto do mundo da vida não é, no en

tanto, total. A regulação formal das relações de troca pelo direito privado propicia uma rejunção desse meio ao mundo da vida.11"A tentativa de expandir o conceito de meio regulador do di

nheiro para o poder implica, para Habermas, certas limitações.Inicialmente existe uma série de diferenças quantitativas na possi

 bilidade de circulação, messibilidade, armazenamento e calculabi-lidade que o poder apresenta em relação ao dinheiro. Essas distinções são, todavia, apenas graduais.12 Decisivo entretanto é que o

 poder, ao contrário do dinheiro, exige um “ancoramento” em relação ao mundo da vida bem mais profunda e cheia de conseqüências. A diferença aqui não se refere apenas ao fato de o poder reas-sociar-se ao mundo da vida por meio das normas de direito público, em oposição às de direito privado, como no caso do dinheiro.O ponto decisivo é que o poder necessita de legitimação  e, paraesse fim, a comparação com o dinheiro não apresenta qualquer

analogia.13A causa da necessidade estrutural do meio poder por legitimação deve-se à relação desigual que marca toda relação de poder.Habermas parte do princípio de que na relação de troca, regulada

 pelo dinheiro, teríamos uma relação entre iguais, enquanto na relação de poder a heteronomia seria constitutiva. Enquanto na relaçãode troca nenhum dos envolvidos seria prejudicado no seu cálculoda utilidade (valor genérico do meio regulador dinheiro), teríamos

na relação entre dominantes e dominados uma desigualdade estrutural aqual impediria que as questões relativas à consecução dosobjetivos comuns de uma comunidade (valor genérico do meio

11  Idem , ib idem, p. 398.

12 Idem, ib idem,  p. 402-403.

13  Idem , ib idem,  p. 404.

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A modernização seletiva

 poder) pudessem ser resolvidas sem o recurso a um consenso lin

guístico. Os dominadores precisam demonstrar, com base em razões criticáveis e racionais, que eles efetivamente perseguem finscomuns. Essa necessidade faz com que possamos, apenas comreservas, referirmo-nos ao poder como um meio regulativo.14

A concepção habermasiana da troca de mercadorias como umarelação entre iguais pressupõe, com certeza, o fato de a normalização das relações de trabalho nos países industriais na Europa e naAmérica ter transformado, de forma fundamental, a relação entre odetentor da mercadoria força de trabalho e o detentor de meios de produção no mercado capitalista. Vimos como na passagem dodinheiro para o poder a noção de meio regulador passa a ser aceitaapenas com restrições importantes. A legitimidade da expansãodesse conceito para a análise da integração social, assim como parao sistema de preservação de modelos estruturais (os dois outrossubsistemas sociais da teoria parsoniana além da economia e da

 política), é negada completamente por Habermas. Nesse contexto,ganha sentido a crítica habermasiana da “razão funcionalista”. Osteóricos sistêmico-funcionalistas não teriam captado a especificidade desses subsistemas, os quais equivalem ao mundo da vidahabermasiano. Portanto, não podem prescindir do recurso da formação consensual da vontade racionalmente motivada.

Para Habermas, esses dois subsistemas representam antes duas

formas de entendimento: a primeira baseada no reconhecimento dereivindicações valorativas normativas; e a Segunda, no reconhecimento de reivindicações cognitivas. O próprio Parsons reconhece adistinção entre o tipo de influência que Ego  exerce sobre Alter,  nocaso da interação pelos meios dinheiro e poder e pelos meios influência e obrigações valorativas. Os primeiros devem modificar a“situação” em que Ego  e Alter  se encontram para conseguir sucesso; os últimos exigem, ao contrário, a tentativa de mudar as “inten

ções” de Alter.15Para Habermas, Parsons aponta a distinção entre ação estraté-

gica e comunicativa para depois, no entanto, omiti-las novamente.Para modificar a “intenção” de  Alter, Ego é   obrigado a conversar 

14 Idem , ib idem,  p. 406.

15  Idem, ib idem,  p. 415.

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76 Jessé Souza

com  Alter   para convencê-lo a mudar de opinião. A força ilocutiva

 própria às iniciações lingüísticas é uma condição universal e necessária nesse caso. Do contrário, restaria a Ego a possibilidade dealuar sobre a “siluação”, o que, de resto, confere o sentido da açãoestratégica. Como resultado da recepção parcial da teoria sistêmica parsoniana, temos a admissão do conceito de meio regulativo ape-nas para a economia e, de forma condicionada, para a política. Essasingularidade do subsistema político irá mais tarde, como veremos,assumir a forma de uma dualidade específica do subsistema político dividido em poder administrativo e poder comunicativo.

Antes de analisarmos o conceito de mundo da vida, torna-senecessário compreender-se, ainda que esquematicamente, o queHabermas entende por “pragmática universal”. O objetivo da

 pragmática universal é explicitar e reconstruir as condições universais do sistema de regras que geram a possibilidade de um diálogo.16 Habermas parte da distinção entre língua e fala (ou diálogo)

 para diferenciar os níveis de análise da lingüistica que se ocupa,enquanto teoria da capacidade lingüística nos termos de Chomsky,da reconstrução do sistema de regras das quais um emissor com petente faz uso para a construção de frases. Nesse sentido, as frasessão os elementos fundamentais do objeto de estudo da lingüística.A lingüística ocupa-se, enquanto ciência formal, da língua em oposição à fala, ou seja, ocupa-se da língua como estru:ura e não como processo.

Para Habermas, e isso é fundamental para o conceito de pragmática universal, também a fala ou o diálogo, o elemento processual portanto, é passível de uma análise formal e não apenas empírica. De modo análogo à lingüística chomskyana, portanto, procuraHabermas uma análise formal também das “expressões”.17 As ex

 pressões são frases “em situação”, ou seja, unidades pragmáticasda fala ou do diálogo. Esse aspecto pragmático das expressões

motivou J. L. Austin a denominar essas unidades elementares dodiálogo de “atos lingüísticos”. Com um ato lingüístico eu não apenas digo ou comunico alguma coisa, mas também “atuo”, ou seja,efetuo uma ação. No exemplo: eu prometo a você que voltarei

16 Jürgen Habermas, op. cil,  1985, p. 102.17

 Ich'in, ih idem, p. 359.

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A m odernização seletiva   77

amanhã, eu não apenas “comunico” uma promessa, mas “prometo"

de fato algo.18Os atos lingüísticos enquanto unidades elementares do diálogo possuem uma estrutura dupla. Como no exemplo anterior eles sãoformados: A) por um elemento performativo, no caso “eu prometoa você”; e B) por um elemento proposicional, no caso “que voltareiamanhã”. O primeiro elemento, que é o elemento dominante, postoque determina a forma como a proposição é utilizada, constituiuma relação entre emissor e receptor. O segundo componente é o

dependente e indica “sobre o que” emissor e receptor se comunicam. Um entendimento entre emissor e receptor só se efetivaquando os dois níveis são consumados. O primeiro nível é o daintersubjetividade no qual os atores se entendem entre si. O segundo é o nível do objeto sobre o qual os atores se entendem.

Um ponto decisivo nessa apropriação crítica das investigaçõesde Austin por Habermas é a reformulação do sentido do compo

nente performativo, chamado de “força ilocutiva” por Austin. ParaHabermas, ao contrário de Austin, a força ilocutiva do componente performativo possui uma base racional.  Essa base racional docomponente ilocutivo reside no caráter “cognitivo”, ou seja, passível de exame discursivo e racional baseado em argumentos das“reivindicações valorativas” contidas no elemento ilocutivo.19

Para Habermas, essas reivindicações valorativas são exatamente três: a reivindicações valorativa à verdade, à justiça e à sinceridade. Apesar desses três aspectos existirem sempre de formauniversal e necessária em todo o ato lingüístico, pode-se inferir docomponente ilocutivo qual dos três aspectos foi privilegiado peloemissor. Se a validade dos atos lingüísticos pode ser afirmada ounegada sob esses exatos três aspectos, pode então Habermas baseara partir daí sua divisão dos atos lingüísticos. Cada um deles iráconstituir-se segundo o aspecto privilegiado pelo emissor: a) a

 primeira classe de atos lingüísticos, os constativos, constitue-se pela referência do emissor a algo no mundo objetivo, ou seja, pelatentativa de interpretação de um estado de coisas (a reivindicação

 pretendida nesse caso é a da verdade); b) o segundo tipo de ato ou

18  Idem, ib idem,  p. 102.19

 Idem, ib idem, p. 433.

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ação lingüística e a regulativa (nesse caso o emissor faz referência

a algo no “mundo social” compartilhado tanto pelo emissor como pelo receptor e a reivindicação pretendida é a de justiça baseada nalegitimidade de relações intersubjetivas reconhecidas comumente);c) o terceiro tipo de ação é a expressiva, na qual o emissor faz referência ao próprio mundo subjetivo, a que apenas ele tem acesso privilegiado (a reivindicação pretendida nesse caso é a da sinceridade).20

Os atos lingüísticos pressupõem três distinções fundamentais para o estabelecimento de uma comunicação: a distinção entre ser eaparência (Sein und Schein) que confere sentido à reivindicação daverdade; a distinção entre ser e dever ser (Sein und Sollen)  queinspira a reivindicação à justiça; e, finalmente, a distinção da antinomia entre realidade e ilusão (Wesen und Erscheimmg)  que confere sentido à reivindicação à sinceridade.21 O poder vinculante dosatos de fala, que criam “obrigações” para os participantes da co

municação, vai ser a base do conceito de “ação comunicativa” emHabermas. Cabe ao conceito de mundo da vida esclarecer de quemodo cada uma dessas relações na dimensão da ação social contri

 bui para a reprodução da integração social como um todo.O conceito de mundo da vida significa para Habermas o “lugar

transcendental” do indivíduo, no qual ele está desde sempre insertoe em relação ao qual é impossível uma atitude de distância. Ele étambém o lugar que permite as condições de possibilidade do entendimento e da crítica. O entendimento dá-se sempre, como vimos, em relação a três mundos formais: o objetivo (da naturezaexterior), o social (da sociedade) e o subjetivo (de natureza interna). O mundo da vida é precisamente o pano de fundo que permiteo entendimento dos atores nesses três níveis. Esse “pano de fundo”é formado pela cultura e pela língua, assim como pelas tradições evalores transmitidos pela língua. Enquanto o mundo da vida é

constitutivo para o entendimento, os três mundos formais formam

20 Jürgen Habermas, 1987 I, op. cit.,  p. 435-439.21

 Idem , op. cit.,   Habermas, 1985, p. 103. Um quarto tipo de ato lingüístico seriao comunicativo (Kommwiikative) o qual foge ao âmbito da pragmática universal, sendo objeto da lingüística. A reivindicação pretendida no caso é a dacompreensibilidade.

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A m odernização seletiva

o si s te m a de referência sobre o que  se produz o entendimento.

A concretização do horizonte do mundo da vida consuma-se com a s i t u a ç ã o . Uma situação é uma parte do mundo da vida, que é reti-

rada do todo uniforme e indiviso pela proposição de um tema. O tema, por sua vez, delimita a esfera do mundo da vida que seráobjeto da discussão dos atores.22

Aqui cabe distinguir essa noção de tema do sentido que essemesmo nome assume na fenomenologia social de um A. Schutz ouum T. Luckmann. Para esses autores, um tema representa o domínio de relevância que constitui uma situação a partir dos planos de pelo menos um dos atores envolvidos, no sentido de lograr a realização de seus fins. A referência à consciência individual é clara eimediata.23 Para entender-se como a concepção habermasiana fogea referência ao papel da consciência individual, temos de analisar omundo da vida de uma perspectiva formal-pragmática. Habermas parte da análise do conhecimento implícito como a base da práxis

diária do mundo da vida. Esse conhecimento implícito ou pré-reflexivo é distinto, para Habermas, tanto do conhecimento “com-lematizado” como do conhecimento tematizado. Num ato lingüístico qualquer, temos na proposição a incorporação do conhecimentotematizado. O componente performativo, por sua vez, apresentaum caráter meramente com-temático, posto que se consuma numaação e não na apresentação explícita de um conhecimento. Para aapropriação do significado do ato ilocutivo assim consumado, exige-se uma descrição do mesmo, ou seja, a passagem da perspectivado ator para a do observador.24

O conhecimento pré-reflexivo não-temático distingue-se doanteriormente analisado conhecimento com-tematizado exatamente

 pela impossibilidade do seu acesso pela simples mudança de pers pectiva. O conhecimento pré-reflexivo exige uma análise de pressuposições. Não-temáticas são precisamente aquelas pressuposi

ções por meio das quais uma ação lingüística pode realizar-se e sertida como legítima ou não. Esse é o terreno no qual todo conhecimento tematizado ou com-tematizado apóia-se e que, em última

2 2  Idem , ib idem ,  p. 187-192.

2 3  Idem , ib idem,  p. 198.24

Jürgen Habermas,  Nachinetaphysic/ ies Den ken,   1988.

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80 Jessé Souza

instância, propicia a plausibilidade das reivindicações valorativas

 proposlas. Habermas distingue três níveis do conhecimento não-temático: a) um horizonte de conhecimento relativo à situação; b) um conhecimento contextuai dependente do tema proposto; ec) um conhecimento de fundo. Os dois primeiros são conhecimentos de primeiro plano em comparação com o último.25

O primeiro desses níveis refere-se ao horizonte não imediatamente relacionado com a situação dialógica em termos espaço-temporais, mas que, ainda assim, oferece as condições para a aceitabilidade das expressões. O segundo nível diz respeito, por suavez, ao contexto mais amplo que o compartilhamento de uma língua ou cultura oferece. O terceiro nível, por outro lado, difere dosdois anteriores pela dificuldade de tornar-se problematizável. Eleforma a fonte obscura e inconsciente dos dois outros níveis. Apenas por meio do esforço metódico se pode chegar a esse nível etorná-lo explícito.

Esse último nível apresenta três característica^ principais: a) asua “imediaticidade”, que se deve ao caráter não temático de certezas; b) a “força totalitária” que implica o dado da intersubjetivida-de como primário (e não o “corpo” como na fenomenología); c) o“holismo” que confere o caráter de entrelaçamento e mistura dascertezas que compõem esse nível. Essas três características do conhecimento de fundo conferem a particularidade de “função fundamental” do mundo da vida.26 Sob o ponto de vista ontogenético,a distinção entre a relação com o mundo exterior e com o mundosocial consuma-se de forma gradual e lenta. As experiências quetêm a ver com a natureza interna, com o mundo dos sentimentos ecom o próprio corpo, portanto, são indiretas e espelham-se nasexperiências com o mundo exterior. Talvez esteja aqui o elementode “surpresa”, de criação do novo, pelo menos potencialmente, jáque Habermas une as experiências do mundo in^rior à arte e à

experiência estética em geral. Com a autonomização estética dessas experiências subjetivas, inauguram-se novas formas de ver,sentir e comportar-se. As experiências estéticas, dessa forma, não

25 Id em , ib idem,  p. 89.

26 Idem , ib idem, p. 93.

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A m odernização seletiva Hl

lít/L'in parte das formas práticas do mundo cognitivo e moral e t<ém

n vrr, portanto, com a função constitutiva e descobridora da língua.A terminologia de conhecimento de fundo, de primeiro plano e

iiuacional, consuma-se na perspectiva participativa de atores ern-Imnliados no processo de entendimento. Como um todo, o mundoila vida deixa-se ver e analisr.r apenas a partir de uma mudança de perspectiva objetivante. Aqui, o ator não é o iniciador dos procesáis, mas sim produto de tradições. Essa perspectiva objetivante permite captar o mundo da vida enquanto, “reprodução simbólica”,Kprodução esta possibilitada e mediada pela interação comunicativa entre os atores.27 A interação social baseada na ação comunica-li va contribui para a reprodução do mundo da vida em cada um dosires aspectos nos quais um emissor se entende com um receptor.( ora a coordenação de ações comunicativas temos a possibilidadede integração de uma sociedade. Já sob o ponto de vista do entendimento sobre o dito ou afirmado temos a produção e manutenção

das tradições culturais, e sob o aspecto da socialização temos a produção de identidades individuais.28Assim, percebe-se como a ação comunicativa permite a repro

dução do mundo da vida. A tradição cultural é possibilitada pelo processo de entendimento; a produção de ordens legítimas, pelacoordenação de ações (as quais se baseiam no potencial integrativodo componente ilocutivo das ações lingüísticas); e a produção deestruturas de personalidade, pelo processo de socialização. Cultura é a reserva de conhecimentos alimentada pelas “interpretações” dos participantes nos processos comunicativos. Sociedade29 compõe-sede ordens legítimas nas quais os participantes dos processos comunicativos regulam seu pertencimento a grupos sociais e asseguram“solidariedade”. Personalidade  é o conjunto de motivações queinspira o sujeito ã ação e produz “identidade”. Os três componentesdo mundo da vida possuem dimensões distintas. As tradições cultu

rais são as mais amplas em seus efeitos espaço-temporais, como

27 Idem, ib id em , p. 96.

28 Idem, ib idem ,  p. 96-97.

29Aqui Haberm as usa, a exemplo de Parsons, a palavra socieda de tan to pa radesignar a formação social como um todo, quanto para referir-se a uma parcialidade desta que se ocupa da produção de solidariedade.

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8 2 Jessé Souza

atesta o exemplo das religiões mundiais. As sociedades são mais

amplas que personalidades no aspecto espaço-temporal, mas, porsua vez, mais limitadas que as tradições culturais. Todos os aspectos são, no entanto, entrelaçados.

Com esse conceito de mundo da vida, logra Habermas descrever a forma como se consuma a reprodução simbólica de uma sociedade nos três níveis da cultura, da solidariedade social e da socialização. Ele procura, dessa forma, superar as concepções unilateraisdominantes que enfatizavam apenas um desses aspectos, incorren

do assim em reducionismos distintos: um de caráter culturalista,como no caso da fenomenología social; outro pela ênfase exclusivano aspecto da solidariedade social, como em Durkheim e Parsons;e finalmente a redução social-psicologista, como na obra de G. H.Mead. Os três aspectos valorativos implícitos em qualquer açãolingüística são vistos aqui sob a perspectiva da sua contribuição

 para uma teoria social.30

O conceito de sociedade como um todo enquanto uma combinação de reprodução material (sistema) e reprodução simbólica(mundo da vida) também é interpretado por Habermas como umaconquista em relação a outros reducionismos que tomam a parte

 pelo todo, como no exemplo de Parsons - reducioaismo sistêmico- ou Mead - reducionismo pelo aspecto do mundo da vida. Essaconcepção dual implica também a adoção das perspectivas internado sujeito-ator (mundo da vida) e externa não-participante e observacional (sistema), cada uma delas preservando sua legitimidaderegional.

A sociedade como junção de sistema e mundo da vida não foi,de modo algum, um dado sempre existente. Ao contrário, só associedades resultantes do processo de racionalização que marcou a passagem, no mundo ocidental, das sociedades tradicionais às modernas apresentam essa dualidade. A concepção dual de sociedade

em Habermas permite um diagnóstico original das patologias domundo moderno. Elas são, nos países avançados do Ocidente, emnúmero de duas, separáveis analiticamente, apesar de intimamenterelacionadas. Essas duas patologias são a colonização do mundo da vida e a fragmentação do mundo da vida. Enquanto a tese da colo-

30Jürgen Habermas, 1987 II, p. 180.

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A m odernização seletiva 83

mização do mundo da vida se refere à instrumentalização dos recur

sos  comunicativos pelos imperativos sistêmicos do dinheiro e dopoder   administrativo, a tese da fragmentação do mundo da vidaaponta para o abismo entre a cultura dos especialistas e a da massa,acarretando a desintegração do elo orgânico entre a apropriação e acrítica da tradição herdada no contexto da prática cotidiana. O con-ceito dual de sociedade habermasiano permite perceber a seletividade do desenvolvimento ocidental, de modo a nossibilitar, aomesmo tempo, uma consciência crítica sobre suas conseqüênciasindesejáveis por um lado, assim como a consideração das conquis-tas positivas e as potencialidades da modernidade ocidental.

 No entanto, o nível de abstração conceituai do “Teoria da açãocomunicativa” não permite perceber-se como, na dimensão con-creta da vida prática de todos nós, levando-se em conta as institui-ções efetivamente existentes, pode-se pensar na articulação entrecomunicação e funcionalidade ou, em outros termos, na articulação

entre democracia e complexidade social. A publicação de “Direitoe democracia”31 em 1992, exatamente trinta anos após a publicaçãodo “Mudança Estrutural”, visa precisamente a preencher essa lacu-na. Podemos perceber, nessa distância de trinta anos, como asmesmas questões que preocupavam o jovem Habermas puderamser reapreciadas agora dentro de um quadro referencial teóricooriginal e pessoal.

O direito como mediador entre sistema e mundo da vida

O interesse que levou Habermas ao estudo da moderna teoria jurídica num esforço que durou toda a década de 1980 se explica pela necessidade, no contexto do desenvolvimento da teoria da

ação comunicativa, de precisar a relação entre a razão comunicati-

vai  produzida espontaneamente nos contextos do mundo da vidaracionalizada com a realidade institucional e a complexidade fun-cional característica das sociedades modernas. A dificuldade e a

31 Idem, D ire ito e democracia . En tre factic id ad e e validade..  Tempo Brasileiro,Rio de Janeiro, 1997. As referências seguem a edição brasileira traduzida porFlávio Beno Siebeneichler.

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84 Jessé Souza

importância da empresa habermasiana ficam estabelecidas já a

 partir deste dado fundamental: o desafio de articular complexidadefuncional e espontaneidade social. Da resolução desse desafio de

 pendem tanto a vida prática como a compreensão teórica da democracia moderna.

A razão comunicativa distingue-se de outras visões da razão prática, antes de tudo, por tentar evitar a referência da racionalidade a sujeitos individuais ou coletivos, em favor de uma visão inter-subjetiva baseada no uso comum do meio lingüístico prenhe deconseqüências. Nesse contexto, não se pode falar de “avaliaçõesfortes”, ou seja, de um conjunto de valores que guiem conscienteou inconscientemente a ação humana. Ao contrário, aqui importamapenas os pressupostos e conseqüências inevitáveis da comunicação lingüística. O aspecto motivacional, portanto, reduz-se à “fraca” e despretensiosa força da motivação racional.

O direito torna-se fundamental para o projeto habermasiano na

medida em que, nas condições das sociedades pós-tradicionais,apenas ele permite a expressão simultânea de um acordo racionalmente motivado com a ameaça de sanções externas. Ele permite,em certo sentido, perceber a relação interna entre constrangimentossociais inexoráveis e racionalidade, compreendida esta últimacomo a possibilidade de uma condução de vida (individual ou coletiva) consciente.

Ao contrário do direito tradicional, o qual se alimenta e se encontra ligado à força do elemento sagrado religiosamente sublimado, o desafio de uma sociedade profanizada é estabilizar formas deintegração social (as quais por definição não podem ser conseguidas apenas com o recurso à ação estratégica, como o “paradoxohobbesiano” bem mostra) baseadas, em última instância, no agircomunicativo.

 Nas condições das sociedades modernas cabe ao direito, preci

samente, exonerar os atores da sobrecarga da integração social.Essa exoneração dá-se na medida em que a validade social do direito depende da facticidade artificial da ameaça de sanções peloEstado. No entanto, esse vínculo entre facticidade e validade não éexterno, como na suposição positivista de um direito que se legitima a si mesmo pelo procedimento. No contexto de uma sociedade

 pós-tradicional, o direito coercitivo só consegue garantir sua força

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A modernização seletiva

integradora apenas na medida em que os destinatários da norma se

vejam, ao mesmo tempo, como os autores das mesmas.O argumento habermasiano contra o positivismo jurídico (MaxWeber, Niklas Luhmann) pode ser melhor compreendido se perce

 bermos como se dá historicamente, na evolução social, a imbrica-çlo entre moralidade e instrumentalidade como momentos insepa-láveis do sistema jurídico.32 No nível da moralidade pré-convencional, um árbitro pode apenas fechar “compromissos”, namedida em que lhe resta apelar para sua influência.  A uma autoridade impessoal e à consciência moral dos participantes ele não pode ainda apelar. Este nível de desenvolvimento só é alcançadocom o advento da consciência moral convencional. Nesse contextoé possível a um chefe político ou um juiz apelar para uma moralque coage a todos enquanto moral, e não apenas por intermédio deseu prestígio pessoal ou influência.

Duas conseqüências importantes advêm desse fato. Primeiro

torna-se possível transformar-se influência (uma categoria empírica) em poder autorizado (uma categoria moral) normativamente pelo reconhecimento intersubjetivo de normas. A partir dessatransformação abre-se também a possibilidade de delegação de autoridade,  visto que a autoridade legítima se baseia, agora, em princípios impessoais vinculantes, permitindo a organização burocrática da dominação. Quando chegamos a esse ponto de desenvolvimento, o duplo aspecto do direito estatal, o fato de concentrar emsi simultaneamente um momento de imparcialidade (moral) e ins-trumentalidade (eficácia funcional), está criado.

 Na passagem para a modernidade, uma nova transformação daconsciência moral passa a ser decisiva para o desenvolvimento dodireito moderno. No contexto de uma moralidade pós-convencionalnão existe mais espaço para a integração normativa da sociedade a partir de princípios superiores percebidos como imutáveis. Na vi

são habermasiana, é a racionalidade procedural a única forma que pode, em condições pós-tradicionais, constituir-se como a instânciade imparcialidade do direito. A figura do contrato, central no direito civil moderno, e a extensão dessa idéia no contrato social sãoo fundamento mesmo do direito constitucional moderno sob a for

32 Idem, ibidem, v. II p. 193-249.

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ma de uma aceitação sem pressões por parte de todos os funda

mentos da organização política. Nesse sentido, o direito moderno provê sua legitimação dessa base de uma moral procedural e autônoma que não se restringe aoaspecto instrumental. A autonomia do direito moderno (seja nalegislação, seja na jurisdição) só pode ser conseguida, agora, na medida em que  se abre para caminhos de argumentação moral.É esse raciocínio que está na base da afirmação de Habermas deque não existe direito autônomo sem democracia real,  ou de que o

direito coercitivo só consegue garantir sua força integradora apenasna medida em que os destinatários da norma se vejam, ao mesmotempo, como os autores das mesmas. A ambigüidade constitutivado direito é o motivo que permite que ele se transforme, nas modernas sociedades complexas, do meio por excelência que permitea tradução da linguagem cotidiana, que impera no mundo da vida,em linguagem compreensível aos subsistemas altamente diferen

ciados da economia e da política e vice-versa. No estado de direito delineado a partir da teoria do discurso, asoberania do povo não se encarna mais na idéia de sujeito, seja estecoletivo, seja individual. Ao contrário, temos sempre processossem sujeito  sob a forma de foros, arenas e associações nos quais aforma anônima é constitutiva. É esse poder comunicativo anônimo,estruturado na circulação de consultas e de decisões racionais queconstitue a parte comunicativa  do poder político do Estado democrático de direito. A outra metade do poder político é o poder administrativo, o qual funciona segundo preferências funcionalmenteembutidas no sistema burocrático estatal. A coordenação de açõesindividuais dá-se de modo distinto em cada caso. No primeiro,temos um consenso sobre valores, enquanto no segundo, umacompensação de interesses. No primeiro caso temos entendimento e no segundo, negociação. No primeiro caso, a união ou o acordo

dá ensejo a um consenso; no segundo, a um pacto.A extraordinária dificuldade nesse tema não é a distinção analítica entre as duas formas de coordenação de ações, mas a suainterpenetração. A enorme importância do direito para Habermasadvém dessa circunstância: para ele, o direito é o meio  pelo qual o

 poder comunicativo pode transformar-se em poder administrativo.O estado de direito deve precisamente regular essa procuração  do

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A m ode rnização seletiva H7

 poder comunicativo que se transforma em poder administrativo,

impedindo este último de tornar-se uma implantação nua e crua deinteresses privilegiados. O poder administrativo não deve ser auto-reproduzido, mas sim regenerado a partir do poder comunicativo.A noção de estado de direito ilumina a forma de produção pós-tradicional de um recurso escasso no mundo contemporâneo: asolidariedade. Nesse sentido, o estado de direito deve produzir umequilíbrio entre todos os poderes de integração global da sociedade: dinheiro, poder administrativo e solidariedade. O imbricamentoentre normatização discursiva do direito e formação comunicativado poder só é possível porque, no agir comunicativo, os argumen-tos também se constituem em motivos para a ação.

 No entanto - e este aspecto inaugura um amplo campo dequestões fundamentais —, nas comunidades concretas não são apenas os argumentos morais universalizáveis que contam. Ao direito,a0 contrário da moral, cabe organizar comunidades jurídicas que se

afirmam num ambiente social dado e sob especialíssimas condições históricas. Em uma proporção importante, o direito servetambém para espelhar a vontade política de uma forma de vidacompartilhada intersubjetivamente e de acordo com uma situaçãode interesses dados e de fins pragmaticamente escolhidos. Issosignifica que o meio do direito se abre também, em medida considerável, para questões pragmáticas e éticas, ou seja, interesses práticos concorrentes e normas comunitárias ou valores culturais nãouniversalizáveis. Também as normas morais incorporam interessese valores, mas apenas àqueles generalizáveis,  ou seja, passíveis deuniversalização.

Assim, a “igualdade” típica do sistema jurídico não se transforma diretamente em justiça, dado que o grau de abstração doordenamento não atinge 0  grau de abstração típico de questões de justiça, 0 qual se refere apenas a normas passíveis de universaliza

ção. Os temas relevantes do ponto de vista jurídico também abrangem necessariamente questões de vida concreta, bens coletivos particulares e questões de identidade grupai em sentido estrito. Issosignifica que o ordenamento jurídico tem de se abrir para questõeséticas e não apenas morais. Além disso, tem de levar em conta problemas de compensação de interesses não-generalizáveis, forçando compromissos e acordos pragmáticos. A generalidade e a

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88 Jessé Souz a

igualdade jurídica só são alcançadas quando se expressa um con

senso racional com relação a todos esses tipos de problemas. No entanto, os discursos pragmáticos e éticos não desvirtuamo fundamento discursivo (e moral) da democracia moderna. Afinal,até os compromissos pragmáticos precisam ser justificados,  sob aforma de discursos morais universalizáveis, na medida em queesses acordos  precisam da suposição da eqüidade  para seremaceitos como válidos. Negociações pragmáticas equitativas pressu

 põem e não destroem o princípio do discurso.33 O mesmo princípio

é válido para as questões éticas. Nesse sentido, o fundamento mesmo do processo democrático

é percebido como o mecanismo de formação discursivamente estruturada da opinião e da vontade (no caso do legislador político)com relação à questão: o que devemos fazer?  Esta questão, comovimos, pode ser respondida racionalmente de várias formas.O princípio da soberania popular reinterpretada pela teoria do dis

curso implica uma constante vigilância em relação à possibilidade,sempre latente, de uma instrumentalização do direito para fins estratégicos do poder administrativo a partir do nexo de constituiçãorecíproca existente entre direito e poder político. A soberania po

 pular na teoria do discurso, num contexto de racionalização domundo da vida, resulta na necessidade do pluralismo político assegurada pela formação informal de opinião na esfera pública política, aberta a todos os cidadãos. Essa formação informal da opinião,

que prefigura a formação política da vontade influindo nela, requerfluxo livre e espontâneo de opiniões, não podendo ser organizadasem ou por corporações.

Ao mesmo tempo, o poder comunicativo não pode dominar o Estado (o poder administrativo), mas deve apenas influenciá-lo edirecioná-lo. Independentemente dessa influência, apenas o Estado pode agir legitimamente. No modelo da teoria do discurso, a sobe

rania popular é procedimentalizada,  numa democracia sem sujeitoque implica uma concepção descentrada de sociedade. Contra orepublicanismo não se pensa, nesse contexto, em “sujeitos coletivos” de qualquer espécie, ao qual cabe repolitizar a esfera pública eo Estado. Contra o liberalismo, por sua vez, não se defende uma

33  Id em, ib idem , v. I p. 209.

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A m odernização seletiva

ideia de sociedade compreendida economicamente, a qual deve

garantir um bem comum apolítico.Assim, é o conceito de uma esfera pública racionalizada que

deve garantir racionalidade e eqüidade aos procedimentos democráticos. A simples regra da maioria não é em si garantia de racionalidade. O importante é saber-se de que forma se logra uma maioria  e nesse desiderato o debate público e a discussãoinstitucionalizada de questões práticas passam a ser constitutivosdo conceito de racionalidade na política.34 Um pressuposto dessaidéia, por sua vez, é o fato de uma esfera pública, ou, de modomais abrangente, um mundo da vida racionalizado, exigir uma basesocial de igualdade material e simbólica por meio da superação das barreiras criadas pela estratificação social e pela exploração sistemática. Para uma reflexão sobre o caso brasileiro, esta circunstância parece-me de longe a mais importante:

A esfera pública precisa contar com uma base social na qual osdireitos iguais dos cidadãos conseguiram eficácia social. Paradesenvolver-se plenamente, o potencial de um pluralismo cultural sem fronteiras necessita desta base, que brotou por entre barreiras de classe, lançando fora os grilhões milenares da estratificação social e da exploração, e se configurou como um potencial que, apesar de seus inúmeros conflitos, produz formasde vida capazes de gerar novos significados.35

O direito é o transformador  da linguagem coloquial do mundoda vida racionalizado na linguagem mediática dos sistemas auto-regulados da economia e da política administrativa, permanecendoesses sistemas, desse modo, ancorados no mundo da vida. De certomodo, o meio jurídico reveste e transforma as comunicações domundo da vida de tal modo que. estas possam ser “compreendidas”e assimiladas pelos códigos especializados dos sistemas auto-

regulados. Sem esse “transformador” não seria possível à linguagem comum circular por toda a sociedade. Com essa idéia, Habermas pretende combater a visão (da moderna teoria dos sistemas,especialmente na versão de Niklas Luhmann), da política e do di

34 Idem, ib idem, v. II p. 27

35 Idem , ib idem, v. I I p. 33

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90 Jessé Souza

reito como dois sistemas fechados. A íntima interpenetração dessas

esferas sociais é, desse modo, central para o projeto habermasianode aceitar o ganho em complexidade que os sistemas autodiferen-ciados representam, sem abrir mão da necessidade de legitimaçãodesses sistemas a partir do mundo da vida.

A relação entre o elemento de poder administrativo (auto-regulado) do sistema político e o mundo da vida é percebida porHabermas como uma articulação entre um centro e uma periferia.O centro do sistema político é formado pelos complexos institucio

nalizados dos poderes do Estado. Dentre os poderes do Estado, oexecutivo constituiria o núcleo, com simultaneamente alta capacidade de ação e baixa sensibilidade para à tematização de problemassociais. O legislativo, por sua vez, é mais sensível a tematização dequestões controversas advindas da periferia, possuindo, no entanto,comparativamente ao executivo, baixa capacidade de elaborar ereagir a essas demandas.

 Nas margens do centro político teríamos uma periferia interna,a qual abrangeria inúmeras instituições com funções estatais delegadas com variados graus de autonomia, e uma extensa rede decompradores e fornecedores dos serviços estatais. Além dessa periferia, que na realidade é mais uma extensão do Estado do que seucontraponto, temos uma verdadeira periferia  que congrega todauma infra-estrutura civil da esfera pública dominada pelos meiosde comunicação. A manutenção dos fluxos comunicativos por

meio de um “sistema de comportas” entre a periferia e o centro éfundamental para a legitimidade das decisões impositivas. Essas“comportas” são, basicamente, o complexo parlamentar e os tribunais. A idéia da influência da periferia sobre o centro tem a vercom a possibilidade de quebrar-se o momento inercial consubstanciai ao poder administrativo, fazendo com que a rotina burocráticaseja questionada de modo a sensibilizá-la para problemas latentes

de integração social.A sensibilidade da periferia para tematizar questões e problemas, por sua vez, depende da medida em que os processos de formação da opinião pública possibilitem uma formação mais ou menos espontânea da opinião pública. Essa “espontaneidade” dependeda maior ou menor eficácia da racionalização do mundo da vida.A form a mais ou menos democrática das associações e movimen-

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A m odernizaçã o seletiva

los sociais,  e não apenas o seu número, é um elemento fundamen

tal desse raciocínio. Cabe a essa “espontaneidade social” a produção do recurso social mais escasso nas sociedades pós-tradicionais:sentido compartilhado e, a partir disso, solidariedade.36

A esfera pública é percebida por Habermas, portanto, comouma caixa de ressonância  em que os problemas politicamente relevantes problematizados no mundo da vida encontram eco. Cabe àesfera pública, também, ser capaz de tematizar as questões problemáticas de modo eficiente, ou seja, tem de conseguir dramatizar os problemas de modo a sensibilizar e convencer a opinião pública econtribuir para a modificação da vontade política. A esfera públicatransforma-se, nesse sentido, em uma instituição constitutiva domundo moderno, para Habermas. Ela pode ser descrita como umarede de comunicação de conteúdos e de tomadas de posição e opiniões as quais são filtradas e sintetizadas a ponto de formarem“opiniões públicas”.

Do mesmo modo que o mundo da vida como um todo, o qualenfeixa todas as relações intersubjetivas na sua definição conceituai, a esfera pública reproduz-se a partir do agir comunicativo.A esfera pública é o “espaço social” da prática comunicativa queconfere vitalidade ao mundo da vida. A partir do instante em que oespaço público se estende além das interações simples, temos umaabstração do princípio da esfera pública, mas não necessariamente

sua desvirtuação como acontecia no jovem Habermas do “Mudança estrutural da esfera pública”. Afinal, a luta por influência  naesfera pública pressupõe convencimento  dos participantes. Assim,a desigualdade estrutural do acesso aos meios de comunicação e afontes de prestígio pessoal não retira a autoridade do público queassente, na medida em que o público de leigos tem de ser conquistado argumentativamente, no contexto de uma esfera pública minimamente pluralista. A esfera pública política compartilha com a

esfera pública literária o objetivo de articular experiências e sofrimentos vividos na dimensão das vidas privadas individuais. A relação de ambas as esferas com a esfera privada - e isso é válidomuito especialmente para a esfera pública política - precisa operar 

36 Solidariedeade é pensada nesse contexto não como um conceito normativo,mas como uma categoria empírica.

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uma “comunicação modificada” das experiências privadas de

modo a ligá-las a aspectos politicamente relevantes.37O núcleo organizado institucionalmente da esfera pública é o

que Habermas chama de sociedade civil, ou seja, o conjunto demovimentos, organizações e associações que captam os ecos dos problemas sociais que refluem das esferas privadas e se condensamna esfera pública política. O bom funcionamento de uma sociedadecivil pressupõe liberdade de imprensa, opinião, reunião, pluralismo

de formas de vida, proteção da privacidade, cidadania autônoma eesfera privada intacta. Uma esfera pública organizada na sociedadecivil e baseada na formação da opinião livremente formada, capazde influenciar a formação da opinião e da vontade política do com

 plexo parlamentar, forma, para Habermas, a tradução sociológica38 

do conceito de política deliberativa. Nos trinta anos que separam o “Mudança estrutural da esfera

 pública” do “Direito e Democracia”, temos a renúncia explícita doideal de auto-regulação política da sociedade como um todo, nosentido republicano ou revolucionário marxista. O objetivo da reforma social e do aprofundamento democrático deve manter-sedentro dos limites da influência do complexo parlamentar, sem oque os movimentos organizados da sociedade civil perdem suaforma “autorizada”. A concepção deliberativa e discursiva da democracia pode ser concebida, simultaneamente, como um meio-

termo e uma alternativa aos modelos republicanos e liberais concorrentes.A importância da inserção do conceito de esfera pública na

nossa discussão permite um ganho singular em relação à abordagem do que vimos nos referindo como nossa sociologia da inau-tenticidade. Ela permite a ampliação da problemática relativa ao

 processo de modernização brasileiro de modo a superar o aspectomeramente técnico, instrumental, envolvido no tema da modernização de Estado e de mercado capitalistas. O tema da esfera públi-

37  Id em, ib idem, v. II p. 98.38

 Id em, ib idem, v. II p. 104.

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A m odernizaçã o seletiva

ca possibilita a discussão da questão do aprendizado coletivo no 

sentido também prático-moral como elemento principal do processo  pedagógico pressuposto na democracia. Esse tema é de imensa.atualidade para o desafio do aprofundamento democrático no caso

 brasileiro, como veremos.

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Capítulo 4

Charles Taylor e a teoria críticado reconhecimento

A crítica ao naturalismoA configuração política das últimas décadas tem apresentado

novos desafios à reflexão nas ciências sociais. Especialmente a perda relativa de importância das contradições de classe que marcaram o último século de conquistas social-democratas se mostracomo um desafio à reflexão crítica nas sociedades avançadas - masde forma alguma apenas nelas - do Ocidente. Nesse contexto de

rápidas transformações, uma perspectiva teórica tem logrado galvanizar a atenção de pesquisadores de diversas áreas como umaopção promissora para a autocompreensão de aspectos importantesda nossa situação atual. No centro mesmo dessa perspectiva teóricaencontramos a proposição da categoria do reconhecimento socialcomo uma noção fundamental para uma reflexão das novas contradições do momento em que vivemos.

 Na obra de Charles Taylor e Axel Honneth, os dois representantes mais originais dessa perspectiva teórica, o resgate da categoria de reconhecimento como a categoria central da política moderna remete a uma intenção de recuperar a herança tradicionalhegeliana, segundo um registro não-metafísico e aberto à investigação empírica. Do pensamento hegeliano mantém-se, no entanto,sua intuição original da necessidade de supor-se um contexto nor-

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A modernização seletiva 97 

esfera da ação social como espaço de luta pela preservação da inte-

gridade física dos sujeitos.O que era ainda meramente descritivo e intuitivo em Maquia-vel se torna um projeto analítico e ambicioso em Hobbes de desco

 brir as “leis da vida burguesa”. Hobbes consegue seu desiderato aointerpretar os homens, usando os já disponíveis recursos da ciêncianatural da época, como autômatos que andam por si sós, ainda quedotados da capacidade extraordinária de se importar com seu pró prio bem-estar futuro e sua autopreservação. É precisamente este

comportamento antecipatório que faz com que o homem, ao depa-rar-se com outro, perceba seu interesse em autoproteção e a pretensão mútua de aumento de poder relativo.

A singularidade do esforço filosófico e político do jovem Hegel não é apenas sua crítica à tendência de se reduzir o comportamento social a imperativos de poder baseados em ações estratégicas e instrumentais, mas, antes de tudo e principalmente, o fato de

ele ter usado o próprio modelo hobbesiano da existência de umaluta genérica dos homens entre si para construir sua crítica. Suareconstrução estava animada, desde cedo, pela certeza de que umanova compreensão da sociedade moderna exigia a superação daconcepção atomista que estava na base de toda a tradição da modernidade. O próprio conceito de “eticidade” (Sittlichkeit ) foi escolhido por Hegel para expressar o conjunto de inclinações práticasintersubjetivas existentes, para além tanto do ordenamento positivo

estatal como das convicções morais individuais. De forma contrária às concepções atomistas, portanto, importa chamar atenção parao fato de o processo humano de socialização envolver, desde sem pre, elementos, incipientes que sejam, de vida intersubjetiva.

 Nesse sentido, o sujeito deve ser visto como alguém que, precisamente mediante a aceitação por parte de outros sujeitos de suascapacidades e qualidades, sente-se reconhecido e conseqüente

mente em comunhão com estes, possibilitando sua disposição detambém reconhecer o outro em sua originalidade e singularidade.O argumento hegeliano é construído de tal modo que a dinâmicado reconhecimento mútuo obedece a um desenvolvimento espiralem que, a cada nova forma de reconhecimento social, o indivíduoaprende a conhecer e a realizar novas dimensões de sua própriaidentidade. É precisamente a lógica desse reconhecimento progres-

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sivo que o estimula a novas lutas e conflitos por reconhecimento,

sendo o próprio núcleo desse processo o movimento no qual conflito e reconciliação se condicionam mutuamente.

Por diferença a Hobbes, a luta por reconhecimento não se limita à autopreservação física, mas antes à aceitação intersubjetivadas distintas dimensões da subjetividade humana, a qual seria, precisamente, o substrato ético da vida social enquanto tal. Ou seja,dito de outro modo e mais diretamente: o contrato não encerra a luta de todos contra todos.  Bem ao contrário, o conflito é um elemento constitutivo da vida social na medida em que possibilita aconstituição de relações sociais cada vez mais desenvolvidas, refletindo o processo de aprendizado moral da sociedade em cadaestágio. O conflito deixa de ser algo negativo e transitório e passa aindicar o momento positivo de formação e desenvolvimento do

 processo social que, de outro modo, permaneceria opaco e inconsciente, sendo o próprio “motor” da lógica do reconhecimento.

Hegel procura mostrar, ao contrário dos contratualistas, que énecessário supor a existência de alguma forma de aceitação recí proca e intersubjetiva elementar que cabe ao contrato restabelecerde forma explícita e consciente. O contrato social, nesse sentido,deve ser pensado como realização reflexiva de direitos que já existiam em forma elementar. É esta pressuposição que permite a re-interpretação de uma luta de todos contra todos pela preservaçãofísica em luta por reconhecimento. Assim, a ameaça à propriedadealheia não é respondida pelo agredido, em sua fo rm amais básica eelementar, com o sentimento do medo, mas com o sentimento dainjustiça pelo fato de ter sido ignorado e não reconhecido  pelooutro.

 Na obra de Charles Taylor, a reconstrução desse pano de fundo ético que serve de guia para as nossas ações cotidianas se tornao centro mesmo de seu esforço teórico. A necessidade de recons

trução valorativa associada a essa empresa o leva a defender umaconcepção hermenêutica de ciência. A necessidade inelutável da

 perspectiva hermenêutica para Charles Taylor é fruto de décadasde estudos metodológicos realizados especialmente na primeirafase da sua carreira, quando ele se interroga sobre a surpreendenteeficácia dos discursos das ciências sociais em geral e da ciência

 política em particular (especialmente o “behaviorismo” e as “ratio-

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A modernização seletiva

nal choice theories”) que seguiam modelos explicativos das ciênci-

as naturais reduzindo a percepção humana à equação estímulo/reação. É este o ponto de partida de sua posterior preocupaçãocom a questão da relação entre as identidades individual e coletivae, portanto, com a questão do self   e da concepção de mundo moderna, possibilitando-o descobrir, nesse processo, o paradigmadominante, tanto na prática científica como na prática social, o qualele chamaria de “naturalismo”.2

Contrariamente a essa tendência dominante, Taylor desenvolve a idéia de que só se compreende a ação dos atores a começar daconsideração de um ponto de partida da primeira pessoa. Diferentemente de Weber, no entanto, e portanto afastando-se dos pressu postos da filosofia da consciência que marcam a metodologia we- beriana, Taylor pretende encontrar a autocompreensão dos atoresna topografia moral da época e cultura nas quais esses atores seinserem. É esta senda crítica que o permite defender a preeminên

cia do “holismo metodológico”. Indivíduos só podem ser tidoscomo última ratio  da explicação sociológica na medida em que o

 pano de fundo social e cultural que os condiciona permanece nãotematizado. Esses sentidos culturais, por sua vez, são quase sempreimplícitos expressando-se antes em práticas sociais, mores e instituições do que em doutrinas explícitas.

