SOUZA, José Arilson Xavier de - Religião_Um Tema Cultural de Interesse Geográfico

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Revista da Casa da Geografia de Sobral, Sobral-CE, v. 12, n. 1, p. 69-80, 2010. www.uvanet.br/rcgs RELIGIÃO: UM TEMA CULTURAL DE INTERESSE GEOGRÁFICO 1 José Arilson Xavier de Souza 2 RESUMO Num primeiro momento, pode até parecer que religião e geografia tenham pouca relação. Porém, fazendo uso de uma ótica mais apurada, perceberemos que essas duas práticas socioculturais estabelecem entre si ligações através do tempo e do espaço. Neste sentido, o artigo em tela se inscreve na tentativa de proporcionar uma visualização de como a religião tem sido uma temática de interesse da ciência geográfica. Após identificarmos o período e o contexto em que a religião esteve distante das discussões geográficas, reconhecemos a importância do processo de reno- vação e difusão da Geografia Cultural e da sistematização da disciplina Geografia da Religião para uma maior atenção dos geógrafos diante das espacialidades (re)criadas em nome da religião. Palavras-chave: Religião. Geografia. Geografia Cultural. Geografia da Religião. RELIGION: A CULTURAL TOPIC OF GEOGRAPHIC INTEREST ABSTRACT Initially, it might seem that religion and Geography have few connection points. However, using a more accurate view, we see that these two sociocultural practices establish links among themselves through time and space. In this sense, the article in question try to discuss how religion has been a subject of interest geographic. After identifying the period and context in which the religion was far from the geographical discussions, we recognize the importance of the renewal process and dissemination of Cultural Geography and the systematization of the discipline Geography of Religion for greater attention from geographers in the face of spatiality (re)created in name of Religion. Keywords: Religion. Geography. Cultural Geography. Geography of Religion. 1 Os escritos dispensados neste trabalho são resultantes das leituras realizadas através de nossa pesquisa de mestrado, denominada “A ressignificação religiosa do turismo regional: um estudo geográfico-cultural do Santuário de Fátima da Serra Grande”. Ver: http://www.posgeografia.ufc.br/images/stories/arquivos/dissertarilsonxavier.pdf. 2 Licenciado e bacharel em Geografia pela Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA-Sobral/CE); mestre em Geografia pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Professor da rede de ensino do Estado do Ceará (Crede 04 – EEEP Monsenhor Expedito da Silveira de Sousa - Camocim/CE). E-mail: [email protected]

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Artigo sobre a relação da Religião e a Geografia.

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    RELIGIO: UM TEMA CULTURAL DE INTERESSE GEOGRFICO1

    Jos Arilson Xavier de Souza2

    RESUMO

    Num primeiro momento, pode at parecer que religio e geografia tenham pouca relao. Porm, fazendo uso de uma tica mais apurada, perceberemos que essas duas prticas socioculturais estabelecem entre si ligaes atravs do tempo e do espao. Neste sentido, o artigo em tela se inscreve na tentativa de proporcionar uma visualizao de como a religio tem sido uma temtica de interesse da cincia geogrfica. Aps identificarmos o perodo e o contexto em que a religio esteve distante das discusses geogrficas, reconhecemos a importncia do processo de reno-vao e difuso da Geografia Cultural e da sistematizao da disciplina Geografia da Religio para uma maior ateno dos gegrafos diante das espacialidades (re)criadas em nome da religio. Palavras-chave: Religio. Geografia. Geografia Cultural. Geografia da Religio.

    RELIGION: A CULTURAL TOPIC OF GEOGRAPHIC INTEREST

    ABSTRACT

    Initially, it might seem that religion and Geography have few connection points. However, using a more accurate view, we see that these two sociocultural practices establish links among themselves through time and space. In this sense, the article in question try to discuss how religion has been a subject of interest geographic. After identifying the period and context in which the religion was far from the geographical discussions, we recognize the importance of the renewal process and dissemination of Cultural Geography and the systematization of the discipline Geography of Religion for greater attention from geographers in the face of spatiality (re)created in name of Religion. Keywords: Religion. Geography. Cultural Geography. Geography of Religion.

    1 Os escritos dispensados neste trabalho so resultantes das leituras realizadas atravs de nossa pesquisa de mestrado,

    denominada A ressignificao religiosa do turismo regional: um estudo geogrfico-cultural do Santurio de Ftima da Serra Grande. Ver: http://www.posgeografia.ufc.br/images/stories/arquivos/dissertarilsonxavier.pdf.