Taylor está interessado, antes de tudo, no componente avalia-tivo da constituição da identidade humana, na medida em que aauto-interpretação dos sujeitos passa a ser percebida como momento constitutivo para a construção desta. Até esse momento, noentanto, não fica claro de que modo a auto-interpretação dos su

 jeitos tem a ver com os objetivos e desejos humanos. É nesse contexto que Taylor passa a se interessar pela análise da estrutura interna dos desejos humanos. Um primeiro passo nesse sentido é suarecepção da distinção de Harry Frankfurt entre desejos de primeira

e segunda ordens. Os desejos de primeira ordem são compartilhados pelos seres humanos com todos os outros animais. Os desejosde segunda ordem, no entanto, são potencialidades apenas humanase implicam uma avaliação reflexiva dos desejos de primeira or-

2Sobre esse ponto, consultar, especialmente, a coletânea de artigos: Charles

Taylor, Philosophy and the Human Scicnces-Philosophical papers, 1 9 8 5

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dem ,3 o que pressupõe a capacidade, em relação aos desejos de

 primeira ordem, de vinculá-los a valores, o que permite hierarquizá-los segundo critérios éticos e morais e não apenas de acordocom estímulos empíricos ou pragmáticos.

São esses desejos de “segunda ordem” que irão atrair a atenção de Taylor. Afinal é precisamente essa capacidade de construiruma linguagem com base em “caracterizações constrativas”, comoalto e baixo, nobre e primitivo, corajoso e covarde, etc., que permite a qualificação e avaliação reflexiva da vida que se leva e davida que se quer levar. Contra as concepções de ciência baseadasnos pressupostos utilitaristas como as “rational choice theories”essa análise mostra que o agente é mais que simples calculador de

 preferências, já que as preferências mesmas estão em relação interna e constitutiva com valores que as definem enquanto tais.

A distinção de Frankfurt entre desejos de primeira e segundaordens irá assumir no vocabulário de Taylor o nome de “avaliações

fracas e fortes” respectivamente. As avaliações fortes, às quais sedirige o interesse primordial de Taylor, são percebidas como ancoradas tanto verticalmente, na biografia individual, como horizontalmente, na tradição cultural e lingüística da qual o sujeito partici

 pa. As “avaliações fortes” apontam para uma realidade não-instrumental dos nossos desejos. Não é o tema pragmático da possibilidade ou não da realização dos nossos desejos e intenções que

cria o pano de fundo de nossas ações, mas um mundo de “sentimentos morais” que existe independentemente de nosso desejo ouconsciência. A esse pano de fundo moral mais profundo só temosacesso por meio da reflexão e da auto-reflexão. A hierarquia devalores que se desdobra e se objetifica a partir daí se impõe aosujeito provocando reações como vergonha, admiração, culpa ourespeito. Valores são entidades objetivas e não subjetivas.  Elesencontram-se objetivados tanto na língua como em práticas sociais

e instituições e é a forma peculiar na qual o sujeito se vincula ereflete sobre esses valores objetivados que constitue sua identidade 

 peculiar.Problemático tanto para a vida social como para a individual é

quando se instaura um abismo entre os nossos sentimentos morais

3Hans Joas, D ie Entste lnmg der Werle, 1999, p. 201.

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A modernização seletiva loi

e o nosso conhecimento reflexivo. O papel fundamental do com

ceito de “articulação” para Taylor é precisamente dar conta dafunção de estabelecer uma ponte sobre esse abismo. A articulaçãoé portanto a transformação discursiva dos nossos sentimentos morais de inconscientes e irrefletidos em conscientes e refletidos possibilitando-se saber de onde se vem, quem se é e para onde se querir. A articulação permite a constituição narrativa da identidade que

 possibilita uma condução da vida consciente. Nesse sentido, umaidentidade não articulada reflexivamente é uma identidade frag

mentada. A articulação permite, no entanto, não apenas nossa com preensão e conscientização dos nossos próprios sentimentos morais,mas possibilita também no limite, graças à distância crítica que areflexão enseja, a modificação dos nossos próprios sentimentos.

O passo seguinte da empreitada tayloriana v,ai ser precisamente compreender a estrutura interna dessa comunidade lingüística que permite a expressão de valores e torna possível a conse

qüente “articulação” destes valores pelo sujeito. Sob influência deIsaiah Berlin,4 percebe Taylor a importância da contribuição daidéia contra-iluminista do romantismo e da concepção da línguacomo expressão do eu profundo. A idéia principal nesse contexto éa assimilação de uma concepção “expressivista” da língua por oposição ao modelo da língua como meio de realização de objetivos pragmáticos, ou seja, da língua como possuindo uma função meramente designativa e descritiva.

Já no seu livro sobre Hegel,5 aparece este autor como o pensador moderno que consegue unir a idéia romântica da auto-expressão e da auto-realização ao ideal kantiano da autonomiaindividual e liberdade da pessoa humana. Em vez da metafísicahegeliana do espírito que se objetiva em fases sucessivas, percebeTaylor que, nas condições pós-metafísicas do mundo moderno,apenas o conceito da língua poderia substituir a função do espírito

objetivo no edifício hegeliano.6 Sua peculiar teoria lingüística per

4Ver sobre esse ponto especialmente, Isaiah Berlin, Vico e Herder.

5 Charles Taylor,  Hegel.

6 Ver sobre esse aspecto a excelente exposição de Axel Honneth no Posfácio da

edição alemã dos “Philosophical Papers 2”. Em Charles Taylor.  Negative Freiheit?  p. 295-314.

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mite criticar o “naturalismo” como uma forma redutora de perceber

o ser humano por meio de uma concepção unilateral e insuficienteda língua como mero meio designativo. A língua no naturalismoserviria para representar o mundo percebido como independente daexperiência humana. Contra essa percepção instrumental da língua, propõe Taylor uma concepção que enfatiza a capacidade “constituidora do mundo” inerente à língua. Segundo essa concepção,qualquer designação de um fenômeno ou objeto exige a consideração da perspectiva peculiar do emissor, visto que, por meio da

língua, nós construímos a realidade sempre a partir de um ponto devista específico.

É esta idéia que fundamenta a construção lingüístico-filosóficada pessoa humana para Taylor. O sujeito só consegue articular seussentimentos e idéias na e pela língua, ao fazer uso das ilimitadas

 possibilidades de (novos) sentidos inerentes ao meio lingüístico.A língua “expressa”, no sentido forte do termo, tanto a vida interna psíquica do sujeito como suas possibilidades de relações intersub jetivas, permitindo a constituição de parâmetros valorativos capazes de guiar sua vida pública e privada. Pessoas só existem em“redes de interlocução” (webs of interlocution).

A língua é constitutiva do mundo precisamente na medida emque possibilita a expressão e o auto-esclarecimento reflexivo devivências de outro modo discretas e indiferenciadas. Antes de adquirirem expressão lingüística, essas vivências e experiências não

são claras nem para o próprio sujeito que as vivenciou e experien-ciou. 0 que vale para o sujeito, nesse terreno, também vale para asociedade. Assim, tradições culturais são interpretadas como resultados solidificados de esforços intersubjetivos de articulação detemas, sentimentos e vivências. A possibilidade de superaçãoinovadora da tradição é garantida pela possibilidade sempre existente da articulação reflexiva de novos sentidos lingüísticos e valo

rativos.A anterioridade da língua é, desse modo, o núcleo do argumento comunitarista de Taylor. Os sujeitos não podem ser percebidos como anteriores às relações comunicativas que os definemenquanto tais e constituem o horizonte ético e situacional que confere o contexto inextricável para a construção das suas identidadese, portanto, das suas ações no mundo. Ao contrário da perspectiva

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A m odernização seletiva

habermasiana, no entanto, que pressupõe a possibilidade formal de

um ponto de vista excêntrico e universalizável, essa posição ex-céntrica para Taylor não seria sequer possível dado o círculo her-menêutico implicado na relação entre o agente e o contexto inter-subjetivo insubstituível que o condiciona.

É esse pressuposto metodológico que permite a Taylor tomar o partido do comunitarismo antes de tudo como “ontologia”, e nãotanto (e nem sempre) como partidarismo normativo, no sentido deuma opção pelo coletivo contra o individual. O pressuposto holistadiz apenas que são as próprias práticas sociais e culturais que possuem de forma implícita e inarticulada uma interpretação do quedeve ser considerado um “bem”, ou seja, do que é valorável perseguir, do que é ser um ente humano, etc. Daí a necessidade do su

 jeito de se submeter ao exercício reflexivo de articular conscientemente os ideais anteriores e exteriores a ele e que o definem emúltima instância como indivíduo. Fins individuais só existem em

relação a esse pano de fundo cultural. Nesse sentirlo, autonomia eliberdade individual são conceitos que exigem referência a uma“situação”, a uma forma de vida cultural específica que dá conteúdo, ou seja, orientação significativa à condução autônoma da vida.Uma “liberdade positiva”, em contraposição à liberdade negativaliberal, significa sempre a realização seletiva de bens culturaisdentro de um horizonte ético preexistente.

Essa concepção permite a Taylor definir o homem, em umacontraposição muito interessante e sintomática em relação ao tool- making animal  (o animal que fabrica instrumentos) de que falaMarx no primeiro livro de O Capital,  como um self interpreting animal  (o animal que se auto-interpreta) que retira sua motivação para a ação nas idéias-guia de sua época ou cultura, as quais podemser trabalhadas de forma pessoal e seletiva pelos indivíduos concretos. São essas idéias-guia que Taylor na sua linguagem típica

chama de “bens constitutivos”, de modo a distingui-los dos bens davida em geral, que são incontavelmente múltiplos e variáveis. Os bens constitutivos são as fontes morais, ou seja, as fontes motiva-cionais que inspiram nossa ação no mundo, sendo portanto a razãoúltima que faz os bens da vida dignos de serem perseguidos oudesejados.

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104 Jessé Souza

A configuração valorativa do Ocidente

 Na sua obra fundamental  As fontes do se lf7 Taylor inquireacerca dos bens constitutivos da cultura do Ocidente moderno,concluindo pela oposição entre o ideal da autonomia calculadora eo ideal da expressividade individual. São essas idéias-guia que permitem perceber a “topografia moral” de nossa época, ou seja, o“mapa” valorativo no qual as pessoas se orientam na sua práticadiária. A proposta de Taylor é perceber o fio condutor que levou à

moderna concepção de indivíduo. Sua estratégia é compreender agênese ou arqueologia das concepções de bem e de como essasevoluíram e adquiriram eficácia social. Esse ponto é crucial. Nãointeressa a Taylor uma mera história das idéias, mas como e porque estas lograram tomar o coração e as mentes das pessoas comuns. Daí sua empresa ser sociologicamente relevante. Ele se interessa, portanto, em primeiro lugar, pela eficácia das idéias e não por seu conteúdo. Este último só é importante na medida em queexplica as razões da sua aceitação coletiva.

O pressuposto de sua estratégia é o de que a noção de individualidade e de bem, ou, dito de outra forma, as noções de identidade e de moralidade são temas inextricavelmente relacionados.O alvo de Taylor, portanto, é explicitar a ontologia moral que articula as configurações e intuições que temos de nós mesmos. Nessalinha de raciocínio, a nossa identidade é, em certo sentido, uma

hierarquia valorativa, a qual permite que possamos definir o que ée o que não é importante ou relevante para nós. O naturalismo seriaa negação dessa hierarquia. Ele faz, na esfera do pensamento,aquilo que o utilitarismo faz na dimensão da vida cotidiana: tornarinvisível a configuração moral que nos guia.

Essa arqueologia da identidade moderna é também ao mesmotempo, como não poderia deixar de. ser, uma história da singularidade do Ocidente. Fiel a seu ponto de partida culturalista, Taylortende a ver a transição para a modernidade menos como um processo abstrato de racionalização e diferenciação mas, antes de tudo,como uma “gigantesca mudança de consciência” no sentido de

7 Charles Tay lor,  As fonte s do s e l f   1997. A discussão imediatamente subsequente remete, no essencial, a esse livro.

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A m ode rnização seletiva li

uma radical reconstrução da topografía moral dessa cultura. A to

 pografia moral do Ocidente tem dois aspectos fundamentais paraTaylor: o princípio da interioridade e o princípio da afirmação davida cotidiana. Os dois se deixam ver na sua especificidade a partirde uma contraposição com a Antigüidade clássica. Platão é umaligura central nesse contexto. Ele é o sistematizador da idéia fundamental para a concepção moral do Ocidente, qual seja, a idéia deque o eu é visto como ameaçado pelo desejo (em si insaciável),devendo este, portanto, ser subordinado e regido pela razão.O criatianismo adotou a perspectiva platônica da dominancia darazão sobre as paixões na medida em que a santidade e a salvação

 passaram a ser expressas nos termos da pureza platônica. Ao mesmo tempo, Santo Agostinho, ao apropriar-se da tradição platônica,engendra uma novidade radical que vai ser fundamental para aespecificidade do Ocidente: a noção de interioridade.

Fundamental para a concepção platônica é a noção da inexis

tência da oposição dentro/fora. O bem é definido como uma con junção, uma ligação indissolúvel entre o ser racional e a ordemmundana. A noção de razão é, portanto, substantiva, pressupondouma intimidade entre o ser e o mundo não mais existente hoje emdia. A oposição exterior/interior é, ao contrário, fundamental paraAgostinho. O exterior é o corporal, o interior é a alma. O conhecimento não é uma luz exterior lá fora, uma revelação portanto,como o era para Platão, mas algo interior em nós mesmos, sendoantes uma criação que uma revelação. Agostinho muda o foco deatenção dos objetos conhecidos em favor da própria atividade doconhecer. Voltar-se para essa atividade é voltar-se para si mesmo, éadotar uma posição reflexiva. Como em todas as grandes revoluções morais do Ocidente, também o princípio da subjetividade éinicialmente religioso. Agostinho dá o passo para a interioridade

 porque esse é um passo para a verdade divina. A verdade está den

tro de nós e Deus é a verdade. Foi essa vinculação com a necessidade religiosamente motivada que tornou a linguagem da interioridade irresistível.

A importância dessa descoberta, que depois será radicalizada por Descartes, não deve ser subestimada para Taylor. Agostinhomuda o foco do campo dos objetos conhecidos para a própria atividade do conhecer e é esta atividade que será particularizada. Vol-

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106 Jessé Souza

tar-se para esta atividade é voltar-se para si mesmo, é adotar uma

 postura reflexiva. Não seria exagero, na visão de Taylor, dizer quefoi Agostinho quem introduziu a interioridade da reflexão radical ea legou à tradição do pensamento ocidental.

Um outro aspecto importante me parece-me o fato de além detornar o ponto de vista da primeira pessoa fundamental para nossa

 busca da verdade, Agostinho construir toda uma hierarquia valora-tiva com base nesse fato. A partir de agora passa a existir um abismo insuperável entre os seres capazes de raciocínio e os que care

cem dessa faculdade. Agora não só o inerte se diferencia do quevive, mas entre os que vivem passa a existir uma diferença qualitativa entre os seres que vivem e têm consciência de que vivem  emrelação ao simples vivente.

Esse aspecto é fundamental para a reconstrução da implícitateoria tayloriana da eficácia das idéias. É que à hierarquia entrerazão e sentidos se acresce aquela entre as diversas espécies vivas,

conferindo aos humanos um sentimento de especialidade e superioridade responsável, em grande medida, pela atração que este tipode idéia exerce. O passo fundamental seguinte nesta mesma direção é dado por Descartes ao objetificar toda a realidade exterior àmente, seja nosso corpo, seja toda a natureza exterior. Libertar-seda concepção que mistura mente e matéria é compreender estaúltima instrumentalmente, é desencantá-la. O desencantamento damatéria e sua subordinação em relação à razão subjetivada são um

 pressuposto do nosso próprio senso moderno de dignidade da pessoa humana enquanto ser racional.  Este tema torna-se central emKant, mas Descartes já se move nessa direção.

Existe aqui também uma transposição de algo da ética aristocrática da fama, algo que se conquista no espaço público, na ágora,nas campanhas militares, para o interior da mente, engendrandouma forma qualitativamente nova de produção de nossa própria

auto-estima, esta também agora de algum modo subjetivada, e nãomais apenas algo “para os outros” e por isso conquistada nos lugares públicos. Há uma mudança enfim nos termos e na forma comoa virtude é concebida.

O outro elemento constitutivo da nova configuração moral é aentrada em cena de mais um componente cristão, este de influênciaestóica e não platônica, que confere à capacidade de escolha uma

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A m odernização seletiva

dignidade própria e autônoma em relação ao conhecimento e um

lugar de virtude central à vontade. Resolução, determinação, controle, as virtudes do guerreiro e aristocrata da ética da glória e dalama são internalizadas, conferindo à vontade individual seu lugar

 privilegiado no Ocidente.Essa mudança é radical, posto que inverte a noção de virtude e

de bem que imperava até então. A ética da honra antiguidade éreinterpretada em termos do ideal cartesiano de controle racional.À racionalidade deixa também de ser substantiva e passa a ser pro-

cedural. Racional passa a significar pensar de acordo com certoscânones. E esse novo sujeito moral que Taylor chama de “self   pontual” . Locke vai ser o sistematizador do novo ideal de independência e de autoresponsabilidade, interpretado como algo livre docostume e da autoridade local, transformando o “self  pontual” nofundamento de uma teoria política sistemática.

O self   é pontual, posto que “desprendido” de contextos parti

culares e portanto remodelável por meio da ação metódica e disci plinada. A essa nova maneira de ver o sujeito, desenvolvem-se umafilosofia, uma ciência, uma administração, técnicas organizacionais, destinadas a assegurar seu controle e disciplina. Para Taylor,isso envolve aspectos indiscutivelmente positivos como a possibilidade de maior riqueza social e novas possibilidaoes de aprendizado. Por outro lado, no entanto, seria um erro supor-se, como acontece efetivamente, um desprendimento total do self  A crise do self  

moderno é decorrente da radicalização da perspectiva do sujeito.Este é o ponto fundamental da crítica de Taylor. A noção de self   desprendido, por estar arraigado em práticas sociais e instituições,é naturalizada. Essa é a razão última pela qual Taylor rejeita o conceito de sistema no sentiao habermasiano. Ao desvinculá-lo dasfontes morais que o constituíram, Habermas contribui para suanaturalização, para vê-lo como uma instância independente do

controle humano. Temos a partir de então self desprendido e disci plinado como temos cabeça sobre nosso corpo, dirá Taylor.Essas idéias germinadas durante séculos de razão calculadora

e distanciada e da vontade como auto-responsabilidade, que somadas remetem ao conceito central de Taylor de self    pontual, nãolograram dominar a vida prática dos homens até a grande revolução da reforma protestante. Aqui outro óbvio ponto em comum

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A m odernização seletiva

tes. A concepção do trabalho dentro desse contexto vai enfatizar 

não o que se faz mas como  se faz o trabalho (Deus ama advérbios).O vínculo social adequado às relações interpessoais vai ser de tipocontratual (e por extensão a democracia liberal contratual comotipo de governo). Em linguagem política, essa nova visão de mundo vai ser consagrada sob a forma de direitos subjetivos e estes, deacordo com a tendência igualitária, definidos universalmente.A própria sucessão histórica dos direitos de T. H. Marschall seriaincompreensível sem essa pré-história que mostra por que sua efetivação progressiva, em um contexto crescentemente democrático,se deu de forma irresistível.

O princípio da vida cotidiana tem a ver com o potencial democrático da revolução ocidental, posto que implica os ideais daigualdade e da benevolência em relação aos outros homens. Essassão conquistas irrenunciáveis para os indivíduos modernos. Emseus textos mais recentes, Taylor vai chamar o conjunto de ideais

que se articulam nesse contexto de princípio da “dignidade”. Dignidade vai designar portanto a possibilidade de igualdade tornadaeficaz por exemplo, nos direitos individuais potencialmente universalizáveis. Em vez da “honra” pré-moderna, que pressupõe distinção e privilégio, a dignidade pressupõe um reconhecimento universal entre iguais.8

O potencial patológico desse desenvolvimento, por outro lado,é que, paradoxalmente, seu próprio sucesso e rápida institucionalização levaram a um “esquecimento” das fontes morais que o constituíram originalmente. Nesse sentido, o conjunto de práticas cotidianas e institucionais que o reproduzem foi “naturalizado”. Nonaturalismo, o princípio do autocontrole define a forma especificamente moderna como as noções de autonomia e liberdade são percebidas: ligadas à noção de eficiência, poder, razão instrumental, neutralidade e proceduralismo puro. A “boa vida” nesse con

texto é definida como controle racional e eficiente de si, dos outrose da natureza.

A contradição desse tipo de estilo de vida é que o reconhecimento dos valores-guia que o produziram originariamente pressu põe precisamente engajamento e, portanto, a dispensa de neutrali-

8 Charles Tay lor, “The Politics o f Recognition”, 1994.

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dade, autonomia total e proceduralismo puro. As teorias naturalis

tas são estruturalmente incapazes de reconhecer os valores-guiaque lhes dão substância. O contexto patológico que se descortina a partir daí se torna imediatamente compreensível se temos emmente o pressuposto hermenêutico e culturalista de Taylor: quandoum bem constitutivo de uma cultura não é articulado, termina por

 perder sua força condutora e inspiradora do comportamento, ouseja, corre o risco de perder eficácia como fonte moral. O sentimento de “mal-estar na modernidade” analisado por Taylor tem a

ver com essa constelação típica criada pelo naturalismo: 1) o individualismo vivido de tal modo que faz desaparecer o nexo da nossarelação com os outros; 2) a entronização da razão instrumentalcomo padrão típico da eficiência e complexidade modernas; 3) e,finalmente, como “produto político específico” dos dois anteriores,a ameaça de “despotismo suave” anunciada por Tocqueville.9

Se toda a história do Ocidente fosse a história do naturalismo,

teríamos a ver aqui com mais uma narrativa da decadência do Ocidente. No entanto, uma outra possibilidade aberta pelo mesmo princípio da interioridade que já havia forjado o naturalismo é oque Taylor chama de “expressivismo”. Apesar de se alimentar damesma fonte, o expressivismo nasce como uma reação e um protesto contra o naturalismo sob a forma de um mal-estar provocado pela razão instrumental e atomismo gerado pela própria institucionalização do ideário da auto-responsabilidade. Dignidade e autenti

cidade são, portanto, princípios que lutam por legitimidade políticaenquanto faces opostas da mesma moeda daquele lento processosecular que fez da busca pela interioridade o fundamento da pró pria singularidade do Ocidente, como já vimos.

Taylor percebe a gênese dessa fonte alternativa de autoridademoral primeiro em Montaigne e depois em Rousseau. Montaigne évisto como o pioneiro de toda uma tradição que, precisamente

contra a tendência da tradição do self   desprendido capaz de semoldar segundo uma lógica generalizável, irá procurar ressaltar aoriginalidade de cada pessoa. Trata-se, portanto, de privilegiar umaatenção voltada radicalmente à primeira pessoa, para a qual a ciência, por ser generalizadora, tem pouco a contribuir.

9  Id em, The Ethics o f Authenticity,  1991.

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A m odernização seletiva

A noção de profundidade do self   é que muda. Longe de ser 

autotransparente como na versão instrumental, ele é um mistério para cada um de nós. Rousseau leva o subjetivismo da compreensão moral moderna um passo à frente ao definir a voz interior de meus próprios sentimentos  como a instância definidora do bem.Daqui por diante a questão passa a ser se o bem depende apenas ou

 principalmente da razão ou dos nossos sentimentos também. Osdois caminhos são internos, pressupondo do mesmo modo a noçãode interioridade, fato que só faz aumentar a competição de ambos

na luta pela legitimidade moral na medida em que a fonte da moralidade é a mesma.

 Nesse sentido, as profundezas do self   deixam de ser sinônimode erro e engano. Esta mudança é expressada na passagem das

 paixões aos sentimentos. Aqueles são renomeados e reabilitados.Os sentimentos passam a ser normativos, o que as paixões nãoeram. Agora, descobrimos o que é certo, pelo menos em parte,experenciando nossos sentimentos morais. Esses renascimento e

nobilitação do sentimento vão ser um traço marcante da culturamoderna para Taylor. A afirmação da vida cotidiana parece conteras duas vertentes da configuração moral ocidental: a razão instrumental, cujo lugar privilegiado é a economia e o mundo do trabalho; e o expressivismo tem no casamento baseado em sentimentostalvez sua objetificação mais importante.

O expressivismo teve no romantismo e em toda a arte dos séculos XIX e XX seu veículo privilegiado. A revolução nos costu

mes da década de 1960 teria sido um momento especialmente im portante de sua eficácia social na medida em que seus princípiossaem da vanguarda artística e logram tomar o senso comum detoda uma geração, com efeitos permanentes. O que há de revolucionário no expressivismo é a idéia de uma individuação maiscompleta e original. Cada indivíduo é único e deve viver de acordocom essa unicidade. A novidade não está na constatação de que osindivíduos são diferentes. O novo é a percepção de que estas dife

renças não são simples variações sobre um mesmo tema e que elas implicam no dever e na obrigação de viver-se de acordo com esta originalidade.10

10 Esse argumento é muito semelhante àquele elaborado por Georg Simmcl cmrelação à distinção entre os individualismos do século XVIII e XIX. Ver “O indivíduo e a liberdade”, 1998.

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112 Jessé Souza

Politicamente relevante é o fato de que as duas visões, o indi

vidualismo instrumental e o expressivista, são irreconciliáveis.Uma pessoa - e, poderíamos acrescentar, uma sociedade - quereconheça a legitimidade de ambas as reivindicações está constitucionalmente em conflito.  Essa nova dimensão da interioridade re presenta de algum modo a transição de uma concepção de identidade individual como meio (para fins) para uma concepçãofinalística da mesma. Antes do fim do século XVIII ninguém imaginava que as diferenças entre os seres humanos pudesse ser tãograndes. Ao contrário da uniformização e da generalização de uma perspectiva instrumental em relação ao próprio eu, passa a ser aarticulação da minha originalidade com os outros o que nos definecomo pessoas.

Dada a concepção dialógica e intersubjetiva de inspiração me-adiana (George Herbert Mead) que Taylor defende nos seus últimos trabalhos, nossa identidade é vista como formada pelo diálogo

com os nossos “outros significativos” internalizados dentro de nósmesmos.11 Já esse ponto de partida radicalmente intersubjetivo não permite uma definição de identidade (por autenticidade) que implique quebra de nossos vínculos com os outros ou demandas que têma ver meramente com “desejos” e não também com ideais já internalizados - se bem que nem sempre articulados - que nos inspiramsobre como devemos viver. O nosso mero desejo é incapaz de produzir gradações sobre o que é significativo e essencial,12 ou seja,sobre o que - independente de minha vontade - define o que énobre e distinto.

Individualismo é, nesse sentido, tanto no contexto das lutas por dignidade como no das por autenticidade, um princípio moral,devendo ser distinguido do individualismo anômico - um fenômeno social nos países do terceiro mundo. No entanto, apenas a identidade definida com base no princípio da autenticidade é radical

mente moderna, rompendo com a determinação externa de papéissociais preestabelecidos. Essa determinação pode ainda ocorrernuma ordem democrática, em que o princípio da dignidade está

11Charles Taylor, op. cil.,  1991, p. 33.

Esse é também o contexto da crítica elaborada por Alasdair MacIntyre ao

“emolivismo” moderno.  A fter Virtue, especialm ente cap. V.

12

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mento que permita levar em conta também a importância do ele

mento afetivo e motivacional da ação social.É precisamente a desconsideração do componente afetivo emotivacional inerente à ação humana o aspecto que Honneth julgacriticável nas teorias derivadas do formalismo kantiano.14 Na tradição aristotélica e neo-aristotélica, por sua vez, a qual ao contráriodo kantianismo enfatiza a imbricação comunitaria da questão ética,o autor julga criticáveis o sentido teleológico da moralidade e asecundarização dos objetivos individuais. Como articular essasduas questões essenciais evitando a consideração unilateral de apenas uma das perspectivas é um ponto percebido por Honneth como

 problemático e o objetivo máximo de uma teoria da moralidadecontemporânea. O primeiro aspecto a ser considerado nesse caminho seria, portanto, esclarecer as condições e pressupostos parauma concepção de “boa vida” em nossa época. Essa procura não

 pode mais ser teleológica como em Aristóteles, mas deve levar em

conta as condições necessárias para a constituição e manutenção deuma identidade não fragmentada em condições contemporâneas.Já Fichte havia apontado, na sua teoria do direito natural, para

o fato de os sujeitos só poderem adquirir uma consciência de sualiberdade na medida em que se sentirem estimulados ao uso recí

 proco de sua autonomia enquanto sujeitos.15 Hegel retoma essaidéia incipiente e a transforma em um conceito sistemático e dinâmico de modo a mostrar de que maneira a aquisição intersubjetivade autoconsciência implica formas de desenvolvimento moral queabrangem toda a sociedade. Esse é o núcleo de sua idéia de uma“luta por reconhecimento”, a qual se realizaria por meio de uma progressão ética que abrange três dimensões de relações de reconhecimento. Todas essas formas se realizam por meio de uma lutaintersubjetiva. A forma conflituosa é pressuposta pela reivindicação de ser-se reconhecido sempre em novas dimensões em que esse

reconhecimento não era evidente.

14Axel Honneth, “Zwischen Aristóteles Lind Kant. Skizze einer Moral derAnerkennung”, p. 55-76,  M oral in so zialen Konlext,  Wolfgang Edelstein eGertrud Numtner-Winkler (orgs.) Suhrkamp, Frankfurt, 2000.

15 Ver especialmente, Wildt, A. Autonomie und Anerknnung. Hegel Morali-tàtskritik im Lichte seiner Fichte-Rezeption. Klett und Kotta, Stuttgart, 1982.

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A m odern ização seletiva

Em sua reconstrução do argumento hegeliano, Honneth16 pre

tende deixar de lado o desenvolvimento metafísico dessa ideia,como acontece no Hegel maduro, e preservar o estímulo da intuição hegeliana da luta por reconhecimento como fundamento do

 processo de aprendizado moral de sociedades concretas. Em Hegela dinâmica do reconhecimento é abrangente o suficiente para abarcar as relações afetivas, as relações sociais reguladas pelo direito,além do componente metajurídico da solidariedade. Estas diversasetapas são concebidas, no entanto, como o desenvolvimento deuma subjetividade metafísica que se diferencia e volta-se a si mesma segundo um processo evolutivo monológico.

Honneth pretende seguir um caminho alternativo, repudiandoas figuras da filosofia da consciência hegeliana e propondo umaestratégia intersubjetiva e aberta às ciências empíricas. Na buscadessa estratégia alternativa que enfatiza o componente intersubjeti-vo e rejeita as premissas da filosofia da consciência, Honneth bus

ca inspiração na obra de G. H. Mead. Para Honneth, em nenhumaoutra teoria moderna a formação da identidade humana é derivadada noção de reconhecimento coletivo de forma tão conseqüentequanto na psicologia social de George Herbert Mead. A consciência do self   em Mead, é produto do fato de o sujeito só se percebercomo ator a partir da representação simbólica da perspectiva dooutro. Mead utiliza a categoria do  Me  (mim) para representar a percepção do sujeito da perspectiva do outro. Esta relação interativa é aprofundada pela consideração adicional do aspecto moralalém do cognitivo. Estamos lidando aqui, portanto, não apenas comexpectativas cognitivas de comportamento, mas com expectativasnormativas também.

É precisamente a progressiva assimilação das expectativas decomportamento normativo de um número cada vez maior de pessoas que permite ao sujeito a capacidade abstrata de generalizar e

 participar das interações normativas da sua sociedade, ou seja, a percepção de quais expectativas ele deve atender ou exigir. Esse processo de “reconhecimento mútuo” é o que Mead chama de “outro generalizado”. Direitos, nesse sentido, não são mais do queexpectativas de que o indivíduo pode estar seguro que o “outro

16 Para a discussão a seguir ver Axel Honneth, op. cit., 1992, p. 114-227,

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116 Jessé Souza

generalizado” irá atender. Para Honneth, a reflexão de Mead lem

 bra a realizada por Hegel e a subdivisão efetuada por este últimorelacionando as dimensões do reconhecimento a esferas sociaisdistintas de ação. Apesar de faltar em Mead um equivalente para oque Hegel entende por “amor” (relações afetivas), a noção de direito, que produz no sujeito a sensação de sua própria dignidade, pode ser aprofundada a partir da idéia de “outro generalizado”.

Já a elaboração da noção de solidariedade em Mead é ponto dedesacordo para Honneth. Ao contrário do direito, o que está em

 jogo na esfera da solidariedade é o reconhecimento social da singularidade individual por oposição à igualdade generalizável apanágio do direito. O reconhecimento social aqui se dá pela contri

 buição diferencial no serviço de certos valores que são sociais ecompartilhados coletivamente. É a “auto-estima” por oposição àdignidade de todos os sujeitos de direito que se manifesta aqui.A relação entre as dimensões do direito e as da solidariedade é, no

entanto, íntima na medida em que a solidariedade social, ao impulsionar e legitimar a progressiva individuação, premiando o esforçodiferencial com prestígio social, contribui para o enriquecimentode práticas sociais passíveis de serem reconhecidas juridicamentenum estágio posterior.

A passagem do direito para a solidariedade em Mead, que permite a constante renovação do direito e do horizonte normativocomo um todo, é percebida por este, no entanto, com a ajuda doconceito de divisão social do trabalho. É a divisão social do trabalho que possibilitaria, para Mead, separar o útil do nocivo dentre asinovações que competem por realização social. Para Honneth, porsua vez, a divisão social do trabalho não serviria a este propósito,

 posto que não existe independência desse sistema em relação aosobjetivos éticos vigentes numa comunidade. A perspectiva de Mead merece ser, desse modo, corrigida, e Honneth assume a empresa

como sua.O objetivo de Honneth poderia ser definido como uma tentati

va de desenvolver em toda conseqüência um conceito de sociedade, e especialmente de mudança social, a partir da dinâmica deuma luta por reconhecimento. Seriam as motivações morais daslutas de grupos sociais que, enquanto tentativa coletiva, permitem a

 progressiva institucionalização e aceitação cultural das várias di

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A m odernização seletiva

mensões do reconhecimento recíproco. Hegel e Mead, por oposi

ção a Maquiavel e Hobbes, ajudaram a interpretar a luta social detal modo que o “desenvolvimento moral de uma sociedade” pudesse ser percebido como o motor da mudança social.

Honneth mantém de Hegel a preocupação de levar em contatodas as três esferas de ação que haviam interessado a este, ao passo que mantém de Mead a estratégia intersubjetiva e aberta à verificação. Para esse projeto em germe de uma nova teoria da sociedade baseada na luta pelo reconhecimento, importa a Honnethexplicitar antes de tudo três passos: a) saber se as dimensões doreconhecimento podem ser, na sua seqüência, verificáveis; b) indagar se as respectivas formas de reconhecimento deixam-se ordenarcom formas recíprocas de desrespeito social; c) e, finalmente, seessas formas de desrespeito social foram efetivamente o motor dosconflitos sociais por emancipação e mudança.

Por relações amorosas o autor entende uma gama de relações

 primárias, sob o modelo da relação erótica, como a existente entreamantes, amigos e pais e filhos. A atenção de Honneth vai concen-trar-se em esforços de propostas psicanalíticas alternativas como ade Donald Winnicott, pela consideração, além da preocupação coma organização das pulsões libidinosas enquanto tais, da relaçãoafetiva intersubjetiva como um outro componente essencial para o processo de amadurecimento pessoal. A idéia central aqui é a deque, segundo Winnicott, apenas uma bem-sucedida relação entrefilho/mãe permite uma resolução satisfatória da complexa balançaentre simbiose e autonomia na vida social futura do adulto. As pesquisas de Winnicott demonstraram que a retirada do carinhomaterno, mesmo quando todas as outras necessidades corporaisforam atendidas, acarretou graves distúrbios no comportamento de bebês. Essa relação, para Winnicott, seria bem mais complexa erica do que as considerações freudianas sobre o narcisismo primá

rio deixam entrever.Winnicott percebe fases distintas nessa relação mãe/filho.

A primeira fase é marcada por alta dependência recíproca. O filhoainda não consegue comunicar necessidades e a mãe sente tunacompulsão interna a dedicar-se integralmente ao bebê. Esta é a fasedo “colo” ( Halte-phase). A segunda fase corresponde à faculdadeda criança, por volta dos seis meses de idade, de começar a ser 

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A m odernização seletiva

emotivos e particulares como os que são formados por simpatia e

afeição, ou seja, mesmo limitando e impondo barreiras internas aosestímulos afetivos.

Que também esse último processo possa ser pensado em lermos de luta por reconhecimento, nos mostram os trabalhos de T. H.Marschall e sua visão de uma carta de direitos que se impõem progressivamente na medida mesmo em que o princípio da formaçãoracional coletiva da vontade ganha validade social. O imperativo

da igualdade vai se impondo desde a consideração de direitos políticos abrangendo até as condições pré-políticas de participação.O direito proporciona “auto-respeito” (Selbstachtung)  vindo somar-se à autoconfiança atributo das relações primárias de cunhoafetivo. Pertence à dimensão do auto-respeito que toda pessoa,independente de questões de status, seja considerada capaz de julgamento em igualdade de condições. Uma verificação empírica do auto-respeito só é possível em situações negativas, ou seja, quando

as pessoas sofrem visivelmente por sua falta.Além do reconhecimento jurídico, temos uma terceira dimen

são independente que poderíamos chamar de “valoração social”(soziale Wertschatzung).  Enquanto o direito garante o reconhecimento de características universalizáveis das pessoas sob formas

 particulares, a valoração social garante o reconhecimento de certasqualidades diferenciais entre os sujeitos segundo formas culturais

genéricas. Essas qualidades não são arbitrárias, restringindo-seapenas àquelas que realizam fins sociais considerados importantes por todos. Para Honneth, isto a valoração social compartilha com odireito. Como o direito, no entanto, só pode assimilar o que é valorizado socialmente sob a condição da generalização, “sobra” tudoaquilo que é valorizado mas não generalizável.

A individualização do desempenho trabalha no sentido da valorização social de certas formas de realização individual em de

trimento de outras. Esse movimento reflete o processo histórico da passagem da honra ao prestígio, já que no prestígio a questão darealização individual destes valores não está pré-decidida como naética da honra. Honneth, de certa forma, define o espaço de eficácia social desta esfera por exclusão, ou seja, a partir do que ela nãoé. Assim, seu espaço de positividade é definido como aquele ondea honra no sentido tradicional não se transformou em dignidade

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(direito), mas antes na noção subjetivada da integridade. A simetria

 possível nessa esfera é a da igualdade de oportunidades para a realização diferencial de certos valores sociais. Aqui importa a diferença, uma diferença que produza no indivíduo diferenciado a sensação legítima de “autovalorização” (Selbstschätzung) e nos outros,um sentimento ativo e positivo de admiração e reconhecimento.É este último componente o responsável pela construção de ‘solidariedade”. A simetria da igualdade de oportunidades simultanea

mente estimula e limita a concorrência segundo regras aceitas portodos.Salta aos olhos que a interessante “gramática do reconheci

mento” proposta por Honneth está em seu início. Vários desenvolvimentos fundamentais, dentro desta moldura teórica muito promissora, ainda estão apenas na fase de esboço. Por um lado, asociedade pós-tradicional é compreendida como integrada pormeio de “avaliações fortes”, no sentido já esclarecido acima que o

conceito possui em Charles Taylor. O conceito de valoração socialadquire sua substância dessa idéia. Sua teoria também pretende darconta do elemento particularista da vida ética na medida em que ocomponente afetivo - o qual é sempre particular - também é considerado de modo a evitar o formalismo moral. Isso é válido emtoda a amplitude para o reconhecimento básico inerente às relaçõesamorosas, mas também, embora com relativizações, para o tema da

valoração social. Nesta última é pressuposta também uma noção de bem particular a dada sociedade (enquanto base de sua solidariedade socialespecífica) a qual, no entanto, se tem como “aberta” de modo aevitar formas exclusivistas de sociedade. Reiner Forst aponta comrazão para um ponto de tensão a esta altura: o horizonte comum precisa ser abstrato o bastante para evitar particularismos exclusivistas sem perder, no entanto, a força motivacional da solidarieda

de social em jogo .17 Também Micha Brumlik aponta para umatensão importante no esquema de Honneth. Dessa vez não em relação à constituição interna das esferas ou dimensões do reconhecimento, mas em relação à hierarquia mesma entre as várias dimen-

Reiner Forst, Konlexle der Gerechtigkeit: politische Philosophic jenseits vou  Lib eralism as im d Komimtnitari.smus,  p. 422.

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A m odern ização seletiva

socs. Honneth é kantiano o suficiente para propor o respeito, ou

seja, a idéia da igualdade e da autonomia individual como a idéiamoral básica, em caso de possível conflito entre as diversas reivin-dicações valorativas concorrentes envolvidas na sua proposta,como a esfera de reconhecimento mais fundamental no mundomoderno. Em vista disso, pergunta-se Brumlik se estaríamos defato lidando com uma teoria integrativa das perspectivas deontológicas e teleológicas.18 Outras questões interessantes e ainda não

adequadamente respondidas referem-se a questões políticas fundamentais sobre como as diversas formas de humilhação e desres peito transformam-se em motivos da ação política. Como os gruposoprimidos no seu reconhecimento social logram estabelecer vínculos associativos e de solidariedade é outra questão central emaberto.

Um recente esforço no sentido de tornar a temática do reconhecimento operacional para o esclarecimento dos conflitos políti

cos da modernidade tardia foi feito por Nancy Fraser no seu From  Redistribution to Recognition,19O argumento da autora é que a luta por reconhecimento constitui a forma paradigmática do conflito político no final do século XX. Demandas por reconhecimento dadiferença estão na base das lutas nacionalistas, étnicas, raciais, degênero e sexuais. Nestes conflitos pós-socialistas, a questão daidentidade grupai suplanta a dimensão do interesse de classe como

motivação primária da mobilização política. Isto significaria que adominação cultural estaria suplantando a exploração econômicacomo injustiça fundamenta no mundo contemporâneo.

Ao mesmo tempo, como a desigualdade econômica de modoalgum deixou de ser um fenômeno presente, ao contrário, os padrões de desigualdade só fazem crescer na maior parte dos países, aautora sugere, como uma resposta adequada à agenda político-intelectual contemporânea, o desenvolvimento de uma “teoria críti-

18Micha Brumlik, “Kontexte der Anerkennung- Kommentar zu Axel IlonnctlisMoral jenseils von Aristóteles und Kant”, p. 77/81, em: Wolfgang Edelstem c Gertrud Nummer -Winkler (orgs.),  M oral in so zia len Kontext.

 Nancy Fraser, “From redistr ibut ion to Recognit ion: Dil emmas o f  j i i s Ir v   in ;i

Postsocialist Ag e”, Just ice In tern/p lu s.

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ca do reconhecimento” que contemple tanto os aspectos simbólico-

culturais quanto os redistributivos econômicos.Apesar de demandas por reconhecimento e redistribuição ca

minharem quase sempre juntas, de tal modo que toda demanda prática por justiça englobe, em alguma medida, os dois elementos,elas são dimensões distintas, analiticamente separáveis, com umadinâmica e lógica próprias e até, na maior parte dos casos, contraditórias.20  No contexto do pós-socialismo, com a descentralização

dos conflitos de classe, vários movimentos sociais de novo tipoaparecem na cena política com demandas que têm como fundamento uma identidade cultural baseada numa reivindicação dereconhecimento da diferença. Neste sentido, a injustiça é simbólicae não socioeconômica ou material.

A injustiça simbólica é causada por padrões sociais de autore- presentação, interpretação e comunicação. Resultados desse tipo deinjustiça são a hostilidade, a invisibilidade social e o desrespeito

que a associação de interpretações ou estereótipos sociais reproduzem na vida cotidiana ou institucional. Este tipo de comportamento, produzido por processos intersubjetivos, implica um prejuízo daauto-estima de indivíduos e grupos. A injustiça econômica, por suavez, é enraizada na divisão social do trabalho e na estrutura político-econômica de uma sociedade. Resultados desse tipo de injustiçasão, freqüentemente, a exploração, a marginalização, a pobreza.

Apesar de interligados, é importante atentar para sua lógicadesigual até porque os remédios são diferentes em um e outro casos. O processo de superação da injustiça econômica pede a remoção da diferenciação grupal (seria absurdo supor que trabalhadoresexplorados, por exemplo, pedissem o reconhecimento das suasdiferenças), enquanto a superação de injustiças simbólicas envolveum processo inverso de diferenciação grupal, seja esta especificidade criada performativamente ou não. Nancy Fraser chama dedilemática pós-socialista a fato de movimentos sociais que envolvem os dois tipos de injustiça social serem levados, simultânea econtraditoriamente, a afirmar e a negar a sua especificidade. Esteseria o caso paradigmático dos movimentos das mulheres e dos

Também Taylor havia visto as reivindicações por dignidade e autenticidadecomo co nstitutivamente contraditórias. Ver discussão desse pont o anterior.

20

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A m odernização seletiva

negros, para Fraser. Ambos os grupos sofrem discriminações lanío

econômicas quanto culturais e são obrigados a estratégias contra-ditórias nos dois casos.

O tema do reconhecimento tem uma importância estratégica para nossos propósitos nesse livro. Ele permite ampliar ’a discussãode pressupostos estruturais para a análise do caso do processo demodernização brasileiro, como realizado nos três autores estudadosaté agora, em um aspecto fundamental. A noção de reconheci

mento aponta para uma sensibilidade dirigida aos processos deconsciência que impedem formas de auto-estima, especialmentedos setores subalternos, com graves conseqüências políticas.O tema do reconhecimento exige uma sensibilidade e uma abordagem científica “compreensiva”, ou seja, a partir do reflexo de condições sociais objetivas sobre a psique  individual e grupal dos afetados pelo não-reconhecimento. Apesar de ser apenas provisório etentativo o que iremos dizer sobre esse ponto, a consideração dessa

dimensão é fundamental para nossos propósitos.

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Parte II

Casos concretos de seletividade do

processo de modernização oc idental

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O propósito dessa segunda parte do livro é analisar casos concretos de realização diferencial dos aspectos relevados como definidores da cultura ocidental na primeira parte. Iremos analisar aquios casos concretos de Estados Unidos, Alemanha e Brasil de modoa esclarecer diferenças específicas da tradição cultural desses países pela forma peculiar de absorção de valores da cultura ocidental.

Primeiro, esse exame de casos concretos nos permitirá demonstrar que a seletividade,  ou seja, a realização parcial de aspec

tos do que usualmente associamos com a singularidade da culturaocidental, é um atributo comum de todas as formas concretas dedesenvolvimento observáveis na historia do Ocidente. Para nossos propósitos, a importancia do caso americano é paradigmática. OsEstados Unidos são a referência principal também para nossa sociologia da inautenticidade, como o nosso “outro” por excelência.A discussão do caso americano deve demonstrar que, se por um

lado, esse caso excepcionalíssimo possui valor fundante para amodernidade ocidental, por outro, ele não pode ser visto comoencerrando em si todas as virtualidades do desenvolvimento ocidental. Existem dimensões basilares da modernidade para as quaisa contribuição americana foi marginal ou secundária. A discussãodo caso alemão, geralmente percebido apenas como um desvio patológico, nos ajudará nessa demonstração.

Esse passo me parece necessário para a discussão da nossa hi

 pótese de fundo. O caso brasileiro, visto por nossa sociologia dainautenticidade como um caso abortado de desenvolvimento ocidental moderno, pode ser percebido como um desenvolvimentoseletivo entre outros. Esse procedimento não obedece ao desejo defazer o país “entrar pela porta dos fundos” nesse seleto clube. Nadamais longe de minha intenção, que é crítica e não-ufanista. Isso

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128 Jessé Souza

 parece-me apenas ser a situação de fato. O diagnóstico da sociolo

gia da inautenticidade - inautenticidade precisamente da influênciada modernidade ocidental entre nós refrata nossas reais questões ecria, artificialmente, outras. Esse será o tema do último capítuloconclusivo.

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Capítulo 5

O caso dos Estados Unidos

“Os povos guardam sempre as marcas de sua origem”. Essafrase de Tocqueville resume de forma modelar o tema da especifi

cidade da experiência social americana. Não foram motivos de pobreza ou desesperança que motivaram o povoamento da NovaInglaterra, mas a vontade de pessoas de boa condição social defazerem triunfar uma idéia  religiosamente motivad:1. Para Tocqueville, as marcas dessa origem peculiar, de início e com maior penetração nas colonias britânicas ao norte do Hudson, devem-se aum princípio de organização social que não obedeceu a tradição,mas a princípios novos os quais deviam fidelidade apenas a Deus.

Assim, ao contrário de todas as outras nações, onde a organização política obedeceu às necessidades da tradição impostas pelos estratos superiores da sociedade e incompletamente assimiladas pelasclasses inferiores, nos EUA temos a supremacia da comuna, o nivellocal, em relação ao condado e ao Estado. E na comuna imperavamnormas de urna democracia direta envolvendo, tendencialmente, atodos.

Tocqueville interpreta esse desenvolvimento peculiar pela feliz conjunção de dois principios aparentemente contraditórios: oespírito de religião e o espírito de liberdade. Os fundadores da Nova Inglaterra eram ardentes sectarios religiosos, mas livres detodo preconceito político. No mundo moral, tudo estava previsto erigidamente definido; no mundo político profano, por sua vez. procura-se bem-estar e liberdade e tudo é agitado, incerto e passí-

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130 Jessé Souza

vel de crítica. Desse modo, para o autor, os dois princípios se com

 pletam perfeitamente: a religião veria na liberdade civil um campoentregue pelo Criador aos esforços da inteligência humana; a liberdade pública teria na religião o pano de fundo de hábitos e costumes compartilhados com base na qual um consenso básico seria possível.

A partir das argutas observações do grande pensador francês, otema da excepcionalidade do desenvolvimento americano nuncadeixou de atrair a curiosidade dos teóricos sociais. Foi, no entanto,Robert Bellah quem desenvolveu todo um programa de pesquisasde várias décadas, tanto na dimensão teórica quanto na empírica,mantendo como intuição básica o desenvolvimento societário americano a partir do ideário ético-religioso que marcou a fundação dascomunidades da Nova Inglaterra.

Desde a publicação do seu “Civil religion in America”, em1967,' Bellah tem procurado interpretar os mitos religiosamente

motivados da fundação da nação americana de modo a compreender o sentido e os motivos da especificidade dessa experiênciahistórica coletiva. Fundamental nesse projeto é sua própria definição do que é um mito. Antes de tudo, a função do mito não é descritiva. Ao contrário, o mito seria uma transfiguração da realidade de modo a provê-la de sentido moral e espiritual  p ira indivíduos esociedades. Nesse sentido, o mito americano de origem é especialmente importante para Bellah, assim como havia sido paraTocqueville, na medida em que o estudo comparativo das religiõesdemonstra que “o ponto de começo dos povos revela muito de suas

 próprias autoconcepções básicas”.De início a questão parece fácil na medida em os EUA nasce

ram oficialmente em 1776. Apesar de toda a importância do con junto de eventos ligados à independência americana, Bellah preferecomeçar pela análise do próprio conteúdo mítico da “América”

 para os europeus. Esse significado primordial nos leva ao temaedênico associado, desde o início, a todo o continente americano.A descrição dos índios, por exemplo, era edênica pela associaçãoda nudez, da ausência de agressividade e da propriedade comum.

1 Robert Bellah, “Civil religion in Ame rica”,  B eyond Belief: Essays on Religion in a Post-Traditionalist World.

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A modernização seletiva

Também a terra era vista como rica em tudo, uma espécie de “El-

dorado”.A outra face do tema edênico, no entanto, é especular o seu

oposto. Precisamente ao contrário de um paraíso, teríamos, tam bém, a imaginação de uma selva (wilderness) inóspita, habitada por selvagens violentos. Os dois mitos primordiais têm a ver com oenorme espectro de esperanças e medos que se misturavam indis-sociavelmente na relação com o gigantesco novo n:undo desconhecido.

 No caso norte-americano, o tema da “selva” foi predominante." Os “pais fundadores” da Nova Inglaterra buscavam constantemente imagens bíblicas para compreender a nova situação. E aofazê-lo percebiam envolvidos numa “viagem na selva” num sentido pessoal, religioso e histórico. Homens como Jonathan Edwards eoutros passaram a acreditar que, precisamente na “selva”, Deushavia predisposto 0 lugar para seu novo paraíso. Nesse sentido,

lembra Bellah, uma precária mas frutífera balança entre esperançae medo havia sido encontrada.

A Bíblia era o único livro que literatos ou políticos americanos podiam esperar que fosse bem conhecido por seus compatriotasdos séculos XVII ao XIX. O imaginário bíblico era, dessa forma, omelhor provedor de imagens e idéias do projeto coletivo americano. O conjunto de conexões e analogias constantemente reinter-

 pretadas segundo motivos bíblicos tradicionais já era uma tradiçãotão forte nos séculos XVIII e XIX, quando o racionalismo esclarecido passa a ser influente também nos EUA, que sua força peculiar

 passa a funcionar como uma cultura ou ideologia popular de referência obrigatória para qualquer político ou poeta que quisesse sercompreendido por todos.

Esse mito original americano tem, até mesmo, um documentoonde todos esses elementos estão reunidos: trata-se do discurso de

John Winthrop, no seu “Um modelo de caridade cristã” (A modelof christian charity). Esse sermão foi lido, portanto, pelo primeirolíder da colônia da baía de Massachussets ainda a bordo, anlesmesmo de desembarcar nas novas terras.

OUma questão interessante seria acompanhar se na América Latina tcria ocorri-

do o inverso.

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132 Jessé Souza

Des te modo se s i t ua o assun to en t re Deus e nós . Nós nos dec i

dimos a ent rar em cont ra to com ele para fazer esse t rabalho, nósassumimos um compromisso , Deus nos de ixou l i v res pa ra as

sumir ar t igos escr i tos por nós , nós nos decidimos a acei tar essa

emprei tada de modo a real izar ta i s e quais obje t ivos , nós es ta

mos aqu i esperando se rmos abençoados pe lo seu f avor . Agora ,

se Deus qu i se r nos abençoar nos ouvindo e nos l evando em paz

 para o lugar de nosso desejo , então ele ratificou de sua parte o

cont ra to , conf i rmou nossas obr igações e i rá exigi r observação

es t r i ta dos ar t igos aqui cont idos . Mas se nós negl igenciarmos o

c um pr i m e n t o dos a r t i gos c om os qua i s nos c om pr om e t e m os e

enganar o nosso Deus , em nome das co i sas desse mundo , pe r se

guindo nossas in tenções carnais para nossa própr ia glór ia e

 pos te r idade , D eus, c om certeza , d ir ig irá sua fúria con tra nós,

e se v ingará de um povo per jú r io , f azendo com que sa ibamos o

 p reço d a q u eb ra de um ju ram en to desse t ipo .3 ( t ra duçã o minha,J.S.)

Como sociólogo da religião, não escaparam a Bellah as semelhanças do “contrato” (covenant) dos primeiros peregrinos com seuDeus em relação ao contrato (berith) dos judeus com Jeová. Todosermão tem a forma deuteronômica da mistura entre benção e condenação. Seu centro é a concepção de um contrato coletivo entre anova comunidade e Deus na forma do contrato judaico clássicocom Jeová. Esse contrato havia sido de fato assinado por todos os

 participantes da empreitada antes da viagem, em Cambridge, Inglaterra. Esse “agreement” continha já em semente toda a concepção da vinculação íntima entre comunidade política e motivaçãoreligiosa que marcaria a singularidade histórica e cultural da novanação.

Bellah chama a atenção para a contraposição entre a concepção de Wintrop e a católica de fundo agostiniano. Em Wintrop nãoexistem a separação e a desconfiança em relação à ordem política esecular as quais se observam nos escritos de Agostinho. Ao contrário, todo o contrato é baseado na esperança de combinar caridadecristã com virtude cívica. Foi essa concepção de “religião civil”

3 Idem, The Broken Coveimt, p. 14.

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A m odernizaçã o seletiva

que os reformadores puritanos trouxeram aos EUA, concepção essa

apenas intensificada pelas expectativas milenaristas de então.Um ponto importante a ser esclarecido nesse contexto é o fato

de que a ênfase na obrigação coletiva não implicava em diminuiçãoda básica responsabilidade individual de fundo calvinista. Bellahlembra que o individualismo calvinista só tem sentido num contexto coletivo, precisamente sob a forma de responsabilidade individual em relação a uma causa comum. A ação individual comofim em si era, ao contrário, percebida como a forma arquetípica do

 pecado.Dessa forma, a conversão íntima e pessoal era pensada como

inseparável do contrato externo com Deus. Para P ellah, é precisamente a combinação desses dois elementos - uma forma coletivade base religiosa e uma substância individual, na medida em que odiscurso é dirigido à consciência individual, sendo seu potencial deconvencimento, portanto, privado - que confere a especificidade

do contrato social americano. Esse ponto é fundamental na medidaem que é o indivíduo que tem de se sentir motivado a cumprir ocontrato. O constante perigo de perversão, esquecimento e envelhecimento dos termos do contrato exige uma constante reinter-

 pretação do mesmo segundo as novas condições históricas, demodo a propiciar a revitalização da dialética entre conversão individual e contrato coletivo.

 Nesse sentido, separam-se as interpretações de Tocqueville eBellah. Para este último, Tocqueville percebe a importância doelemento religioso para a vida pública americana, mas a imaginacomo dogma e não como revitalização, como experiência pessoalimediata e intensa.4  O elemento revitalizador é, no entanto, fundamental para a percepção do impacto continuado e permanente docontrato social americano. Por conta disso, Bellah confere umaimportância singular aos grandes movimentos religiosos revitaliza-

dores americanos como os dois “grandes despertar” (great aweke- nings),  os quais tomaram o país de assalto em épocas distintas.O primeiro deles, que ocorreu nos anos 1940  do século XVIII, foidirigido à conversão individual e é visto por Bellah como preparação para a independência e o nascimento da República. O segundo.

4  Idem, op ., cit., 1991, p. 48.

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134 Jessé Souza

nas primeiras décadas do século seguinte, objetivava antes a refor

ma institucional que a conversão individual e teria sido um antecessor importante do movimento abolicionista americano.

 No seu texto clássico sobre a religião civil nor te-americana,Bellah lembra ainda a importância da institucionalização dessadimensão simbólica nas mais diferentes esferas da vida nos EUA.Assim, por exemplo, os discursos inaugurais dos presidentes daRepública norte-americana reafirmando o fato básico, em discussão aqui, da presença de um conjunto de crenças, símbolos e rituaisdestinados a confirmar a legitimação religiosa da mais alta autoridade política do país. Embora a crença religiosa seja percebidacomo assunto de deliberação privada, existem, ao mesmo tempo,elementos comuns de orientação religiosa e ética que a imensamaioria dos norte-americanos compartilham. É a esse conjunto decrenças comuns, subjacente a todas as esferas sociais, até mesmo àesfera política, que Bellah chama de “religião civil”.

Aqui podemos perceber a continuidade através de séculos dasmesmas imagens bíblicas usadas por Winthrop, que comparava atravessia do Atlântico à travessia do Mar Vermelho pelos judeusfugitivos do cativeiro no Egito. Séculos depois vai ser ThomasJefferson quem dirá: “A Europa é o Egito; a América, a terra prometida. Deus conduziu seu povo de modo a constituir uma novaforma de ordem social, a qual deve ser uma luz para todas as na-

rf 

çoes.Ou ainda mais tarde, com Lyndon Jonhson, que lembra o pró

 prio contrato dos primeiros peregrinos com Deus e o conjunto deobrigações dele decorrentes: “Eles fizeram um contrato com essaterra. Este foi concebido na justiça, escrito em liberdade, unido emsolidariedade e pensado em termos de um dia poder inspirar asesperanças de toda a humanidade; e ele nos obriga até hoje. Semantivermos os seus termos, nós iremos florescer .6

As citações poderiam ser inúmeras nesse contexto. O importante é perceber que os discursos inaugurais dos presidentes, ocasião especialmente importante para a legitimação do cargo e para oempenho de seu ocupante em tocar corações e mentes de seus

5  Idem, ibidem,  1991, p. 175.

6 Idem, ibidem ,  p. 175.

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A m odernização seletiva

compatriotas, podem ser percebidos como uma forma de institu-

cionalização da religião civil como fundamento valorativo comumda nação. Também o sistema da escola pública norte-americana,com seu calendário de feriados que se referem a datas importantesda história da nação, desempenha um papel importante na religiãocivil, abrindo a possibilidade de celebração cúltica e ritual de suasgrandes figuras e idéias.

Decisivo para a compreensão da noção de religião civil, noentanto, é perceber sua “divisão de trabalho” com as igrejas e denominações da dinâmica vida religiosa norte-americana. Numcontexto de liberdade religiosa como o norte-americano, um amploraio de ação foi deixado às igrejas e seitas. Mas nem as igrejas

 poderiam controlar o Estado nem, por sua vez, deviam deixar-secontrolar por este. Desse modo, a religião civil forma-se seletivamente de motivos cristãos e judaicos genéricos, mas não se confunde com nenhuma religião em particular. Ela s p  refere precisa

mente àquele núcleo valorativo da cultura normativa norte-americana que é compartilhado pela imensa maioria da naçãocomo patrimônio comum.

 Nesse sentido, a religião civil é o melhor exemplo daquilo queRichard Münch chama de interpenetração entre as diversas esferassociais criando uma cultura normativa comum enquanto característica da modernidade ocidental, como discutimos acima no capí

tulo dedicado a Max Weber. A peculiaridade norte-americana, edaí sua importância e seu lugar de destaque na cultura ocidentaldesde o início, é precisamente a singular interpenetração entre asesferas religiosa, política, econômica e cultural, propiciando a criação de uma cultura unitária, apesar de pluralista, sem paralelo noOcidente.

Especialmente a diferenciação entre política e religião nãoteve nos EUA, o que de resto explica a peculiaridade da religião

civil americana, a característica comum em outros países ocidentais de uma “libertação” da política em relação à autoridade religiosa. Ao contrário, como acabamos de ver, apesar do pluralismoreligioso das denominações, a religião se mantém como pano defundo geral da própria constituição da comunidade política. Religião, nesse sentido, seria uma espécie de instância última de sentido da existência humana, e o modelo de ação social prevalecente

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136 Jessé Souza

nessa esfera, marcada pela liberdade e pluralismo religioso, se

transporia para outras esferas sociais, cujas imperfeições deveriamser reparadas segundo o modelo da intervenção ativa no mundo, deacordo com a concepção protestante do ascetismo intramundano.

O argumento de Münch é que essa é ainda hoje a situação dasociedade norte-americana. Em vez da racionalização de todas asesferas da vida de acordo com as leis estruturais de sua própria positividade específica, ou seja, em vez da subsunção dessas esfe

ras ao contexto racional-estratégico, teríamos tido a continuidadehistórica da cultura normativa unitária que fez nascer o Ocidente.Münch discorda da tese da transformação do puritanismo em utilitarismo e racionalismo estratégico nos EUA, como Weber defendeem sua etnografia da vida comunitária americana do começo doséculo XIX.7 É que a tese da entronização da razão instrumentalimplica um contexto normativamente livre, estimulando o com

 portamento individual com estímulos empíricos externos à cons

ciência individual e funcionando com a regra de ouro do sucesso edo fracasso como definido por cada esfera de valor específica.

Especialmente na sua aplicação ao caso concieto americano,esse raciocínio weberiano encontra grande resistência crítica.A singularidade norte-americana residiria, para seus críticos, nesse ponto particular, precisamente na permanência do componentevalorativo e normativo  paralelamente  à eficácia da reprodução

social de cada esfera segundo sua lógica específica.Essa é, certamente, também a posição de Robert Bellah. Em bora boa parte de sua argumentação crítica dirija-se precisamente àconstatação do “esquecimento” da tradição normativa que historicamente deu vitalidade à experiência americana,8  ele não tem dúvida da permanência e força dessa cultura normativa no seu país.Para Münch, por sua vez, é exatamente essa interpenetração normativa singular da sociedade norte-americana entre suas várias

esferas sociais o que, em comparação com as sociedades européias,singulariza a experiência norte-americana.

7 Richard Münch,  Die Kulter der Moderne,  1993, p. 127-181.g

Esse é núcleo do argumento de Bellah e seus colaboradores na obra conjunta:Robert Bellah, et alii,  Habits of the Heart: Individualism and Commitment in 

 American Life.

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A m odernização seletiva

Os primórdios dessa especificidade estariam no tema básico para a cultura norte-americana da “dominação e da cultivaçào da

selva”. A íntima vinculação desse tema com a discussão weberianada especificidade do racionalismo ocidental como sendo marcado pelo motivo da “dominação do mundo” certamente não passa des percebida ao leitor atento. Isso implica compreender a singularidade ocidental como algo realizado, sem obstáculos ou compromissos com outras tradições, apenas nos Estados Unidos. Quase comose a realidade concreta norte-americana refletisse o tipo ideal abstrato do racionalismo protestante ascético. E efetivamente, o temada “dominação do mundo”, ou da dominação da “selva”, foi a palavra de ordem tanto para a colonização bem-sucedida da costaleste quanto da costa oeste séculos depois.

É importante observar que a dominação do mundo não se refere apenas à realidade objetiva a nossa volta. Ela inclui também asdimensões da vida social e da vida subjetiva interior. Assim, “selva” deve ser entendida no sentido amplo, envolvendo todas as dimensões da racionalidade e do agir humano. Selva' refere-se tanto àdominação da natureza hostil como ao controle das emoções inter

nas e dos instintos anti-sociais. E precisamente esse aspecto totalizador que leva Max Weber a defini-la como um racionalismo   peculiar. Existe aqui um quadro de referência para a ação individualque envolve todas as dimensões da vida segundo um princípioúnico.

Essa característica responde também pelo grau singular de reflexividade na vida institucional norte-americana. As instituiçõessociais não são vistas como resultado do costume e da tradição,mas como criação consciente e racional dos homens de acordo com

 princípios racionais. É precisamente esse grau de consciência e dereflexividade único que já está espelhado no sermão de John Win-throp e que fundamentaria, daí por diante, a validade universal daexperiência norte-americana. O alto grau de reflexividade institucional, desde seus inícios, possibilita uma dinâmica de crítica erenovação da vida institucional prática e concreta precisamente pela possibilidade da crítica de uma prática atual j ulgada desviantea partir de um ideário original que a constituiu.

Para Münch, a existência de uma tradição crítica e reflexivacomo resultado da singular experiência histórica e normativa norte

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A m odernização seletiva

Essas duas tradições, a da virtude cívica e a do interesse  p ro

 prio, chegam a um embate decisivo na geração dos fundadores danova República de 1776. Na época, a maioria então escolheu avirtude cívica como o fundamento da República norte-americana.Mas o conflito entre essas duas tradições é visto por Bellah como

 perpassando toda a história norte-americana até nossos dias. No projeto coletivo intitulado  Habits o f the Heart,  um interessanteexemplo de mistura bem temperada entre trabalho empírico e reflexão, esse conflito desempenha o papel principal.

 No contexto de uma sociedade pós-industrial de grandes organizações como os EUA da segunda metade do século XX, a tradição hobbesiana do individualismo utilitário logrou ganhar proeminência sobre a tradição cívica comunitária inicial. Nesse sentido, oindividualismo utilitário e expressivo seria a “primeira linguagemamericana”. Por primeira linguagem deve-se entender a autoper-cepção dos americanos sendo expressa em termos individualistas

utilitários ou expressivos. Essa predominância fica clara nos tiposideais de norte-americanos característicos construídos a partir dasentrevistas empíricas. Neles percebe-se a estranha união entre autonomia e conformismo, que parece ser o resultado da ausência de

 parâmetros substanciais que não o consumo material como definição máxima da vida bem-sucedida.

Por outro lado, a percepção da relação de dependência recí proca entre comunidades de memória (passado) e esperança (futuro) e a vida individual, a qual também todo americano conhece,seria, hoje em dia, a “segunda linguagem norte-americana”. Essasegunda linguagem, apesar de presente, apresenta a característicade ser inarticulável pela maior parte dos indivíduos entrevistados.É esse “esquecimento” da virtude republicana clássica da sociedade norte-americana que motiva a crítica comunitarista de Bellah esua equipe à sociedade americana atual.

A idéia central que guia esse tipo de exercício crítico é a noçãode que apenas por meio da relação com os outros e da adesão a finssociais ou comunitários mais largos que as necessidades individuais imediatas pode-se dar sentido à vida individual. Seguindo afilosofia de Alasdayr MacIntyre nesse particular, Bellah percebeque, deixado a si mesmo, o indivíduo é guiado apenas pelos seusdesejos e sentimentos momentâneos, carecendo de princípios que

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140 Jessé Souza

 poderiam fornecer as bases de uma condução da vida, na qual os

 princípios da ação fossem conscientes e refletidos.O resultado, no caso de essa primeira linguagem não ser revi

talizada pelo diálogo com a segunda, seria a confirmação do vaticínio de Tocqueville: conformismo na vida pública e preponderância dos interesses econômicos na vida privada. Mas Bellah étambém perfeitamente consciente de que esse estado patológiconão retrata toda a vida norte-americana moderna. Existe ainda

muita energia crítica e inconformismo na vida norte-americana demodo a permitir a continuidade do conflito entre essas duas tradições.

Mas o “contrato” não teria apenas esse inimigo “externo”. Eleteria também um inimigo “interno”. É que a noção de “povo escolhido” como corolário do contrato é ambígua desde o início. ParaBellah, os dois lados dessa ambivalência são responsáveis pelo quehá de melhor e pior na experiência norte-americana. Ele percebe

em toda a sua dimensão a ambivalência psicanalítica do contratocom Deus. De um lado, o ganho em energia e capacidade associativa tipicamente norte-americano; do outro, a possibilidade deinterpretação exclusivista do contrato. A solidariedade e coesãointerna sendo o outro lado da moeda de uma interpretação particularista do contrato, especialmente em termos de pureza étnica.O tipo de associação puro/impuro nesses termos permite, no uso

 particularista da noção, o racismo e o preconceito contra os não-iguais.Apesar dos perigos representados pelos inimigos externos e

internos do contrato, a interpretação mais universalista e mais generosa tem se firmado como dominante ao longo da história norte-americana. Para Richard Münch, é precisamente a interpenetraçãoentre ética e mundo, ou seja, a interpenetração entre as esferas éticas e mundanas formando uma cultura unitária, que singulariza a

cultura norte-americana, que permitiu, 110 longo termo, a excepcio-nalidade norte-americana. Uma excepcionalidade que se baseianuma história na qual inexistiram formas tradicionais e não democráticas de dominação e que permitiu a constante reinterpretaçãode situações históricas específicas segundo uma interpretação inclusiva e universalista do racionalismo ocidental.

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A m odernização seletiva

Que o desenvolvimento norte-americano seja excepcional, naoexiste dúvida. Também indubitável é que esse desenvolvimento, precisamente pelas razões apontadas acima, seja tido como a “versão dourada” do Ocidente. O que Münch e outros autores da mesma tradição não percebem, no entanto, é que o desenvolvimentonorte-americano também é, ele próprio, seletivo. Ele atualiza tam

 bém apenas dimensões do racionalismo ocidental e a subseqüentediscussão do caso alemão nos ajudará nessa demonstração.

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Capítulo 6

O caso da Alemanha

Para autores tão díspares como Hans-Georg Gadamer, LouisDumont, Norbert Elias ou W. H. Bruford, a especificidade cultural

alemã pode ser resumida na noção de  Bildung.' A gênese dessacategoria cultural tão influente é percebida como uma herança dareforma protestante luterana. Desse modo, a singularidade do caminho alemão para a modernidade já está prenunciada na enormediferença existente entre as raízes culturais do protestantismo ascético, que logrou uma concretização mais perfeita nos Estados Unidos da América, e o protestantismo luterano, tão característico dacultura alemã. Apesar de a institucionalização da moderna cultura

alemã ter se efetuado, em grande medida, na segunda metade doséculo XIX, com a rápida industrialização sob direção e estímuloestatal, devemos nos deter nas suas raízes  mais antigas para umaadequada compreensão do processo como um todo. Essas raízessão, além da reforma luterana, o influente romantismo alemão,movimento nascido por oposição aos iluminismos francês e inglês.

Quanto ao elemento historicamente anterior, a reforma lutera

na, temos uma variação importante em relação ao caso americano.As distinções entre as doutrinas de Calvino (como vimos, o neo-calvinismo foi a influência religiosa mais marcante no caso americano) e Lutero não poderiam ser maiores. Apesar de compartilha

1 Evito propositadamente traduzir a palavra  Bildung   de forma imediata por

motivos que logo ficarão claros para o leitor.

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144 Jessé Souza

rem a mesma noção de vocação intramundana como um caminho

 para a salvação religiosa fundamentada na sacralidade do trabalhocotidiano, existem diferenças importantes que acarretam conseqüências díspares para a condução da vida prática.

Já os “suportes sociais”, ou seja, os grupos ou classes que seidentificaram com cada uma dessas mensagens religiosas particulares, são fundamentalmente diferentes. Enquanto Lutero tinha suamassa de seguidores no campesinato e nos pequenos artesãos, Cal-

vino e os neocalvinistas possuíam seguidores, antes de tudo, nos burgueses citadinos. Muito especialmente nas variantes neocalvinistas, temos uma massa de seguidores composta pelos habitantesdas cidades mais afluentes do capitalismo comercial do alvorecerda modernidade na Holanda e na Inglaterra e, mais tarde, nos EUA.

Concomitantemente a essa distinta origem social dos suportesda mensagem religiosa, temos também uma correspondente diferença essencial no conteúdo  da mesma. Como enfatiza Max We-

 ber, na variante calvinista o fiel é percebido como um instrumento de Deus, enquanto no luteranismo, ao contrário, o fiel é visto comoum vaso da divindade. Assim, apesar de ambas as mensagens com

 partilharem uma noção semelhante de sacralidade do trabalho ultramundano, o caminho da salvação é percebido de forma com

 pletamente distinta nos dois casos.  O caminho calvinista éascético, posto que o fiel, percebido como instrumento divino, deve

transformar o mundo de acordo com a mensagem divina. Isso significa, antes de tudo, um aumento singular da tensão entre éticareligiosa e mundo. Como conseqüência temos a necessidade de seromper com as estruturas tradicionais, baseadas no hábito e nocostume, que comandavam a dinâmica social das esferas mundanas.

 No caso do luteranismo o efeito é próximo do oposto. O queimporta é a consciência de se perceber  preenchido pela f é na di

vindade,  sendo o estado sagrado  (não a ação  sagrada, que caracteriza o ascetismo ativista) percebido como uma união mística comDeus. Esse misticismo ultramundano,  como diria Weber, cria umaespécie de indiferença em relação ao mundo  que resulta em conformismo e aceitação do dado. Afinal, 0 que importa aqui é a sensação do fiel de estar preenchido por Deus no seu interior. É preci-

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A m odernização seletiva

sámente a consciência desse estado que o salva, e não a transfor- 

mação do mundo a sua volta.Essa semente cultural do luteranismo irá explicar muito da es-

 pecificidade cultural alemã. É que o caminho da salvação luteranovai pressupor não só a não-intervenção do fiel na realidade mundana, mas até a própria sacralidade dessa própria esfera mundana,tida como desejada por Deus. Desse modo, a mesma concepção devocação, que na interpretação calvinista e neocalvinista irá produ

zir efeitos revolucionários, no âmbito do luteranismo terá um efeitotradicionalista que o aproxima do hinduísmo na visão de Weber .2Conceber o trabalho como sagrado numa sociedade estamental

onde as classes superiores não trabalhavam tem um caráter revolucionário facilmente perceptível. No entanto, na leitura luterana essetrabalho deveria ser cumprido com uma noção de dever interior(ainda hoje um traço marcante da cultura alemã), mas dentro dos limites do contexto tradicional já existente de acordo com a vonta

de divina. Assim, tanto em relação à ordem econômica como emrelação à ordem política, todo o estímulo da doutrina luterana erano sentido da aceitação da ordem existente e do cumprimento rigoroso e consciente das obrigações que cabiam ao fiel dentro dessaordem aceita como imutável. Se o resultado era conformismo político e econômico, o motivo era a indiferença do místico que já possui Deus dentro de si em relação ao que acontece no mundo lá fora.

Entre a experiência mística da divindade percebida dentro de si e adinâmica das esferas mundanas não existe nenhuma conexão desentido.

Pode-se perceber, nesse contexto, o primeiro grande impulso para a construção da mais germânica das singularidades culturais:o princípio da interioridade como ideal da personalidade.  Assim,em vez da intervenção ativa no mundo, como no exemplo americano, temos a entronização do princípio da autoformação interior

como versão secularizada da “unio mística” luterana. Nesse contexto, liberdade significa, antes de tudo, liberdade interior,  aomesmo tempo livre e indiferente às lutas por poder “ interesses quemarcam a vida mundana. O princípio da interioridade significa,

 portanto e antes de tudo, concentração no mundo privado e fuga ou

2Max Weber, Gesamm elte Au fätze zur Re lgiomsoziologie,  1947, p. 74 -7 9).

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146 Jessé Souza

indiferença em relação ao mundo público, visto esse último como

comandado por valores mesquinhos e sem importância. Norbert Elias mostra, como vimos, como essa concepção dainterioridade luterana logrou ser institucionalizada e transformadaem especificidade consciente da Alemanha em oposição às outrasgrandes nações européias. Assim, civilização  no seu sentido inglêsou francês é percebida como um desenvolvimento de exterioridades, algo que acontece  fora  da personalidade individual. Já Kultur, o equivalente alemão para a noção de civilização, é entendida

como “Bildung”, ou seja, como autoformação da personalidadeindividual. Está formada aqui a contraposição entre uma noção decivilização como algo que se consuma na relação com os outros,com um sentido político imediatamente visível, visto por muitosalemães de forma depreciativa como uma perda de si mesmo, e a“Bildung” verdadeira, que constitui no interior da personalidade.

O princípio da interioridade percebida como um dever moral

hierarquicamente superior, e, nas versões mais radicais, até comocontraposto à dedicação às questões práticas da vida social e política, foi percebido como a singularidade cultural alemã por vários

 pensadores e literatos. Para Gadamer ( 1990), o conceito de Bildung é a idéia mais importante do século XVIII, assim como a noçãofundamental para a construção das ciências humanas do séculoXIX .3Encaro a interpretação de Gadamer como a possibilidade deuma leitura menos subjetivista dessa noção, com conseqüências

importantes para o nosso tema, como veremos a seguir. Para ele, agênese do conceito remonta à Idade Média. Gadamer, que nãomenciona especificamente Lutero, vê o nascimento da  Bildung  a

 partir da mística medieval, passando pela mística do barroco até aidéia de Herder de Bildung da humanidade.

A partir daí começam a se interligar os significados de  Bildung e cultura. Kant, que não menciona a palavra mas lança mão da

idéia; Humboldt, que a vincula a uma experiência simultânea deteoria e emoção, segundo um quadro de harmonia entre os dois; até

3 Hans- Georg Gadamer, Wahrheit und Methode,  especialmente p. 9-48. A discussão de Gadamer sobre  Bildung,  nessa obra hoje clássica, é fundamental paratoda a argumentaçã o que desenvolvo a seguir.

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A m odernização seletiva

Hegel, que se apropria de forma peculiar do componente moral do

dever ser kantiano.Em Humboldt temos uma recepção que afasta  Bildung  de cul

tura em sentido amplo (Kultur). A  Bildung   seria, para ele, maisinterna e superior em razão do efeito que a união do elementoemocional associado ao cognitivo proporciona.  Bildung  seria, assim, mais do que o mero cuidado com as próprias capacidades etalento. A noção é derivada de um universo místico segundo o qual

o homem é feito à semelhança de Deus e o traz em si potencialmente. Esse elemento afasta o sentido de  Bildung  do seu corres pondente latino formatio,  o qual possui um sentido mais técnico e profano. Na  Bildung  temos  Bild   que carrega, no alemão, a ambigüidade de Vor-bild   e  Nach-bild   (exemplo e cópia, respectivamente). Aqui, temos um acento do processo (werden)  sobre o ser(sem),  levando a uma ênfase 110 aspecto processual, na transformação enquanto tal em detrimento do resultado do mesmo.

Esse elemento processual permite ver a  Bildung  como umconceito histórico por excelência. Para Gadamer, Hegel teria desenvolvido esse aspecto do conceito à perfeição. O próprio conceitode espírito em Hegel estaria ligado essencialmente à noção de  Bildung. É o espírito que cria a mediação propriamente humana, que oliberta do imediato e do natural. E precisamente enquanto possibilidade de construção e apreensão do não-natural que o espírito

demanda a Bildung.Em Hegel o elemento humboldtiano de união dos aspectos teórico e prático-emocional é percebido como elevação à generalidade( Allgemeinheit ). O particular é a prisão no imediato, representando0 oposto da  Bildung  (Unbildimg). Generalidade implica, por suavez, “descentração”, ou seja, autopercepção distanciada, portanto,aberta à autocrítica. Significa também alguma distância em relaçãoaos desejos, levando à possibilidade de liberdade em relação aos

objetos, ou seja, a uma liberdade por meio da objetividade. A noção de autoconsciência hegeliana implica a idéia de dedicação àobjetividade como condição para a construção da própria auloconsciência. Este processo é a  Bildung.  Não é, portanto, a meraalienação de si, mas a alienação e o auto-estranhamento que permitem o retorno a si próprio. Hegel denomina este processo de

 Bildung.

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148 Jessé Sou za

 Bildung  é a atitude de manter-se aberto à alteridade e a um

 ponto de vista geral e descentrado, tendo, portanto, um interessecomunitário e geral. Esta parece ser para Gadamer a melhor definição de  Bildung.  É essa tradição que interessa a Gadamer e quefundamenta a gênese das ciências humanas de forma mais importante e decisiva que qualquer querela metodológica. É este o sentido também que irá nos interessar aqui como contraposição a umadefinição mais subjetivista de  Bildung,  que foi dominante na tradição alemã, até mesmo na esfera da política.

Para a interpretação mais subjetivista da noção de  Bildung, esta significa, antes de tudo, autoformação e aperfeiçoamento individual, representando, até mesmo, a forma peculiarmente alemã deassimilação da herança individualista ocidental. Sua especificidadeseria a concentração do legado individualista genericamente ocidental - entendendo-o, basicamente, como a possibilidade de crítica reflexiva - à esfera da personalidade.

O tema da  Bildung  é percebido, de maneira quase unânime pelos estudiosos, como a tradução laica da enorme influência dareforma luterana protestante na Alemanha. Como vimos, Lutero

 privilegiou, mediante a noção de privatização da fé, a vida subjetiva e interior em detrimento da vida social e política. Lutero é visto por muitos4  como o alemão no superlativo. Nele reúnem-se a introspecção com a musicalidade mística, a cólera com a ternuralírica. Do ponto de vista social, a devoção apolítica aos poderosos

como precondição para a introspecção e a rejeição germânica domundo prefigura, talvez, o traço mais marcante da cultura alemã a partir de então: a combinação de vigorosa especulação intelectualcom imaturidade política.

A partir dessa raiz religiosa podemos ver a herança pietista desaguar nos movimentos literários e filosóficos tipicamente alemãesda segunda metade do século XVIII, como o romantismo e o idea

lismo alemão. Além de Lutero, a demiúrgica figura de Goethe, oqual, juntamente com o próprio Lutero, é, talvez, a figura maisinfluente da cultura alemã, contribui para que tenhamos um quadrocompleto da idéia.

4 W. H. Bruford, The German Tradition o f Self-Cultivation,  p. 261.

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A m odernização seletiva I 'I I

Se em Lutero temos a ênfase na introspecção religiosa combi- 

nada à indiferença política, em Goethe encontramos, ao mesmotempo, um aprofundamento da temática da autoformação e emdeslocamento desta do campo religioso para a esfera profana. Comele, a  Bildung é   elevada e construída como princípio pedagógico.O auto-aperfeiçoamento individual é visto como produto do cultivoda sensibilidade artística, da liberdade pessoal, dos bens da vida eda civilização. A ênfase no autocultivo, apesar de definida segundo bens seculares, irá guardar a mesma sacralidade que o pietismohavia-lhe emprestado. Talvez isso explique a afinidade etimológicade Kultur   (ou seja, tanto a cultura pessoal da  Bildung  quanto oconjunto objetivo de realizações culturais do espírito) e Kultus (com sua conotação religiosa), demonstrando a reverência quasemística do alemão à cultura. Podemos, desse modo, interpretar a

 Bildung  como o caminho especificamente alemão de assimilar  culturalmente a herança individualista ocidental.

Fundamental para a nossa linha de raciocínio é a articulaçãoentre a ênfase inigualável na liberdade de autocultivo pessoal e aconcepção de auto-subordinação na esfera política. Para Ernst Tro-eltsch, o ideal de liberdade política ocidental anglo-francês vaicombinar-se com a tradição germânica da  Bildung,  produzindo oamálgama cultural especificamente alemão, no qual a liberdade é

 percebida preferencialmente no seu aspecto interno. O cultivo damente é o que faz o homem livre ser a fonte da real liberdade; asconvicções são tudo, importando pouco as instituições. É evidenteo caráter aristocrático da concepção de mundo por trás dessa crença. A  Bildung  é característica do aristocrata, que possui tempo emeios para se dedicar ao autocultivo. A virtude do nova,  ao contrário, é a obediência sem a perda de dignidade. Orgulho, honra ealegria na obediência passam a ser, juntamente com a noção de

 Bildung,  uma idiossincrasia germânica. Para Louis Dumont,5 a

 peculiaridade da Alemanha em oposição aos seus vizinhos euro peus é exatamente o fato de o plano da emancipação individualsubordinar todos os demais. Na França, ao contrário, é o âmbitosociopolítico que adquire proeminência. Também na mesma linha

5 Louis Dum ont, Germ an Ideology: From France to Germany an d Hack.  p. 50.

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150 Jessé Sou za

de raciocínio, poderíamos compreender a idéia de Thomas Mann

de que a Reforma teria imunizado os alemães contra a revolução .6O desastre alemão em duas guerras serviu para mitigar ou recalcar enormemente a concepção de mundo fundada na  Bildung. Ernst Troeltsch e, especialmente, Thomas Mann tornaram-se, de pois do final da primeira grande guerra, cada vez mais conscientesda necessidade de criticar a unilateralidade da concepção clássicade Bildung. Bruford mostra, com rara habilidade, em sua análise datrajetória intelectual de Thomas Mann, a transformação do prototí

 pico intelectual da  Bildung,  autor das considerações de um apolíti- co, em defensor ardoroso da “politização do espírito” (Politisierungdes geistes). A experiência nazista estimula-o à crítica à oposiçãoentre espírito e matéria e entre o aristocrata e o homem do povo.A recusa da política é vista agora como uma atitude de graves conseqüências. Se as massas não forem elevadas pela educação elasserão manipuladas pelos seus instintos por meio da propaganda .7

 Nesta última fase, Mann exorta incansavelmente a consideraçãosimultânea dos dois lados da liberdade: a pessoal e a política.Dumont critica, a meu ver de forma certeira, a solução de T.

Mann devido à vaguidão e indeterminação da combinação que oliterato propõe. Ela termina, necessariamente (crítica esta tambémválida para Troeltsch), na mera menção de uma antítese ou contradição entre a liberdade pessoal e a política. Para Dumont, nenhumconceito de liberdade, seja ele o ocidental em geral ou o alemão em

 particular, está infenso a excessos, à decadência, ou livre das contradições internas que o habitam.8  A simples menção da contradição não a soluciona.

Ao contrário de Thomas Mann, Weber tinha aguda consciência da impossibilidade de conciliação harmônica entre os contrários, além do que estava perfeitamente consciente de que vivia emuma época de “individualismo ético”. O mundo objetivo não tem

nenhum significado em si e a tarefa de conferir significado a essemundo é uma tarefa individual e solitária. Cada qual está só com o

6 apud  Dumont, ibidem, p. 54.

7 Bruford, op. cit., p. 256.g

Dumond, op. cit., p. 53-65.

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A m odernização seletiva

seu Deus ou demônio que rege as suas escolhas significativas."

Mais ainda, de forma paralela e reciprocamente independente aessa modificação no “espírito da época”, temos uma transformaçaonão menos importante nas condições objetivas do mundo moderno.Uma limitação extremamente relevante para a análise da personalidade moderna é a necessidade inevitável da especialização comoconseqüência da progressiva divisão social do trabalho.

A obra tardia de Goethe parece ser o elo de ligação entre oconceito religioso-protestante de personalidade e a concepção moderna e secularizada da mesma. Se no Wilhelm meisters lehrjahre tínhamos uma linha de continuidade com o conceito clássico de

 Bildung,  no Wilhelm meisters wanderjahre  Goethe ocupou-se dostemas da educação e do desenvolvimento da personalidade a partirda sua relação com as novas condições objetivas do novo mundocapitalista que via nascer, especialmente com o dado recente dacrescente divisão do trabalho. Aqui, ação e renúncia condicionam-

se reciprocamente na medida em que o trabalho no mundo moderno exige, necessariamente, uma limitação a uma p. quena esfera daatividade produtiva em cada área de atividade. Esta limitação pressupõe concentração de esforços e aumento do desempenho. Renúncia adquire, nesse sentido, o significado positivo de um impulso à constituição ativa do mundo baseada no trabalho eficaz.

O exposto anteriormente mostra os traços heróicos das concepções goetheana e weberiana de personalidade. Na modernidade,o que importa é a superação das paixões que nos obscurecem edesviam. Renúncia adquire aqui, portanto, o sentido de uma subordinação do sujeito às condições não-escolhidas do mundo impessoal. Os valores-guia da condução da vida no mundo moderno devem proporcionar a união entre uma escolha pessoal combinada com aclareza das prioridades exigidas pelo mundo externo, proporcionando uma concepção do trabalho como “dedicação a uma causa

suprapessoal”. A influência da concepção goetheana de personalidade em Max Weber pode ser, de resto, observada no uso constante de máximas goetheanas quando se refere a essa questão particular como “dedicação a uma causa suprapessoal” ( Hingabe an einer überpersönlichen Sache),  reconhecimento das “necessidades

9

M ax Weber, Gesam melle A ufsütze zar Wissensschaftslehre, p. 226.

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152 Jessé Souza

do dia” (Forderungen des Tages)  ou “do que é necessário” (was  Not tut), e assim por diante. Weber admite a vinculação entre ação

e renúncia como pressuposto necessário a qualquer ação de valorenquanto tal e associa a “lição goetheana” com uma noção secularizada de vocação.10

A l imi tação do t rabalho especia l izado, com a renúncia à faus t i -ana un iver sa l idade do homem por e l a suben tend ida , é uma con

dição para qua lquer t r aba lho vá l ido no mundo con temporâneo ;

daí a ‘ação ’ e a ‘ renún cia’ hoje inevi tavelm ente se co nd ic io na

rem uma à ou t ra . Esse t r aço fundamenta lmente ascé t i co do est ilo de v ida burguês - se e le p re t ende se r pos i ti vamente um

es ti lo e não a f al ta de l e - p rocurou -nos ens inar Go e the , no auge

da sua sabedor i a da v ida , t an to nos Wander j ahren quan to no

término da vida que e le deu ao seu Fausto . Para e le essa cons

c iênc ia s ign i f icava a desped ida che ia de r enúnc ia de u m a e ra de

 p len i tude e belez a da h um a n ida de , a qual, no d ec o rre r do nosso

desenvolv imento cu l tu ra l , t em t ão poucas chances de se r epe t i r

como a época de f lo resc imento da cu l tu ra a t en iense da Ant igu idade . O pur i tano qu i s se r um h ome m de vocação —nós t emo s de

se-lo) .

Essa noção secularizada de vocação é trabalhada por Webernos seus dois famosos ensaios de 1919  sobre as atividades do político e do cientista. Temos aqui a união da idéia de vocação, no seusentido secular, com a noção de ética da responsabilidade. À noção

de ética da responsabilidade é constitutivo o elemento da oposiçãoentre ética e mundo. Aqui se reencontra a idéia de uma interioridade ética e intelectualmente cultivada contrapondo-se a um mundoexterior percebido como possuindo uma lógica própria e estranha.O componente visceralmente tensional e conflituoso da problemática ética em Max Weber reflete precisamente essa visão particulardo mundo.

10 ver Harvey Gouldman,  Max Weber and Thomas Mann: Calling and the Sha ping o f the Self,  p. 165. Gouldman procura demonstrar neste livro, a meu vercom sucesso, a permanência da idéia de vocação ao longo dos textos de MaxWeber.

11 Weber, op. cit., 1947 I, p. 203.

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A m odern ização seletiva

Para Richard Münch,12 isso equivale à projeção da compreen-

são luterana de espaço público para a esfera da política. É impor-tante notar que, nessa variante de desenvolvimento capitalista, oativismo se concentra mais em figuras individuais de políticos,como paradigmaticamente é o caso de Bismarck. Desse modo, a

 política, precisamente por não dispor de um contexto normativoque regule as esferas mundanas da vida, como no mundo anglo-saxão, termina por manifestar-se como uma forma pura de  Ma- chtpolitik, ou seja, de uma concepção pragmática da política perce bida como mera luta de interesses irredutíveis conflitantes, comoimposição nua e crua do poder do mais forte sem os freios normativos que um contexto ético mais amplo exerce sobre a política.A ação política, desse modo, tende a exercer-se numa espécie devácuo moral, sem a possibilidade do agrilhão crítico que toda cultura que se baseia em princípios universais oferece.

A fuga da ética no mundo moderno para a esfera da personali

dade na concepção weberiana é típica de um pensador de umacultura luterana. Assim como a contraposição dessa noção de personalidade heróica com uma visão da política como pura “Ma-chtpolitik”, como luta amoral pelo poder, a qual, por sua vez, écontígua a uma percepção das massas modernas como um elemento intrinsecamente irracional. Com esse pressuposto é possívelcompreender-se a teoria política do Weber tardio, como propostaexemplarmente no seu “Para uma Alemanha reconstruída”, de1918. A reconstrução alemã do primeiro pós-guerra deveria produzir uma reforma institucional de grandes proporções de modo a

 poder transformar a inerente irracionalidade das massas em políticaracional e eficaz para o bem da Alemanha. Também sua teoria docarisma disciplinado por garantias institucionalizadas constitucionalmente, desenvolvida no mesmo livro, só é compreensível sobesse pano de fundo.

 Nesse sentido, Weber era, sem dúvida, um filho legítimo dasua cultura, na medida em que a “ética da responsabilidade” é umaresposta aos dilemas éticos da modernidade ainda nos limites da

 Bildung  clássica. A ênfase na esfera da personalidade como lugar privilegiado do dilema moral aponta claramente para essa herança.

12 Richard Münch,  Die Kultiir der M oderne, v. II, p. 704-705.

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154 Jessé Souza

Apesar da sua ênfase na ação externa transformadora do mundo,

tributária da noção de vocação da ética protestante ascética, o dilema moral moderno consubstanciado na congeminação entre

 pragmatismo e ética é refletido enquanto dilema da personalidade. O processo de subjetivação da moral, a tese da perda do sentido eda liberdade, fenômenos típicos do Ocidente moderno, são inter

 pretados dentro de um horizonte conforme a tradição da  Bildung. Desse modo, o indivíduo passa a ser a instância que deve “suportaros paradoxos” (Aushalten von Paradoxien), até mesmo na política.A consciência dos conflitos morais resultantes dessa separaçãoentre personalidade e mundo pode ser interpretada como a virtudemoderna e laica por excelência para Weber. A tese da existência devirtuosos modernos, como uma versão laica dos virtuosos religiosos do passado, confere aquele caráter ambíguo de várias análisesweberianas, especialmente na política, a meio caminho entre orealismo e o aristocratismo. Qualquer semelhança com a  Bildung  

não é mera coincidência.Weber era também um filho da sua época. Desse modo, a ter

rível consciência dos melhores alemães contemporâneos de que onazismo não foi simplesmente o fruto da banda podre da tradiçãoalemã, mas de que esta é uma só e pode gerar tanto o sublimequanto o demoníaco, ainda não podia estar tão clara para Weber.Afinal, o que é cultivo do mundo interior para uma elite assume aforma de obediência cega ao dominador de fato para as massasdesprovidas das chances de se auto-educar. Desse modo, não existe propriamente descontinuidade entre o ethos burocrático e militar prussiano e a manipulação totalitária das necessidades irracionaisdas massas, como aconteceu no nazismo. O nazismo foi uma meraintensificação quantitativa, acelerada por circunstâncias fortuitas,de um princípio profundamente enraizado na cultura e na históriaalemã.

Ao mesmo tempo, o que há de mais extraordinário no desenvolvimento recente da Alemanha do segundo pós-guerra parece-meresidir em uma releitura comunitária do princípio da  Bildung.  Aocontrário de países como a antiga Alemanha Oriental e a Áustria,ainda com fortes componentes fascistas na sua cultura política, aAlemanha Ocidental, precisamente por ter, ao contrário dos paísesacima mencionados, internalizado a culpa pelo holocausto,  pode

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A m odern ização seletiva

desfrutar, hoje em dia, de uma cultura aberta, crítica e libera l.

O tema do holocausto é problematizado de forma aberta e críticadiariamente pela imprensa, pela televisão, pela discussão político partidária, de tal modo que fica claro que essa herança tornou-seum componente central e fundamental da cultura política daquele

 país. De certo modo, pode-se compreender esse processo como oduplo negativo - embora produzindo os mesmos efeitos benéficosde aprendizado democrático - de experiências positivas de outros países como a luta pela independência e o início da tradição constitucional americana ou a Revolução Francesa. Do mesmo modoque um americano médio se guia pelas garantias constitucionais deseu país e um francês retira um legítimo orgulho e inspiração desua revolução, um alemão educado contemporâneo é marcado pelaexperiência da segunda guerra e dos crimes nazistas.

Um elemento indissociável dessa difícil herança é a consciência da necessidade de se engajar ativamente no debate político de

tal modo que aquela página negra não se repita. Nesse sentido,especialmente depois da extraordinária influência da “geração de68” na sociedade alemã, que equivaleu a um outro acerto de contasentre gerações, o combate à irracionalidade e o particularismo damoralidade nazista tornou-se um componente essencial da vida pública alemã. Se a permanência de traços de orgulho étnico eintolerância política ainda é uma herança influente para grande parte da população alemã, menos educada e tradicionalista, a crítica a essa herança irracionalista é feita hoje na esfera pública comapoio de amplos setores da classe média educada daquele país.

O pensador paradigmático dessa transformação é, sem dúvida,Jürgen Habermas. Habermas tinha dezesseis anos quando a segunda guerra chegou ao fim. As impressões desse período trágico foram o ambiente mesmo de sua formação como pessoa e como estudioso. Creio ser difícil apontar um pensador mais anti-Bildung, 

no sentido do que estamos chamando de interpretação subjetivista desta tradição,  do que Habermas. Ocorre em Habermas, praticamente, uma inversão dos pressupostos que guiam a reflexão webe-riana. Assim, a perspectiva do indivíduo esvanece-se ao limite doesquecimento. Tanto a adoção da perspectiva sistêmica como achamada mudança de paradigma lingüístico apontam para o mes

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A modernização seletiva

dade, por sua vez, tem uma gênese distinta. Ela é produto do ro-

mantismo alemão precisamente na sua oposição ao iluminismofrancês e inglês e suas pretensões uniformizadoras. O princípio da

 Bildung  parece-me, nesse sentido, ser uma primeira forma, aindaaristocrática e não democrática, de defesa do princípio da autenticidade.

Enquanto seu uso fique restrito a uma elite privilegiada, esse princípio é perigoso e antidemocrático. Quando ganha as ruas e se

generaliza, como de fato ocorreu no Ocidente a partir da segundaguerra mundial, ele pode funcionar como uma crítica da unilatera-lidade e instrumentalidade do mundo administrado do “self pontual” no sentido utilizado por Taylor. Ele pode ser usado, numsentido muito próprio, contra o princípio da coisificação que habitao racionalismo da dominação do mundo no sentido de Max Weber.Em vez da instrumentalização de si, dos outros e da natureza aodomínio do mundo em suas três dimensões constitutivas, portanto,

 podemos ter, paralelamente, a crítica à unilateralidade desse processo. Apesar desse princípio ser o fermento político da mudançasocial de vários países na atualidade, ele foi gestado a partir das

 peculiaridades do desenvolvimento alemão.Para Max Weber, os distintos racionalismos culturais são ab-

solutizações de pontos de vista específicos. Talvez possamos perceber também as próprias variações concretas do racionalismo

ocidental como absolutizações de dimensões complementares econtraditórias desse próprio racionalismo específico. Isso nos ajudaria a relativizar hierarquizações consolidadas na medida em queas formas concretas da realização de valores culturais sejam captadas na sua fragmentariedade e parcialidade constitutivas.

 Na nossa sociologia da inautenticidade, o desenvolvimentoocidental é percebido não só imprecisamente em várias de suasdimensões fundamentais, mas também como um princípio uno,

absoluto e livre de contradições. Essa abordagem pouco diferenciada tem efeitos deletéreos na determinação da própria especificidade cultural brasileira. Esse é o nosso tema a seguir.

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Capítulo 7

O caso brasileiro como visto pela nossasociologia da inautenticidade

O fato de termos analisado dois casos clássicos de desenvolvimento ocidental antes de nos reportarmos ao caso brasileiro nãofoi uma opção casual. A tese que será defendida nesse livro é a deque o Brasil representa uma variação singular do desenvolvimentoespecífico ocidental. Esta não é uma tese óbvia nem de fácil demonstração. Ao contrário, a interpretação dominante e mais influente sobre a singularidade cultural brasileira parte de uma especificidade predominantemente não-européia no sentido clássico: a

influência ibérica. Como se sabe, a Península Ibérica - e especialmente Portugal - compartilha com as demais culturas européiasapenas a comum herança romano-cristã que marcou a Europacomo um todo até o medievo. No entanto, todas as revoluções emovimentos históricos da modernidade, como o Iluminismo, aReforma Protestante, a Revolução Francesa ou o capitalismo industrial competitivo, tiveram pouca ou nenhuma influência em

Portugal. Nossa influência maior, portanto, seria a de uma Europa pré-moderna, circunstância essa, por sinal, que teria facilitado amistura de raças e culturas que teria acontecido entre nós.

Se bem que essa idéia seja quase tão antiga quanto o próprio  

 país, ela consegue seu maior grau de elaboração e sistematizaçãocom Sérgio Buarque de Hollanda no seu  Raízes do Brasil.  SérgioBuarque logra uma compreensão abrangente da sociedade brasilei

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160 Jessé Souza

ra como um lodo, tanto em seu aspecto cultural quanto no institu

cional, precisamente ao localizar nossas raízes ibéricas em sentidoamplo e portuguesas em sentido estrito. Não é exagero dizer queessa idéia é a compreensão dominante dos brasileiros sobre simesmos. Ela se desdobra em inúmeras ramificações, mas guardaum núcleo comum que permite identificar, no contexto multifáriode variadas versões, sua origem comum.

Interessante é perceber também, para os nossos propósitos,

que idéias não são construios sem conseqüências, simples palavrasao vento ou pensamentos sem efeitos na realidade exterior. Aocontrário, como espero que nossa discussão sobre Charles Taylortenha revelado, idéias possuem sempre uma relação interna comvalores e, portanto, encerram uma avaliação  da realidade, na medida em que definem e separam o importante do secundário. Nessesentido, idéias se entranham no cotidiano e em práticas sociais, permitindo uma direção singular aos comportamentos individuais e

coletivos. Elas se institucionalizam  e produzem, a partir daí, umaseletividade que confere e expressa uma certa singularidade socialou cultural.

Desse modo, uma investigação sobre o papel das idéias numaformação social não é algo supérfluo ou um mero exercício deerudição sem efeitos práticos. Essa percepção do senso comum tema ver com o fenômeno analisado por Taylor com o nome de natu

ralismo, ou seja, como vimos, o esquecimento peculiar que a atitude natural assumida pelo agente na vida cotidiana envolve. Nósnão refletimos conscientemente sobre os móveis da nossa ação emcada situação peculiar. Na imensa maioria das vezes nós apenasagimos.  O hábito, a convenção, um horizonte de certezas compartilhadas irrefletidamente comanda nosso comportamento. Nessesentido, temos, basicamente, duas atitudes coerentes no que dizrespeito à reflexão metódica sobre o papel das idéias: podemos

deixá-las irrefletidas e inconscientes - e essa é a atitude predominante não só do senso comum mas da imensa maioria das abordagens científicas - ou enfrentamos o difícil desafio de torná-las refletidas e conscientes de modo a perceber a influência delas nanossa vida.

O meu interesse aqui é tentar contribuir, modestamente queseja, para esse esclarecimento de pressupostos. Estou convencido

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A m odernizaçã o seletiva 16.1

de que a concepção do Brasil ibérico está profundamente entranha-

da não só na nossa autocompreensão livresca mas também nasn ssas instituições e práticas sociais. Por motivos de economia daexposição, resolvi escolher três dos nossos pensadores mais representativos, de modo a permitir a discussão do que estou chamandode concepção de mundo ibérica, em suas variações principais.Desse modo, gostaria de discutir as obras ou aspectos das obras deSérgio Buarque, Raimundo Faoro e Roberto DaMatta tentandoestabelecer, na aparente desconexão entre a produção desses autores, o núcleo comum que preside suas respectivas interpretações.

A escolha reflete a preocupação de esclarecer aspectos distintos de uma concepção que me parece una. Assim, em Sérgio Buar-que irá nos interessar sua sofisticada visão abrangente e quase filosófica (no sentido de uma metódica análise de pressupostos) daconcepção de mundo ibérica como um todo, sofisticação essa queesclarece a enorme influência de sua obra (especialmente  Raízes do 

 Brasil) sobre o pensamento social brasileiro desde seu lançamento,em 1936. Em Raimundo Faoro, interessa-nos perceber os meandrosdo que poderíamos chamar de versão institucionalista  da concepção ibérica, consubstanciada na tese do patrimonialismo. Em Ro berto DaMatta, nosso interesse é localizar as articulações do que poderíamos chamar de versão culturalista  da mesma concepção.Quase desnecessário frisar que essas distinções visam meramente ainserir a análise de concepções tão pessoais no contexto de umquadro de referência teórico compreensível. Em todas as concepções seria possível demonstrar a presença de elementos tanto institucionais como culturalistas. Meu objetivo é procurar ressaltar ocomponente principal por motivos de mera economia analítica.

Sérgio Buarque e as nossas raízes ibéricas

O ponto zero da constituição da sociedade brasileira paraBuarque é marcado pela circunstância de termos recebido nossaherança européia de uma nação ibérica. A Península Ibérica seriauma dessas regiões fronteiriças, como os bálcãs e a Rússia (Buarque chega a incluir, um tanto surpreendentemente, até a Inglaterranesse grupo), onde a Europa se encontra com outros continentes e

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culturas. A Península Ibérica seria assim uma dessas zonas frontei

riças “menos carregada, em alguns casos, desse europeísmo que,não obstante, mantêm como patrimônio comum”.1 Essa frase,como já enfatizamos na introdução deste livro, é prenhe de pressu

 postos. Afinal, dependendo da forma como se compreenda a singularidade cultural européia e o lugar da singularidade ibéricadentro dela, temos alternativas as mais distintas para o argumentoque o livro irá desenvolver. Acredito que tanto a tese de Buarquecomo a própria idéia da concepção de mundo ibérica como nossaraiz fundamental vivem dessa ambigüidade, dessa indefinição defronteiras e, por conseqüência, de ausência de conceitos claros comrespeito ao tipo de formação social que se desenvolveu entre nós.A minha decisão de escrever toda a primeira parte do livro comoum esclarecimento de pressupostos deveu-se a essa convicção.

De qualquer modo, Buarque escolhe o mote do personalismo, ou melhor, da cultura da personalidade, como o traço mais caracte

rístico e decisivo da cultura ibérica que se implantou entre nós.O termo  personalismo é   também ambíguo, como veremos maistarde, mas nos detenhamos, num primeiro instante, na forma comoBuarque constrói seu argumento. De início, temos já a direçãocrítica de todo o livro. Será a institucionalização da cultura da 

 personalidade que impedirá a solidariedade, formas de organizaçãoe de ordenação horizontais no nosso país: “em terra onde todos são

 barões, não é possível acordo coletivo durável”. Essa falta de coesão social teria marcado toda a nossa história tanto hoje como no passado. O personalismo ibérico, no entanto, possuiria, ao mesmotempo, um caráter anti-tradicional e antecipatoriamente democrático. Esse caráter seria visível no componente meritocrático do pensamento ibérico sobrepondo-se à idéia de privilégios herdados.Afinal, “toda a gente sabe que nunca chegou a ser rigorosa ou im permeável a nobreza lusitana”.2  A ética personalista seria, desse

modo, intrinsecamente fidalga e aristocrática, mas compartilhadaigualmente tanto por nobres como por plebeus.

Este aspecto é importante, posto que interessa a Buarque mostrar á incapacidade da burguesia lusitana de criar valores próprios.

1 Sérgio Buarque de Hollanda,  Raízes do Brasil,  p. 31.2

 Idem , ib idem , p. 35.

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A modernização seletiva

A burguesia mercantil ascendente não teve a necessidade de cons

tituir e defender valores específicos à consciência burguesa, dada a perspectiva real de mobilidade social na sociedade portuguesa.Houve, desse modo, antes uma assimilação dos valores tradicionaisdo personalismo aristocrático, o qual logrou, dessa maneira, transformar-se em código valorativo da sociedade portuguesa como umtodo. Para Buarque, foi essa mentalidade do reconhecimento social pelo mérito e responsabilidade individual que se tornou o maior

impedimento para a constituição de um espírito de auto-organização horizontal (entre iguais, portanto) e espontânea tão próprio dos calvinistas.

Ao leitor familiarizado com a sociologia das religiões de inspiração weberiana certamente soa estranha essa associação de idéias.Afinal, foi precisamente o protestantismo ascético, que contribuiumais decisivamente para a criação e consolidação das idéias e dosvalores de responsabilidade pessoal e mérito diferencial baseados

no desempenho. No entanto, Buarque refere-se aqui, certamente, aum outro contexto de idéias. Personalismo, no sentido utilizado porele, vincula responsabilidade individual e respeito ao mérito individual enquanto aspectos subordinados à própria personalidade. Os fins e objetivos perseguidos por essa personalidade fidalga jamais são extrapessoais ou impessoais,  o que implicaria, dessemodo, submissão a objetos exteriores, quer sejam de natureza reli

giosa quer sejam mundanos. O alfa e ômega da idéia de personalismo em Sérgio Buarque aponta, portanto, para uma constelaçãode interesses e valores que encontram no próprio indivíduo suarazão de ser e seu norte.

Por conta disso é que a vinculação com sentimentos e afetos éque irá conferir substância a esse tipo de personalidade. Daí tam bém a fragilidade relativa das relações sociais baseadas em interesses racionais numa sociedade personalista. Ainda como decorrên

cia do mesmo fato temos a ausência da perspectiva dos acordos ecompromissos racionais entre iguais. Em relação a tamanha autarquia individual  os caminhos abertos são os do mando e da obediência irrestrita a partir de vínculos verticais de hierarquia. A nossasingularidade cultural é interpretada por Buarque como possuindoum vínculo de continuidade direto, baseada na cultura do personalismo, de Portugal:

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A modernização seletiva 165

amizade e compadrio, e nunca pela força intrínseca de interesses

objetivos e idéias impessoais.Precisamente essa permanência do mesmo ainda que em contextos diferentes é o que confere conleúdo à tese da inautenticidade do esforço de modernização brasileiro,  uma característica que setransmitirá, como veremos, a toda essa tradição de perceber a singularidade brasileira. Assim, o personalismo de origem rural apenas muda de lugar lia transição do campo para a cidade, ele se tra- veste  de urbano, adquire uma ou outra característica secundária,um ou outro adereço de pouca importância, mas a substância, suascaracterísticas essenciais continuam a mesmas.

Esse caráter puramente exterior, epidérmico, de numerosas agitações ocorridas entre nós durante os anos que antecederam esucederam à Independência, mostra o quanto era difícil ultra passarem-se os limites que à nossa vida política tinham traçadocertas condições específicas geradas pela colonização portuguesa. Um dos efeitos da improvisação quase forçada de uma espécie de burguesia urbana no Brasil está em que certas atitudes peculiares, até então, ao patriciado rural logo se tornaram comuns a todas as ciasses como ideal de conduta. Estereotipada por longos anos de vida rural, a mentalidade da casa grande invadiu as cidades e conquistou todas as profissões, sem exclusãodas mais humildes.'

O capítulo sobre o “homem cordial” é, sem dúvida, o clímaxdo argumento de Buarque, uma reflexão que visa a uma síntese e auma condensação de toda a idéia que perpassa o livro! Nele, Buar-que une as perspectivas micro e macrossociológicas, os componentes subjetivo e objetivo, os aspectos cultural e institucional, os

 pontos de partida da esfera da personalidade e os da esfera culturalmais ampla sob a forma de uma concepção de mundo abrangente.

 Nesse contexto, vai ser importante, antes de tudo. o processo deabstração do personalismo que passa a ser percebido também emsuas manifestações “impessoais”, abrangentes e institucionalizadas. Duas das mais importantes manifestações impessoais do personalismo, para Buarque, são o Estado patrimonial e o catolicismo

 Idem , op. ci/.,  1999, p. 87

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166 Jessé Souza

familiar. Neles o dado cultural simbólico se institucionaliza e trans

forma-se em sistema, contribuindo decisivamente para criar umsistema social ancorado nos valores personalistas: a sociedade dohomem cordial.

O patrimonialismo desenvolve-se diretamente do personalismo, impedindo o desenvolvimento de um Estado racional democrático. O Estado permanece como uma mera generalização do princípio de sociabilidade familiar baseada na preferência particularista dos afetos, alfa e ômega do personalismo enquanto concep

ção de mundo. A burocracia racional, enquanto princípio contíguoà moderna democracia, na medida em que corporifica a possibilidade de um trato objetivo e conseqüentemente igualitário dasquestões políticas, não pode desenvolver-se como um elementoautônomo nesse contexto.

O catolicismo familístico desenvolve-se e complementa-secom perfeição no personalismo, na medida em que inexiste a pos

sibilidade das conseqüências típicas de uma “transcendência religiosa”, ou seja, a possibilidade de constituição de uma tensão éticaentre a positividade da mensagem religiosa e as esferas mundanas eo conseqüente aguilhão crítico e antilradicional que isto significa.Como resultado, nosso catolicismo é mágico, na medida em quetrata as divindades à semelhança dos poderosos profanos, impedindo a eficácia de uma ordem extramundana específica, a qual pressupõe, precisamente, distância entre as divindades e os homens.

Tanto num como noutro caso, a causa comum é o personalismogerado no ambiente familiar, impedindo a formação de instituiçõesnão baseadas em vínculos sentimentais particularistas e privilégios.Desse modo, até a instituição do mercado, o qual vive da impessoalidade e da distância afetiva de modo a permitir a eficácia específica do mecanismo da concorrência, é invadida pelo personalismo,impedindo o desenvolvimento de todas as potencialidades da maior

 produtividade do capitalismo maduro.6O que salta aos olhos na elaborada e refinada argumentação deBuarque é a afirmação de uma certa causalidade atávica, um princípio ativo que atravessa séculos com diferenças apenas epidérmicas, meros disfarces do eterno retorno do mesmo: o personalismo

6  Idem , ib idem, p. 148-149.

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A m odernização seletiva I

gestado na colonia e herdado de Portugal. Isso pode ser facilmente

visto nos exemplos do liberalismo,7  do cosmopolitismo,8 ou doódio à realidade nacional.9  Para Buarque, até a substituirão daaristocracia rural pela elite do talento, sob d. Pedro II, é apenasmais uma nova aparição do mesmo, uma veste mais colorida, maisadaptada aos novos tempos, mas, substancialmente, temos um vínculo claro de continuidade da elite antiga com todos os seus defeitos e limitações.10

O tema clássico do “para inglês ver”, ou seja, da autolegitima-ção de uma baixa estima nacional pelo disfarce, pelo embuste, pensado de modo a garantir uma transitoria aprovação dos outros  povos,  portanto de fora para dentro, completa o quadro da modernização inautêntica e epidérmica como nosso traço mais característico. O personalismo e o iberismo permanecem como nossa herança mais profunda. Para Buarque, a modernidade e aconseqüente superação do personalismo poderiam ser representa

das pelo café paulista e pelo desenvolvimento pretensamente distinto do Estado de São Paulo. Este é também um terna que iráacompanhar as outras versões da nossa concepção de modernização inautêntica, especialmente na sua vertente institucionalista,como teremos oportunidade de discutir com maior vagar a seguir.

 Não se trata aqui de discutir os indubitáveis méritos e a legítima enorme influência do pensamento de Sérgio Buarque no nosso pensamento social. Trata-se de atentar para a necessidade de umaapropriação reflexiva e crítica dos pressupostos desse tipo de análise interpretativa. Se estamos corretos em supor que a relação dasidéias com o mundo material não é de exterioridade, mas, ao contrário, que as idéias ajudam a constituir a própria realidade material,na medida em que nos mostram alguns aspectos e possibilidades deação e encobrem outros tantos, então a crítica das idéias é umatarefa conspícua de uma sociologia com interesses críticos. Estou

convencido de que o que venho chamando de nossa sociologia dainautenticidade representa uma forma unilateral, incompleta e en-

7  Idem , ib idem,  p. 160g

 Id em , ibidem , p. 161g

 Idem , ib idem,  p. 162.

10  Idem , ib idem,  p. 164.

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168 Jessé Souza

viesada de perceber nossa realidade. Vejamos a continuação dessa

tradição em Raimundo Faoro no seu Os donos do poder.

Raimundo Faoro e o conceito de patrimonialismo

A tese do livro de Faoro é clara desde o início: sua tarefa édemonstrar o caráter  patrimonialisla  do Estado brasileiro. Essecaráter patrimonialista responderia, em última instância, pela

substância intrinsecamente não-democrática, particularista e baseada em privilégios que sempre teria marcado o exercício do poder político no Brasil. Faoro procura comprovar sua hipótese buscandoraízes que se alongam até a formação do Estado português no remoto século XII de nossa era. Um argumento central que perpassatodo o livro é o de que o Brasil “herda” a forma do exercício do poder político de Portugal. Como em Sérgio Buarque, a herançaibérica que finca fundas raízes na nossa sociedade passa a ser res

 ponsável por nossa relação exterior e inautêntica com a modernidade.

A formação do Estado português possui singularidades im portantes dentro do contexto europeu. Portugal é o primeiro país daEuropa a unificar seu território sob o comando indisputado de umúnico rei. Enquanto na maior parte dos países europeus a luta pela

 primazia e comando entre os vários grandes senhores territoriais

ainda duraria séculos até que o poder e prestígio de apenas um pudessem se impor em relação a todos os outros como um fatoindisputado, a situação em Portugal foi bem outra.

A guerra da reconquista do território português ao mouro possibilitou a incorporação de terras do inimigo à propriedade pessoaldo senhor do reino e dos exércitos. O patrimônio do rei no séculoXIV já era maior do que o do clero e três vezes maior do que o da

nobreza.11 A esse prematuro traço de concentração territorial des-envolve-se todo um conjunto de medidas centralizadoras do poderreal. A justiça suprema, em última instância, estava reservada àCoroa. Também o revigoramento do município, com milícia pró pria obediente ao rei, foi usado como forma de controlar o poder da

11 Ra imundo Faoro, Os donos do pod er,  p. 4.

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A m odernização seletiva

nobreza e do clero. Como aconteceria em todos os outros países

europeus mais tarde, a transformação da economia natural na economia monetária, permitindo a arrecadação em moeda e o pagamento de serviços militares (até mesmo os da nobreza) em dinheiroe não em terras, evitou o desenvolvimento de tendências descen-tralizadoras.

Como nos lembra Elias, apenas a passagem à economia monetária permite a estabilidade da dominação centralizada. Num

Contexto em que a terra é ainda a fonte principal cie riqueza, a mo-netarização dos encargos, conferindo o grosso das rendas do soberano, possibilita a renovação constante do erário para o pagamentodos serviços imprescindíveis à manutenção do domínio. O pagamento em terras acarretaria forçosamente o efeito contrário: não areprodução ampliada das condições necessárias à manutenção e atéampliação do domínio, mas a sua fragmentação a partir da inevitável autarquização das concessões a delegados ou da distribuição de

terras a outros senhores por serviços militares.Faoro percebe com perspicácia que é precisamente o prematu

ro processo de centralização e monetarização das bases sociais do poder real em Portugal que possibilitará ao pequeno reino dispor dereservas suficientes para a aventura ultramarina, fase heróica do povo português que marcará a história desse pequeno país por seisséculos. Sobre essa base material, militar e econômica, constitui-se

um fundamento simbólico ou espiritual destinado a organizar elegitimar o poder do príncipe: o uso do direito romano como modelo de pensamento, ideal de justiça e instrumento de organizaçãoadministrativa e jurídica do domínio do príncipe. Ao fim e ao cabo,o soberano é reconhecido na sua qualidade de defensor, administrador e acrescentador do reino, teoria baseada no domínio eminente e não real. Como percebe Faoro, temos no Portugal medievaluma antecipação de séculos, em relação aos outros países euro

 peus, do domínio absolutista.É o novo Estado resultante desse complexo processo histórico

que Faoro denominará de Estado patrimonial.  O conceito de pa-trimonialismo é retirado diretarmente de Max Weber e vale uma

 pequena digressão de modo a analisar o uso dessa noção em Faoro.Em Weber o conceito de patrimonialismo é uma noção abrangente,envolvendo, nas suas inúmeras variações concretas, todo o espectro

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170 Jessé Souza

de formas de dominação política que vai da superação do patriar-

calismo familiar, que não possui quadro administrativo próprio, atéo moderno Estado burocrático racional moderno. Nesse sentido, adominação patrimonial (e suas derivações principais como o feudalismo e o sultanismo) é inerente a praticamente todas as formasde sociedade tradicional de algum tamanho e densidade populacional que exijam a constituição de um quadro administrativo paraintermediar as relações entre dominadores e dominados.

Um conceito tão abrangente pede uma sensibilidade históricaapurada para torná-lo minimamente operacional e útil. No próprioWeber, esse conceito é usado para explicar, antes de tudo, a gênesedo moderno Estado burocrático. Duas características principaismerecem ser ressaltadas nessa genealogia. Primeiro ganha relevo adimensão interna da relação entre o dominador ou príncipe e seuséquito ou quadro adminstrativo. Para Weber, essa é a questãocentral de toda forma de dominação que pretende estabilidade, na

medida em que o controle sobre os meios cie administração,  na política, apresenta a mesma centralidade, para o exercício do poder, que a propriedade sobre os meios de produção econômica, naesfera da economia, para o controle do processo produtivo.1'

Em segundo lugar temos a questão da compatibilidade externado sistema político com as outras esferas sociais, especialmente daeconomia e do direito, aspecto esse que esclarece a constituição deesferas racionalizadas segundo um padrão formal. Existe uma relação de compatibilidade e influência recíproca entre a racionalização da economia e a do Estado. A dominação patrimonial é com patível com uma economia monetária, mas não com uma economiamonetária desenvolvida em todas as suas conseqüências como nocapitalismo de mercado. Os atributos de calculabilidade, previsibilidade e racionalidade faltam ao patrimonialismo. A racionalizaçãoformal da forma de dominação política é um pressuposto de uma

sociedade eficiente e vem daí a enorme ênfase weberiana na im portância da burocracia racional.Em seus textos políticos da maturidade, que datam do imediato

 primeiro pós-guerra, Weber está preocupado em refletir sobre as pré-condições institucionais para a modernização do Estado ale-

M ax Weber, Po litik ais B ru f  p. 39.

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A m odern ização seletiva

mão e pretende unir eficácia do quadro administrativo com uma

 política que permita o aparecimento de verdadeiros líderes. A su peração da questão política milenar da luta entre o quadro administrativo e o líder não deve resultar num domínio dos funcionários, mas no domínio de personalidades com projetos e idéias pró

 prias. A eficiência burocrática deve limitar-se a sua atividade meio,uma espécie de corrente de transmissão anodina entre os líderes eas massas.13

Em oposição ao uso histórico e dinâmico da categoria de pa-trimonialismo em Weber, seu uso por Faoro é estático e tendencial-mente a-histórico. Faoro se interessa pouco pelas transformaçõeshistóricas do que ele chama de estamento burocrático e procurasempre ressaltar, ao contrário, a permanência inexorável do mesmosob mil disfarces, que são apenas uma aparência de diferença. Issoresulta, creio eu - (sem prejuízo da primorosa historiografia política, especialmente do período que vai de 1822 a 1922, que ele, ape

sar de tudo, consegue realizar) -. da forma ideológica e esquemática com que ele constrói seu argumento

Seu argumento é teleológico na medida em que ele, a partir deuma primeira intuição, influenciado pela leitura de Joaquim Nabu-co sobre a influência da elite de funcionários letrados no Brasil dasegunda metade do século XIX, alonga essa influência a um período de quase oito séculos.14 Nem sentido, o passado parece ser per

cebido de modo a confirmar uma avaliação adrede realizada. Nessecaminho, o leitor atento percebe muitas vezes a camisa-de-forçaque significa a transposição, para as situações históricas as maisvariadas, de uma idéia que deixa, ao limite, de ser uma categoriahistórica e assume a forma de uma “maldição”, uma entidade de-miúrgica que tudo explica e assimila.

Ao mesmo tempo, a teleología que habita o argumento tem suacontrapartida na forma esquemática como Faoro percebe o proces

so de desenvolvimento ocidental. O ponto de vista de Faoro é o doliberal clássico. Ele percebe a singularidade do capitalismo bem-

13  Idem ,  “Parlament und Regierung im neugeordneten Deutschland”,  Zur Politik  em Weltkriege: Schriften und Reden. 1914-1918, p. 202-303.

Entrevista ao jornalista Marcelo Coelho, Folha de S. Pauio, suplemento MAIS

de 14/5/2000.’

14

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172 Jessé Souza

sucedido e democrático segundo o modelo de uma sociedade que

se constitui antes do Estado, permitindo o florescimento tanto dasliberdades econômicas quanto das públicas e democráticas. Escapaa Faoro que esse caminho, longe de ser a regra, foi a exceção nodesenvolvimento ocidental. Esse ponto é fundamental. E ele queirá explicar de que modo a categoria a-histórica de estamento patrimonial que o autor constrói possa transmutar-se quase que im- perceptivelmente na noção pura e simples de Estado interventor.Toda a argumentação do livro baseia-se nessa transfiguração: sem- pre que temos Estado, temos um estamento que o controla emnome de interesses próprios, impedindo o florescimento de umasociedade civil livre e empreendedora.

Assim é desde a prematura centralização e unificação do Estado português medieval, o qual, se permite a concentração de recursos necessários à aventura ultramarina, guarda em si um efeito nãoesperado e perverso: impede as condições propícias para o desen

volvimento do capitalismo industrial. Ou, em outras palavras, im pede a constituição mesmo de uma sociedade moderna, visto que oEstado, ao se substituir a atividade empresarial individual baseadano cálculo, intervém inibindo o exercício das liberdades econômicasfundamentais. Com isso, não apenas a atividade econômica é com

 prometida, mas o próprio exercício das liberdades públicas básicas,acarretando, também, a tibieza da vida democrática como tal.

 Nesse sentido, a grande oposição ideológica do livro seráaquela entre uma sociedade guiada e controlada pelo Estado, decima, e as sociedades onde o Estado é um fenômeno tardio e oautogoverno combina com o exercício das liberdades econômicas.Em sentido estrito, no entanto, foram apenas os Estados Unidos daAmérica que lograram construir uma sociedade na qual a presençade um forte Estado centralizado foi uma realidade tardia. É precisamente essa circunstância que possibilitou a criação do tema da

excepciona!idade do desenvolvimento norte-americano  desde a publicação do texto clássico de Tocqueville sobre o assunto, comoexaminamos no primeiro capítulo dessa segunda parte do livro.

Os Estados Unidos, cuja notável singularidade de jamais teremexperimentado qualquer forma de dominação tradicional atraiigualmente europeus e latino-americanos, serão (o que de resto seaplica a todos os autores analisados nesse livro) o contraponto,

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A modernização seletiva

algumas vezes explicitamente, o mais das vezes implicitamente, do

(sub)desenvolvimento brasileiro. Essa contraposição, que cega oautor para outras alternativas possíveis, inclusive as variadas formas concretas de desenvolvimento tanto político como econômicoestimulado pelo Estado, possibilitará a Faoro identificar as causasdo nosso a t r a s o s o c i a l . Esse será seu leitmotiv,  o que ele pretendeexplicar. As causas do mal, do atraso, serão, no caso brasileiro,como já vimos, uma importação de Portugal: o Estado todo poderoso que substitui-se a sociedade e acaba por sugar-lhe, vam-

 pirescamente, todas as energias vitais. Mas como constrói Faoro aespecificidade do Estado luso-brasileiro?

O conceito central para dar conta da singularidade sociopolíti-ca luso-brasileira é, como vimos, a noção de Estado ou estamento 

 patrimonial.  O estamento seria uma camada social cuja solidariedade interna é forjada a partir de um estilo de vida comum e deuma noção de prestígio compartilhado, o qual se apropria do apa

relho de Estado como coisa própria e usa o poder de Estado demodo a assegurar a perpetuação de seus privilégios. Historicamente, ele se consolida a partir da crise política portuguesa de1383/85. O novo contexto de poder daí resultante consolida umnovo equilíbrio entre a nascente burguesia e a nobreza lentamentedecadente. Desse equilíbrio de forças,15 temos a estruturação deurna comunidade dentro do Estado que fala em nome próprio: oestamento. Básica para o conceito de estamento é a noção de honra. Honra é o conceito central das sociedades pré-capitalistas tradicionais. Ela funda-se no prestígio diferencial e na desigualdade.Para Faoro:

Os es tamentos f lorescem, de modo natura l , nas sociedades em

que o mercado não domina toda a economia , a soc iedade f euda l

ou pat r imonial . Não obstante , na sociedade capi ta l i s ta os es ta

mentos pe rmanecem, r es idua lmente , em v i r tude de ce r t a d i s t i n

ção mundia l , sobre tudo nas nações não in t egra lmente ass imi l a

das ao processo de vanguarda . . .O es t amento supõe d i s t ânc ia

socia l e se esforça pela conquis ta de vantagens mater ia i s e espi -

15 Precisamente nesse equilíbrio de forças entre burguesia ascendente e nobrezadecadente, percebe Elias, o momento mais propício para a monarquia centralizada absoluta.

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174 Jessé Sou za

r i tuais exclus ivas . As convenções , e não a ordem legal , deter

minam as sanções pa ra a desqua l i f i cação es t amenta l , bem comoasseguram pr iv il ég ios mate ri a is c de mane i ras . O fecham ento da

comunidade l eva à apropr i ação de opor tun idades econômicas

que desembocam, no ponto ex t remo, nos monopól ios de a t iv i

dades lucra t ivas e de cargos públ icos . Com isso, as convenções ,

os est i los de vida inc Op.cit . ,  sobre o mercado , impedindo-o de

expandi r sua plena vi r tual idade de negar dis t inções pessoais .

Regras ju r íd i cas , não r a ro , enr i j ecem as conv enções , r es t r ing in

do a economia l i v re em favor de qu i s tos de consumo qua l i f i ca

do, exigido pelo modo de vida . De out ro lado, a es tabi l idade

econômica f avorece a soc iedade de es t amentos , a s s im como as

t ransformações bruscas , das técnicas ou das re lações de in teres

se , os enf raquecem. Daí que r epresen tem e l es um f re io conser

vador , p reocupados em assegura r a base de seu poder . Há es t a

mentos que se t r ans formam em c lasses e c l asses que evo lvem

 para o e s tam en to se m n egar seu c o n te úd o d iverso . O s e s t a m e n

tos governam , as c l asses neg oc iam .16

Temos, nessa citação, o denso resumo do argumento que serádesenvolvido no decorrer de todo o livro. Temos a idéia do “resíduo” (de outras épocas) estamental que se torna permanente e fra-giliza a atividade do livre mercado (para o liberal clássico Faoro, omercado enquanto tal, e não o mercado temperado e controlado, é a

 base tanto do capitalismo como da democracia). A referência a

situações de instabilidade, quando ocorrem mudanças bruscas,ajuda a esclarecer a dialética de constante desaparecimento/reaparecimento da realidade estamental, como iremos ver a seguir, sob a forma do eterno retorno do mesmo, o famoso “vinhonovo em odres velhos”, na metáfora orgânica tão a gosto do autor.De resto, para completar o quadro, a definição da função do estamento como sendo a de “governar”. É esse seu “trabalho”. O Estado é o seu “negócio”.

O ponto fundamental da definição acima, no entanto, que res ponde tanto por sua fragilidade em última instância como conceitoquanto por sua extraordinária eficácia não só intelectual mas, especialmente, social e política, é a intencionalidade  que lhe é atribuí-

16 Faoro, op. cit., p. 46-47.

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A m odernização seletiva

da. Aí, precisamente, creio eu, reside sua enorme força de conven

cimento. Ela possibilita encontrar um culpado  consubstanciado efacilmente localizável numa “elite má”, para nossas mazelas e nosso atraso. E sabemos, não só pela dogmática do direito penal mas pelas crenças entranhadas no senso comum, que só pode existir culpa quando existe intenção.

Quanto à questão das precondições estruturais para a formaçãodo estamento, a percepção de Faoro é clara. Ele vê a possibilidadehistórica da constituição do estamento como um produto de umsingular equilíbrio de forças entre nobreza, clero o burguesia nascente. Desse equilíbrio de forças e conseqüente vácuo de poder,surge a possibilidade da constituição social de uma comunidade ede uma ética comunitária própria, a qual não se confunde com oethos  específico de nenhuma das forças políticas que lutam pelo poder. A estratégia argumentativa de Faoro é, nesse particular,semelhante àquela que autores como Karl Marx ou Norbert Elias

utilizaram para explicar épocas de domínio absoluto ou cesarista.Tanto na análise do bonapartismo em Marx como na discussão doabsolutismo em Elias temos a pressuposição de um equilíbrio deforças sociais tal que nenhum grupo ou classe logra dirigir o processo político de forma estável. É esse vazio que abre espaço paraformas de domínio cesarista no comando do Estado.

 No argumento de Faoro, no entanto, temos uma diferença essencial em relação às abordagens dos outros autores citados, emmais um exemplo do caráter a-histórico que seu argumento adquire. Enquanto tanto Marx como Elias enfatizam a constitutiva tran-sitoriedade dessa situação excepcional, na realidade apenas possível quando um sistema de valores e instituições já caduco seencontra com um outro ainda imaturo, Faoro prefere enfatizar a permanência (a eternidade seria mais apropriado) da referida situação desde então.

Um outro problema analítico importante e que permanece nãoexplicado é a importante questão da relação entre o líder ou o rei eseu quadro administrativo. Max Weber, por exemplo, para citaruma inspiração cara a Faoro, acha que essa é a questão central detodas as formas de dominação política existentes.17 No raciocínio

17Max Weber, op. cit., p. 39.

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176 Jessé Souza

de Faoro essa questão permanece indeterminada e relegada a um

inexplicável segundo plano. A possibilidade mais plausível talvezseja a de que supõe uma proeminência do estamento, ou seja, doquadro administrativo, sobre o rei. Este seria, quando muito, umaespécie de funcionário-mor   do estamento. Esse raciocínio não éisento de contradições, visto que, juridicamente, o poder se concentra na pessoa do rei.

As ordenações f i l ip inas são, bás ica e pr incipalmente , o es ta tuto

da organização pol í t ico-adminis t ra t iva do re ino, com a minu-dente especi f icação das a t r ibuições dos delegados do re i , não

apenas daqueles devotados à jus t iça , senão dos l igados à Cor te e

à es t rutura municipal . . . A codi f icação expressa , a lé m d o p r e d o

mín io incontes tável e abso lu to do soberano ,   a cen t ra l i zação po

l ít ica e adminis t ra t iva (as ênfase s são min has J .S . ) l8

Ora, se o soberano é absoluto e inconteste, não existe sentido

em falar de governo pelo estamento. Se o poder do quadro administrativo é mera delegação do soberano, ele, o soberano, é a basede todo poder. O nome dessa forma de exercício do poder seriamonarquia absoluta e não domínio estamental. Essa forma de domínio não implica, necessariamente, que os funcionários do rei nãoexerçam e controlem uma fatia importante do poder real. O que édecisivo aqui é a instabilidade da delegação, ou seja, se ela pode

ser retirada discricionariamente tão logo o soberano perceba algumdesvio de sua vontade. No entanto, por outro lado, para Faoro, oestamento é que parece ser o responsável pela po lítica real:

Mas o soberano se rá, t ambém e le , despo jado de a t r ibu ições -

 pe rderá a m arca d e p rop r ie tá r io do reino, con ve r t id o cm seu

adminis t rador , defensor e ze lador : o pr incipado e leva-se acima

do pr íncipe . . .O conglomerado dc di re i tos e pr ivi légios , enquis

tados no es tamento, obr iga o re i , depois de susci tá- lo e de nelese amparar , a lhe sofrer o inf luxo: a ação real se fará por meio

de pactos , acordos , neg ocia çõe s .19

18

Faoro, op. cit.,  1984, p. 65.19

 Idem , ib idem, p. 50.

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178 Jessé Souza

ção que impedirá o Portugal moderno, seja na esfera da economia,

 pela ausência do capitalismo industrial e competitivo,21 seja naesfera da política, pela ausência de espírito democrático.22 Não menos problemática é a transposição desse argumento ao

Brasil. Já para o primeiro período colonial dos séculos XVI eXVII, Faoro é obrigado, para manter sua hipótese, a investir decididamente contra a tese, quase que universalmente aceita na historiografia brasileira, da descentralização política e administrativaque imperava na colônia, pelo menos até a descoberta das minas noséculo XVIII. A tese da descentralização fundamenta-se, antes detudo, na noção de autarquia do latifúndio, o qual mantinha a si próprio, seja em relação às suas necessidades materiais, seja emrelação às necessidades espirituais. Também a acomodação e ocompromisso em relação ao gentio, ao adventício, assim como emrelação ao meio hostil, ou seja, a famosa  plasticidade do português.são negados por Faoro. A seu ver, não teria existido tanto improvi

so, acomodação ou compromisso. Ao contrário:

Velava, contra as forças dispersivas, contra as distâncias autonomistas, contra as empresas econômicas independentes, o estado maior de domínio - o estamento —dependente do rei e se-nhor do reino. A colonização e negócio seu, dentro do quadromarítimo e universalrs, sob o controle financeiro da Coroa, comos ramos, que lhe sugavam o tútano, espalhados por toda a Eu

ropa. Sobre as capitanias avultava o protetorado do soberano, pronto, ao menor sinal de desvio, a anular, com uma penada, ocontrato escrito e a palavra empenhada. Muitos anos correrãoantes que os potentados rurais ganhem substância e consciência para romper as correntes, lance sempre adiado, veleidade de alguns séculos...23

O argumento do autor, nessa parte do livro, adquire uma forma

 peculiar. Ele se lança contra a tese de um " feudalismo brasileiro”,como se, por definição, toda forma de descentralização de podertivesse que assumir a forma feudal, em nome da defesa de móveis

21 Idem , ib idem,  p. 85.

22  Idem, ib idem,  p. 92-93.

 Id em, ib idem,  p. 120.

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A modernização seletiva

tipicamente capitalistas em relação ao empreendimento açucareiro.

Ora, a realidade do caráter capitalista do empreendimento açucareiro e sua função de elo no contexto do capitalismo comercial daépoca não desmentem o fato da distância do Estado português e desuas instituições nem a concentração, correspondente a essa ausência, de poderes e recursos nas mãos do senhor de terras e escravos.

O argumento de Faoro parece querer dizer que a única realidade, “a realidade econômica e social (que) se articulará num com plexo político, que governa as praias e atravessa os sertões”,"4 é aorquestração de longe, por parte do ubíquo estamento, de todo o processo econômico e social da colônia. A discussão assume umacontorção curiosa. Afinal, não é o projeto “em grande”, o desenhoda conquista e sua inserção no capitalismo comercial, o ponto maisinteressante. Para a determinação do tipo de sociedade que seconstruiu aqui, o ponto fundamental é que esse planejamento delonge não implica formas de regulação, controle e condiciona

mento da conduta prática, da vida cotidiana na colônia. Ainda maisque os estímulos de mercado eram episódicos, não possibilitando, portanto, formas de controle racional da atividade produtiva.O núcleo da questão sociológica relativa à singularidade da sociedade que aqui se constitui passa ao largo dessa discussão.

Para além da tendência de enfatizar o “controle de longe”, temos também ainda outra dificuldade adicional no argumento fao-riano da aplicação de sua tese do estamento patrimonialista entrenós. Chamar-se-á estamental qualquer política dirigida a partir doEstadó, mesmo se possui conteúdos e intenções díspares ou atéopostos. O caso da descoberta das minas com a posterior chegadada família real ilustra bem o que queremos dizer. Para Faoro, a passagem da política do Estado português de furiosamente tributário e controlador, por ocasião da exploração aurífera em MinasGerais, para a condição de Reino Unido, a partir de 1808, repre

sentaria, ao fim e ao cabo, apesar de tudo, apenas a presença domesmo sob outras vestes e outros disfarces.

Esse ponto é importante na medida em que nos dá uma pistado tipo de raciocínio subjacente à tese faoriana. Afinal, a transmigração da família real equivale a uma revolução de grandes pro-

24  Idem, ib idem,  p. 115.

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 R 180  Jessé Sou za

 porções para a então atrasada e pobre colonia. D. João VI cria as

condições tanto para a constituição de incipiente mercado capitalista, por meio da abertura dos portos, do estímulo à industria e aocomércio e aumento da economia monetária, como para a constituição de um aparelho de Estado racional. Paralela mente aos estímulos à constituição das duas instituições mais importantes dassociedades modernas, temos também reformas como a introduçãode melhoramentos urbanos, transportes públicos, estímulo às artes,criação do jardim botânico e da tipografía régia, a instituição doensino superior, etc.

A capital do país transforma-se de uma pequena aldeia emuma das grandes cidades do globo, a receita pública, no período,quadruplica e a modernização do país ocorre a olhos vistos e aossaltos. Tanto as condições materiais como as simbólicas transformam-se fundamentalmente. Não só mercado e Estado mas, tam bém, novas idéias, valores, hábitos, comportamentos e visões de

mundo transformam-se radicalmente em questão de poucas décadas, na maior revolução social da história do país. Faoro não negaas mudanças. No entanto, apesar de tudo, ele só tem olhos_para omesmo: o eterno estamento, a permanência deste sob mil disfarces.

A resposta para tamanha refração de olhos tão seletivos que sóvêm o que querem explica-se, creio eu, a partir do pressuposto detoda a análise faoriana. Mais ainda, pelo pressuposto implícito de

toda a sociologia brasileira do patrimonialismo. Esse pressuposto éa crença liberal clássica de que a ação estatal acarreta, invariavelmente, o amortecimento das forças vitais de uma sociedade. O quefaz com que Faoro perceba, em políticas tão diversas, apenas onovo disfarce do velho mal é o fato de que, para ele, a predominância do Estado como estimulador e condutor da vida social é umm al em si e acarreta o desaparecimento, ou evita o aparecimento,de formas autônomas de organização social. A tese do patrimonia-

lismo como que reveste, como um dado secundário, essa verdade primeira e mais essencial.

Ora, vimos que foram condições especialíssimas que propiciaram aos Estados Unidos da América um desenvolvimento socialem moldes tais que evitaram tanto a presença de formas de dominação tradicionais como uma presença forte do Estado no começoda organização social daquele país. Em todos os outros exemplos

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A modernização seletiva

históricos de desenvolvimento capitalista o Estado foi e é uma  

realidade fundamental. A tese do patrimonialismo hispostasia ocaso mais excepcional de desenvolvimento capitalista e democratico que se conhece em regra geral e culpa e explica o atraso brasileiro pela simples presença do Estado. Na medida em que políticasestatais distintas sao apenas “vinhos novos em odres velhos”, merodisfarce do velho mal, a definição do mal em si só pode ser a presença estatal enquanto tal.

O corolário dessa idéia é a crença numa “excepcionalidade” nosentido americano dentro do nosso próprio país: o suposto desenvolvimento alternativo do Estado de São Paulo. Numa linha quevai de Sérgio Buarque até Raimundo Faoro e deste a SimonSchwartsman, podemos perceber o desenvolvimento da idéia daexcepcionalidade paulista e a defesa de uma “saopaulização” doBrasil como uma espécie de “programa político” dos teóricos do patrimonialismo. Em todos esses autores temos a idéia básica de

um Brasil alternativo na antiga capitania de São Vicente, desenvolvido em meio ao relativo esquecimento e desinteresse da Coroa portuguesa, e que, precisamente por conta disso, pode desenvolverum padrão “americano” de socialização. A vinda de imigranteseuropeus não-portugueses para o Estado em grande número, a partir da segunda metade do século XIX, só veio a corroborar e consolidar a idéia original.

Boa parte da obra de Sérgio Buarque posterior à publicação de Raízes do Brasil  se dedica, precisamente, a reconstruir esse desenvolvimento alternativo.25 Em Faoro a importância dessa idéia éseminal e contígua ao seu argumento. São Paulo seria uma:

Região onde a lavoura , como a indust r ia futura , toma o cará ter

de empresa e não de baronato . Essa pecul iar índole expl icará a

capacidade de São Paulo de enfrentar o governo federal , pe las

a rmas , em 1932 , bem como a necess idade de Getú l io Vargas ,

 pa ra m anter o poder, de tum u ltuar a v ida in te rna do E s tado.

A sampaul i zação do Bras i l , que corresponder ia á v i tó r ia do

25 Ver, sobre o assunto, o excelente texto de Robert Wegner Os Estados Lhiidos ca fronteira na obra de Sérgio Buarque de Hollanda,  err,: lessé Souza (orjj.)O m alandro e o protestante: a tese weberiana e a singularidade cultural hm-  sileria , especialmente p. 241-254.

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182 Jessé Souza

norte sobre o su l nos Estados Unidos , na ianquizaçao do pa ís ,

r e força - se na mudança do t eor dos inves t imentos es t r ange i ros ,26vis ível apó s a gue rra de 1914. (ênfase minha, J .S .) .

Com a derrota do caminho paulista acarretando nova centralização estatal acompanhada, claro, do eterno câncer do estamento patrimonial, lamenta-se Faoro: “A crise de 1929, todavia, precipitou o jogo, sem que São Paulo tivesse a oportunidade de completaras virtualidades de sua evolução, com as conseqüências políticas

daí decorrentes”.27Também essa tese vai de encontro à interpretação dominante

das precondições socioeconômicas da Revolução de 1930, a qualenfatiza, precisamente, o aspecto oposto:

O garga lo dc todo o p rob lema econ ôm ico do pa í s encont rava- se ,

ent re tanto , na di ferenciação indust r ia l e , t a l como a exper iência

das décadas an te r io res o demons t ra ra , não se pod ia conf i a r que

fosse ob t ida pe l a s imples operação do mercado la i ssez- fa ir iano . 

O Estado dever ia in tervi r na ordem da acumulação e rees t rutu-

rá- la , cr iando as condições para que se processasse tão rapida-28

mente quanto a es t rutura dos recursos o permi t i sse ."

Ao hipostaseamento do desenvolvimento excepcional americano em referência e regra geral, segue-se o hipostaseamento geo

gráfico  de um espaço mítico, que poderia ter exercido a mesmainfluência e levado nosso desenvolvimento no rumo certo. Não voume demorar na crítica da saída paulista  a esta altura do desenvolvimento do meu argumento, já que isso poderia pressupor idéiasque serão desenvolvidas apenas mais tarde, na última parte do livro. Aqui me interessa apenas relacionar os aspectos sistemáticosda tese patrimonialista^ Ela pressupõe uma demonização da açãoestatal e uma reconstrução do caso excepcional americano como se

fosse uma regra geral do desenvolvimento ocidental. A nossa formação social seria, portanto, defeituosa devido à permanente in-

26Faoro, op. cit., p. 712.

27 Idem, ibidem, p. 712.

28Wanderley Guilherme dos Santos,  Décadas de espanto e uma apologia dem o

crática, p. 102.

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A modernização seletiva i m

fluência da herança estatal portuguesa, a qual impediu o país de

livrar-se do atraso social e econômico.

Roberto DaMatta e a vertente culturalista da nossa sociologia  da inautenticidade

A tese do atraso brasileiro como resultado da herança ibérica ecausador de um desenvolvimento defeituoso e inautêntico não é privilégio das abordagens institucionalistas. Na obra do antropólogo Roberto DaMatta iremos reencontrar todos os lemas já examinados em Sérgio Buarque e Raimundo Faoro, segundo sua pers

 pectiva própria: um abordagem culturalista das nossas práticas eritos cotidianos. Sua pretensão foi captar o núcleo da sociabilidade

 brasileira por trás de suas aparências. No caso de DaMatta, o fiocondutor mesmo de sua reflexão já apontava para o desejo de sur

 preender a realidade brasileira por trás de suas auto-imagens consagradas. Assim, em Carnavais, Malandros e Heróis ,29  seu livromais importante, essa tentativa é empreendida a partir do estudo docotidiano brasileiro, no estudo dos seus rituais e modelos de ação, portanto, que é onde podemos reencontrar nossos malandros e nossos heróis.

Desde o início, o esforço comparativo já tem o seu “outro” privilegiado: os Estados Unidos. Interessa a DaMatta demonstrar,numa oposição que irá assumir diversas variações, por que nuncadizemos “iguais mas separados” como lá, mas, ao contrário, sem pre “diferentes, mas juntos”. 30A comparação, nesse sentido, privilegia sempre o contraste, a contradição, e não o familiar, 0 semelhante, o co-extensivo.

O método é o estrutural, enfatizando as possibilidades decombinação alternativas e as ênfases distintas de elementos domi

nantes e subordinados de cada sistema social analisado. Assim, ascategorias mais gerais do raciocínio damattiano, as de indivíduo e pessoa, são percebidas como se articulando de forma peculiar emcada sociedade. O indivíduo, 110 Brasil, não seria uma categoria

29Roberto DaMatta, Carnavais, malandros e heróis. 

30  Idem, ibidem, p. 16.

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184 Jessé Souza

universal e englobadora, como nos Estados Unidos, nem apenas o

renunciante, como na índia. O indivíduo entre nós seria o joão-ninguém das massas, que não participa de nenhum poderoso sistema de relações pessoais.

O indivíduo entre nós se definiria pela oposição a seu contrário: a pessoa. Esta, por sua vez, se definiria como um ser basicamente relacional, uma noção apenas compreensível, portanto, emreferência a um sistema social no qual as relações de compadrio, defamília, de amizade e de troca de interesses e favores, o personalismo como já havíamos visto em Buarque e Faoro, constituem umelemento fundamental. No indivíduo teríamos, ao contrário, umacontiguidade estrutural com o mundo das leis impessoais que submetem e subordinam. Desse modo, teríamos no Brasil, ao contráriotanto dos Estados Unidos como da Índia, um sistema “dual”, e nãoum sistema unitário. A questão essencial para DaMatta, portanto, jáestá posta: trata-se, no caso brasileiro, de perceber a “dominância 

relativa de ideologias e idiomas por meio dos quais certas sociedades representam a si próprias ”.31 Nesse sentido, nossa especificidade seria nossa dualidade constitutiva.

 Na verdade, DaMatta procura relacionar o que considera duasleituras da realidade brasileira32  que seriam vistas comumentecomo antagônicas: uma “institucionalista”, a qual destacaria osmacroprocessos políticos e econômicos, segundo a lógica da economia política clássica e implicando, por isso mesmo, alguma forma de diagnóstico pessimista do Brasil; e outra vertente, que se poderia chamar de “culturalista”, na qual a ênfase é concedida aoelemento cotidiano dos usos e costumes, da nossa tradição familís-tica ou “da casa” na linguagem de DaMatta. Sua própria perspectiva seria, portanto, superadora e sintetizadora dessas perspectivas parciais, unindo-as e relacionando-as, como duas faces de umamesma moeda, e transformando essas visões unilaterais num “dua

lismo” articulado.Um olhar atento descobre que a cada uma dessas perspectivas

correspondem, respectivamente, uma “sociologia do indivíduo”, avertente institucionalista, e uma “sociologia da pessoa”, a vertente

 Idem, ibidem, p. 23.32

Roberto DaMatta,  A casa e a rúa, p. 24-29.

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A m odernização seletiva

culturalista. Ao unir e relacionar as duas perspectivas dentro de um

mesmo quadro de referência teórico, acredita DaMatta ter percebido a “gramática profunda” do universo social brasileiro. Veremosmais adiante que o acesso a essa gramática exigiria a superação do

 próprio dualismo. Permaneceremos, no entanto, ainda um instante,dentro do próprio horizonte aberto pelo dualismo damattiano. Emque consiste esse dualismo e como DaMatta o constrói?

Vimos que os termos mais abrangentes do mesmo são as noçõesde indivíduo e pessoa. Esse é o dado fundamental e primário namedida em que todos os outros são decorrência desse antagonismofundamental. Assim, outras dualidades importantes para DaMatta,como aquela entre a casa e a rua, por exemplo, que deu o título aum de seus livros, são decorrentes da oposição entre indivíduo e

 pessoa, na medida em que indicam “espaços” privilegiados ondecada uma dessas modalidades de relações sociais se realizaria.

À oposição entre a casa e a rua corresponderiam, por sua vez,

“papéis sociais, ideologia e valores, ações e objetos específicos,alguns inventados especialmente para aquela região no mundosocial”.33 Nesse sentido, os nossos rituais são analisados e compreendidos a partir da oposição entre a casa e a rua e se distinguem naforma e modo específico de lidar com esse antagonismo. Assim, a procissão religiosa teria sua peculiaridade no fato de precisamente permitir, durante um breve instante, a supressão mesma da dicotomia casa/rua. O santo, para o qual a procissão é realizada, se “eleva” acima da dicotomia, suspendendo suas lealdades e sentimentosrespectivos e criando, por alguns instantes, uma lealdade específica,sintetizadora, em relação a um novo campo de ação: o do sagrado.

 Na parada militar, em oposição, o mundo das casas não é irmanado na devoção ao santo comum, mas é de certa forma “invadido” pelo Estado, que “recruta” e hierarquiza seus membros sob aforma de participantes humildes (os soldados), diferenciados (as

autoridades) ou meros espectadores (o povo indiferenciado e tornado massa). O carnaval, por sua vez, teria sua singularidade nofato de que a rua tornar-se-ia casa por alguns dias. Uma casa quecelebra em praça pública o mundo da “cintura para baixo”, o qualem dias normais é escondido dentro de casa; uma casa que loma

™ Idem, ibidem, p. 74-75.

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18 6 Jessé Souza

seguro (sic) o ambiente desumano de competição hostil que carac

terizaria a rua. Ao mesmo tempo, a rua transformada em casa subverte tanto o código (hierárquico) da rua quanto o da própria casa.Daí o carnaval ser uma perfeita inversão da realidade brasileira: éuma festa sem dono num país que tudo hierarquiza.34

 No entanto, é apenas no ensaio denominado “Você sabe comquem está falando?” que encontramos uma condensação de todosos aspectos desenvolvidos na interpretação “damattiana” da realidade brasileira. O ritual autoritário do “Você sabe...” é um ritualcotidiano ao contrário dos anteriores, do cotidiano hostil da rua,

 bem entendido, e no qual qualquer brasileiro, mesmo aquele quenão brinca carnaval, não assiste a paradas militares ou acompanha procissões religiosas, se reconhece facilmente.

Para DaMatta, o “Voce sabe...” põe a nu, revela a luz do dia,um traço que o brasileiro não gosta e prefere esconder. Afinal, oque viria à tona aqui não seria mais a nossa celebrada e carnavali-

zada cordialidade, mas, ao contrário, o verdadeiro e profundo “esqueleto hierarquizante de nossa sociedade”.'" Esse ponto é absolutamente fundamental tanto para o argumento do autor como para acrítica que iremos fazer mais adiante. É que, ao contrário da análisedos outros rituais extra-cotidianos, os quais permitem um tratamento que enseja uma assepsia classificatória (entre casa, rua eoutro mundo ou Estado, povo e Igreja) que parece algo arbitráriano seu esforço de fazer corresponder práticas a espaços sociaisdelimitados, o “Voce sabe...” condensa e unifica todos esses as

 pectos e lança a questão central da articulação e hierarquizaçãoespecífica de todos esses elementos. Afinal, como se combinamindivíduo e pessoa ou casa e rua? Qual é o elemento dominante equal o subordinado?

DaMatta não responde a essa questão de forma clara. Elemuitas vezes prefere enfatizar o componente aberto dessa competi

ção entre princípios de organização social, o que de resto, na suavisão, permitiria caracterizá-la como o âmago mesmo do “dilema

34 Idem, ibidem,  p. 116.35 Idem , ib idem, p. 142.

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A m odernização seletiva

 brasileiro”.36  No entanto, uma análise atenta permite coletar uma

série de indícios interessantes para nossos propósitos. As palavras“esqueleto” e “núcleo” que DaMatta usa constantemente para sereferir ao componente hierárquico da formação brasileira são sintomáticas. Afinal, “esqueleto” ou “núcleo” referem-se a alguma coisaescondida, a qual não seria imediatamente visível como a pele ou asuperfície que a recobre, mas que nem por isso deixa de ser maisimportante e mais substancial que o componente envolvente.

E é precisamente a mesma lógica que uma análise sistemáticado ritual do “Você sabe...” nos mostra. Senão, vejamos. O ritual do“Você sabe...” envolve sempre uma oposição precisamente entreum dado ao mesmo tempo mais visível e mais superficial, postoque o elemento unlversalizante e igualitário seria o único discursooficial e legítimo, e outro mais profundo e menos visível (postoque não precisaria ser falado), mas que é o componente mais decisivo e eficaz do drama social em questão, na medida em que resol

ve o conflito e restaura a paz hierárquica ameaçada.E a este último, portanto, que DaMatta chama de “esqueleto”

ou “núcleo” hierárquico, o elemento que atualizaria a gramáticasocial mais profunda de uma sociedade como a basileira. É a suadesagradável aparição no cotidiano que restaura a paz hierárquica perturbada por quem levou a sério o princípio igualitário e teve deser lembrado “do seu lugar”. O ritual é “desagradável” precisamente porque verbaliza o que não deveria ser dito para ser eficaz,quebrando assim o pacto silencioso e cordial de uma sociedade emque cada um efetivamente deve conhecer o “seu lugar”.

( . . . ) no d rama do “você sabe com quem es t á f a l ando?” somos

 pun ido s pe la ten ta tiva de faz e r cum p rir a le i ou pela nossa idéia

de que vivemos num universo realmente igual i tár io . Pois a

ident idade que surge do conf l i to é que vai permi t i r h ierarquizar

( . . . ) A moral da história aqui é a seguinte: confie sempre em

 p e ssoas e em re lações (c om o nos co n to s de fadas) , n unca em

regras gera is ou em le i s universais . Sendo ass im, tememos (e

36 Veremos mais adiante que essa atitude é a raiz daquilo que iremos criticarcomo “concretismo fora de lugar”.

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188 Jessé Souza

com jus ta razão) esbarrar a todo momento com o f i lho do re i ,, . • 37

senao com o propr io re i .

Assim, e esse ponto é absolutamente fundamental tanto para acompreensão do argumento do autor como para a crítica que seráfeita adiante, é o elemento pessoal que é visto como dominante emrelação ao elemento abstrato, legal, que se refere ao mundo dosindivíduos indiferenciados. Mas como eles se articulam? Até aondea validade parcial do elemento impessoal tem alguma eficácia?Como se dá a combinação específica entre os dois princípios?

E como se t i véssemos duas bases por meio das qua i s pensásse

mos o nosso s i s tema. No caso das le i s gera is e da repressão, se

guimos sempre o código burocrát ico ou a ver tente impessoal e

universal izante , igual i tár ia , do s i s tema. Mas no caso das s i tua

ções concre t as , daque las que a “v ida” nos apresen ta , segu imos

semp re o cód igo das r e lações e da m ora l idade pessoa l, t om ando

a ver t en te do “ j e i t i nho” , da “malandragem” e da so l ida r i edadecomo e ixo de ação . Na pr imei ra esco lha , nossa un idade é o in

divíduo; na segunda, a pessoa. A pessoa merece sol idar iedade e

uni t ra tamento di ferencia l . O indivíduo, ao cont rár io , é   o sujei to

da lei , foco abstrato para o qual as regras e a repressão foram

feitas.38

De acordo com essa ótica, a lei geral e abstrata teria uma vali

dade de primeira instância. Afinal, ela pressupõe uma igualdade de“partida” que bem pode ser confirmada como verdadeira no pontode “chegada”, ou seja, nos casos concretos do dia-a-dia e do cotidiano de todos nós. No entanto, na hipótese de conflito, o caso concreto obedeceria a outros imperativos que não àquele da lei geral.Precisamente aqui entraria o componente das relações pessoais, do“capital” que se acumula em termos de contato e influência. Seria

como se as relações pessoais entre nós desempenhassem o papel doJudiciário nos países individualistas e igualitários. Como cabe aoPoder Judiciário precisamente dirrimir conflitos a partir dos casosconcretos, teríamos, no nosso caso específico, uma resolução “in-

37  Idem , ib id em ,  p. 167.

 Idem, ib idem,  p. 169.

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A m odernização seletiva

lormal”, sem burocracia e rápida: por meio da “carteirada”, do

 jeitinho, da ameaça velada e do “Voce sabe...” . No caso concretonão aplicamos a lei geral ao caso específico, mas a força relativa denossas relações pessoais. Em outras palavras, ou melhor, nas palavras do próprio autor: “Voce sabe...” permite estabelecer a pessoaonde antes só havia o indivíduo”. '9

Esse tipo de solução é extremamente problemático do ponto devista da fundamentação teórica do dualismo proposto por DaMatta.Afinal, levada às suas últimas conseqüências, essa solução implicaafirmar que os brasileiros se comportam de um modo inverso aosestímulos das instituições sociais fundamentais como Estado emercado. Esse nó conceituai não é de fácil solução, já que DaMattavincula habilmente a imagem folclórica do brasileiro sobre simesmo com análises concretas de rituais facilmente observáveis narealidade cotidiana. A evidência e eficácia desse tipo de discursotão enormes. Nesse sentido, peço a paciência do leitor para que

 possamos nos concentrar nos meandros de uma análise dos pressu postos desse tipo de discurso teórico.

Gramática profunda ou dualismo superficial?

O dualismo engendrado pelas noções de indivíduo e pessoacomo a base do que DaMatta chama de “dilema brasileiro”40  foidesenvolvido ao longo das décadas de 80  e 90, seja em trabalhosde divulgação,41 seja em livros como  A casa e a rua, no qual adimensão espacial da dualidade ganha proeminência e é analisadaem maior detalhe. Eu gostaria a seguir de continuar a discussão emdois passos: primeiro, desenvolvendo uma apreciação crítica da perspectiva damattiana; depois, procurando reconstruir uma res posta alternativa às questões deixadas em aberto pelo esquema

damattiano.

39 Idem, ib idem,  p. 170.

40 O dualismo às vezes é interpretado como um esquema tripartite também, noqual além da casa e da rua teríamos o “outro mundo”. DaMatta, Roberto. 1991. p. 68.

41 Ro berto DaMat ta, O que fa z o brasil Brasill

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190 Jessé Sou za

Inicialmente iremos nos deter na própria idéia de sociedade e

teoria social, as quais, segundo o próprio autor, são subjacentes àsua análise. No livro A casa e a rua encontramos a seguinte definição:

A idéia de sociedade que nor te ia esse l ivro , por tanto , não é

aque la de soc iedade com o um conjun to de ind iv íduos , com tudo

o mai s sendo mero ep i fenómeno ou decor rênc ia secundár i a de

seus in teresses , ações e mot ivações . Ao cont rár io , sociedade

aqui é uma en t idade en tend ida de modo g loba l i zado . Uma rea l idade que fo rma um s i s t ema . Um s i s t ema que t em suas p rópr i as

l e i s e normas . Normas que , se obv iamente p rec i sam dos ind iv í

duos para poder se concre t i za r , d i t am a esses ind iv íduos como

devem ser a tual izadas e mater ia l izadas .4"

O texto acima nos interessa de perto porque DaMatta assumeuma posição clara contra uma ciência social subjetivista que pre

tende reduzir a complexidade social à referência às intenções individuais dos agentes. É uma crítica correta e bem feita. Segundoessa concepção de sociedade, tem-se que buscar no próprio sistemasocial as leis e normas que explicam o comportamento dos indivíduos que a compõem. Deve-se procurar descobrir, portanto, a“gramática social profunda” da sociedade em questão, a qual ésempre em grande parte inconsciente ou inarticulada na consciên

cia dos indivíduos que a compõem, para que possamos interpretar o comportamento destes e a lógica da própria dinâmica social.Vimos que segundo DaMatta essa gramática social profunda

no caso brasileiro apresenta uma peculiaridade: ela é dual (ao contrário da dos Estados Unidos, por exemplo, que seria unitária) ecomposta por dois princípios antagônicos, o indivíduo das relaçõesimpessoais e a pessoa das relações de compadrio e de amizade.Vejamos com cuidado os pressupostos desses dois tipos de rela

ções sociais. Sabemos que em sociedades modernas os dois poderes impessoais mais importantes são o Estado e o mercado capitalistas. Essas são também as instituições que DaMatta tem emmente quando se refere ao mundo competitivo, hostil, das regrasgerais e impessoais associadas à competição capitalista e ao apa-

42 Roberto DaMatta, op. cit.,  1991, p. 15.

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A m odern ização seletiva

relho repressivo do Estado. Em oposição a este, teríamos o mundo

da casa, onde as relações se regem pela afetividade e todos sãosuper-cidadãos. Esse seria o lugar onde os brasileiros se sentiriam bem e onde poderiam desenvolver sua decantada cordialidade.

Existe, no entanto, um problema básico nesse quadro à primei-ra vista bem arrumado que precisaria ser explicado: qual é o con- junto de regras ou normas que explica e constitui a articulaçãoentre esses dois mundos? Se DaMatta pretende explicar as normase regras sociais últimas que esclarecem nossa singularidade, entãoa forma de articulação entre esses dois princípios tem de ser explicada. A dualidade enquanto tal é uma simples aporia. Sem estardeterminada nas suas regras, ela pode ser usada, “ad hoc”, para oesclarecimento de um sem-número de questões nas quais as vezesum princípio é mais importante, outras vezes o outro assume a

 primazia. Mas, nesses casos, há de se perguntar: o que faz com que precisamente nessa situação um ou outro princípio seja mais ou

menos eficiente? Essa questão nunca é respondida por DaMatta.O último horizonte explicativo é sempre uma dualidade indeterminada que varia ao sabor das situações concretas examinadas.

A idéia de uma gramática social profunda só tem sentido se for possível determinar a hierarquia valorativa que preside a institucionalização de estímulos seletivos para a conduta dos indivíduosque a compõem. Essa seletividade, por sua vez, exige a consideração da variável do poder relativo de grupos e classes envolvidos naluta social por hegemonia ideológica e material. Desse modo, paraclássicos da sociologia que lidaram com a questão da institucionalização diferencial de valores e concepções de mundo como MaxWeber e Norbert Elias, a questão de se determinar a hierarquia devalores que logra comandar uma sociedade específica exige a articulação da relação entre valores e estratificação social. Afinal, é aimbricação entre domínio ideológico e acesso diferencial a bens

ideais ou materiais escassos que cumpre esclarecer. Nesse sentido, para os dois autores citados anteriormente, a

vinculação entre concepção de mundo (no sentido de conjuntoarticulado de normas e valores) e estratos sociais que servem desuportes a essas concepções de mundo é fundamental. Aqui não setrata da causalidade materialista marxista que reintroduz por outrosmeios a noção de subjetividade individual transformada agora em

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192 Jessé Souz a

sujeito coletivo43com conseqüências deletérias para a análise so

cial. A noção de suporte social  de valores e normas refere-se, aocontrário, a processos inintencionais sem sujeito, por meio dosquais grupos e classes identificam-se com valores e são ao mesmotempo perpassados e dirigidos por eles na dinâmica social.44

 Nós não encontramos classes e grupos sociais na obra de Ro berto DaMatta. O tema da estratificação social e da relação dessacom valores desempenha um papel, na melhor das hipóteses, marginal no seu esquema explicativo. Na reflexão de DaMatta encon

tramos apenas indivíduos e “espaços” sociais. Minha hipótese nesse texto é que isso impede precisamente que ele tenha acesso àgramática social da sociedade brasileira como definida por ele

 próprio anteriormente. É que, desvinculada de uma teoria da estratificação social que explique como e por que precisamente essesvalores e não outros lograram institucionalizar-se, toda a temáticada relação com valores torna-se externa e indeterminada. Valores

 passam a ser concebidos como alguma coisa que existe independente de sua institucionalização, agindo de forma misteriosa sobreindivíduos e espaços sociais. Vejamos alguns exemplos.

Quando , en tão , d igo que “casa” e “ rua” são ca t egor i as soc io ló

gicas para os bras i le i ros , es tou af i rmando que, ent re nós , es tas

 pa lav ras não d e s ignam s im p lesm en te espa ç os g e og rá f icos ou

coisas f í s icas mensuráveis , mas acima de tudo ent idades morais ,

esferas de ação socia l , províncias é t icas dotadas de pos i t iv idade,domínios cul tura is ins t i tucional izados e , por causa disso, capa-

43 Refiro-me aqui às aporias que marcaram boa parte do assim chamado “marxismo ocidental”, antes de tudo presentes na obra de Georg Lukács. Ver, especialmente, Georg Lukács, Geschichte und Klassenbewufltsein: Studien iiber  

marxistische Dialelik.44

A noção que explica essa relação em Weber é a de “paradoxo das conseqüências”. Para uma excelente discussão desse aspecto da obra weberiana ver Ga briel Cohn, Crítica e resignação. Em Elias o conceito central nesse tema é o de“mecanismo” (por exemplo, o mecanismo de descentralização, base do feudalismo europeu) para indicar uma necessidade sistêmica independente da intencionalidade dos grupos e classes que sofriam sua influência. Ver Norbert Elias,Über den P rozess der Zivilisation, especialmente o v. II.

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A m odernização seletiva

zes de desper tar emoções , reações , le i s , orações , músicas e imu

gens es te t icamen te emo ldura das e inspi radas .45

Para o autor, portanto, casa e rua não são apenas “espaços”antagônicos e relacionados, mas também “esferas de ação social”específicas. Existem em cada uma dessas esferas valores e idéias-guia específicas que guiam ou influenciam o comportamento dosagentes em determinada direção em cada caso. Sabemos, também,que para DaMatta esses valores em um caso apontam para uma

concepção de mundo impessoal que enfatiza a igualdade e a com petição entre iguais; e no mundo da pessoa teríamos o reino dossentimentos, do particular, portanto, e de uma hierarquia baseadana afeição (que é sempre gradativa e particularizante).

O que passa então a ser imediatamente problemático é explicara própria possibilidade de existência desses espaços tão antagônicos. DaMatta, quando enfrenta a questão, faz referência, todas as

vezes, à obra de Max Weber 46  e às discussões desse autor sobre otema das éticas sociais dúplices ou múltiplas típicas de sociedadestradicionais ou semitradicionais. Isso é sem dúvida correto, Faz parte da interpretação weberiana do desenvolvimento ocidental precisamente demonstrar como havia a necessidade de se explicar o aparecimento de uma ética unitária dentro do contexto da própriaconcepção de mundo tradicional e religiosamente motivado.A rápida expansão, no alvorecer da modernidade, da ética ascética

 protestante, com sua concentração em objetivos ultramundanos esingularizados e não mais dúplices ou contraditórios, ajuda, semdúvida, a explicar o enorme impulso que essa idéia representou para o progresso material da cultura ocidental.

 No entanto, como nos lembra a bela metáfora do manto dosanto que se transforma em gaiola de ferro, ao final da Ética protestante e o espírito do Capitalismo',  nós, habitantes do mundo

impessoal moderno, podemos abdicar desse incentivo subjetivo. Oshomens religiosos do alvorecer da modernidade tinham a possibilidade de escolher se seguiriam uma ética múltipla tradicional ou se

45  Idem, ibidem,  p. 17.46  Idem, ibidem,  p. 98, 69,52, 50. Ou ainda, Roberto DaMatta, op. cit..  1981,

 p. 178.

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194 Jessé Souza

optariam pela ética única da nova religião. O fato de nós modernos

não termos mais essa opção significa, para Weber, que as instituições impessoais do capitalismo moderno, principalmente mercadocompetitivo e Estado burocrático, criam estímulos para a condutaindividual que não estão mais à disposição da volição dos agentes. Nós somos, em grande parte, até em nossas emoções mais íntimas, produto das necessidades da reprodução institucional de Estado emercado. E para esse fato fundamental que Weber quer apontarcom o uso de suas metáforas mais conhecidas, como “gaiola de

ferro” ou “destino”.Aqui não se trata apenas de uma visão weberiana. Todos os

grandes clássicos da sociologia estão de acordo nesse ponto. Paraum pensador como Georg Simmel, por exemplo, o domínio domercado como instituição fundamental do mundo moderno, ou, nassuas palavras, o advento da economia monetária, significa umaredefinição da consciência subjetiva individual de enormes propor

ções. As noções básicas de tempo e espaço se modificam e comelas se modificam também toda a economia emocional e a vidaafetiva individual e recôndita de cada um de nós, como a forma daatração sexual entre os dois sexos, a necessidade d', distanciamentointerno e externo que os contatos impessoais da vida nas metrópoles exigem, a entronização do princípio da calculabilidade comoalfa e ômega da personalidade individual, a indiferença e o sentimento “blazé” como emoções típicas da indiferenciação qualitativa

operada pelo dinheiro transformado em meio universal de troca,etc .47

 Não só a economia, mas também o Estado é um poderosoelemento transformador da vida individual. Talvez ninguém melhor que Norbert Elias tenha tido tanta consciência desse fato. ParaElias, o Estado moderno com seu monopólio da violência física nasociedade é apenas a ponta mais visível de um desenvolvimento

milenar nas formas de exercício da dominação política, cujo pressuposto é uma completa modificação da psique individual. Em vez

47Para uma introdução ao pensamento simmeliano e para o estudo de sua abordagem dos efeitos da economia monetária sobre a personalidade individual, vero conjunto de textos da coletânea, Jessé Souza e Berthold Öelze (orgs), Simmel e a modernidade, Editora Universidade de Brasília, Brasília, 1998.

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A m odernização seletiva

do controle externo, a partir da ameaça do mais forte, o Estado

moderno pressupõe controle interno e competição pelos bens es-cassos por meios mais ou menos pacíficos.

Elias demonstra, como vimos na primeira parte desse livro,como o processo de centralização do Estado moderno, com seuaparato jurídico baseado em leis gerais e monopólio da violência, éConcomitante à transformação do aparelho psíquico individual nosentido da formação de uma economia emocional específica, comum Id tornado inconsciente, no qual as emoções e desejos agoraimpossíveis de serem vividos se concentram e são reprimidos, eum superego, encarregado agora, como uma instância interna ao próprio mecanismo psíquico individual, da repressão, sublimação ereorientação de manifestações percebidas como anti-sociais. ParaElias, toda a estrutura da psique individual como vista por Freudseria o resultado (e pressuposto) histórico das modificações introduzidas pelo Estado moderno e por seu aparato de regulação social.

Desse modo, os poderes impessoais que criam o “indivíduo”nao limitam sua extraordinária eficácia ao mundo da rua. Eles entram dentro da casa de cada um de nós e nos dizem, em grandemedida, como devemos agir, o que devemos desejar e como devemos sentir. Ao contrário do que supõe a dualidade damattiana, os

 poderes impessoais (que criam o “indivíduo”) do mercado e doEsstado não são instituições que exercem seus efeitos em áreas circunscritas e depois se ausentam nos contatos face a face da vidacotidiana. Eles jamais se ausentam e na verdade penetram até nosmais recônditos esconderijos da consciência de cada um de nós.A dualidade damattiana pressupõe a perda da eficácia específicatias instituições que criam o mundo moderno. O vínculo fundamental entre eficácia institucional e predisposição valorativa individual não é levado em conta no raciocínio damattiano. Os valoressão percebidos como tendo existência independente da vida institu

cional.Ao desligar a dinâmica valorativa social tanto de uma relação

com a estratificação social como da referência à eficácia institucional, pode então DaMatta referir-se a indivíduos que se contrapõemem “espaços” sociais distintos, os quais carecem de qualquer determinação estrutural. Vejamos as conseqüências desse fato para oconceito de cidadania como construído por DaMatta:

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196 Jessé Souza

Se no universo da casa sou um supercidadão, pois ali só tenho

direitos e nenhum dever, no mundo da rua sou um subcidadão, já que as regras universais da cidadania sempre me definem porminhas determinações negativas: pelos meus deveres e obrigações, pela lógica do “não pode” e “não deve”.48

Aqui, observamos que as duas lógicas antagônicas conduzem aum curto-circuito sociológico ao equalizar esferas de ação a “espaços” específicos.49  Desse modo, supercidadania e subcidadania

tornam-se uma variável dependente do “espaço” social onde meencontro. Seria razoável supor que uma operária negra e pobre da

 periferia de São Paulo, depois de trabalhar o dia inteiro e ter efetivamente fartas experiências de subeidadania na “rua”, ao chegarem casa e apanhar do marido em “casa” sente-se supercidadã?50

Todos sabemos que não apenas as mulheres negras e pobresmas todos os grupos sociais oprimidos enfrentam situações de sub

eidadaniaindependentemente

  do lugar ou do “espaço social” emque se encontram. A não-referência a estratificação social de acordo com classes e grupos específicos cria uma ilusão de “espaços”com positividade própria. DaMatta é até mesmo obrigado a apelar para explicações subjetivistas que ele próprio havia condenadocomo má sociologia:

Se minha visão do Brasil a partir da casa é q ue “a nossa socie

dade é uma grande família”, com um lugar para todos, na esferada rua minha visão de Brasil é muito diferente. Aqui eu estouem “plena luta” e a vida é um combate entre estranhos. Estoutambém sujeito às leis impessoais do mercado e da cidadania

.

Roberto DaMatta, op. cit.,  1991, p. 100.49

Essa mesma crítica de um “concretismo fora de lugar” foi feita ao Habermasda década de 1960 por causa de sua oposição não mediada entre ação estratégica e ação interativa como correspondendo a “espaços” sociais distintos. Durante toda a década de 1970 procurou Habermas uma articulação entre os níveis da ação social e da ordem social de modo a precisamente esclarecer essarelação. O resultado dessas investigações redundou no seu Teoria da açã o co- municaiiva   de 1981. Ainda sobre a “fallacy of misplaced concreteness” verTalcott Parsons, The Structure o f Soc ial Action, p. 29, 589, 753.

Esse exemplo me foi sugerido por Marcelo Neves em conversa sobre essetema.

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A m odernização seletiva

que f reqüen teme nte dizem que eu “não sou ningué m". F ico .

então, à mercê de quem quer que es te ja manipulando a ordemsocia l naquele mo m en to.51

O fato de a dominação em última instância ser feita em favorde um “alguém” que esteja “manipulando a ordem social” é sinto-mático da dificuldade apontada anteriormente. Afinal, era o próprioDaMatta quem pretendia superar o subjetivismo sociológico queatribui a explicação última da lógica social à intencionalidade individual. É sem dúvida mais fácil explicar o funcionamento de regrassociais a partir da intencionalidade dos agentes. Afinal, é assim quenos percebemos no senso comum, e é da força do senso comum,como vimos no capítulo sobre Charles Taylor, que o ponto de par-lida subjetivista ou “naturalista” retira sua força peculiar e evidência. O caminho de quem pretende descobrir a gramática social profunda, no entanto, é mais espinhoso. São as normas e regras

sociais implícitas que hierarquizam uma sociedade. Indivíduos ouclasses dominantes são, no máximo, suporte desses valores e normas, mas de modo algum sujeitos intencionais desse processo.

DaMatta é forçado a buscar uma solução intencionalista para aquestão do poder precisamente, vale a pena repetir, porque apenasas regras sociais anteriores e por trás da dualidade indivíduo/pessoae casa/rua é que poderiam explicar a relação entre os dois princípios. É porque DaMatta interrompe sua busca da gramática profunda brasileira na afirmação da própria dualidade que a relação entre osdois termos - e por conseqüência a própria noção de “relação” - ésempre indeterminada. Um outro exemplo pode talvez ajudar aesclarecer esse ponto.

M as se a ca t egor ia p rof is s iona l - os tr aba lhadores com o c id a

dã os e nã o m a i s c om o e m pr e ga dos - t e m um a l iga ç ão f o rt e c om

o Estado, ou governo, então e les podem ser di ferenciados e t ratados com pr ivi légios . É a re lação que expl ica a perversão e a

var iação da c idadania , deixando perceber o que ocorre no caso

das diversas ca tegor ias ocupacionais no Bras i l , onde e las for -

51 Roberto DaMatta, op. cit.,  1991, p. 100.

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198 Jessé Souza

mam uma n í t i da h i e ra rqu ia em t e rmos de sua p rox imidade do

 poder , ou m elhor, daquilo que re p resen ta o cen tro do poder .52

O que significa nesse contexto uma “forte ligação” com o Estado? Poder-se-ia perceber essa relação a partir do esforço de umEstado modernizador de premiar e constituir vínculos de lealdadecom setores das classes trabalhadoras que contribuíam no esforçonacional de modernização. Mas ai já estaríamos falando de valores,dos quais o Estado nacional seria, ainda que parcialmente, suporte.

E seriam esses valores que definiriam quais setores serão ou não privilegiados e por que. Estaríamos falando de valores inscritos einstitucionalizados na realidade social cotidiana, portanto, queajudam a determinar o conceito de poder nessa situação, esclarecendo seu uso e sua lógica. Esse, no entanto, não é o caminho deDaMatta.

Quando o autor se refere a uma hierarquia definida a partir da

“proximidade do poder”, não temos a menor idéia de que valores,regras ou normas explicam essa hierarquia. Poder torna-se aqui umconceito amorfo e indeterminado, já que não compreendemos oque a proximidade ou a distância em relação a ele significam.As palavras aqui, mais uma vez, nutrem sua eficácia do discursocomum, na medida em que é imediatamente compreensível paraqualquer pessoa que “quem se relaciona” ou “está próximo” do poder tem privilégios.

De resto, a sociologia “relacional” damattiana parece retirarsua evidência menos da conscientização dos pressupostos valorati-vos subjacentes à nossa cultura e que não haviam sido percebidosaté então, como ele próprio supõe, mas precisamente do contrário:do fato de permitir a sistematização da imagem do senso comum, precisamente da “ideologia” do brasileiro médio sobre si próprio.Acredito que a própria oposição entre indivíduo e pessoa e casa e

rua só mantém sua evidência quando não nos perguntamos sobreseus pressupostos.

52 Idem, ib idem , p. 85.

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A m odernização seletiva

O dualismo indivíduo/pessoa: uma idiossincrasia brasileira?

Mas não apenas uma análise de pressupostos torna problemá-tica a manutenção do método damattiano. Sua teoria baseia-se,creio eu, também numa inexatidão empírica, além de metódica.DaMatta acredita que aquilo que ele chama de esferas do “indivíduo” e da “pessoa” e de “espaços” da casa e da rua não é típico detoda sociedade moderna e complexa, e sim atributo de uma sociedade tradicional ou semitradicional, como ele percebe o Brasil.

Acredito que por trás da evidência dessas noções damattianas es-conde-se uma noção indiferenciada do indivíduo ocidental moderno.53Senão, vejamos.

Uma genealogia do indivíduo moderno como a elaborada porCharles Taylor nos mostrou, na primeira parte desse livro, que essanoção é bem mais rica, contraditória e matizada. O elemento universalizante ao qual DaMatta faz referência seria sem dúvida um

de seus componentes fundantes, mas não o único. Esse componente normalizante e generalizante seria o que Taylor chama de“self pontual” para enfatizar o elemento disciplinarizável que seráa matéria-prima das burocracias da economia e da política modernas. No entanto, essa noção está longe de contar toda a história doindividualismo ocidental.

Se o “self pontual” permite as construções generalizantes da política (cidadania) e da economia (o sujeito contratual), conferin

do sentido à noção de “dignidade” moderna, é  apenas a partir de uma outra fonte do individualismo moderno,  o que Taylor chamade “autenticidade”, que alcançamos um quadro mais completo doindivíduo moderno ocidental. Na busca de autenticidade temos a

 procura por características específicas e particulares a cada um denós, referindo-se precisamente à nossa diferença específica e arelações e objetos que são particulares e não-generalizáveis, na

medida em que são hierarquizados em sua importância por nossosafetos e sentimentos. Na idéia de autenticidade é a noção de profundidade do “s elf’

que muda. A revolução nos costumes da década de 1960 é vista porTaylor como um momento especialmente importante para a eficá-

53 ,  „ . .A noçâo de “pessoa” e mais complexa e sera discutida separadamente a seguir.

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2 0 0 Jessé Souza

cia social dessa noção, na medida em que seus princípios saem da

vanguarda artística e logram influenciar decisivamente o sensocomum de toda uma geração com efeitos permanentes. O que há derevolucionário na noção de autenticidade é a idéia de uma individuação mais completa e original.

 Nesse sentido, as profundezas do “self” deixam de ser sinônimo de erro e engano, num caminho que havia sido originalmentetraçado por Montaigne e Rousseau. Esta mudança é expressada,como vimos, na passagem das paixões aos sentimentos. Aquelassão renomeadas e reabilitadas. Os sentimentos passam a ser normativos o que as paixões não eram. Agora, descobrimos o que écerto, nós indivíduos modernos do limiar do século XXI, pelo menos eni parte, experienciando nossos sentimentos. Esses renascimento e nobilitação do sentimento vão ser um traço marcante dacultura moderna para Taylor. A vida social moderna contém, portanto, as duas vertentes da configuração moral ocidental baseada

numa noção dúplice de indivíduo: a noção de dignidade generalizável, cujo lugar privilegiado é a economia e o mundo do trabalho,e a noção de autenticidade, que tem no casamento baseado emsentimentos e na constituição de um espaço de intimidade e cum plicidade compartilhado talvez sua objetificação mais importante.

 Não é apenas Charles Taylor que desenvolve essa dualidadedo indivíduo ocidental. Ele certamente foi dos que mais contribuíram para a percepção de um conceito diferenciado e complexo doindivíduo ocidental. No entanto, com outras denominações, essadualidade é amplamente aceita na sociologia moderna .54  O pontoessencial aqui é que o elemento expressivo e afetivo da personalidade individual é levado em conta como componente constitutivoda noção de indivíduo moderno.  A alternativa entre indivíduo e 

 pessoa refere-se, na realidade, a dimensões distintas do mesmo conceito de indivíduo,  o qual só encontra condições de desenvol

vimento precisamente em sociedades modernas e complexas.Sem dúvida a noção de autenticidade e individualização ex pressiva não cobre todo o horizonte da noção de pessoa em Da-Matta. Além do aspecto do mundo emocional e do partieularismo

A oposição correspondente mais comum é aquela entre individualismo possessivo e expressivo.

«54

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A modernização seletiva

que ele implica, DaMatta chama atenção para um dado que seria

 peculiarmente brasileiro na noção de pessoa: a troca de favores, o jeitinho, a “carteirada”, em uma palavra, a tendência à corrupção ea refração da lei geral. O mundo da política seria a esfera privilegiada dessa inclinação nacional, a qual não passaria despercebida aos“indivíduos”, aos homens comuns sem meios de troca nesse comércio generalizado de favores:

O resul tado não passa , porém, despercebido à massa bras i le i ra ,

que vê na a t iv idade pol í t ica um jogo fundamentalmente sujo ,onde exis te de tudo, menos é t ica . Daí a expressão “fulano é

mui to pol í t ico” para expr imir a lguém que sabe cuidar de seus

interesses pess oais .55

Será que seria efetivamente uma idiossincrasia brasileira a visão da política como um jogo desonesto entre pessoas que trocamfavores e proteção? Não creio. Em famosa pesquisa empírica reali

zada por Bellah e sua equipe nos EUA, também a política enquantotal, especialmente a grande política do Estado e da negociação partidária, é vista como “suja” pela grande maioria dos norte-americanos.

 N a s nossas entrevistas, f icou c laro que, pa ra a m aio ria da s p e s

soas com quem fa lamos , os m arcos da ve rdade e da v i r tude são

 perceb idos com o en con tráve is nas re lações de in t im idade e das

exper iências mais pessoais . Tanto a s i tuação socia l das c lassesmédias como o vocabulár io da vida cot idiana já predispõem

 pa ra a o r ientação no sen tido das fon tes p rivadas e pessoa is de

sen t ido . Nós t ambém percebemos uma for t e i den t i f i cação com

re lação aos Es t ados Unidos enquanto comunidade nac iona l . No

entanto , apesar de a nação ser v is ta como boa, tanto “governo”

quanto “po l í t i ca” possuem f reqüentemente conotações nega t i

vas. Os nor t e -amer i canos , ao que parece, são genuinam ente a m

 b iva len tes em relação à vida pública, e essa a m b iv a lê n c ia im p li

ca d i f i cu ldades de pe rceber os p rob lemas que nos conf ron tam a

tod os. ’6 (trad uçã o minh a J.S.).

55 Roberto DaMatta, op. cit.,  1991, p. 94.

56 Robert Bellah,  Habits o f the Heart: Indiv idualism and commitment in Ameri

can life,  1986, p. 250.

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2 0 2 Jessé Souza

Volto ao fio condutor dessa argumentação. É a imagem (no

caso desvalorizada) do brasileiro de si mesmo que parece ser dramatizada  na teoria damattiana. Afinal, por que se supor uma tendência inata dos brasileiros à corrupção e ao estabelecimento derelações de favores? Seria essa “predisposição” maior do que emqualquer outro país? Recentemente tivemos na Alemanha Federal adescoberta de um esquema de corrupção e favorecimento políticocom vinte e cinco anos de estabilidade e incrível eficiência quefaria qualquer político tradicional brasileiro moraer os lábios de

inveja.57  Admitamos, hipoteticamente, que, desgraçadamente, ograu de corrupção no Brasil seja maior que em outros países. Seriaa causa desse fato uma ausência de mecanismos eficazes de controle ou uma misteriosa eficácia atávica de padrões culturais personalistas tradicionais da vida colonial brasileira?

 Não seria um dado estrutural em todos os países modernos precisamente um déficit   de legitimidade da política em oposição à

economia, por exemplo? Essa é a opinião de Bellah na mesma pesquisa realizada nos EUA. Ao analisar a desconfiança dos norte-americanos da política, afirma o autor:

A pol í t i ca sof re pe l a comparação com o mercado . A l eg i t imida

de des te úl t imo baseia-sc , cm grande medida, na crença de que

e le p remia ind iv íduos imparc i a lmente com bar" , numa compet i

ção jus ta . Por cont ras te , a pol í t ica da negociação local , es tadual

e federal , apesar de compar t i lhar as mesmas a t i tudes ut i l i t ár iasdo mercado , f r eqüentemente expõe a compet i ção en t re g rupos

des iguais quanto aos recursos de poder , inf luência e probidade

moral , os quais inf luem decisivamente no resul tado f inal .58 ( t ra

dução minh a J. S .) .

 Não reconhecemos em ambas as citações acima, nos insus peitos EUA, precisamente a contraprova preferida de DaMatta em

relação ao caso brasileiro, a mesma oposição entre mundo públicohostil e mundo privado prenhe de sentido e, mais importante, amesma percepção do mundo da grande política vista com desconfi-

57 Refiro-me ao escândalo envolvendo o ex-primeiro-ministro alemão HelmutKohl, amplamente divulgado pela imprensa.

58 Robert Bellah, op. cit., et alii,  1986, p. 200.

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A modernização seletiva

ança e distância? Onde estaria nesse sentido a especificidade bra

sileira?Também esse aspecto não parece ser atributo apenas de paísestradicionais e com ética dual. A explicação de Bellah ao fato é bem 

distinta. A “grande política” é percebida como amoral pela grandemaioria das pessoas nos EUA precisamente porque em sociedades modernas e complexas a barganha política é realizada de forma intransparente para a grande maioria 59 Essa é uma conseqüênciainevitável da institucionalização de esferas sociais segundo padrões

racional-instrumentais no mundo moderno. Não seria, longe de ser uma característica folcloricamente bra

sileira, precisamente a oposição entre casa e espaço; público hostilunia construção apenas possível no mundo impessoalizado moderno? Não seria uma necessidade especificamente contemporânea de

 países urbanizados e industrializados a produção fantasiada ou realde uma oposição entre vida pública e vida íntima, representando

essa última uma espécie de  Refúgio num mundo sem coração.60 Não seria a matéria-prima dessa fabrica de ilusões chamada “Hollywood” precisamente manipular habilmente essa necessidade detodos nós, homens e mulheres modernos, de “proximidade”, “afeto”, “cumplicidade”, que a união romântica entre os sexos prometenuma “casa” para os dois? Casa onde os futuros filhos, amigos e

 parentes poderiam desfrutar de uma sociabilidade oposta da sociedade hostil fora de nós? Por que chamar o sentimento de aconchego e de bem estar que a vida da casa e da família promete, atémesmo o desejo de que essa lógica seja a dominante na nossa vida,de brasileiro? Ele me parece, ao contrário, uma invariante das sociedades modernas.

Uma das razões dessa “brasilianização” de características tãomarcantes do mundo contemporâneo, tem a ver, com a não-explicitação e a não-reflexividade dos pressupostos teóricos que

informam a teoria damattiana. A tentativa mais recente de Da-

59 Idem, ib idem, p. 207-208.

60Esse é o sugestivo título de um livro de Christopher Lasch, seu  H aven in a   Heartle ss World,  sobre o papel do casamento e da esfera íntima nas sociedadesmodernas.

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204 Jessé Souza

Matta61 de relevar a posição do elemento intermediário e de “pen

sar o Brasil com base no número três”, e não mais em uma “razãodualista”, não resolve a questão essencial, mas apenas a desloca.A questão essencial seria a explicação da lógica social subjacenteque possa tornar os fenômenos observáveis “determinados”, ouseja, compreensíveis a partir de regras e normas sociais globais.É isso que DaMatta diz pretender e essa pretensão em si já é elo-giável. Mas DaMatta substitui, sempre que lhe convém, a busca por essas regras últimas por evidências empíricas. Isso fica claro na“institucionalização do intermediário” e do numero três.

Afinal, de interesse para o conhecimento seria precisamente perceber de que modo individualismo e holismo se combinam, seinstitucionalizam e se estratificam de modo a produzir um terceiroelemento híbrido. Mas se, como vimos acima, DaMatta não determina a forma como individualismo e holismo se articulam, menosainda pode ele especificar a forma como o elemento terciário deri

vado desses ganha vida. O que temos na análise damattiana desse ponto é, portanto, como não poderia deixar de ser, a não mediadadescrição concreta de nossa paixão pelo hibridismo, indo até acaracterização algo caricatural de nossas comidas, como a feijoada,como híbridas de sólido e líquido! O curto-circuito concretistachega às raias de um misticismo do três! Nele cabem mulatas, fei

 joadas e o que mais nossa imaginação possa criar.

61 Roberto DaMatta, Conta de m entiroso: sete ensaios de antropolog ia bras ileira, especialmente p. 125-151.

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Capítulo 8

Uma interpretação alternativado dilema brasileiro

A discussão dos três autores realizada conjuntamente nos ca

 pítulos anteriores legitima-se pelo fato de que a reflexão de todosdes, ainda que com ênfases específicas e contribuições pessoais,relíete  pressupostos teóricos  comuns. O que permite agrupá-loscomo representantes1 da nossa sociologia da inautenticidade é ovínculo interno de continuidade, apesar da disparidade aparente.Uma característica fundamental compartilhada por todos é o quegostaria de denominar de culturalismo atávico.  Aqui não vai, evidentemente, nenhuma crítica à abordagem culturaliSta nas ciênciassociais. Muito pelo contrário, uma sensibilidade aos fatores culturais (valores, normas e concepções de mundo peculiares) é imprescindível para qualquer análise social. Ela permite ir além do dadoimediato e da realidade institucional mais evidente.

 No entanto, desvinculada de uma íntima articulação com otema da dinâmica institucional, que reproduz e consolida valores enormas, e com o tema da estratificação social, que permite dar

conta da questão dos motivos e dos efeitos do fato de que  precisamente aqueles valores e normas lograram tornar-se dominantes em dada sociedade,  a análise culturalista torna-se indeterminada.

1 Talvez representantes máximos, dada a extraordinária e atual influência daobra desses autores, segundo qualquer critério objetivo, sobre o nosso pensamento social e nossa prática social.

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206 Jessé Sou za

Ela torna-se, muito facilmente, presa de preconceitos do senso

comum e tende a ganhar sua força de convencimento a partir precisamente da sistematização mais ou menos talentosa de crenças e pressupostos não adequadamente refletidos. Todos os autores analisados partem do pressuposto de que a especificidade brasileiraremete a uma suposta herança ibérica, em sentido amplo, e lusitana, em sentido estrito. O Brasil é percebido como uma continuaçãode Portugal. Esse tipo de culturalismo percebe a problemática dainfluência valorativa sem atentar para a forma específica da institucionalização desses valores nem para a peculiar estratificação, queem cada caso singular se origina a partir dela e passa a refluir sobreela. Vimos que o procedimento contrário guiava as análises deWeber e Elias sobre a institucionalização diferencial do raciona-lismo ocidental nos diferentes países europeus.

 No nosso caso, as instituições e estratificação social que se produziram no Brasil jamais foram, nem mesmo nos seus inícios,

uma simples continuação de Portugal. Mais ainda, elas forammuito diferentes, fato que legitima pleitear uma singularidade toda própria ao tipo de formação social que aqui se desenvolveu, comoiremos ver em detalhe a seguir. Na perspectiva dos autores analisados, a problemática valorativa é percebida como se a influência e atransferência de valores culturais transpusessem oceanos (no casonão só de água mas de dessemelhanças também), como quem levaa roupa do corpo.

O  fato de terem sido portugueses nossos colonizadores não predetermina o tipo de sociedade peculiar que se formaria aqui, namedida em que sabemos que os homens não escolhem as condiçõessociais (e naturais) que condicionam sua vida e seu comportamento. Essa frase parece trivial, mas não é. Afinal, a concepção da açãohumana que habita o senso comum é voluntarista. O culturalismoatávico da tese iberista e personalista imagina que o português

dono de sua pequena quinta de oliveras ou o cortesão lisboeta setranspõe ao Brasil tal qual era, como se, independentemente decondições objetivas, os atores impusessem ao meio circundanteseus desejos, hábitos e preferências a bel-prazer.

E apenas o conhecimento sociológico metódico que nos ensinaque os atores são determinados pelo meio, que eles, antes de tudo,reagem  a estímulos sociais, os quais não controlam. Se substituir-

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A m odernização seletiva 207 

mos a concepção ingênua do voluntarismo do senso comum por

essa concepção, torna-se imediatamente compreensível que indiví- duos  portugueses tenham criado uma nação, em vários aspectos,diferente e sem vínculo de continuidade com Portugal. Na sociologia da inautenticidade do processo de modernização brasileiro, oatavismo culturalista adquire materialidade na famosa noção da

 plasticidade  do colonizador português. Essa noção permite com preender todas as mudanças do espírito lusitano nas condições donovo mundo como um mero compromisso passageiro e superficial.

Ele interage com o meio, com os nativos, com os adventicios, coma nova organização social e econômica, mas continua, no íntimo, o bom e velho português de antanho, graças a sua  plasticidade. O conteúdo é sempre o mesmo, malgrado as condições sociaiscambiantes à sua volta. A metáfora material não é casual. A continuidade do mesmo sistema de valores transforma-se em carne esangue e dessa forma ela é transferida às outras gerações.

É a mesma evidência do senso comum que torna convincenteo argumento, também típico do culturalismo atávico da nossa sociologia da inautenticidade, de que o Brasil moderno iniciou-se emSão Paulo, com os imigrantes. Estes teriam trazido a “modernidade”, apesar de terem sido, em sua maioria, camponeses despossuí-dos, da mesma forma como quem transporta a roupa do corpo.Esse argumento é desenvolvido em Sérgio Buarque e RaimundoFaoro sem solução de continuidade em relação à tese do iberismo.Ao contrário, a suposta originalidade moderna de São Paulo é utilizada como um caminho alternativo ao atraso social a que o iberismo e o personalismo nos teriam condenado. Comum às duas pro

 posições é a forma voluntarista de perceber o tema da institucionalização valorativa. Voltaremos a esse ponto mais adiante.

Importante aqui é ressaltar que a sociologia da inautenticidadedo processo de modernização brasileiro articula soluções e proble

mas que formam um sistema. Iberismo, personalismo, patrimonia-lismo são termos intimamente interligados como uma explicaçãotanto para nosso atraso social como para nosso (subdesenvolvimento. A influência dessas idéias sobre a vida cotidiana decada brasileiro é gigantesca. Ela constitui nossa auto-imagem dominante, seja na dimensão das idéias, seja na dimensão da práticasocial e política.

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208 Jessé Sou za

Esse sistema de idéias está presente em autores dos quais, ge

ralmente, não se suspeita. E isso mostra sua eficácia social comoidéia. Roberto DaMatta, por exemplo, é comumente associado aGilberto Freyre e não à tradição iberista e personalista. A relaçãoentre Roberto DaMatta e Gilberto Freyre é interessante e intrigante.Por um lado, os dois são comumente percebidos como pensadoresde uma vertente peculiar de pensamento social brasileiro, aquelaque concentra sua atenção em aspectos normalmente não considerados pela tradição científica dominante como rituais, costumes e

hábitos cotidianos. O próprio DaMatta levanta um outro ponto emcomum: os dois fariam uma sociologia de quem “gosta do Brasil”,ou seja, que seria crítica da tendência pessimista de só ver defeitosno país.2De um ponto de vista mais analítico, noções fundamentais

 para DaMatta como a oposição casa e rua seriam influênciasfreyrianas.3

 No entanto, uma leitura atenta permite perceber que esses au

tores partem de pressupostos distintos e chegam a conclusões quenão poderiam ser mais díspares. Já na visão da singularidade histórica brasileira, um ponto básico para a empresa teórica de ambos, a

 perspectiva desses autores não poderia ser mais antagônica. Enquanto DaMatta segue no fundamental a visão faoriana4  da transmissão da herança patrimonial portuguesa ao Brasil, de um Estado patrimonial centralizado e todo-poderoso que inibiria o localismo eo associativismo, Freyre parte do princípio oposto. Para Gilberto

Freyre, o Brasil colonial seria um caso extremo de descentralismo político, criando as condições para um patriarcalismo que se cristaliza em mandonismo local ilimitado precisamente pela ausênciaseja de instituições intermediárias acima da família, seja pela inexistência prática de uma efetiva ação e controle do Estado.

A essa oposição inicial correspondem diagnósticos conflitantes sobre o que caracterizaria a modernidade do Brasil. DaMatta

 parece acreditar na continuidade de um esquema rígido de poderque continua no decorrer do tempo e confere a base empírica doseu quadro de uma sociedade hierárquica, a qual, mesmo no con-

2Entrevista de Roberto DaMatta à revista  República  de março de 1999.

3 Roberto DaMatta,  A casa e a ru a , 1991, p. 60.4

 Idem , ibidem, p. 83.

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A m odernização seletiva 209

texto de uma sociedade complexa e diferenciada como a do Brasil

da segunda metade do século XX, seria misteriosamente comandada por relações pessoais de família e compadrio, o personalismoexposto por Sérgio Buarque como alfa e ômega da nossa supostatradição ibérica. Como veremos em breve, Freyre desenvolve umraciocínio diametralmente oposto.

 Na tentativa de construir uma visão alternativa à nossa sociologia da inautenticidade do processo de modernização brasileiro,apoiar-me-ei parcialmente no trabalho de Gilberto Freyre. E claroque o próprio Freyre pode ser visto como mais um araulo do iberismo entre nós. Aliás, essa parece ser a forma como a maioria doscomentadores da sua obra a percebe. Não pretendo negar que essaseja uma leitura possível, mas não acho que esta seja a interpretação que faça mais justiça à originalidade de sua obra, especialmente a esse primoroso livro que é Sobrados e mucambos.  E, aqui,irei propor uma leitura alternativa da sua obra que tem menos a ver

com os temas classicamente associados ao seu nome como a mestiçagem ou a história da vida privada. Pelo contrário, irão interessar-me os aspectos macrossociológicos da obra de Freyre, precisamente aqueles aspectos estruturais da vida institucional e da estratificação social peculiar que se constituem, entre nós, e que são descurados nas análises da nossa sociologia da inautenticidade.

Sem dúvida, pretendo fazer uma apropriação apenas parcial daobra de Freyre. Interessa-me, antes de tudo, sua análise empíricado processo que ele chama de “europeização” do Brasil da primeirametade do século XIX. Percebo essa análise, no essencial desenvolvida no seu Sobrados e mucambos, como uma primorosa análise da institucionalização da modernidade ocidental entre nós. Váriasde suas conclusões normativas, por outro lado, presas de um orga-nicismo holista peculiar, serão criticadas a partir de um ponto de partida pessoal.

Gilberto Freyre e a singularidade cultural brasileira

Gilberto Freyre é, talvez, o mais complexo, difícil e contraditório dentre nossos grandes pensadores. Sua obra tem permanecidoum desafio constante aos comentadores, como iremos ver a seguir.

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e a vitalidade de seu pensamento mostra-se no crescente interesse

 por sua obra. Ele é, talvez, o mais “moderno” dentre os clássicosdo pensamento social brasileiro e suas questões “ganham” em vezde perder em atualidade.

A enorme dificuldade envolvida numa adequada compreensãode sua obra resulta de vários fatores combinados. Uma razão im portante parece-me a extraordinária disparidade de sua obra. Enquanto, normalmente, na maioria dos grandes autores, a obra dematuridade representa uma condensação intelectual que propiciamaior grau de coerência e elaboração dos temas que marcaram atrajetória intelectual desses autores, Freyre parece ser uma exceçãoa essa regra. Seus melhores livros são escritos ainda na década de1930, quando o autor era muito jovem, e dentre eles, além de Casa grande e senzala,  especialmente Sobrados e mocambos,  a suaobra-prima do nosso ponto de vista.

Sua obra de juventude é marcada pelo tom aberto, propositivo,

hipotético, o que levou alguns comentadores a interpretá-lo pelo paradigma da ambigüidade e da contradição constitutivas. Foi precisamente esse aspecto aberto, inquisitivo, de sua obra de juventude, que foi substituído na maturidade por um espírito de sistemafechado, uma compilação de certezas e de sugestões de intervenção

 prática e política. No prefácio de 1969  para a edição brasileira de  Novo mundo 

nos trópicos,  livro originalmente publicado em inglês em 1963, percebe-se essa torção peculiar da atitude de Freyre em relação aosestudos realizados na década de 1930. Aqui Freyre pretende “res ponder” aos seus primeiros críticos, os quais reclamavam que ele“não concluía”, não possuía uma tese central clara e muito menosuma proposição concreta e clara “sobre o que fazer”.

Essa é certamente uma crítica e uma demanda bem brasileiraao pesquisador. A pequena distância objetiva e subjetiva entre o

domínio da reflexão, a ciência e a esfera da ação prática, a política,torna entre nós quase impossível uma clara divisão de trabalhoentre essas duas esferas complementares. Pede-se, constantemente,o apagamento das fronteiras, confundindo-se as condições de validade de cada domínio e exigindo-se de uma esfera o que só é razoável se demandar de outra.

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A m odernizaçã o seletiva

Gilberto Freyre, seja por oportunismo político, seja por vaida

de pessoal, cede ao apelo. Aqui, talvez, tenham-se encontrado ex pectativas objetivas e inclinações pessoais. O certo é que a obramadura de Freyre é uma espécie de caricatura de sua obra de juventude. O que nesta se abre à indagação do leitor, um constantedescortinar de aspectos e variantes que se oferecem à curiosidade eao escrutínio deste, naquela tende sempre ao enrijecimento, umfechamento de horizontes e perspectivas.

Efetivamente Gilberto Freyre conclui na sua obra madura.Conclui transformando algumas de suas brilhantes intuições de juventude sobre a especificidade e singularidade da formação social brasileira em uma ideologia nacionalista e luso-imperialisla deduvidoso potencial democrático. O que antes adquiria a forma doquestionar-se as peculiaridades e transformações de uma culturaeuropéia nos trópicos transforma-se em “tropicologia”, um con

 junto de asserções de cientificidade duvidosa, carregadas de im

 pressionismo, mas facilmente utilizáveis como uma ideologia unitária do “tropical e mestiço”. Uma ideologia do “apagamento dasdiferenças”.

A “tropicologia” transforma-se, até mesmo, em ciência específica, a qual, “já referendada pelos sábios da Sorbonne”,5 se dedicaria ao estudo do homem nas condições tropicais. O fato de o elemento mesológico aqui ser o dado essencial não é de forma alguma

acidental. Ao contrário, ele representa o fundamento mesmo daquilo que já foi chamado “concepção neolamarckiana”6  de ciênciaem Gilberto Freyre. Essa concepção parte da possibilidade de consideração simultânea de elementos tão heterogêneos como as influências biológicas, mesológicas e culturais na determinação daespecificidade de uma formação social singular.

Se nos escritos da juventude os outros elementos estão subordinados à dimensão cultural, como teremos oportunidade de discu

tir mais adiante, nas obras da maturidade a dimensão mesológicaassume o lugar de maior preeminência, como o nome da nova -ciência já sugere. Os motivos para esse deslocamento são políticos,

Gilberto Freyre,  Novo mundo nos tróp icos .  1969, p. 20.

Ricardo Benzaquen Araújo, Guerra e paz: casa grande e senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 3 0 ,1993, p. 39.

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2 1 2 Jessé Souz a

ou melhor, “geopolíticos”, pela facilidade mesma de se apontar a

necessidade de defender-se de “imperialismos de potências não-tropicais com relação a espaços, recursos, população e culturastropicais”.7

A transformação da ciência em geopolítica tem pelo menosduas limitações decisivas. A primeira refere-se ao fato de suporuma comunidade indistinta, mesologicamente unificada, em relação ao que lhe é externo. A segunda limitação, irmã e complementar da anterior, é a proposição implícita de comunidade indis

tinta “para dentro”, em que a dimensão conflitiva e o componentedo poder são secundarizados.

A separação entre trabalhos da “juventude” e da “maturidade”não é feita no sentido de demonstrar qualquer “corte epistemológico” no autor. Freyre é o mesmo pensador holista, que pensa a sociedade como um todo orgânico a partir de partes que se completam. Nesse tipo de concepção de sociedade, a hierarquia é o dado cen

tral e cada pessoa, grupo ou classe tem o “seu lugar”. Igualdade política e econômica jamais foi o princípio mais importante dosociólogo Gilberto freyre. Ao contrário, sua atenção esteve semprevoltada para perceber formas de integração harmônica de contrários, interdependência e comunicação recíproca entre diferentes,sejam essas diferenças entre culturas, grupos, gêneros ou classes.

 No entanto, para o esforço hermenêutico e interpretativo, fazmuita diferença se estamos falando de potencialidades inscritas em

uma sociedade dos séculos XVI e XVII, como o Brasil de Casa grande e senzala,  ou de supostas características de uma nação em plena segunda metade do século XX, como no caso dos textos quetratam da luso-tropicologia. Esse dado temporal fundamental nemsempre é levado em consideração por comentadores que teimamem perceber o quadro histórico desenvolvido por Freyre para oBrasil colônia pelas lentes de categorias e noções surgidas séculos

mais tarde. A refração operada por esse tipo de interpretação é amelhor maneira de deixar-se de perceber algumas intuições de um pensador de talento e saber empírico excepcional.

Estou convencido de que algumas idéias fundamentais deFreyre não precisam ser tratadas, necessariamente, dentro do mes

7 Gilberto Freyre, op. cif.,  1969, p. X IX .

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A m odernização seletiva 1 13

mo horizonte categorial e normativo usado pelo autor. Por conta

disso, gostaria de propor uma análise em separado dos dois livrosmais importantes de sua “juventude”, Casa grande e senzala8  eSobrados e mucambos .9  Cada um desses livros se referem a períodos históricos distintos e aponta para questões díspares.

Em CGS   a questão central é efetivamente o encontro intercultural nos trópicos. Esse texto parece-me concentrar os temas queassociamos comumente ao debate ligado a Gilberto Freyre, como amiscigenação e a comparação, às vezes explícita, o mais das vezes

implícita, mas sempre presente, com o desenvolvimento norte-americano.

Em SM, no entanto, a questão central parece-me um ponto, atéonde pude perceber, secundarizado pela crítica pelo menos emrelação ao desenvolvimento de todas as suas conseqüências: a“ambigüidade” cultural brasileira a partir do embate entre a tradição patriarcal e o processo de “ocidentalização” a partir da influên

cia da Europa “burguesa”, e não mais portuguesa, que toma deassalto o país no século XIX. Esse processo tem sido percebido,geralmente, como “mudança de hábitos” de vestir, de leitura, deconsumo em geral. O brasileiro se transveste de “civilizado”, conferindo sentido àquela frase ainda hoje utilizada por todo brasileiro,civilizando-se “para inglês ver ”.10

Existe, na realidade como vimos, toda uma sociologia do “parainglês ver”, que se nutre na idéia de que o processo de absorção da

modernidade européia no Brasil é um verniz, uma aparência, ou nomelhor dos casos uma primeira epiderme. Acredito que uma leituraalternativa de SM   pode nos trazer uma outra concepção desse processo.

8

 Idem , Casa g rande e se nzala  (a partir de agora simplesmente CGS).9 Idem , Sobrados e mucam bos ( a partir de agora simplesmente SM).

10 A expressão “ para inglês ver” , com o se sabe. refere-se a q ualquer sit uação noqual o intuito é induzir alguém a erro acerca de uma verdade que não se quermostrar. Precisamente como, no século XIX, pretendia-se mostrar “aos ingle-ses” que o comércio escravocrata havia cessado, quando ele continuava na prát ica, ou que, em geral, ter-se-ia at ing ido no Brasil um grau de “civili zação"maior do que era realidade.

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214 Jessé Souza

Casa grande e senzala e a peculiaridade do patriarcalismo  tropical

Seria ingenuidade começar a tratar de um dos livros mais discutidos da historiografia brasileira sem, antes de tudo, “comentar”os comentadores e partir do patamar da discussão mais sofisticada. No caso de Gilberto Freyre, o trabalho de Ricardo Benzaquen deAraújo sobre sua obra na década de 193011 transfomou-se rapidamente em referência obrigatória para os estudiosos do autor. E isto

 por boas razões. A abordagem de Araújo é original e cuidadosa,ajudando a situar o debate das contribuições de Gilberto Freyre para uma moderna sociologia brasileira em novos termos.

E a partir de uma respeitosa polêmica com a interpretação pro posta por Luiz Costa Lima no seu O aguarrás do tempo, 12 que Araújo constrói seu argumento. A tese de Costa Lima é clara: Freyrenão teria, apesar de ter dito o contrário no prefácio de CGS,  desvinculado raça e cultura e dado proeminência a essa última. Essa

operação o teria diferenciado das teorias racistas anteriores, como ade Oliveira Vianna, por exemplo. Para Costa Lima, Freyre não sónão se liberta do paradigma anterior como introduz a variável cultural como elemento ancilar em relação ao componente racial, servindo aquela apenas para conferir maior visibilidade a este último.13

Para Costa Lima, a ambigüidade constitutiva da metodologiafreyriana se transmite também para seu conteúdo. No tema central

da miscigenação, por exemplo, pergunta-se o autor, que confraternização seria essa cuja “igualdade” se restringiria ao encontro comvistas ao coito?14  Nesse aspecto fundamental da argumentaçãofreyriana, a base mesma de sua tese da proximidade e comunicaçãoentre as distintas tradições culturais que formavam o Brasil colônia, portanto, Costa Lima veria, antes de tudo, um recalque doconflito e a criação de uma “imagem idílica”15 da herança que ocolonizador nos legou.

11 Araújo, op. cit.,  1993.12

Luiz Costa Lima, O aguarrás do tempo.13

 Id em , ibidem,  p. 20514

 Idem, ib idem ,  p. 214.

15  Idem, ib idem ,  p. 217.

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A modernização seletiva

A interpretação de Araújo dirige-se precisamente a esses dois

 pontos fundamentais. De início, Araújo parece concordar com ascríticas de Costa Lima. Efetivamente, a “imprecisão” conceituai évista como um dado constitutivo da argumentação freyriana. Noentanto, no desenvolvimento do raciocínio, Araújo constrói umainteressante hipótese explicativa para a presença espúria do com

 ponente “raça” em Gilberto Freyre. Freyre teria assimilado umanoção “neo-lamarckiana” de raça, que exigiria a mediação do meiofísico, enquanto elemento adaptador capaz de incorporar, transmitir

e herdar características culturais. Assim, “raça” seria antes um“produto”, um “efeito”, do que causa da combinação entre meio ecultura. Raça seria uma transformação cultural modificada e adaptada ao meio.16

Assim, apesar de admitir a “imprecisão” localizada por CostaLima, Araújo ressalta antes o papel dominante do elemento cultural, sendo o componente racial subordinado no processo de deter

minação causal. Essa concepção, dado o “compromisso biológico”que implica, efetivamente se desviaria do puro legado de FranzBoas (a quem Freyre diz seguir nesse particular), mas não implicaria, por outro lado, qualquer adesão às formas de hierarquia racialtípicas do “racismo científico” antes dominante nos nossos meiosintelectuais. Teríamos a ver, aqui, quando muito, com um “resto”,um último elo entre teoria social e biológica .17

Com relação ao segundo argumento levantado por Costa Lima,

o da “imagem idílica”, Araújo é ainda mais cauteloso. Ele aceita parcialmente a crítica e a denomina de uma “meia-verdade”.18O autor percebe que, para construir seu argumento, é necessárioqualificar a especificidade da escravidão brasileira. Esta é violentacomo qualquer escravidão, mas, ao contrário da escravidão na Grécia antiga, por exemplo, ela admite proximidade e influência recí proca entre as culturas dominante e dominada.

Assim teríamos, paralelamente à imensa violência e perversãoinerente a toda sociedade escravocrata, um componente de “proximidade” explicando o caráter sincrético de nossa cultura em oposi

16 Araújo, ap. cit.,  1993, p. 39.

17  Idem , ibidem ,  p. 40.

If<  Idem , ibidem ,  p. 48.

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216 Jessé Souza

ção à “pureza” da cultura grega antiga, que pouco foi tocada pelas

culturas dominadas. Esse componente de “proximidade” entre senhor e escravo o autor vê como influência cristã, o qual se contra poria polarmente ao elemento “despótico oriental” herdado dosmouros, como dois aspectos da “bicontinentalidade” portuguesa.

A consideração da escravidão grega antiga em vez da americana sulista se deve ao fato de Araújo não ter encontrado nenhumaalusão a disparidades entre as duas formas de escravidão emCGS .19Esse ponto é fundamental e está vinculado também à forma

 peculiar, e a meu ver invertida, como Araújo percebe a influênciamoura. Voltaremos a discutir esses aspectos com mais vagar adiante.

Para Araújo, a ambigüidade entre os elementos oriental-despótico e cristão-aproximativo não é solucior.ável, ela seriaconstitutiva do argumento freyriano. Seria precisamente um exem plo conspícuo dessas “contradições em equilíbrio” de que falaFreyre. Que essas contradições jamais cheguem ao ponto de rom

 pimento ou colisão é explicado pela idéia de “trópico” para o autor.Como o “neolamarckianismo” de Freyre já predisporia, seria aidéia de trópico, uma espécie de mediador entre geografia e cultura, que traria a idéia de “excesso”, de uma “hybris” grega, comoelemento dominante de todo o sistema CGS,  permitindo, assim, aconvivência de “excessos” de despotismo com “excessos” de proximidade.

A interpretação metodológica de Gilberto Freyre levada a cabo

 por Araújo a partir da noção de “neolamarckianismo” é, sem dúvida, um divisor de águas no tema. Ela ajuda a esclarecer, até mesmo, aspectos fora do âmbito do estudo de Araújo, como a reifica-ção operada na obra da maturidade do autor sob a forma de uma“geo”política, como procurei explicitar no começo desse ensaio.Poder-se-ia dizer que, no lugar do maior peso da variável culturalque Araújo corretamente detecta nas obras da juventude, temos a

ver, crescentemente, com uma reificação mesológica e espacialganhando foros de categoria explicativa.Se a noção de “neolamarckianismo” é fundamental para uma

adequada compreensão da obra de Gilberto Freyre, o mesmo nãose pode dizer da interpretação “conteudística” da obra como a for

19  Id em , ibidem , p. 98.

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A m odernizaçã o seletiva 217

mula Araújo. O argumento do autor nesse ponto particular, ao en

fatizar o elemento da contradição, que sem dúvida se refere a um ponto real e importante da reflexão freyriana, termina por se congelar na proposição de uma “hybris”, que por ser mero “excesso”,seja criativo ou destrutivo como afirma o autor, pode ser tudo enada ao mesmo tempo, como a própria “anarquia” vista por Araújocomo a forma social da “hybris”.20  A “hybris” é fetichizada e pro posta como solução quando na realidade ela é um sintoma de um  problema não resolvido.  Ela acaba por se tornar uma “pseudo-

explicação”.Afinal, um conceito serve para reduzir a complexidade da rea

lidade e não para reproduzi-la na esfera conceituai. E aqui não cabedizer que a “realidade” descrita por Freyre é mais complexa que asoutras realidades. “Toda” realidade é complexa na medida em queé perpassada por incontáveis cadeias significativas vertical e horizontalmente ilimitadas. Esse é um ponto conspícuo da construção

conceituai de inspiração neokantiana em Max Weber, por exemplo.O tipo-ideal é, nesse sentido, uma hierarquia seletiva de aspectosde uma dada realidade. Um bom tipo-ideal é aquele que logra selecionar os aspectos mais importantes da realidade a ser descrita. Naimpossibilidade da reprodução da realidade em toda a sua complexidade, como quer o imanatismo hegeliano, o qual para Weber produz tipos-ideais “sem o saber”, a redução da complexidade, precisamente do “excesso” a partir da construção de conceitos

unívocos, é o apanágio do bom trabalho conceituai.Precisamente pela ausência de univocidade da noção de

“hybris” ela repete e mantém aquilo que o comentador critica emFreyre: a imprecisão e a ambigüidade. A “hybris” transforma-senuma “enteléquia” tão totalizadora que todos os fatos passam areferir-se a ela, seja por afinidade, seja por oposição. Desse modo,a “hybris” é vista como a categoria explicativa central não somente

de CGS  mas de toda a obra freyriana do período, inclusive de SM.  Nesse sentido, apesar de Araújo perceber com perspicácia a redução da proximidade social a partir do processo civilizador europeizante, ele a vincula a uma transformação da “hybris” anterior, enfatizando antes a continuidade sob outras formas do que a

20 Idem, ib idem, p. 90.

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218 Jessé Souza

descontinuidade representada pela entrada de elementos radical

mente novos em SM.Esse ponto é essencial como iremos ver mais adiante. A ênfasena continuidade entre esses dois livros termina por não permitir alocalização de uma outra “novidade radical” na sociologia Freyria-na que não tem a ver com o tema da mestiçagem e, portanto, com atemática que o conceito de “hybris” pretende aludir.

 A semente da formação social brasileira

Como Freyre afirma nas primeiras páginas de CGS,  em 1532,data da organização “econômica e civil” do Brasil, os portugueses,que já possuíam cem anos de experiência colonizadora em regiõestropicais, assumiram o desafio de mudar a empreitada colonizadoracomercial e extrativa no sentido mais permanente e estável da ati

vidade agrícola. As bases dessa empreitada seriam, no aspectoeconômico, a agricultura da monocultura baseada no trabalho escravo, e no aspecto social, a família patriarcal fundada na união do

 português e da mulher índia. Na política e na cultura essa sociedade estaria fundamentada no particularismo da família patriarcal

 para Gilberto Freyre. O chefe da família e senhor de terras e escravos era autoridade absoluta nos seus domínios, obrigando até “ElRei” a compromissos e dispondo de altar dentro de casa e exército

 particular nos seus territórios .21O patriarcalismo de que nos fala Freyre tem esse sentido de

apontar para a extraordinária influência da família como alfa eômega da organização social do Brasil colonial. Dado o carátermais ritual e litúrgico do catolicismo português, acrescido no Brasildo elemento de dependência política e econômica em relação aosenhor de terras e escravos, o patriarcalismo familiar pode desen

volver-se sem limites ou resistências materiais ou simbólicas.A família patriarcal como que reunia em si toda a sociedade. Não só o elemento dominante, formado pelo senhor e sua famílianuclear, mas também os elementos “intermediários”, constituídos

 pelo enorme número de bastardos e dependentes, além da base de

21 Freyre, op. cit.,  1957, p. 17-18

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A modernização seletiva

escravos domésticos e, na última escala da hierarquia, os escravos

da lavoura.É precisamente nesse ambiente saturado de paixões violentasque surge o tema da “ambigüidade” e da “imprecisão”. A questão éreal e significativa, referindo-se à forma peculiar com que umasociedade singular vinculava umbilicalmente despotismo e proximidade, enorme distância social e íntima comunicação. Acompanhemos, antes de tudo, a forma como Gilberto Freyre monta o seuquebra-cabeças multicultural. Esqueçamos por um instante o índio,cuja influência foi importante mas datada, tendo sido decisivo no

 período imediatamente inicial de colonização e desbravamento dossertões,22e nos concentremos nos dois elementos principais e mais

 permanentes do patriarcalismo brasileiro: o português e o negro.Toda a análise de CGS   é dependente e decorrente da opinião

singular de Freyre sobre o português. É o português o elemento principal, sob vários aspectos, do processo sincrético de coloniza

ção brasileiro. Antes de tudo, ele é o elemento dominante nos as pectos da cultura material e simbólica. É ele o motor e idealizadorde todo o processo e é dele a supremacia militar. Se esse elementoa tal ponto dominante não carregasse em si próprio os germes dacultura que aqui iria se desenvolver, toda a argumentação de Freyre

 perderia em plausibilidade.Mas o português é precisamente a figura do contemporizador

 por excelência e é exatamente nesse traço da predisposição aocompromisso que ele se diferencia do colonizador espanhol e, es

 pecialmente, do anglo-saxão nas Américas. E o português o portador da característica mais importante da vida colonial brasileira: oelemento da “plasticidade”, do homem “sem ideais absolutos nem

 preconceitos inflexíveis”.23  É essa plasticidade que irá propiciar aextraordinária influência da cultura negra nos costumes, língua,religião e, especialmente, numa forma de sociabilidade entre desi

guais que mistura “cordialidade”, sedução, afeto, inveja, ódio re primido e praticamente todas as nuances da emoção humana. 24

 Id em, ibidem , p.  160-16J.21

E interessante notar que em Freyre essa noção não assume ;i prim;i/i;i i-yplittiva da permanência ibérica, como irá acontecer com Sérgio Hnau|iir <>i mim

 Idem, ib idem ,  p. 191.24  ' .

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220 Jessé Souza

É exatamente no ponto de encontro do português e do negro

que Freyre cria o drama social do Brasil colônia. O ponto problemático é a afirmação simultânea de desigualdade despótica, que arelação escravo/senhor propicia, e de intimidade - em alguns casosate afetividade e comunicação entre as raças e culturas. Nesse

 ponto, urge a discussão do que afinal constituiria a especificidadetia escravidão brasileira. De onde ela vem, como e por que ela sedistinguiria de outras sociedades escravocratas.

Acredito que a comparação privilegiada por Gilberto Freyrenesse aspecto seja em referência ao sul escravocrata norte-americano. Embora Benzaquen de Araújo aponte corretamente noseu estudo que todas as citações no texto de CGS  tendem a apontar“a mais absoluta similaridade, nunca apontando para nenhumadiferenciação”25 entre os dois sistemas, acredito que ainda se possafazer algumas considerações interessantes sobre esse tema. Semdúvida, esse ponto é insistentemente repetido em CGS:  fundamen

tais são o sistema econômico de produção escravocrata e mono-cultor e a organização patriarcal da família.2fi Esses são pontos queaproximam todas as formas de sociedades escravocratas nas Américas, seja nos EUA, Brasil ou Cuba. No entanto, se os pontos essenciais são os mesmos, isso não significa que as diferenças “acessórias” não sejam importantes ou até decisivas no estudocomparado de sociedades de um mesmo tipo.

Acredito, portanto, que devamos examinar essa “essência”semelhante das grandes sociedades escravocratas das Américas“cum grano salis”. Afinal, isso equivaleria a dizer, em termos dehoje, que as sociedades industriais avançadas dos EUA e da Alemanha Federal são “essencialmente” semelhantes, por exemplo, nomodo de produção econômico e no tipo de família (para usar precisamente os mesmos termos de Gilberto Freyre quando aproxima associedades escravocratas brasileira e norte-americana). Pouca

gente sensata divergiria dessa afirmativa. Ao mesmo tempo, creiotambém que pouca gente deixaria de admitir que existem diferen

da plasticidade do português não impede a tematização da singularidade daformação social que aqui se desenvolve.

^ Araújo, op. cit.,  1993, p. 98.

26 Freyre, op. cit., 1957, p. 360,410, 422,

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A m odern ização seletiva   2 2 1

ças “acessórias” entre as sociedades norte-americana e alemã as

quais correspondem a distinções sociologicamente significativasem relação a traços estruturais dessas duas sociedades de mesmotipo. Existem aspectos de influência histórica que fazem com queessas duas sociedades “essencialmente semelhantes” tenham diferenças políticas e culturais nada desprezíveis para o analista.

Acredito que eram diferenças desse tipo que estavam subjacentes ao argumento freyriano. Em uma conferência realizada naUniversidade de Stanford, Califórnia, em 1931  (dois anos antes da

 publicação de CGS),  ao falar da especificidade da escravidão brasileira em relação à “escravidão noutras áreas (da América J.S.)dominadas, desde o século XVII, por outros povos europeus”,27indaga-se o autor:

Por que essa d i fe rença? A meu ver por te r s ido (o bras i le i ro

J .S . ) um regime de escravidão ( . . . ) an tes á rabe que europeu em

seu modo de ser escravocra ta . E n inguém ignora que há imensadis tânc ia entre as duas concepç ões - a européia , pós- indus lr ia l,

e a or ienta l , pré- indus t ria l - de cons iderar-se o escravo. N um a o

escravo é s imples máquina de t raba lho . Na outra , é pessoa qua

se da família.. . .28

Resguardados possíveis e prováveis exageros nessa contraposição, os termos da diferença estão postos com a maior clareza

 possível. Vale a pena demorar-se neste ponto, já que ele é o fiocondutor de toda argumentação freyriana da especificidade da escravidão e, conseqüentemente, da formação social colonial brasileira. Um esclarecimento desse ponto talvez possa ajudar a dirimir,

 pelo menos em parte, algumas “imprecisões” e “ambigüidades” doargumento de Freyre. Benzaquen de Araújo, ao seguir a pista daindistinção entre a escravidão brasileira e a norte-americana, ter

mina, até mesmo, por inverter o lugar da herança moura no raciocínio freyriano. Ele a percebe como um dado do “despotismo oriental”29  quando na realidade, para Freyre, ela é a chave explicativa

27Revista Veja, 15 de setembro de 1999, p, 71.

28 Idem , ibidem, p. 71

"9 Araújo, op. cit.,  1993, p. 47-57.

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222 Jessé Souza

 precisamente do elemento inverso, da “confraternização”, do com

 ponente “familiar”, distintivo da escravidão brasileira nas Américas. Em  Novo mundo nos trópicos esse ponto é referido com toda aclareza:

Fim toda parte , f iquei impressionado pelo fato de que o paren

tesco soc io lógico ent re os s is temas por tuguês e maometano de

escravidão parece responsável por cer tas carac ter ís t icas do s is

tema bras i le i ro . Carac ter ís t icas que não são encontradas em ne

nhuma outra região da América onde exis t iu a escravidão.O fa to de que a escravidão, no Bras i l , fo i , ev identemente , me

nos c rue l do que na America inglesa , e mesmo do que nas Amé

ricas f rancesa e espanhola , já me parece documentado de forma

i d ô n e a . ' 0

Essa característica nova, maometana, seria precisamente, portanto, o fator responsável pelo caráter mais “benigno” (voltaremos

a esse ponto adiante) da escravidão brasileira nas Américas e especialmente em relação à do Sul dos EUA. Que fator teria sido esse?

E por que fo i ass im? Não pe lo fa to de os por tugueses serem um

 povo mais cristão do que os ingleses , o s holandeses, os f r a n c e

ses ou os espanhóis , a expressão “mais c r is tãos” s igni f icando,

aqui , e t icamente super iores na mora l e no comportamento .

A verdade ser ia out ra : a forma menos c rue l de escravidão des

envolvida pe los por tugueses no Bras i l parece te r s ido o resul tado de s eu con ta to com os e sc ravoc ra ta s maometanos , conhec i

dos pe la maneira famil ia l como t ra tavam seus escravos , pe lo

mot ivo mui to ma is conc re tamen te soc io lóg ico do que abs t ra ta

mente é tn ico de sua concepção domés t ica da escravidão te r s ido

diversa da industria l , pré-industria l e a té anti industria l . Sabemos

que os por tugueses , apesa r de in tensamente c r is t ãos - ma i s que

isso a té , campeões da causa do cr is t ian ismo contra a causa do

Islã imi ta ram os á rabes , os mouros , os maom etanos em cer tastécn icas e em ce r tos cos tumes , a s s imi lando de le s inúmeros va

lo res cu l tu ra i s . A concepção maometana da e sc rav idão , como

sis tema domés t ico l igado à organização da famíl ia , inc lus ive às

a t iv idades domés t i cas , s em se r dec i sivamente dom inada por um

30 Freyre, 1969, pag. 179.

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A m ode rnização seletiva

 p ropós ito económ ico-industr ia l , foi um d os valores m o u ros ou

mao m etanos que os por tu gueses apl icaram à colon ização pre-dom inantem ente , mas não exc lus ivam ente , c ri s tã do Brasil , 1

Portanto, não foi o elemento cristão, como supôs Araújo,'mas o mouro que explicaria para Gilberto Freyre o elemento de“proximidade”, a especificidade da escravidão brasileira comoexpressão social e cultural singular. Esse ponto é fundamental porque apenas a partir dele podemos reconstruir o que Freyre sempre

 procurou: o elemento distintivo capaz de explicar, precisamente, a“diferença específica” entre a sociedade escravocrata brasileira e asexperiências “essencialmente similares” das outras sociedadesescravocratas do continente.

Resta ainda perguntar: o que significa exatamente  a influênciadesse elemento familiar? O esclarecimento desse aspecto é absolutamente central, posto que pode ajudar a compreender não só a

instituição da escravidão brasileira enquanto tal para GilbertoFreyre, mas a peculiaridade da “formação social brasileira” comoum todo. Sendo uma “instituição total” no Brasil, a forma peculiarda escravidão traria consigo a “semente” da forma social que sedesenvolveria mais tarde. Qual seria essa “semente”? Ao se referira uma conversa sobre o assunto com seu mestre Boas, Freyre nosdá pista interessante para a questão:

Quando, em 1938, fa le i ao meu ve lho professor da Univers ida

de Columbia, o grande Franz Boas, sobre as idéias que t inha a

esse respeito, e le me disse que as mesmas poderiam servir de-

 base a nova co m p reen são e m e sm o in te rp re ^ ç ã o d a s i tuação

 brasile ira; e q ue eu devia con tinu ar m in ha pesquisas relativas a

cone xão exis tente ent re a cul tura por tug uesa e a moura ou

mao m etana - pa r t icu larmen te en tre s eus s i st emas de e sc rav idão

 A rg u m e n to u a in d a q u e os m a om eta no s, á ra b es e m o u ro s d u- 

ran te mui tos s écu los hav iam s ido super iores aos europeus e cr is tãos em seus métodos de ass imi lação de cul turas a fr icanas  

à sua c iv i l ização (des taque m eu J .S) . 33

 Idem , ibidem,  p. 180.32

Araújo, op. cit.,  1993, p. 55.

33 Freyre, p. 180.

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2 2 4 Jessé Souza

O contexto da reportagem dessa conversa com o antigo mestre

remete à alegria de Freyre de ver suas intuições corroboradas porfiguras para ele respeitáveis e acima de qualquer suspeita. A parteda citação em destaque mostra uma concordância de Boas no as

 pecto que sempre foi, para Freyre, o aspecto mais conspícuo daformação brasileira: o sincretismo cultural, uma combinação deEuropa e África que logrou produzir uma sociedade singular, não-redutível a nenhum dos termos que haviam participado originalmente da sua formação. Importante para nossos propósitos, noentanto, é a circunstância de que é precisamente a herança culturalmoura na forma da escravidão que parece ter sido o elemento decisivo da singularidade da sociedade escravocrata colonial e, portanto, da semente futura da sociedade brasileira.

Essa influência cultural, não obstante, parece não ter agido sozinha. Um outro fator, sociológico estrutural, teria agido combinadamente, qual seja, a necessidade de povoamento de tão grandes

terras por um país pequeno e relativamente pouco populoso:

Daí a forma de escravidão que os portugueses adotaram no Orien

te e no Bras i l te r se desenvolvido mais à maneira á rabe que à

maneira européia ; e haver inc lu ído , a seu modo, a própr ia pol i

gamia , a f im de aumentar-se , por esse meio maometano, a po

 p u la ç ã o .34

O tema da família aumentada é aqui a chave da especificidadeque Freyre pretende construir. 'Para Freyre, essa instituição nãoestava ligada primeiramente à necessidade funcional e instrumentalde aumentar o número de escravos. É que a família polígama maometana tinha uma característica muito peculiar:

De acordo com os maometanos , bas tava ao f i lho da l igação de

árabe com mulher escrava adotar a fé , os r i tua is e os cos tumes

do seu pa i , para se tornar igua l ao mesmo pa i soc ia lmente fa

lando.35

34 Idem , ibidem , p. 180.

 Idem , ibidem,  p. 181.

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A m odern ização seletiva

E a seguir sobre a “versão portuguesa” da aplicação desse

 princípio cultural:

Os por tugueses . . . .ass im que se es tabe leceram no Bras i l começa

ram a anexar ao seu s is tema de organização agrár ia de econo

mia e de famíl ia uma diss imulada imi tação de pol igamia , per

mitida pela adoção legal , por pai cris tão, quando este incluía ,

em seu tes tamento, os f i lhos naturais , ou i legít imos, resultantes

de mães índias e também de escravas negras . Fi lhos que , nesses

tes tamentos , eram socialmente iguais , ou quase iguais , aos f ilhos legít imos. Aliás , não raras vezes , os f i lhos naturais , de cor,

foram mesmo ins t ru ídos na Casa Grande pe los f rades ou pe los

mesmos capelães que educavam a pro le leg í t ima, expl icando-se

assim a ascensão social de alguns desses mestiços .36

Acredito ser difícil minimizar a importância dessa influênciacultural no esquema interpretativo freyriano. Acredito também que

o próprio núcleo da singularidade da formação social brasileira para Gilberto Freyre advém desse fato fundamental de que o filhoda escrava africana com o senhor europeu “poderia”, ou seja, existia a possibilidade real, quer ela fosse atualizada ou não,  seraceito como “europeizado”, 1 1 0   caso de aceitação da fé, dos rituaise dos costumes do pai.

Talvez esse fato não sirva para esclarecer a decantada “democracia racial”, 1 1a medida em que o “europeu” permanecia como otermo absolutamente positivo da relação. Mas talvez ajude a esclarecer a singularidade do tipo de sociedade, de cultura política e dccomunicação cultural que aqui se processou. O tema da ascensãosocial do negro, ou melhor, sua “europeização”, não é um tema dcCGS .37 Vai ser, no entanto, um dos fios condutores da argumentação da verdadeira obra-prima de Gilberto Freyre, Sobrados e mocambos,  como veremos mais adiante. Mas já em CGS   podemos

antever como se gerou a semente da sociedade brasileira moderna.

36  Idem , ib idem , p. 181.

37 Freyre, op. cit.,  1957, p. 396.

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226 Jessé Souza

 A família poligâmica e o sadomasoquismo social: como vincular  

distância e proximidade?

Gostaria de tentar uma interpretação alternativa de nossa “semente societária”, do nosso específico “patriarcalismo” em CGS  a

 partir da noção de sadomasoquismo. Qualquer leitor com suficiente paciência poderia contar às dezenas as referências de Freyre a relações sadomasoquistas, seja em CGS , seja em SM,  seja ainda emlivros como  Nordeste38  No entanto, esse esforço pode ser também

seguido segundo um princípio antes sistemático do que tópico,tentando-se perceber, acima de tudo, o alcance analítico dessa noção para a empreitada hermenêutica a que Freyre se propõe. Estouconvencido de que a análise desse conceito pode ser de algumaajuda para a compreensão da ambigüidade ou imprecisão talvezmais importante no conceito de patriarcalismo de Gilberto Freyre:a consideração simultânea de distância e segregação com proximi

dade e intimidade.O final do primeiro capítulo de Casa grande e senzala forneceuma interessante chave explicativa social-psicológica do patriarcalismo. Este capítulo é um esforço de síntese que abrange o períodode formação e consolidação do patriarcalismo familiar brasileiro eque constitui o período histórico analisado no livro. De certa forma, Gilberto retira todas as conseqüências do fato de que a família é a unidade básica, dada a distância do Estado português e de suasinstituições, da formação brasileira e interpreta o drama social daepoca sob a égide de um conceito psicoanalítico: o do sadomaso-

39q u i s m o .

 Na construção desse conceito, Freyre se concentra em condicionamentos estritamente macrossociológicos, semelhantes àquelesque guiariam a reflexão de Norbert Elias (apenas seis anos maistarde) sobre o caso europeu na passagem da baixa à alta Idade Mé

dia. No contexto da teoria sociológica desenvolvida por Norbert

38  Idem, N ordes te , 1985.39

Para Freud, tanto o sadismo como o masoquismo são componentes de todarelação sexual “normal” desde que permaneçam como componentes subsidiários. E apenas quando o infligir ou receber a dor transforma-se em componente

 principal, ou seja, passa a ser o objetivo mesmo da relação, que temos o papeldeterminante do componente patológico.

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A m odernizaç ão seletiva 227

Elias, como vimos, interessa a esse autor demonstrar a interdepen

dência entre a forma peculiar de organização social e a forma correspondentemente específica de economia emocional e de relaçõesintersubjetivas que se estabelecem em dada sociedade.

Apenas na passagem da baixa à alta Idade Média, ou melhor,na passagem da sociedade de cavaleiros guerreiros para a sociedade incipientemente cortesã, temos a ver com uma primeira formade regulação externa significativa40 da conduta, ainda que estejamos muito longe do tipo de regulação interna exigido por umasociedade industrial democrática moderna. A forma social anterior,no entanto, a sociedade guerreira medieval, como descri la por Elias,é em muitos aspectos semelhante à brasileira colonial como vista por Gilberto Freyre.

Antes de tudo, pelo caráter autárquico do domínio senhorialcondicionado pela ausência de instituições acima do senhor territorial imediato. Uma tal organização societária, especialmente quan

do o domínio da classe dominante é exercido pela via direta daviolência armada (como era o caso nos dois tipos de sociedade),não propicia a constituição de freios sociais ou individuais aosdesejos primários de sexo, agressividade, concupiscência ou avidez. As emoções são vividas em sua reações extremas, são expressadas diretamente, e a convivência de emoções contrárias cm curtointervalo de tempo é um fato natural.

 Na dimensão social, as rivalidades entre vizinhos tomam porcompleto também todos os seres que se identificam em linha vertical com os respectivos senhores. Elias relata, nesse sentido, a es

 pessa rede de intrigas, invejas, ódios e afetos contraditórios que écongênita a esse tipo de organização social." O “excesso” de quenos fala Araújo é um atributo desse tipo de sociedade, portanto, enão só da brasileira colonial.

 No caso da sociedade colonial brasileira, o isolamento social

era ainda maior pela ausência de relações de vassalagem, as quais,ao menos em tempo de guerra, exigiam prestação de serviços e,

 portanto, a manutenção de um mínimo de disciplina necessário à

40Para Elias, um “ponto zero”, um início absoluto, nesse tema, nao existe, v. I, p. 75.

41  Idem, op. cii.,  p. 278.

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2 2 8 Jessé Souz a

empresa militar. Estamos lidando, 1 1 0   caso brasileiro, na verdade,

com um conceito limite de sociedade, onde a ausência de instituições intermediárias faz com que o elemento fantástico seja seucomponente principal. Daí que 0   drama específico dessa formasocietária possa ser descrito a partir de categorias social-

 psicológicas cuja gênese aponta para as relações sociais ditas primárias.

E precisamente como uma sociedade constitutiva e estruturalmente sado-masoquista, 1 1 0   sentido de uma patologia social especí

fica na qual a dor alheia, o não reconhecimento da alteridade e a perversão do prazer transformam-se em objetivo máximo das relações interpessoais, que Gilberto Freyre interpreta a semente essencial da formação brasileira. Freyre percebe, claramente, que a direção dos impulsos agressivos e sexuais primários depende “emgrande parte de oportunidade ou chance, isto é, de influências externas sociais. Mais do que predisposição ou de perversão inata”.42

A verdade , porem, é que nós é que fomos os sadis tas ; 0  e l e

mento at ivo na corrupção da vi i la de famíl ia ; e muleques e mu

la tas o e lemento pass ivo . Na rea l idade , nem 0  b ranco nem o ne

gro agi ram por s i , mui to menos como raça , ou sob a ação

 p re p o n d e ran te do clim a, nas re laçõ es de sexo e de c lasse qu e se

desenvolveram entre senhores e escravos no Bras i l . Expr imiu-se

nessas re lações 0  esp í r i to do s is tema econômico que nos d iv i

d iu . como um Deus todo-pode roso , em senhores e e sc ravos .Dele se der iva a exagerada tendência para 0  s ad i smo ca rac te r í s

tica do brasi le iro, nascido e criado cm casa grande, principal

mente em engenho; e a que ins is tentemente temos a ludido nes te

ensaio.

Imagine-se um país com os meninos a rmados de faca de ponta!

Pois foi ass im o Brasi l do tempo da escravidão.43

Ou ainda, ao discorrer sobre a permanência dessa “semente”de sociabilidade nacional, mesmo depois de abolida a escravatura:

4‘ Freyre, op. cit., 1957, p. 59.

43  Idem, ibidem, p. 36J.

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A m odernizaç ão seletiva

 N ão há b ras ile iro de c lasse m ais e lev ada , m esm o d ep o is de n as

cido e criado depois de oficialmente abolida a escravidao. que

não se s in ta aparentado do menino Braz Cubas na malvadez e

no gos to de judiar com negros. A quele m órbido d e le ite em ser

mau com os inferiores e com os animais é bem nosso: é de todo

o m enino bras i le iro a t ingido pe la inf luência do s is tem a escravo  44crata.

E ainda uma última citação, para não abusar da paciência do

leitor, esta de Machado de Assis, usado aqui por Freyre de modo aesclarecer de que maneira os valores do sadomasoquismo social sctransmitiam (se transmitem?) de pai para filho pelos mecanismossutis da “educação”.

. . .um dia quebrei a cabeça de uma escrava, porque me negara

um a colher de doce de coco que es tava fazendo , e , não contente

com o malefício, dei te i um punhado de cinza ao tacho, e , não

satisfei to da travessura, fui dizer a minha mãe que a escrava eque estragara o doce “por pirraça”; e eu t inha apenas seis anos.

Prudencio, um muleque de casa, era meu cavalo de todos os di

as ; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, i i

guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na

mão, fust igava-o, dava-lhe mil voltas a um e outro lado, e e le

o b e d e c ia - a lg u m a s v e ze s g e m e n d o - m a s o b e d e c ia s e m d iz e r

 pa lav ra, ou , qu ando m uito, um “ai, n h o n h ô !” - ao qu e eu re to r

quia . - ca la a boca , bes ta !” . E scond er os chapéu s das v isi tas ,dei tar rabos dc papel a pessoas graves , puxar pelo rabicho das

cabeleiras , dar bel iscão nos braços das matronas , e outras mui

tas façanhas deste jaez, eram mostras de um gênio indócil , mas

devo crer que e ram também expressões de um espí r i to robus to ,

 p o rqu e m eu pai tinha-m e em g ran d e ad m iração ; e se às vezes

me repreendia , à v is ta de gente , faz ia -o por s imples formal ida

de: em par t icu lar dava-m e be i jos .4^

A explicação sociológica para a origem desse “pecado original” da formação social brasileira, para Gilberto Freyre, exige aconsideração da necessidade objetiva de um pequeno país como

44 Idem, ibidem, p. 354.

45 Idem, ibidem , p. 354.

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230 Jessé Souza

Portugal solucionar o problema de como colonizar terras gigantes

cas: pela delegação da tarefa a particulares, antes estimulando doque coibindo o privatismo e a ânsia de posse. Para Freyre, é defundamental importância para a compreensão da singularidadecultural brasileira a influência continuada e marcante dessa semente original.

Ao contrário dos teóricos da primeira fas'. da Escola deFrankfurt,46 os quais, também na mesma década de 1930, procuravam, com a ajuda do mesmo conceito, explicar a ascensão do nazismo partindo de um quadro categorial que pressupunha uma rígida estrutura hierárquica pré-existente, na qual a obediência acríticaaos estratos superiores possuía uma conexão estrutural com o des

 potismo em relação aos grupos mais passíveis de estigmatização,Gilberto Freyre enfatiza o elemento personalista.

É que patriarcalismo para ele tem a ver com o fato de que nãoexistem limites à autoridade pessoal do senhor de terras e escravos.

 Não existe justiça superior a ele, como em Portugal era o caso da justiça da Igreja, que decidia em última instância querelas seculares; não existia também poder policial independente que lhe pudesse exigir cumprimentos de contrato, como no caso das dívidasimpagáveis de que fala Freyre, não existia ainda, last but not least ,

 poder moral independente, posto que a capela era uma mera extensão da casa grande.

Sem dúvida a sociedade cultural e racialmente híbrida de quenos fala Freyre não significa de modo algum igualdade entre asculturas e raças. Houve domínio e subordinação sistemática; melhor, ou pior no caso, houve perversão do domínio no conceito-limite do sadismo. Nada mais longe de um conceito idílico ouróseo de sociedade. Foi sádica a relação do homem português comas mulheres índias e negras. Era sádica a relação do senhor comsuas próprias mulheres brancas, as bonecas para reprodução e sexo

unilateral de que nos fala Freyre.47 Era sádica, finalmente, a relação

46Ver especialmente a contribuição de Erich Fromm, no contexto dos estudosrealizados na década de 1930, na coletânea: “Studien Über Authoritat und Fa-milie”, p. 77-136.

47 Freyre, op. cit., 1957, p. 60, 326, 332.

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A m odern ização seletiva

do senhor com os próprios filhos, os seres que mais sofriam e apa

nhavam depois dos escravos.4bO senhor de terras e escravos era um hiperindivíduo, não o su per-homem futurista nietzschiano que obedece aos próprios valoresque cria, mas o super-homem do passado, o bárbaro sem qualquernoção internalizada de limites em relação aos seus impulsos primários.

Se as condições socioeconômicas específicas ajudam a com preender o caráter despótico e segregador do patriaicalismo, o quedizer do elemento de “proximidade”? Em parte, o próprio conceitode sadomasoquismo implica “proximidade” e alguma forma de“intimidade”. Intimidade do corpo e distância do espírito, semdúvida, mas de qualquer modo “proximidade”. E efetivamentegrande parte da relação entre senhores brancos e escravos negros,como vimos anteriormente, se realizava sob essa forma de contato“íntimo”. No entanto, Freyre refere-se, simultaneamente, a uma

 proximidade “confraternizadora” entre portadores de culturas dominante e dominada.

A extensão da família poligâmica, de origem moura, entra noraciocínio do autor, creio eu, precisamente para explicar esse outrotipo de “comunicação social” entre desiguais. E aqui que se forja a“pré-história” do mestiço, especialmente do mulato brasileiro, temaque será um dos fios condutores da narrativa freyriana em SM. ParaFreyre, a ascensão social do mulato seria tema para ser guardado,

 para ser discutido mais tarde: em outro livro,4<; que tratasse de outro período histórico de nossa formação, que viria a ser precisamente SM.  Mas já em CGS   encontramos a menção às enormesfamílias polígamas formadas também por filhos naturais e ilegítimos, os quais, não sendo nem senhores nem escravos, seriam jáuma protoclasse média naquela sociedade tão radicalmente dividida em pólos antagônicos.

Como a participação no manto protetor paterno depende dadiscrição e arbítrio deste último, todas as modalidades de “proteto-rado pessoal” são possíveis. O leque de possibilidades vai desde oreconhecimento privilegiado de filhos ilegítimos ou naturais em

48 Freyre, op. cit.,  1990, p. 68, 71.4Q 

Freyre, op. cit.,  1957, p. 396.

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232 Jessé Souza

desfavor dos filhos legítimos, como nos exemplifica Freyre em

numerosos casos de divisão de herança, até a total negação da res ponsabilidade paterna nos casos dos pais que vendiam os filhosilegítimos. A proteção patriarcal é, portanto, pessoalíssima, sendouma extensão da vontade e das inclinações emocionais do patriarca.

Interessante é o passo logicamente imediatamente posterior,ou seja, a transformação da dependência pessoal em relação ao patriarca em “familismo” . Como sistema, o familismo tende a instaurar alguma forma de bilateralidade, ainda que incipiente e instável, entre favor e proteção, não só entre o pai e seus dependentes,mas também entre famílias diferentes entre si, criando um sistemacomplexo de alianças e rivalidades.50 No tipo de sociedade analisado em CGS,  o patriarcalismo familial se apresenta de forma praticamente pura, com o vértice da hierarquia social ocupado pelafigura do patriarca. A especificidade do caso brasileiro sendo re

 presentada pela possibilidade (influência maometana para Freyre)

sempre incerta, mas real, de identificação do patriarca com seusfilhos ilegítimos ou naturais com escravos ou nativos. A ênfasenorte-americana na pureza da origem, por exemplo, retirava de

 plano essa possibilidade. No entanto, o peso do elemento “tradicional”, ou seja, o con

 junto de regras e costumes que com o decorrer do tempo vão seconsolidando em uma espécie de direito consuetudinário regulando

as relações de dependência, como nos lembra Max Weber no seuestudo sobre o patriarcalismo, e que serve de limitação ao arbítriodo patriarca, parece ter sido, no caso 'brasileiro, reduzido ao mínimo. Daí a ênfase no elemento sadomasoquista em Gilberto Freyre.O maior isolamento e conseqüente aumento do componente autárquico de cada sistema “casa grande e senzala” pode aqui ter sido oelemento principal. A ausência de limitações externas de qualquertipo engendra relações sociais nas quais as inclinações emotivas da

 pessoa do patriarca jogam o papel principal.

50 Esse parece ser o tipo de relação característica do “coronelismo”, admiravelmente estudado por Maria Sylvia de Carvalho Franco, até mesmo nos seus as pectos psicoso ciais, no seu livro os homens livres na ordem escravocrata. VerMaria Sylvia Carvalho Franco, Os homens livres na ordem escravocrata.

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A m odernizaç ão seletiva

Este ponto não me parece um aspecto isolado ou pitoresco da

reflexão freyriana. Ao contrario, ele dá conta da dinâmica dos principios estruturantes que dão compreensibilidade ao seu conceito di patriarcalismo e, portanto, a toda a empresa freyriana.'‘Afinal e osadismo transformado em mandonismo, como Freyre irá analisarem SM,  que sai da esfera privada e invade a esfera pública inaugurando uma dialética profundamente brasileira de lidar com as noções de público e de privado.

A conseqüência política e social dessas tiranias privadas,quando se transmitem da esfera da família e da atividade sexual para a esfera pública das relações políticas e sociais, tornam-seevidente na dialética de mandonismo e autoritarismo de um lado,no lado das elites mais precisamente, e no populismo e messianismo das massas, por outro. Dialética essa que iria, mais tarde, as-sumir formas múltiplas e mais concretas nas oposições entre doutores e analfabetos, grupos e classes mais europeizados e as massas

ameríndia e africana e assim por diante.Do ponto de vista do patriarca existe, também, uma série de

motivos “racionais” para aumentar na maior medida possível seuraio de influência por meio da família poligâmica. Existe toda umagama de funções de “confiança” no controle do trabalho e caça deescravos fugidos, além de serviços “militares” em brigas por limites de terra, etc., que seriam melhor exercidas por membros da

“família ampliada” do patriarca. E aqui já temos uma primeiraversão da ambígua “confraternização” entre raças e culturas distintas, que a família ampliada patriarcal ensejava. Enquanto essetipo de serviço de controle e guarda era exercido nos EUA exclusivamente por brancos, no Brasil havia predomínio de mestiços.51 Nota-se, desde aí, a ambigüidade entre possibilidade de ascensãosocial para os mestiços no familismo patriarcal em troca de identi-ficação e os valores e interesses do opressor.

Além dos motivos econômicos e políticos que favoreciam ofamilismo patriarcal rural brasileiro, tínhamos também uma interessante forma religiosa também familial. O componente mágicoda proximidade entre o sagrado e o profano, constitutivo de toda

51 Carl Degler, Neither Black nor White: Slavery and Race Relations in Brazil and United States, p. 84.

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234- Jessé Souza

espécie de catolicismo, foi levado aqui a seu externo. Havia im

 pressionante familiaridade entre os santos e os homens, cumprindoàqueles, até mesmo, funções práticas dentro da ordem doméstica efamiliar. Nesse contexto, mais importante ainda é que o culto aossantos se confundia também com o culto aos antepassados, conferindo ao “familismo” como sistema uma base simbólica própria.

A família era o mundo e até, em grande medida, portanto,o além-mundo. Além da base econômica e política “material”, ocatolicismo “familial”52 lançava os fundamentos de uma base imaterial e simbólica referida às suas próprias necessidades de inter

 pretar o mundo a partir de seu ponto de vista tópico e local. Acredito que o patriarcalismo familial rural e escravocrata para Freyreenvolvia a definição de uma instituição total, no sentido de umconjunto articulado no qual as diversas necessidades ou dimensõesda vida social encontravam uma referência complementar e interdependente.

O componente sadomasoquista era constitutivo na medida emque inclinações pessoais do patriarca (ou de seus representantes),com um mínimo de limitações externas materiais ou simbólicas,decidiam em última instância sobre a amplitude do núcleo familiare como, a quem e em que proporção seriam distribuídos seu favor e

 proteção. O componente de “proximidade” social entre desiguaisque Freyre enfatiza, ao lado do componente violento e segregador,é, nesse sentido, instável, imprevisível e particularista. Qualquerefeito duradouro desse elemento integrativo exige a consideraçãode outras variáveis sociais inexistentes no sistema “casa grande esenzala”.

Sobrados e mocambos e a singularidade cultural brasileira

Esse tema nos leva à consideração do argumento freyriano emsua obra-prima sociológica: Sobrados e Mucambos. Toda a questãodo familismo se complexifica enormemente em SM,  ou seja, 1 1a

 passagem do patriarcalismo rural para o urbano. A decadência do patriarcado rural brasileiro está ligada diretamente à ascendência

52 Freyre, op. cit., 1957, p. 34,153, 222, 223.

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A m odern ização seletiva

da cultura citadina no Brasil. Esse processo, que a vinda da família

real portuguesa ao Brasil veio consolidar, ja eslava prenunciado nadescoberta das minas, na presença de algumas cidades coloniais deexpressão, na necessidade de maior vigilância sobre a riqueza r e-cém-descoberta e no maior controle, a partir de então, sobre o familismo e mandonismo privado. Exemplo típico e sintomático damudança do poder do campo para as cidades é o caso das dívidasdos patriarcas rurais, antes incobráveis, a partir de então sendo

 pagas sob força policial. Tão importante quanto a mudança docentro economicamente dinâmico foi a transformação social delargas proporções, implicando novos hábitos, novos papéis sociais,novas profissões, nova hierarquia social.

Fundamental para a constituição desse quadro de renovação éque as mudanças políticas, consubstanciadas na nova forma doEstado, e as mudanças econômicas, materializadas na introduçãoda máquina e na constituição de um incipiente mercado capitalista,

foram acompanhadas também de mudanças ideológicas e moraisimportantes. Com a maior urbanização, a hierarquia social passa aser marcada pela oposição entre valores europeus burgueses e osvalores antieuropeus do interior, marcando uma antinomia valorativa no país com repercussões que nos atingem ainda hoje.53

O familismo do patriarcalismo rural debate-se, pela primeiravez, com valores universalizantes. Esses valores universais e ideias

 burguesas entram no Brasil do século XIX do mesmo modo comohaviam se propagado na Europa do século anterior: na esteira datroca de mercadorias.54 Esse ponto é absolutamente fundamenlal

 para uma adequada compreensão de todas as conseqüências doargumento de Gilberto Freyre nesse livro original e importante.A crítica geralmente releva o aspecto da mudança comportamentalda influência europeizante (não ibérica e até antiibérica) no sentidode apontar para as novas modas de vestir, de falar, de comporta

mento público, etc. E como se os brasileiros tivessem passado a

53

A introdução a obra Ordem eprogresso, sob o nome de “Tentativa de síntese",traz uma interessante descrição do impacto vertiginoso desse processo ao finaldo século XIX. Gilberto Freyre. Ordem e progresso, 1990.

54

Esse processo, no caso europeu, é analisado admiravelmente por Jürgen Ha bermas, Strukturwandel der Öffen-tichkeit, 1975.

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236 Jessé Souza

consumir pão e cerveja como os ingleses, consumir a alta costura

de Paris e “civilizar-se” em termos de maneiras e comportamentoobservável.Esse novo comportamento é visto, quase sempre, como pos

suindo alguma dose de afetação e superficialidade, conferindosubstância à expressão, ainda hoje muito corrente no Brasil paradesignar comportamentos exteriores, superficiais, para “causarimpressão”, que é o dito popular “para inglês ver” Essa leitura do

 processo de modernização brasileiro como um processo inautêntico, tendo algo de epidérmico e pouco profundo, é precisamente ofundamento do que viemos chamando nesse livro de nossa sociologia da inautenticidade. Inautenticidade precisamente do processode modernização que não teria logrado institucionalizar os valoresindividualistas e burgueses da Europa moderna e não-ibérica.Existem incontáveis versões desse tipo de sociologia. Ela está na

 base da teorização de um Roberto Schwartz sobre a sociedade do

“favor” e na qual as “idéias estão fora de lugar”, argumento defendido no contexto da sua interpretação de Machado de Assis. Asidéias fora de lugar, no caso, são idéias liberais numa sociedadeainda escravocrata.55

Em SM, Gilberto Freyre percebe a “reeuropeização” do Brasildo século XIX como um processo que tinha certamente elementosmeramente imitativos do tipo para “inglês ver”, elementos essesaliás típicos em qualquer sociedade em processo de transição. Fun-damental, no entanto, é que existiam também elementos importantes de real assimilação e aprendizado cultural. Mais importanteainda é a construção, nesse período, de instituições fundamentais,como um Estado e mercado incipientes, base sobre a qual poderiamse desenvolver, em bases autônomas, os novos valores universalistas e individualistas.

O embate valorativo entre os dois sistemas é a marca do Brasil

moderno, cuja genealogia Freyre traça em SM   com uma maestriaexemplar. Nesse novo contexto urbano, o patriarca deixa de ser 

55 A teoria das “idéias fora do lugar” guarda sua plausibilidade, certamente,apenas num registro sincrónico. A partir de uma ótica diacrônica, percebemosque essas idéias seriam melhor designadas como “a procura de um lugar”, oqual, aliás, logo encontraram sendo o individualismo, e por conseqüência o li beralismo, um componente constitutivo da realidade brasileira desde então.

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A m odern ização seletiva

referência absoluta. Ele próprio tem de se curvar a um sistema de

valores com regras próprias e aplicável a todos, até mesmo a antigaelite social. O sistema social passa a ser regido por um código valorativo crescentemente impessoal e abstrato. A opressão tende aser exercida agora cada vez menos por senhores contra escravos ecada vez mais por portadores de valores europeus - sejam essesefetivamente assimilados ou simplesmente imitados - contra po bres, africanos e índios.

A época de transição do poder político, econômico e cultuialdo campo para a cidade foi também, em vários sentidos, a época docampo na  cidade. De início, 0   privatismo e o personalismo ruralforam transpostos tal qual eram exercidos no campo para a cidade.A metáfora da casa e da rua em Gilberto assim o atesta. O sobrado,a casa do senhor rural na cidade, é uma espécie de prolongamentomaterial da personalidade do senhor. Sua relação com a rua, essaespécie arquetípica e primitiva de espaço público, é de desprezo, a

rua é 0   lixo da casa, representa o perigo, o escuro, era simplesmente a não-casa, uma ausência. O sadomasoquismo social mudade “habitação”. Seu conteúdo, 1 1 0   entanto, aquilo que o determinacomo conceito para Gilberto Freyre, ou seja, o seu visceral não reconhecimento da alteridade, permanece.

A passagem do sistema casa grande e senzala para o sistemasobrado e mocambo fragmenta, estilhaça em mil pedaços uma uni

dade antes orgânica, antagonismos em equilíbrio, como prefereGilberto. Esses fragmentos espalham-se agora por toda a parte,completando-se mal e acentuando conflitos e oposições. D a casagrande e senzala, depois sobrados e mocambos, e, talvez, hoje emdia, bairros burgueses e favelas, as acomodações e complementari-dades ficam cada vez mais raras. De início, a cidade não represen-tou mais do que o prolongamento da desbragada incúria dos inte-resses públicos em favor dos particulares. O abastecimento de

víveres, por exemplo, foi um problema especialmente delicado,sendo permitido, até mesmo, 0   controle abusivo dos proprietáriossobre as praias e os viveiros de peixes que nelas se encontravam,estes vendidos depois a preços oligopolísticos.56

56 Freyre, 1990, p. 171-177.

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238 Jessé Souz a

Desse modo, a urbanização representou uma piora nas condi

ções de vida dos negros livres e de muitos mestiços pobres dascidades. O nível de vida baixou, a comida ficou pior e a casa tam bém. O abandono os fez então perigosos, criminosos, “capoeiras”,etc. Os sobrados senhoris, também nenhuma obra-prima em termosde condições de moradia, por serem escuros e anti-higiênicos, tornaram-se com o tempo prisões defensivas do perigo da rua, dosmoleques, dos capoeiras, etc.

 No entanto, a urbanização também represento” uma mudançalenta, mas fundamental, na forma do exercício do poder patriarcal:ele deixa de ser familiar e abstrai-se da figura do patriarca, passando a assumir formas impessoais. Uma dessas formas impessoais é aestatal, que passa, por meio da figura do imperador, a representaruma espécie de pai de todos, especialmente dos mais ricos e dosenriquecidos na cidade, como os comerciantes e financistas.O Estado, ao mesmo tempo, mina o poder pessoal pelo alto, pene

trando na própria casa do senhor, roubando-lhe os filhos e trans-formando-os em seus rivais. É que as novas necessidades estatais por burocratas, juizes, fiscais, juristas, etc., todos indispensáveis para as novas funções do Eslado, podem ser melhor atendidas peloconhecimento que os jovens adquirem na escola, especialmente seessa fosse européia, o que lhes conferia ainda mais prestígio.

Com isso, o velho conhecimento baseado na experiência, típico das gerações mais velhas, foi rapidamente desvalorizado, num

 processo que, pelo seu exagero, é típico de épocas de transiçãocomo aquela. D. Pedro II é uma figura emblemática nesse processo. Sendo ele próprio um imperador jovem, cercou-se de seusiguais, ajudando a criar o que Nabuco chamaria de “neocracia”.57

Também a relação entre os sexos mudou. A urbanização mitiga o excesso de arbítrio do patriarca ao retirar as precondições soba influência das quais ele exercia seu poder ilimitado. O médico de

família, por exemplo, insere no lar doméstico uma influência in-controlável pelo patriarca. É ele quem irá substituir o confessor.O teatro, o baile de máscaras, as novas modas de vestir e os romances se tornam mais importantes que a Igreja. Um novo mundo

57

 Idem , ibidem, p. 88.

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A m odernização seletiva

se abre para as mulheres, apesar do sexismo ter sido, para Freyre o

nosso preconceito mais persistente.De qualquer modo, as mudanças descritas, representam trans-formações importantes, porém limitadas, da autoridade patriarcal.Ele é obrigado a limit.ar-se à sua própria casa, mas a real mudançaestrutural e “democrática” ainda estava por vir. Em Sobrados e mocambos,  essa mudança recebe, como vimos, o nome de reeuro-

 peização, ou até, dado o caráter difusamente oriental da sociedadecolonial brasileira, de europeização do Brasil.

Impacto verdadeiramente democratizante parece ter sido o advento mais ou menos simultáneo do “mercado” e da constituiçãode um “aparelho estatal autónomo”, com todas as suas conseqüências sociais e culturais. A reeuropeização teve um caráter de reconquista, no sentido da revalorização de elementos ocidentais e individualistas em nossa cultura por meio da influência de umaEuropa, agora já francamente burguesa, nos exemplos da França,

Alemanha, Itália e, especialmente, da grande potência imperial eindustrial da época e terra natal do individualismo protestante, aInglaterra.

Tal processo realizou-se como uma grande revolução de cima para baixo, envolvendo todos os estratos sociais, mudando a posição e o prestígio relativo de cada um desses grupos e acrescentando novos elementos de diferenciação. São esses novos valores burgueses e individualistas que irão se tornar o núcleo da idéia de“modernidade” enquanto princípio ideologicamente hegemônicoda sociedade brasileira a partir de então. No estilo de vida, e aíFreyre chama atenção para a influência decisiva dos interessescomerciais e industriais do imperialismo inglês, mudaram-se hábitos, a arquitetura das casas, o jeito de vestir, as cores da moda,algumas vezes com o exagero do uso de tecidos grossos e impró

 prios ao clima tropical. Bebia-se agora cerveja e comia-se pão

como um inglês, e tudo que era português ou oriental transformouse em sinal de mau gosto .'1’O caráter absoluto dessas novas distinções tornou o brasileiro de então presa fácil da esperteza, especialmente francesa, no relato de Freyre, de vender gato por lebre.

58 Idem, ibidem ,  p.336

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2 40 Jessé Souza

Para além das mudanças econômicas, houve as culturais e po

líticas, com o advento das novas idéias liberais e individualistasque logo conquistaram setores da imprensa e as tribunas parlamentares. No entanto, nenhuma dessas mudanças importantes teveo impacto da entrada em cena no nosso país do elemento burguêsdemocratizante por excelência: o conhecimento e, com ele, a valorização do talento individual,  que tanto o novo mercado por artífices especializados, como as novas funções estatais exigiam.

 No âmbito do mercado, fundamental foi a introdução da máquina, a qual, como de resto sabia Karl Marx, não é mais do queconhecimento materializado. Freyre está perfeitamente conscienteda enorme repercussão social dessa inovação técnica.59 É que a máquina veio desvalorizar a base mesma da sociedade patriarcal, diminuindo tanto a importância relativa do senhor quanto a do escravo e agindo como principal elemento dissolvente da sociedade ecultura patriarcais. A máquina não foi, nesse sentido, uma merca

doria como as outras. Ela foi a precursora de um novo tipo de relação social,  a relação social baseada no mercado, com todos os seus

 pressupostos e gigantescas conseqüências sociais. O Brasil que sereeuropeizava estava em vias de trocar a força humana pela maqui-nofatura sem ter sequer passado pela transição da força animal.

Ao desvalorizar as duas posições sociais polares que marcam asociedade escravocrata, a máquina vinha valorizar, por conta disso,

 precisamente aquele elemento médio que sempre havia compostouma espécie de estrato intermediário na antiga sociedade, na qual,não sendo nem senhor nem exatamente um escravo, era um “deslocado”, um sem-lugar, portanto.

Apesar de o elemento de “proximidade” ter sitio “atualizado” e possibilitado pelos novos valores advindos do processo de reeuro- peização, ou seja, de “fora para dentro”, sua assimilação só é possível de forma rápida e eficaz porque o próprio sistema já havia

gestado, desde sempre, um espaço para essa dimensão ao lado docomponente despótico e segregador. Suas origens estão tambémnas formas de convivência do patriarcalismo, baseado na escravidão de tipo árabe ou mouro, que é precisamente aquilo que Gil

59  Idem , ib idem , p. 489-508.

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A m odernização seletiva

 berto Freyre chamará, muito impropriamente, de seu elemento

“democrático”.A gênese social desse elemento remonta, portanto, àquela “intimidade sexual e cultural” entre as diversas raças e culturas, especialmente a portuguesa e a africana, que predominava no sistemacasa grande e senzala. E aqui encontramos uma primeira forma delugar social para aquele elemento gestado na família patriarcalampliada e poligâmica. Será, precisamente, a partir dessas modificações sociais estruturais que teremos a construção da categoriasocial do “mulato”, ou da “válvula de escape do mulato”, como

 prefere Carl Degler.60O enorme número de mestiços e filhos ilegítimos de senhores

e padres, indivíduos de status intermediários, quase sempre assumindo as funções de escravo doméstico ou agregado da família, dequalquer modo quase sempre mais ou menos deslocados no mundode posições polares como são as de senhor e escravo, encontra,

agora, uma possibilidade nova de ascensão e mobilidade social.A enorme transformação social implicada pela mudança do campo

 para a cidade abre, portanto, oportunidades antes imprevistas paraesse estrato.

 Na nova sociedade nascente são as antigas posições polaresque perdem peso relativo e esses indivíduos, quase sempre mestiços, sem outra fonte de riqueza que não sua habilidade e disposiçãode aprender os novos ofícios mecânicos, quase sempre comoaprendizes de mestres e artesãos europeus, passaram a formar oelemento mais tipicamente burguês daquela sociedade em mudança: o elemento médio, sob a forma de uma meia-raça.

Em vez apenas dos apanágios exteriores de raça, dentro dacomplexa ritualística que, como conseqüência da maior proximidade social entre os diversos estratos sociais que a urbanização ense

 ja, instaura-se no país nessa época, como a forma da vestimenta, a

comida, o modo de transporte, o jeito de andar, o tipo de sapato,etc., temos, a partir de então, um elemento diferenciador novo.Esse elemento é revolucionário no melhor sentido burguês do termo, posto que “interno” e não externo, sendo antes uma substância

60 Degler, op. cit., 1971, p. 205-265.

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2 4 2 Jessé Souza

e um conteúdo do que uma aparência, mais ligados portanto a qua

lidades e talentos pessoais que a privilégios herdados.O conhecimento, a perícia, torna-se o novo elemento, que passa a contar de forma crescente na definição da nova hierarquia social.  Nesse sentido, servindo de base para a introdução de umelemento efetivamente democratizante, pondo de ponta-cabeça eredefinido revolucionariamente a questão do status inicial para asoportunidades de mobilidade social na nova sociedade. Uma “democratização” que tinha como suporte o mulato habilidoso. Do

lado do mercado, essas transformações se operam segundo umalógica de “baixo para cima”, ou seja, pela ascensão social de elementos novos em funções manuais as quais, sendo o interdito social absoluto em todas as sociedades escravocratas, não eram percebidas pelos brancos como dignificantes. Com o enriquecimento

 paulatino, no entanto, de mulatos aprendizes e artífices e de imigrantes, nessa época especialmente portugueses, como caixeiros e

comerciantes as rivalidades e preconceitos tenderam a aumentar proporcionalmente.O outro caminho de ascensão social do mulato, do mulato ba

charel para Freyre, de cultura superior e portanto mais aristocráticodo que o mulato artesão, é o símbolo de uma modernização que seoperou não apenas de “fora para dentro” e de “baixo para cima”,mas também de “cima para baixo”. O mestiço bacharel constituiuma nobreza associada às funções do Estado e de um tipo de cultura mais retórico e humanista do que a cultura mais técnica e pragmática do mestiço artesão. O Estado, portanto, e não apenas o mercado como semente de uma incipiente sociedade civil, foi tambémum “locus” importante dessa nova modernidade híbrida, já burguesa, mas ainda patriarcal, se bem que de um patriarcalismo já sublimado e mais abstrato e impessoal na figura do imperador pai detodos, e agora mais afastado portanto do patriarcalismo familístico

todo dominante na colônia.O processo de incorporação do mestiço à nova sociedade foi

 paralelo ao processo de proletarização e demonização do negro.Tanto o escravo como o pária dos mocambos nas cidades eram oelemento em relação ao qual todos queriam se distinguir. A enormeimportância da vestimenta nessa época servia agora para fins dediferenciação social que antes sequer necessitavam de externaliza-

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A modernização seletiva

ção. O elemento capaz de ascensão, portanto, era o mulato ou o

mestiço em geral, o semi-integrado, o agregado e todas as figurasintermediárias da sociedade. A própria ênfase na distinção do traje ou a violência das humilhações públicas contra os mestiços queusavam casaca ou luva já demonstram, como uma conseqüênciamesma do acirramento das contradições a partir da competiçãocom indivíduos brancos antes seguros de sua posição,61 a possibilidade real de ascensão e a contradição entre elementos constitutivos

do sistema: um segregador e outro de “assimilação”.As chances de ascensão social do mestiço já estavam assim prefiguradas pelo costume de dividir as heranças entre filhos ilegítimos, ou seja, mestiços de alguns senhores, problema que deve teratingido proporções razoáveis para estimular escritos e reclamações contrárias à prática por ser supostamente fragmentadora dariqueza acumulada, como nos conta Freyre em CGS. Também pela

 proximidade e intimidade afetiva entre o senhor e suas concubinas,

assim como pelos sentimentos filiais entre filhos de senhores eamas negras, em resumo, por todas as formas de extensão em linhavertical de vínculos afetivos e privilégios familiares e de classe aagregados, no sentido amplo do termo, da família patriarcal.

É portanto apenas com a consideração dos efeitos da “escravidão moura” expostos em CGS   no contexto de modernização e europeização do século XIX que podemos compreender o significado

social do elemento de “proximidade” da sociedade escravocrata brasileira. Freyre percebia que os lugares sociais do patriarcalismosempre foram  funcionais  e não-essencialistas. Isso permitia que afigura masculina do patriarca pudesse ser exercida por uma mulher,a qual obviamente continua biologicamente mulher,  mas era sociologicamente ou funcionalmente homem/patriarca. Assim, do mesmo modo, os afilhados ou sobrinhos, como eram chamados os filhos ilegítimos de senhores de terra e padres, os quais poderiamtornar-se sociologicamente filhos, herdando a riqueza paterna, oumesmo substituindo o pai na atividade produtiva. O mesmo traçosistêmico fazia o biologicamente mulato transforr^ar-se em socio

61 Freyre, 1990, p. 399.

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244 Jessé Souza

logicamente branco, ou seja, ocupar posições sociais que, num

sistema escravocrata, são privilégio de brancos.62Esse traço sistêmico permitiu efetivamente considerável mestiçagem e ascensão social do mestiço no contexto da sociedade“reeuropeizada” do século XIX. A partir disso é que Freyre constrói sua oposição entre “democracia racial” brasileira e democracia“meramente política” americana. Essa contraposição,63 nem sem

 pre explícita mas sempre presente, é pensada em termos exclusivos, como se cada tradição cultural predispusesse a cada um dessesrespectivos caminhos alternativos.

Se a maior parte da historiografia moderna, especialmente deorigem americana, logrou pôr em cheque convincentemente a noção freyriana, também defendida no clássico de Frank Tannem-

 baum “Slave and Citizen”,64 sobre uma maior “benignidade” daescravidão do Brasil colônia comparativamente à norte-americana,o próprio fato social da mestiçagem e da real ascensão social de

mestiços no Brasil do século XIX mostra uma diferença insofismável entre as duas sociedades. No Brasil havia a possibilidade de“negociação” individual da superação da condição de negro oumestiço, havia a possibilidade, inexistente nos EUA da época, de onegro e especialmente do mestiço “embranquecer”

Esse fato se explica talvez, não como imaginava Freyre, a partir de uma histórica maior “benignidade” comparativa da escravidão brasileira. Existe uma possibilidade muito maior de a possibilidade do “embranquecimento” ter a ver com a configuraçãovalorativa específica do país que estava sendo “europeizado”. Podemos perceber a importância desse aspecto considerando a relação diversa dos Estados Unidos e do Brasil com a questão da modernidade.

Ao contrário do Brasil, os Estados Unidos são um dos paísesque nasceram e retiraram sua razão de ser a partir de idéias que

vieram a ser conhecidas mais tarde como constitutivas para o ideário ocidental. No caso americano, especialmente as noções de li

62  Idem , ibidem , p. 366.

Antônio Sérgio Guimarães chamou-me atenção para esse aspecto fundamentaldo raciocínio freyriano.

Frank Tannembaum, Slave an d Citizen.64

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A m odern ização seletiva

 berdade religiosa, depois expandidas para as esferas da política e

da economia, e a noção, de fundo sectário protestante, da responsabilidade individual.

O caso brasileiro apresenta um desvio importante dessa lógica.A “modernidade” chega ao país de navio, como vimos, e põe de

 ponta-cabeça seja no seu aspecto material, seja no seu aspecto sim bólico, toda a sociedade vigente. Com relação a esses novos valores que chegam, não havia diferença de fundo entre brancos, mestiços ou negros. Esses valores são estranhos a todos igualmente e

 põem, portanto, a questão do status relativo sob novos padrões,como havia percebido Freyre. A própria “elite” do patriarcalismorural teve de se curvar a mudanças que afetavam sua própria vidacotidiana e doméstica.

Uma real compreensão da dimensão desse processo exige acrítica do “naturalismo”65 da vida cotidiana e de certa ciência social.Valores não são “instrumentos” nas mãos da “elite” ou dos indiví

duos que estão “à disposição” dos seus fins instrumentais. Valoressão construções sociais que possibilitam o “pano de fundo” a partirdo qual os indivíduos se compreendem e podem agir em conjuntosegundo um quadro de referências comum.

Quando a modernidade européia chega ao Brasil de “navio”,na esteira da troca de mercadorias, seus valores não são uma meramercadoria de consumo. Afinal, seriam esses valores que iriam

 presidir a institucionalização incipiente de formas extremamenteeficazes de condução da vida cotidiana: o Estado e o mercado ca pitalistas.66 Estado e mercado pressupõem uma revolução social,econômica, valorativa e moral de grandes proporções. Os papéissociais se modificam radicalmente. O que antes era aceito comodefinindo os papéis sociais de mulher, homem, filho e pai se trans

65 Charles Taylor, op. cit.,  1998, especialmente a parte I.66 “Todos” os grandes clássicos das ciências sociais souberam com preen der a

tremenda revolução, em todos os aspectos da existência humana, que a influência dessas instituições acarretou. Desde a abstração real do trabalho emMarx à entronização da razão instrumental em Max Weber, ou a redefinição dasubjetividade em todas as suas dimensões a partir do impacto da econ om ia 

monetária em Georg Simmel, ou ainda a mudança estrutural nas formas dedominação, especialmente a constituição do Estado moderno com seu mono pólio da violência física e sua influência na “psique” moderna cm Norbert Elias.

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246 Jessé Souza

forma, como Freyre mostra com maestriai. A noção de tempo, a

condução da vida cotidiana, a economia afetiva necessária para oaprendizado dos novos ofícios e profissões são completamentediferentes do que imperava anteriormente. O que é tido como bonito, como bom, como legítimo de ser perseguido na vida, a noçãode sucesso e de “boa vida” muda radicalmente. Mudam, enfim, a configuração valorativa da sociedade como um todo.

É esse contexto revolucionário, no sentido mais profundo dotermo por se referir a mudanças dos “corações e da mentes” das

 pessoas, mudanças essas amparadas por transformações institucionais que garantiam, por meio do mecanismo peculiar de prêmios e

 punições típicos da eficácia institucional, a reprodução e permanência desses mesmos valores novos, que Freyre nos expõe comtalento singular em SM.

E é também esse novo contexto valorativo que pode nos explicar a nova posição do mestiço nele. Foi pelas necessidades abertas

 por um mercado incipiente em funções manuais e mecânicas rejeitadas pelos brancos, assim como pelas necessidades de um aparelho estatal em desenvolvimento, que mestiços puderam afirmar seulugar social. Neste último caso, por se tratar de colocações de altacompetitividade, disputando posições com os brancos, é que Gil

 berto fala da “cordialidade” e do sorriso fácil, típico do mulato emascensão, como a “compensar” o dado negativo da cor. Essa “com

 pensação”, ao mesmo tempo que reafirma o racismo, mostra que oempecilho não era absoluto e sim relativo, superável pelo talentoindividual, ou seja, mostra que havia espaço para formas de reconhecimento social baseadas no desempenho diferencial e não apenas em categorias adscritivas de cor.

Afinal, fazia parte mesmo da flexibilidade do sistema o abandono de características segregadoras a partir da dimensão biológica, tão determinante em outros sistemas com características seme

lhantes, em favor de uma sobredeterminação sociológica oufuncional. De certo modo, o que era construtivo e funcional para areprodução do sistema como um todo, governado já agora pela

 palavra mágica da modernização, era passível de valorização. As-sim a realização diferencial de certos fins e valores considerados deutilidade social inquestionável era mais importante, por exemplo,do que a cor da pele do indivíduo em questão.

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A m odern ização seletiva

O esforço de assimilação de valores e da tecnologia ocidental

 por brasileiros é precisamente o ponto em que diferenças do raça ede classe sempre foram e são até hoje relativizadas.67 É o aspectono qual o ideário de ordem e progresso encontra seu alfa e ômega.Quem quer que contribua para esse desiderato maior de modernização é premiado pelo sistema. Em nenhum estrato tradicional dasociedade patriarcal brasileira havia relação privilegiada com amodernidade. Eram valores estranhos a todos. Valores estes queforam assimilados ou imitados avidamente por um país que antesda europeização mais lembrava um país asiático que americanoocidental.

Precisamente 0   contrário ocorreu nos EUA. Como AnthonyMarx escreve a propósito da rápida conciliação entre brancos apósa “guerra civil americana” que não selou a retirada dos negros sequer da possibilidade de competição com os brancos na dinâmicaeconomia americana:

Já em Get tysburg , Edward Evere t t havia se re fer ido á necess i

dade de “reconcil iação” entre nort is tas e sul is tas “os quais div  

Op.c it ., uma com unidad e subs tanc ia l de or igem ".   Os negros

eram c laramente concebidos como não fazendo par te dessa uni

dade ancestral.68

Essa “comunidade ancestral de origem” tem uma história rica

e peculiar nos EUA. Ao contrário de outras matrizes do ideárioocidental, como a Inglaterra, a França e a Alemanha, nos EstadosUnidos a consciência de que se estava realizando uma experiênciasocietária original e única foi absolutamente singular. Já o discursode John Winthrop, o seu  A Model o f Christian Charity, que reproduzimos anteriormente, tendo como público os primeiros pioneiros, já aponta para um grau de internalização reflexiva do projeto

de sociedade que ali nascia0

 qual não deve ter tido comparação nahistória. É essa tradição que, como vimos anteriormente, Robert

67 Sérgio Costa, “Complexity, Racism and the Democratization of Social Relations in Brazil”, em Democracy and Multiculturalism: Brazilian VariationsndDallmayr e Jessé Souza (orgs.) (no prelo).

68 Anthony Marx, Making Race and Nation: A Comparison of the United   StatesSouth Africa, and Brazil, p. 134.

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2 4 8 Jessé Souza

Bellah chamou de “religião cívica” americana para referir-se àconstante reinterpretação do ato fundador da comunidade políticacomo uma missão a ser cumprida coletivamente.69

Para um sociólogo consciente do papel dos valores na definição da especificidade de uma sociedade como Bellah, a ambigüidade que se instaura com o mito americano de “povo escolhido”ajuda tanto a compreender a notável força da idéia associativistaamericana, no sentido intracomunitário, como o exclusivismo,especialmente cultural e étnico, para os “réprobos” extracomunitá-

rios, dos que eram percebidos como não-participantes desse projetosocial.70

 No Brasil do começo ao fim do século XIX, a proporção demulatos cresceu de 10% para 41% da população total. Isso implicarápida miscigenação e casamentos interraciais e indica que a mo

 bilidade social desse estrato era mais do que mera fantasia. A partirda segunda metade do século XIX, a ascensão social de mestiços

no Brasil fez, efetivamente, com que tivéssemos mulatos comofiguras de proa na literatura, na política, no exército e atuantescomo ministros, embaixadores, e até presidentes da República.Seria certamente uma hipótese interessante estudar que tipo demodificações nesse processo foi causado pela entrada em númerosignificativo, estima-se entre três a cinco milhões de pessoas, deeuropeus a partir do final do século X IX .^ chegada dos portadoresmesmos - reais ou fictícios - dos valores da modernidade deve ter

certamente contribuído para uma modificação decisiva nesse padrão.71

Para uma sociologia que não se deixe cegar por uma concepção instrumentalista dos valores esse tema é fundamental. Ele permite ver que “branco” ou “negro” não é uma categoria biológica,mas cultural. Essa afirmação parece trivial, mas não é. Segui-la àsúltimas conseqüências significa perceber a temática racial desse

 período por referência ao processo de “europeização” que tomava

69Robert Bellah, “Civil Religion in America”,  Beyond Belief: Essays on Religion in a Post-traditionalist World, 1991.

70  Idem,  1992, p. 36-61.71

Esse tema e um dos fios condutores do livro de George Reid Andrews,  Blacks and Whites in São Paulo 1888-1988, especialmente p. 54-90.

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A m odernização seletiva

o país. Assim, ser considerado “branco” era ser considerado útil ao

esforço de modernização do país, daí a possibilidade mesma de se“embranquecer”, fechada em outros sistemas corn outras características.

“Branco” era (e continua sendo) antes um indicador da existência de uma série de atributos morais e culturais do que a cor de ,uma pele. “Embranquecer” significa, numa sociedade que se “europeizava”, compartilhar os valores dominantes dessa cultura, ser

um “suporte” dela. Preconceito, nesse sentido, é a “presunção” daque alguém de origem africana é “primitivo”, “incivilizado”, inca paz de exercer as atividades que se esperava de um membro deuma sociedade que se “civilizava” segundo o padrão europeu eocidental.

Antônio Sérgio Guimarães percebe bem a relevância desse as pecto para a questão racial quando afirma:

 N o B rasil, o “b ran c o ” não se fo rm ou p e la ex c lu siv a m istu raé tn ica de povos eu ropeus , como ocor reu nos Es tados Unidos

com o “ca lde i rão é tn ico” ; ao contrár io , como “branco” conta

mos aqueles mes t iços e mula tos c la ros que podem exib i r os

s ímbolos dominan te s da eu rope idade : fo rmação c r i s t ã e domí

nio das letras.72

Freyre tem, portanto, razão em apontar uma especificidade

 brasileira na questão racial pelo menos nesse período. Menos pelosefeitos de uma maior “benignidade” da escravidão brasileira,, concepção que ele compartilhava com Tannembaum, do que pelocontexto peculiar do processo de modernização brasileiro. É precisamente essa certeza que vai fazê-lo pleitear uma opção peculiar nacomparação entre os desenvolvimentos brasileiro e americano.O Brasil teria uma “democracia racial”, enquanto os EUA seriam

os campeões da “democracia política”, como duas faces de desenvolvimento possível de sociedades escravocratas.Escapava a Gilberto Freyre, no entanto, a íntima vinculaçao

entre “questão racial” e “questão democrática” num país como oBrasil do século XIX (e ainda hoje) em que os pobres e excluídos

Antonio Sérgio Alfredo Guimarães,  Racismo e anti-racismo no Brasil, 1999,  p. 47.

72

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250 Jessé Souza

eram negros ou mestiços (livres ou não). Para o “holista” Freyre,

 para quem a questão principal é o “acolhimento” do diferente,dentro de uma hierarquia que provê a todos com um lugar, a possi bilidade de ascenção individual de pessoas de cor terminaria por“resolver”, no Brasil, a questão racial como um “caminho alternativo” de resolução da questão democrática.

Escapava também a Freyre que o princípio da igualdade política e jurídica não é meramente adscrito a uma esfera específica dasociedade e que, em certo sentido, qualquer caminho alternativoque o “contorne” está viciado de nascença. Igualdade não é ummero “direito” que pode ser compensado por valores e práticas“benignas” de assimilação e integração. Igualdade é o valor básicoda modernidade ocidental, sendo a fonte de dignidade e reconhecimento individual em primeira instância. A possibilidade de premiar o desempenho diferencial e traçar hierarquias alternativas eindependentes da igualdade politico-jurídica, existe, e é um ponto

importante do debate político contemporâneo.73 Mas este não é umcaminho “alternativo” à igualdade política, mas, ao contrário, a pressupõe. O caminho do “embranquecimento” é um caminhoviciado porque o branco já é, desde o começo, “superior”, ou “maisigual” que o não-branco. Nenhuma possibilidade real de “embranquecimento” elimina essa realidade prévia e fundamental.

Mas a questão racial é ela própria sobredeterminada pela revolução valorativa causada pela institucionalização incipiente demercado e Estado. “Europeizado” vai ser o indivíduo, de qualquercor, que responda adequadamente aos novos estímulos da novasociedade que se criava. A partir desse ponto se rompe as bases dasociedade patriarcal baseada no personalismo e na “proximidade”de relações pessoais. A europeização que Freyre descreve, a partirda data-chave de 1808, é a real revolução modernizadora e burguesa brasileira. Ela é o início ao mesmo tempo do Brasil moderno e 

da miséria brasileira.  Ela permite a ascenção de amplas camadassociais segundo critérios impessoais, por um lado, e condena toda

73 Esse é um pon to conspícuo de certa tendência teórica da sociologia e da filosofia contemporânea, que denominamos, acima, de “teoria do reconhecimentosocial”. Axel Honneth procurou, como vimos, estabelecer formas distintas em bora complementare s de reconhecimento social no seu K am pf um Annerke- mmg,  Axel Honneth, 1992.

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A m odernização seletiva

uma classe, pelo abandono, à condição secular de párias rurais e

urbanos, por outro.Gilberto Freyre “descreve” claramente, ainda que todas a s

conseqüências sociológicas desse processo não lhe pareçam sercompletamente conscientes, como a entrada das novas idéias burguesas e individualistas européias se faz acompanhar das condiçõesque permitem sua institucionalização no cotidiano e, portanto, nareprodução de toda uma economia emocional antes estranha aos

 brasileiros. Para o argumento de Freyre é fundamental precisamente àquelas questões que são secundarizadas pela nossa sociologia da inautenticidade: a) a questão da institucionalização de valores, especialmente a constituição de um incipiente Estado racionale mercado capitalista, a única dimensão que pode explicar a influência dos novos valores na condução da vida prática dos indivíduosagentes; e, b) a questão da estratificação social, a dimensão que

 pode dar conta da seletividade do processo de transformação valo-

rativa. E esta última dimensão que pode esclarecer em benefício dequais estratos sociais se efetivou a mudança de valores.

 No Brasil em vias de se tornar europeizado do século XIX, a“posse” real ou fictícia desses novos valores que tomam a nação deassalto vai ser o fundamento da identidade de grupos e classessociais e a base do processo de separação e de estigmatização dosgrupos percebidos como não-participantes dessa herança. A “ânsia

de modernização”, de resto estampada na bandeira da nação nas palavras “ordem e progresso”, passa, a partir dessa época, a dominar a sociedade brasileira como o princípio unificador das diferenças sociais, o princípio em relação ao qual todas as outras divisõesdevem ser secundarizadas.

É em nome dela também que passa a operar a distinção entreos estratos europeizados dos africanos e ameríndios, com toda asua lista de distinções derivadas tipo doutores/analfabetos, homens

de boas maneiras/joões-ninguéns, competentes/incompetentes, etc.A “posse” de valores europeus individualistas vai, dessa forma,legitimar a dominação social de um estrato sobre o outro, vai justificar os privilégios de um sobre o outro, vai calar a consciência dainjustiça ao racionalizá-la e vai permitir a “naturalização" da desigualdade como a percebemos e vivenciamos hoje.

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252 Jessé Souza

A modernização seletiva

A proposição freyriana da idéia de uma sociedade intrinsecamente sadomasoquista, nos seus modos de sociabilidade, para oBrasil escravocrata dos tempos coloniais, parece-me interessantesob vários aspectos. Primeiro, ela rompe com a noção de continuidade ibérica desde o começo. O fato de existirem escravos no Portugal da época do descobrimento não tem, comparativamente, sequer semelhança com uma sociedade estruturada, na sua quase totalidade, sobre o trabalho escravo.  Valores não se transportamcomo a roupa do corpo. Eles dependem, em primeira instância, daforma como relações sociais específicas se institucionalizam eadquirem permanência. Nesse sentido, o fato de os senhores dosengenhos que aqui se formaram serem portugueses possui importância secundária em relação ao dado fundamental que é a forma

 peculiar da relação desses com os povos nativos e adventícios que

aqui chegaram sob a forma de escravos. Em segundo lugar, tal proposição também prenuncia uma forma de relação entre privilegiados e oprimidos que se manterá, sob formas modificadas, até osdias de hoje.

Vimos também que o momento histórico de mudanças fundamentais do país se dá a partir da data simbólica de 1808, data tantoda abertura dos portos, primeiro passo para o processo de troca demercadorias e do incipiente mercado capitalista qae se instaura no país, como da vinda da família real, primeiro passo para a constituição de um aparelho de Estado tendencialmente racional e interessado, pela primeira vez, em atender preferencialmente, as necessidades da população nativa. Vincular a revolução valorativa àconstituição das duas instituições mais importantes do mundo moderno, parece-me mais razoável do que atribuir a entrada dos valores modernos no nosso país à imigração de camponeses italianos

ou alemães, como faz Sérgio Buarque e nossa tradição da sociologia do patrimonialismo. Que esses fenômenos tenham sido concomitantes na segunda metade do século XIX, não nos deve conduzirao engano de confundir as causalidades adequadas para a explicação do fenômeno.

 Na segunda metade do século XIX, o processo descrito porElias, de construção de um padrão emocional e reflexivo comum às

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A m odern ização seletiva

distintas classes sociais dos países europeus centrais, possibilidade

esta aberta pela dominância social da primeira classe dirigente dahistória que trabalha, a burguesia, ainda estava longe do seu término.74 Especialmente na Itália e na Alemanha, países de onde vieram os maiores contingentes de imigrantes para o nosso país, esse

 processo, condicionado pelo atraso relativo desses países em relação ao processo de industrialização, foi tardio. Como imaginar queesses despossuídos do campo e da cidade tenham sido os portadores da modernização entre nós?

Creio que Gilberto Freyre acerta o alvo quando localiza nossarevolução modemizadora na influência da Europa já individualistae burguesa, nos exemplos dos mercadores e industriais, especialmente ingleses, e, em menor número, franceses e alemães, quetomam de assalto o país a partir da abertura dos portos em 1808.Esse fato foi não apenas historicamente anterior  à imigração maciça de trabalhadores livres entre nós, mas ele aponta para a consoli

dação incipiente de uma instituição, o mercado, com sua gigantesca capacidade de, por meio de estímulos empíricos que têm a vercom a própria manutenção de precondições da vida material e sim

 bólica, transformar a condução da vida prática de cada um dosindivíduos afetados por ele. Novamente, valores não se transplantam como a roupa do corpo.  Isso equivaleria a um idealismo cultu-ralista no mau sentido desse termo. Valores dependem de condi

ções propícias de institucionalização para adquirirem eficáciasocial.Que a revolução modemizadora tenha ocorrido inicialmente

no Rio de Janeiro tem conseqüências importantes para nosso argumento. O Rio de janeiro é, para os teóricos da nossa sociologiado patrimonialismo, uma espécie de capital do Brasil tradicional,

 por oposição a São Paulo, que seria a capital do Brasil moderno, oBrasil do imigrante. O fato de, durante todo o século XIX, o Rio de

Janeiro ter concentrado a influência modemizadora, mostra-nos oquanto é irrazoável o hipostaseamento geográfico que a nossa sociologia do patrimonialismo pleiteia em relação a uma excepciona-

74 Norb ert Elias , Uber den Pro zess der Zivilization,  v. II, p. 409-434.

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254 Jessé Sou za

lidade paulista75 nesse particular. O fato inegável do extraordinário

desenvolvimento industrial paulista no século XX não nos deveconduzir ao engano de pleitear um dualismo geográfico como equivalendo a um dualismo valorativo  de fundo. Desníveis regionais são uma constante do desenvolvimento capitalista. Todos os

 países capitalistas de alguma dimensão territorial apresentam significativos desníveis regionais.

Que o processo de modernização no século XIX tenha se concentrado no Rio de Janeiro demonstra que os desníveis regionais

mudam no tempo. Também problemático me parece, por outrolado, a proposição de um dualismo valorativo fundamental comouma característica singular do nosso país. Como se depreende daanálise do dualismo damattiano, esse dualismo é aparente, de fachada, não conseguindo dar conta de suas determinações estruturais.

Ao contrário do que pensa DaMatta, desde a revolução mo-dernizadora da primeira metade do século XIX, o Brasil tem ape

nas um código valorativo dominante: o código do individualismo moral ocidental. O individualismo como valor moral, o qual não seconfunde com o indivíduo empírico, comum a todas as sociedadesem todas as épocas, é o alfa e ômega de todas as realizações culturais da modernidade ocidental, desde o mercado competitivo capitalista até o Estado liberal democrático, passando pela imprensalivre, pela discussão racional científica, pela doutrina dos direitossubjetivos e qualquer dos outros ganhos ou aspectos positivos que possamos imaginar a partir da passagem da sociedade tradicional àmoderna.

Dizer que o nosso código valorativo dominante é o do individualismo moral desde então, não significa dizer, obviamente, que oBrasil seja um país moderno, rico e democrático como os paísescentrais do Ocidente. Significa afirmar o fato, de todo modo prenhede conseqüências, de desde sua institucionalização, a partir da pri

meira metade do século XIX, tender a ser considerado justo, legítimo ou valorável, no nosso país, apenas as premissas, comportamentos, atitudes, leis, enfim, projetos coletivos de toda sorte, que

Essa excepcionalidade paulista seria correspondente à excepcionalidade americana examinada no capítulo v desse livro.

75

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A m odern ização seletiva

sejam justificáveis segundo as normas que regem o código valora

tivo do individualismo moral ocidental.A importância da contribuição de Gilberto Freyre para o esclarecimento da singularidade cultural brasileira explica-se, a meuver, precisamente por esse seu mérito principal: o de ter percebidoque a revolução modernizadora da primeira metade do século XIXtinha vindo para ficar e para pôr de ponta cabeça os valores do

 personalismo então dominante no nosso país. O personalismo evencido tanto na esfera privada, da própria casa do senhor de terrase de gente, como no espaço público. A partir daí a palavra mágicada modernização vai ser o elemento galvanizador da sociedadecomo um todo em todas as suas esferas. Novamente, para deixarum ponto fundamental claro e evitar mal-entendidos: isso não significa que a sociedade em questão se moderniza efetivamente emtodas as esferas. Significa, sim, afirmar que o único discurso legítimo capaz de unir as vontades é 0  discurso modernizador. Moder

no são, por sua vez, os princípios do individualismo moral queexaminamos exaustivamente na primeira parte desse livro.

Afirmar, no entanto, que 0   discurso modernizador do individualismo moral é 0   código valorativo dominante, não significadizer que não existam outros códigos concorrentes, ou, fato paranós ainda mais relevante, que 0   acesso a esses bens culturais seja igual para todas as classes ou indivíduos.  A meu ver, a questãodesafiadora nesse terreno é mapear a institucionalização do acesso diferencial a bens culturais  que são aceitos ou que passam a sertendencialmente aceitos pela enorme maioria da população comoos valores dominantes da sociedade como um todo. Um aspectoimportante nessa questão é, sem dúvida, o fato de a modernizaçãoter ocorrido primeiro nas cidades. Primeiro 0   Rio de Janeiro, logodepois Recife e São Paulo passam a ser os centros irradiadores dcuma concepção de mundo crescentemente prestigiosa, a qual, de

início, opõe-se ao conjunto de valores personalistas, rurais e tradicionais.

É interessante, ainda que esquematicamente, acompanhar essagênese. O próprio fundamento da relação sadomasoquista, como  

vista por Freyre, baseava-se num misto de proximidade e distância.Proxim idade física e sexua l dos escravos, especialmen te dos dom ésticos , e dos agregados subord inados e dependentes dos favores

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256 Jessé Souza

do senhor e de sua família, e distância psíquica e emocional, namedida em que o não-reconhecimento da humanidade dos subordi

nados era uma contrapartida necessária para a própria manutençãoda relação de dominação do escravismo.

A forma muçulmana da escravidão no Brasil,76 como vimos,envolve a possibilidade, sempre presente, de que o escravo possa

 participar da família   do senhor, em certo sentido, ser seu filho, oque deve ser considerado muitas vezes no sentido literal, posto quea prática do concubinato com escravas era, em se acreditando na

imensa maioria dos comentadores do período, amplamente aceita e praticada.Em termos morais e psíquicos essa forma específica de escra

vismo tem conseqüências importantes para nossos propósitos. Elaimplica, na prática, em uma complexa gradação de espaços de reconhecimento seletivo de necessidades e desejos dos dependentesdo senhor, numa hierarquia cujo ápice é determinado pela maior oumenor proximidade em relação às preferências afetivas do senhor.

O que é uma característica comum a todos os dependentes é o fatode nenhum deles ser sujeito autônomo. Autônomo não apenas nosentido moderno do termo, no sentido de uma esfera privada deliberdade inviolável e garantida pela faculdade do exercício dedireitos subjetivos. Também não existia autonomia no sentido tradicional do termo, ou seja, a referência a uma ordem convencionalimpessoal que se impunha a todos, até aos positivamente privilegi

ados. Nesse sentido, todo um mundo de noções morais compartilhadas socialmente separam um servo medieval europeu do escravo brasileiro. Um servo medieval podia retirar auto-estima e respeitodos outros, até mesmo do seu senhor, a partir do fato de ser umbom servo, cumpridor de seus deveres.

Ao escravo, pelo fato fundamental de não possuir humanidade, qualquer forma autônoma de reconhecimento, independente davontade do senhor, lhe estava vedada. Acredito que essa diferençaessencial tenha levado Norbert Elias a pleitear um caminho específico do desenvolvimento social europeu a partir da Idade Média,  e

76 Também Sérgio Buarque releva a importância do aspecto muçulmano integra-tivo na comunicação intercultural brasileira. Ver Sérgio Buarque de Hollanda,1999.

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A m odern ização seletiva

 por oposição à Antiguidade escravocrata. A presença do escravo

teria impossibilitado, entre outras coisas, a consciência da dependência recíproca entre os estratos superiores e inferiores os quaislevaram à sociedade democrática moderna.

 N ão apenas a d iv isão do trabalho , a in teg ração dos hom ens. a

dependência recíproca entre es tratos superiores e inferiores e

com e la a compos ição da economia puls iona l de ambos os es

tra tos soc ia is , se desenvolvem em uma soc iedade escravocra ta

de ou t ro modo que numa soc iedade com t raba lho ma is ou menos l ivre . Também as tensões sociais e a té a função do dinheiro

são dis t intos num e noutro caso. Isso sem levar em conta a im

 p o rtân c ia do traba lh o liv re p ara o d esen v o lv im en to de um a in-77

fra-estrutura laborai .

Essa intuição macrossociológica de Elias pode também ser percebida, como de fato o é, pela filosofia, pela teoria política e

 pela psicologia social do reconhecimento nos seus meandros políticos e psicológicos. Essa não humanidade  básica do escravo é queimpede os efeitos sociais da hierarquia valorativo baseada na dignidade  no sentido examinado, na primeira parte desse livro,quando analisamos a filosofia social de Charles Taylor. Essa revolução valorativa é pressuposto da constituição de instituições comoo mercado capitalista competitivo, baseado em liberdades econô

micas protegidas, ou a democracia moderna, baseada na proteçãode direitos subjetivos intransferíveis.A não-humanidade básica do escravo impossibilita qualquer

forma compartilhada e institucionalizada tanto de formação de personalidade autônoma como de instituições que a protejam.O escravo, os agregados e seus assimilados são, num sentido muito

 próprio e literal, objetos do senhor.  Inexiste, nesse contexto, quaiquer estabilidade ou previsibilidade que estabeleça garantias exter

nas e o desenvolvimento de padrões de conduta que ensejem qualquer forma de obrigações bilaterais.

Ao mesmo tempo a escravidão muçulmana  enseja unia com petição pelos favores do senhor que cria toda uma hierarquia da subordinação,  que marcará nossa sociabilidade indelevelmente

77Norbert Elias, op. cit., v. II, p. 70.

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258 Jessé Sou za

A luta pelos favores e graças do senhor de terras e escravos, depois

do positivamente privilegiado em geral, significa uma luta pelasobrevivência de seres sem qualquer possibilidade de interferênciano mecanismo de acesso a bens materiais e simbólicos escassos.A peculiaridade do caso brasileiro parece-me residir na concomitante presença de dois estímulos opostos: a proximidade ensejada

 pela escravidão muçulmana associada à peculia ridade da não-humanidade essencial do escravo. Também na corte de Luis XV selutava acerbamente pelos favores do rei. No entanto, o código es

tamental que presidia a distribuição de favores e prebendas vinculava e obrigava, num sentido muito preciso, o próprio rei. Maisuma vez estamos aqui lidando com uma ordem social incomparável com a ordem social das sociedades tradicionais e estamentais.O “bom” servo e o “bom” aristocrata retirava auto-estima, auto-reconhecimento portanto, e reconhecimento alheio pelo cumprimento de papéis sociais definidos de forma impessoal, o que vin

culava até os positivamente privilegiados a aceitá-la. No caso brasileiro, como já examinamos, o aspecto impessoalera reduzido ao mínimo. A ausência de previsibilidade e de padrões impessoais de conduta, forçavam os negativamente privilegiados a procurar agradar o senhor e sua família usando os recursosdisponíveis a cada um. O estímulo a esse comportamento era óbvio. O escravo doméstico, ao qual era oferecido a possibilidade da

 proximidade do senhor e de sua família, tinha, de plano, a enorme

vantagem de livrar-se do trabalho duro e pesado nos campos. Dentro do ambiente doméstico, a luta por espaço e tratamento diferenciado forçava obediência e fidelidade completa à vontade do senhor e a da sua família.

Um aspecto deve ser especialmente ressaltado para nossos propósitos: o recurso à ação estratégica, ou seja, a obediência pormera conveniência sem convencimento último, deve ter sido ex

cepcional por várias razões. Primeiro a luta por favores ardorosamente disputados exige completa dedicação e sincero esforço decorpo e alma no pronto atendimento dos desejos e necessidades dos

 poderosos. Além disso, a situação de fragilidade e completa de pendência do escravo ou agregado lembra a dependência completado recém-nascido em relação a mãe. Nesse tipo de dependência onegativamente privilegiado não tem nada a opor em sua defesa

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A m odernização seletiva

senão assumir o desejo alheio como legítimo, mais ainda, como m 

fosse querido e desejado, como se fosse seu. Essa identificação domasoquista, ou seja, o prazer pervertido da identificação com oopressor, parece ter sido um componente constitutivo da relação.Esse fato é decisivo, posto que o reconhecimento da legitimidadeda opressão faz com que desapareça da consciência, pelo menostendencialmente, a imposição da vontade como uma violência. Aocontrário, ela passa a ser vivida como se fosse própria.

Esse ponto é fundamental para que possamos compreender a

continuidade e permanência secular da relação sadomasoquista doescravismo muçulmano sob outras formas históricas e sociais.A relação de dependência que percebemos sob o nome de corone-lismo, por exemplo, é certamente uma dessas continuidades históricas mais importantes.78 A relação da população rural despossuída,mesmo depois da abolição da escravatura, repete, em seus traçosconstitutivos, a relação que acabamos de descrever. Maria Sylvia

de Carvalho Franco, em página brilhante, percebe, com rara sensi bilidade, a relação psíquica subjacente ao domínio pessoal no co-ronelismo:

Essa dominação implantada por meio da lea ldade , do respe i to e

da veneração es t io la no dependente a té mesmo a consc iênc ia de

suas condições mais imedia tas de exis tênc ia soc ia l , v is to que

suas re lações com o senhor apresentam-se conio um consenso e

uma complementar iedade , em que a pro teção na tura l do maisfor te tem como re t r ibuição honrosa o serv iço , e resul ta na ace i

tação voluntár ia de um a autor idade que , consensual mente , é

exerc ida para bem. Em suma as re lações ent re senhor e depen

dente aparecem   como inc l inação de vontades do mesmo t ipo ,

como harmonia , e não como impos ição da vontade do mais

for te sobre o mais f raco , como lu ta . Em conseqüência , as ten

sões inerentes a essas re lações es tão profu nda m ente ocul tas , ha

vendo escassas poss ib i l idades de emergi rem à consc iênc ia t iosdom inados ( .. .) Para aquele que se enco ntra subm et ido ao do

78Aqui não é necessário demonstrar a continuidade “real” da figura do escravono dependente do coronel. O escravismo, como percebeu melhor do que qualquer outro Joaquim Nabueo, é um sistema totalizante que “contamina" toda asociedade e todas as relações sociais dentro dela, mesmo entre não escravoscom seus efeitos nocivos.

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260 Jessé Sou za

minio pessoa l , inexis tem marcas obje t ivadas do s is tema de

contr ições a que sua consc iênc ia es tá conf inada: seu mundo é

formalmente l ivre . Não é poss íve l a descober ta de que sua von

tade es tá presa à do super ior , pois o processo de su je ição tem

lugar como se fosse na tura l e espontâneo. Anulam-se as poss i

 b ilid ad es de au tocon sc iên c ia , v is to co m o se d isso lv em na v id a

social todas as referências a part ir das quais e la poderia se

cons t i tu i r . P lenamente desenvolvida , a dominação pessoa l t rans

forma aquele que a sofre numa c r ia t u ra d o m e s ti c a d a : proteção

e benevolênc ia lhe são concedidas em t roca de f ide l idade e ser

viços re f lexos . Ass im, para aquele que es tá preso ao poder pessoal se define um dest ino imóvel , que se fechat insensivelmente

no con form ism o.79

 Não penso que esta feliz descrição se refira a um fato datadodo passado. Penso, ao contrário, que atitude semelhante ainda fundamenta a relação das nossas legiões de párias urbanos e ruraiscom a classe média urbana e rural. O que iremos pleitear, maisadiante, como resultado de um processo de  fragmentação de consciência  que atinge, com especial virulência, nossas classes subalternas, se deixa descrever, no fundamental, nessa definição de Carvalho Franco. A descontinuidade situa-se, a meu ver, em outrolugar. Precisamente no fato de aquilo que era conseguido com fundamento em relações pessoais, propiciadas pelo contexto de agudadependência e privação, adquirir outro sentido a partir da revolu

ção modernizadora  que toma de assalto o país a partir de 1808. Não sem luta e sob o preço de compromissos iniciais, a transiçãoda cultura personalista em favor dos valores impessoais da modernidade consolida-se primeiro em algumas cidades, para depois, jáadiantado o século XX, impor-se também no campo.

As oposições deixam de localizar-se nos binômios senhor/escravo ou coronel/dependente para assumirem formas im

 pessoais como doutor/analfabeto, trabalhador qualificado/trabalhador desqualificado, morador de bairros burgueses/morador defavelas, etc. O que é comum a todas esses últimos binômios impessoais é que a relação entre positivamente privilegiados e negativamente privilegiados independe de um vínculo de subordinação

19Maria Sylvia Carvalho Franco, op. cit., p. 94-95.

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A m odern ização seletiva

construído a partir de uma situação particular. O vínculo de do

minação passa a ser impessoal por referir-se a valores inscritos dentro da lógica de funcionamento das instituições fundamentais do mundo moderno, especialmente do mercado capitalista.

O advento dos princípios do mercado representou uma possi bilidade de ascensão social antes impossível para vários grupossociais no Brasil do século XIX. Freyre mostra-nos como umacamada de peritos em ofícios técnicos, usualmente homens de cor e

mestiços, dado o preconceito contra o trabalho manual, assimcomo a constituição de uma camada privilegiada de “bacharéis”,também alguns deles mestiços, forma-se na esteira da constituiçãode um incipiente mercado e aparelho de Estado racional entre nós.O conhecimento, base da eficiência de mercado e Estado racional,é intrinsecamente democrático por basear-se em critérios de mérito

 pessoal não adrede decididos. Aumenta a competição social e as possibilidades reais de ascensão social.

Apesar do acesso à educação ser desigual e seletivo, o relativodinamismo do desenvolvimento capitalista abre, episodicamente,chances reais de mobilidade até para setores dos grupos mais des-

 privilegiados. Um ponto é fundamental de registrar-se aqui: esseacesso das camadas desfavorecidas é individual, não sendo fruto dedemandas políticas coletivamente compartilhadas. Indivíduos mestiços e mulatos tinham acesso a oportunidades efetivas de ascensão

social, mas não os mestiços ou mulatos como grupo, a partir dedemandas políticas articuladas. Isso acarretava uma “cooptação”impessoal e objetiva do sistema enquanto todo, na medida em que

 possibilitava o ingresso dos membros mais capazes das classessubordinadas. O abandono dos setores mais desprivilegiados tendea ser percebido como fracasso individual,  dificultando a articulação política do descontentamento.

A partir da imigração maciça de europeus e posterior industrialização do país, o acesso às benesses da inclusão social mantém aseletividade anterior. O mecanismo da cidadania regulada,  descrito por Wanderley Guilherme dos Santos, representa uma espéciede reprodução ampliada e impessoal do mecanismo de inclusãosocial individual e seletiva do século anterior:

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262 Jessé Souza

Por c idadania regulada entendo o conce i to de c idadania cujas

ra ízes se encontram, não cm um código de va lores pol í t icos ,mas em um sis tema de es trat if icação, e que, ademais , ta l s is tema

de es t ra t i f icação ocupacional é def in ido por norma lega l . Em

out ra s pa lav ras , s ão c idadãos todos aque le s membros da comu

nidade que se encontram localizados em qualquer uma das ocupa

ções reconhec idas   e def in idas   em le i . A extensão da c idadania

se faz, pois, via regulamentação de novas profissões e/ou ocupa

ções , em pr imeiro lugar , e mediante ampl iação do escopo dos

di re i tos assoc iados a es tas prof issões , an tes que por expansão80dos valores inerentes ao conceito de membro da comunidade.

A intuição de W. G. dos Santos é certeira. Ela se refere à especificidade da noção de cidadania e de inclusão social numa sociedade que se moderniza e mantém, no entanto, intacta a herançaescravocrata que divide a sociedade em homens e subhomens, ou,nos termos da nova ordem política, em cidadãos e subcidadãos.

 Não acontece entre nós o movimento que se realiza da cultura política para o ordenamento legal, nos países centrais do Ocidente,onde uma nova fonte de auto-estima se transforma em fermento

 político revolucionário.O fato de Max Weber ter percebido a revolução protestante

como a parteira da modernidade tem menos a ver com a consolidação de uma nova ética do trabalho não-tradicionalista que propicia

o sistema capitalista, ou seja, com efeitos circunscritos à esferaeconômica, do que com o nascimento de um novo racionalismo, ouseja, com o nascimento de uma nova atitude em relação ao mundoem todos os seus aspectos e em todas as esferas da vida. Na esteirade Weber, percebe Taylor que a auto-estima protestante baseada nanoção de trabalho sagrado, inverte a ordem do mundo tradicionalem todas as suas dimensões, especialmente na esfera política.A noção de trabalho intramundano como o caminho especifica

mente protestante de salvação é revolucionário em dois sentidosfundamentais. Primeiro ela reverte o ideário, que vingava desde aAntiguidade, da proponderância da contemplação sobre a ação, oudo trabalho contemplativo sobre o trabalho manual e prático, acarretando aquilo que Taylor chama de “afirmação da vida cotidiana”.

Sf l

Wanderley Guilherme dos Santos, 1998, p. 103.

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A m odernização seletiva

A partir de agora, ocorre uma espécie de inversão valorativa de 180

graus: as atividades práticas e manuais são valorizadas à custa dodesprestígio de qualquer esforço contemplativo “inútil”. O simplesmarceneiro vale mais do que o filósofo na sua torre de marfim.'81Essa idéia é intrinsecamente democrática já que ela implica desle-gitimização da hierarquia social, estamental e tradicional, associada à desqualificação do trabalho manual e pragmático.

Em segundo lugar, ela é revolucionária no sentido em que a

dignidade individual, ou em termos políticos, o direito à cidadania passa a ser vinculado ao trabalho. A ascensão da burguesia dá-sequando a crítica à aristocracia, como classe ociosa, que não “tra

 balha”, ganha legitimidade em amplas camadas da sociedade.Também a ascensão do proletariado se deve ao prestígio do valortrabalho. Nesse sentido, uma concepção como a do valor-trabalhomarxista só se torna compreensível num contexto em que a revolução protestante tenha fincado raízes sólidas e influenciado, até

mesmo, países católicos, como é o caso paradigmático da França.A enorme eficácia social das teorias políticas seculares do valorsocial do trabalho, que permitem a ascensão política do proletariado no decorrer do século XIX, apóia-se, vicariamente, na revalorização protestante do trabalho útil.

Também foi o trabalho que permitiu a uniformização de umaeconomia emocional para todos os estratos na sociedade moderna.

A burguesia, como primeira camada dirigente da história que trabalha.82 possibilitou a produção de um tipo uniforme de ser humano, a partir do compartilhamento da relação típica entre emoções erazão exigidos pela produção capitalista, como calculabilidade,

 previsibilidade, maior importância da satisfação adiada de necessidades, etc. Nos mais variados sentidos, portanto, o trabalho revalorizado é o pressuposto do mundo moderno como o conhecemos,sendo, até mesmo, um pressuposto da idéia de cidadania moderna

 baseado na noção da igualdade do valor de cada uni, na medida em

81 Não é  por acaso, po rtanto, que essa atitude pragmática em rela ção ao m undotenha se desenvolvido precisamente nos EUA mais que em qualquer outra sociedade do ocidente.

8" Norbert Elias, op. cit., v. II, p. 434-455.

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 Ábè Jessé Souza

 beneficiará o trabalhador que se engajar no esforço de moderniza

ção: na época 0  trabalhador urbano e qualificado.8'A seletividade do processo,  no entanto, era antiga e havia se

mostrado desde o começo da modernização espontânea, a partir deinícios do século XIX. Nesse sentido, a cidadania regulada não é“achado de engenharia institucional” dos revolucionários de 1930,como afirma W. G. dos Santos.86 Ela parece ser, ao contrário, umelo numa corrente bem mais longa, uma seletividade que acompa

nha nossa modernização desde seu início. De certa forma, ela cria, pelo abandono, um exército de párias urbanos e rurais sem lugar no processo produtivo e sem lugar na comunidade política. Tambémserá apenas aquele trabalhador cidadão regulado,  ou seja, 0   trabalhador reconhecido, bem qualificado e organizado que se imporá,nas últimas décadas do século XX, como um interlocutor que exigeser ouvido na arena política.

Em certo sentido, não obstante, a seletividade não é apenasuma descontinuidade provocada pela revolução modernizadora dosinícios do século XIX. Ela tem um vínculo secular, de quinhentosanos, com a escravidão muçulmana que se estabelece aqui. Afinal,vai continuar sendo apenas aquele subordinado que adere aos valores do pa i que será premiado com vantagens e favores. Com a modernização esses valores transformam-se, com certeza, de pessoaisem impessoais, num movimento que vai do pai europeu tradicional

representado pelo português até o  pai  impessoal do capitalismotrazido pelas nações européias na vanguarda do processo, mas algoda lógica inicial se mantém.

A nossa sociologia da inautenticidade, do Brasil que se moderniza “para inglês ver”, do Brasil que continua personalista e

 patrimonial, só vê a exterioridade e o artificialismo do processo.Ele é exterior e artificial, em grande medida, sem dúvida, na medida em que ele vem de fora para dentro e toma de assalto um paísque mais parecia uma China que um país ocidental antes da abertura dos portos. Mas não se pode, no entanto, confundir uma observação tópica, um instantâneo que se retira do contexto, no desen

85 Essa hipótese não retira, obviamente, a validade das interpretações que enfatizam a manipulação política que a dependência em relação ao Estado ensejava.

86 Guilherme dos Santos, op. cit.,  p. 104.

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A m odern ização seletiva

rolar do processo de transição de uma sociedade personalista para

uma sociedade moderna e impessoal, com o movimento como umtodo. É necessário captar a lógica de desenvolvimento  do processocomo um todo, temporal e analiticamente, de modo a poder perce

 ber sua dinâmica. No contexto do mundo impessoal capitalista, esses valores es

tão inscritos em instituições as quais corporificam e garantem, pormeio de estímulos empíricos, sua reprodução ampliada. Essa im

 pessoalidade, associada a eficiência comparativa do mercado eEstado capitalistas, reproduz sob outra forma, especificamentemoderna, as condições que garantem a perpetuação da situação dedominação e subordinação social. O que antes era conseguido pelaviolência subjacente e dependência do escravo em relação ao senhor, na relação sadomasoquista, ou pela subordinação psíquica dodependente formalmente livre em relação ao coronel, é levado acabo hoje por mecanismos impessoais.

O Brasil não é um país moderno e ocidental no sentido comparativo de afluência material e desenvolvimento das instituiçõesdemocráticas. Mas o Brasil é certamente um país moderno no sentido ocidental do termo, se levarmos em conta que os valores modernos e ocidentais são os únicos aceitos como legítimos. Esses sãoos nossos valores dominantes e é isso que explica o fascínio dotema da modernização entre nós. Para a imensa maioria da legião

de párias urbanos e rurais, sem lugar no novo sistema, produto deséculos de abandono, a desigualdade aparece como um resultadonatural, muitas vezes percebido como fracasso próprio. Essa atitude parece-me típica da forma do tratamento respeitoso que a imensa maioria das pessoas do  povo  dedica aos seus compatriotas daclasse média. Como o sentimento de injustiça não é articulado, ele

 permanece um sentimento indeterminado, um mal-estar, que poderesultar em protestos pré-políticos de extraordinária violência comoquebradeiras, arrastões ou a pura e simples violência criminosa.

Mas não existe nenhum dualismo valorativo  aqui. O que parece efetivamente existir é um fenômeno que apenas pela profundidade e extensão seja peculiarmente nosso. Refiro-me aquilo queautores críticos como Habermas ou Taylor chamariam de  frag mentação da consciência  (fragmentação do mundo da vida paraHabermas), como a patologia por excelência do mundo moderno

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26 8 Jessé Souza

 Na fragmentação da consciência do sentido, uma concepção arti

culada do mundo e da posição do ator nele, não chega a se formar.Dado o pressuposto da imbricação do componente reflexivo e moral nesses autores, a impossibilidade de perceber uma situação ouum tema como problemático e passível de crítica, equivale a im

 possibilidade de se tomar uma atitude prática conseqüente, tornando impossível uma conduta privada ou pública racional e consciente.

Esse tema é de fundamental importância. Ele remete a questão

central e de candente atualidade de se perceber quais as chances dese reverter o processo-secular de reprodução da subcidadania87dentro do novo contexto político brasileiro. Esse “novo contexto” émarcado por uma ampliação e paralela maior eficácia da esfera

 pública entre nós, no sentido habermasiano do termo. Nas últimasdécadas o número de associações civis aumentou em proporçãoespantosa.88 Movimentos populares como as “diretas já”, ou acampanha pelo impeachment   de Fernando Collor, representaram,

 pelo seu número e seu conleúdo, uma novidade radical na vida política brasileira. No entanto, creio que a análise dessa nova situação exige estudo cuidadoso. Se é inegável o caráter abrangente-mente popular dessas manifestações, a inspiração, a direção e aforma e conteúdo das mesmas mostram uma preponderância daclasse média. A própria forma das manifestações, por meio de “bu-zinaços”, carreatas ou passeatas de estudantes secundaristas de

classe média, na sua maioria, ilustram o que quero ressaltar.89

87Evitamos aqui, por ser sociologicamente impreciso, o conceito de “exclusãosocial”. A exclusão pressupõe não participação na sociedade, quando a relaçãomais adequada é de subcidadania ou subintegração como prefere Marcelo Neves. O subintegrado  participa das relações ju r íd icas , malgrado o fato de sersempre, negativamente, como réu, condenado, credor, etc. Ver sobre esse ponto, Marcelo Neves. “Between Under-Integration and Over-Integration: Not

Taking Citizenship Rights Seriously”, em:  Democracy and Multiculturalisiu:   Bra zi lian Variations.  Fred D allm ayre Jessé Souza, (orgs.) (no prelo).

Ver Leonardo Avritzer. “Culture, Democracy and the Formation of a PublicSpace in Brazil”, em:  Democra cy and Multicultura lism : Brazilian Variations Fred Dallmayr e Jessé Souza, (orgs.), New York, Rowman and Littflefield (no prelo) .

Lembro-me, nesse sentido, de um fato muito significativo ocorrido praticamente na mesma época das passeatas dos caras-pintadas dos colégios secund aristas de classe média: os “arrastões” realizados por jovens da periferia do Rio

89

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A m odern ização seletiva

É interessante perceber a relação desse fato com a sociologia

do patrimonialismo e do personalismo. O que mostra a força dessaidéia entre nós, que a muito deixou de ser livresca, o que de restocomprova a articulação entre idéias e práticas sociais institucionalizadas, é o fato de dois dos três últimos presidentes da Repúblicaterem sido eleitos a partir da defesa do seu ideário: Fernando Co-llor e Fernando Henrique Cardoso. Nos dois a reforma do mercado,de modo a restituir suas condições de competitividade, e no Estado,de modo a torná-lo mais eficiente, ocupava o ponto central dos

respectivos programas. Virtudes pessoais do presidente FernandoHenrique, unido a uma distinta base de apoio partidária ao seu

 programa, acarretaram uma forma certamente mais generosa  deaplicação do programa antipatrimonialista em comparação com oseu homônimo.

 No entanto, mesmo nessa versão mais generosa, uma visãounilateralmente tecnológica e instrumental ganha proeminência

clara. Estado e mercado são vistos por governo e sociedade comoos únicos pontos da pauta de discussão política. A terceira instituição fundamental das sociedades modernas, a esfera pública, noentanto, não é objeto de discussão pública. A concessão de canaisde rádio e televisão, por exemplo, é vista como matéria de negociação política e de barganha partidária. A imprensa, desse modo,especialmente a mídia eletrônica, de longe a mais importante eeficaz, a instituição por excelência da garantia de um espaço minimamente pluralista e discursivo, longe de submeter-se a um amplodebate público segundo critérios prático-morais, ou seja, segundosua maior ou menor influência sobre um público carente de estímulos simbólicos no sentido da produção de um espaço mínimo deconsenso valorativo, estiola-se como meio de troca.

de Janeiro. O deputado José Genoíno do PT, em debate realizado no Congresso Nacional na ocasião, pro pôs um a interpretação muito in te ressan te dessa est ranha simultaneidade temporal. Para Genoíno, os arrastões seriam uma fornia

 pré-p olítica de pro testo, no caso, um grito desesperado de existência daqueles jo vens desafortunados, um a espécie de resposta à celebração da mídia ao engajamento dos garotos de classe média. Essa forma pré-política de revolta doindividualismo anômico que grassa nas nossas grandes cidades é, de resto, oestofo da admirável literatura urbana de um Rubem Fonseca

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2 7 0 Jessé Souza

O desafio aberto para o processo de democratização brasileiro,

desafio esse antes encoberto do que esclarecido pela sociologia do patrimonialismo e do personalismo, parece-me residir no desafiode assimilar os legítimos anseios dos párias urbanos e rurais produzidos pela modernização seletiva, sem que a violência se transforme na única língua comum entre os contendentes.

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JKSSÍ: SO I ZA. 40 anos,  doutor (‘iii sociologia pela