    2 Licenciado e bacharel em Geografia pela Universidade Estadual Vale do Acara (UVA-Sobral/CE); mestre em Geografia pela Universidade Federal do Cear (UFC). Professor da rede de ensino do Estado do Cear (Crede 04 EEEP Monsenhor Expedito da Silveira de Sousa - Camocim/CE). E-mail: [email protected]

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    INTRODUO

    Expresso institucional do ponto de vista espiritual, reflexo das escolhas culturais de vida dos seres humanos, a religio faz parte das discusses geogrficas, principalmente, pela tentativa dos gegrafos de entender e explicar as razes que levam o indivduo a perceber e significar certas pores do espao geogrfico como sagradas.

    crescente o nmero de gegrafos que elegem a religio como pano de fundo de seus estudos, porm esta produo ainda incipiente se levarmos em considerao o universo de fenmenos afins que esto espera de uma apreciao cientfica, ou mesmo se compararmos com a produo de outros ramos da Geografia.

    Este trabalho procura apresentar um panorama, mesmo que parcial, da situao das reflexes geogrficas acerca da religio, demonstrando sua relevncia. O corpo textual encontra-se dividido em quatro partes. Na primeira, discute-se sobre os contextos idealistas e temporais que concorreram para o distanciamento do tema religio da Geografia. Na segunda, buscamos reconhecer a importncia do processo de renovao e difuso da Geografia Cultural, to caro aos anseios da Geografia da Religio, eixo de discusso da terceira parte. Por fim, indica-se teoricamente a legitimao do interesse dos gegrafos pela religio, como tema cultural de explcitos rebatimentos espaciais. O mtodo fenomenolgico apontado neste momento como um direcionamento alusivo em anlises recorrentes ao tema em apreo. RELIGIO LONGE DA GEOGRAFIA: IGNORNCIA OU NEGLIGNCIA?

    Como tema profundo vida social e cultural da humanidade, a religio, atividade esta repleta de implicaes e significados espaciais, ao longo do processo de evoluo do pensamento geogrfico no recebeu grande relevncia nos estudos desta cincia. Foi por muito tempo negligenciada pelos gegrafos. Na Geografia brasileira este fato nos parece ainda mais notrio.

    Ao realizarmos um exame da obra Geografia Pequena Histria Crtica de Antonio Carlos Robert de Moraes (1987), onde o autor faz um balano da evoluo do pensamento geogrfico, apresentando e, em algumas vezes, confrontando ideologias das principais escolas, autores e linhas de anlises, mesmo levando em considerao os seus contextos histricos, no conseguimos encontrar nenhuma meno a estudos que pudssemos relacionar diretamente ao entendimento da Geografia da Religio; nem mesmo quando se relatou sobre o processo de renovao da Geografia.

    Contudo, ao reconhecer que o movimento de renovao da Geografia advm da diversidade de mtodos de interpretao e de posicionamentos dos autores que o compem Moraes (1987, p. 98) faz um apontamento para as novas perspectivas das pesquisas geogrficas, como as possibilidades de estudos sobre as formas de representao do espao geogrfico. Espao que , a nosso ver, carregado de feies e significados religiosos.

    O descuido da Geografia para com as investigaes sobre religio, que no aconteceu to fortemente nas outras cincias sociais, que contriburam em muito para melhorar a ventilao explicativa deste fenmeno, ressaltado em parte por Rosendahl (1996) por dois aspectos principais: 1) a influncia positivista na Geografia; e 2) a irrelevncia da temtica para a Geografia Crtica.

    No que toca educao positivista, sabido que esta, na sua acepo, deixou um legado de ser concernente Geografia estudar os fenmenos de sua ordem por uma base primeiramente fsica, dificultando a realizao de anlises que partam de concepes abstratas perante contedos culturais e simblicos, revelando a espacialidade material econmica e populacional como eixo indispensvel para as suas investigaes. , pois, verdade que o partido positivista adotado dissuadia os gegrafos das representaes (CLAVAL, 1999, p. 45).

    De acordo com a viso positivista, os objetos s podem ser estudados pelas suas revelaes exteriores. Explanaes fenomenolgicas no so bem-vindas, isto porque no so passveis de uma fcil exposio aos olhos desses crticos. O positivismo caracteriza-se por um agnosticismo no qual nega razo e f o poder de provar a existncia de Deus [...]. A existncia

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    de Deus constitui-se em uma questo metafsica, fora do mbito da cincia positiva (ROSENDAHL, 1996, p. 20). Grosso modo, pode-se dizer que o positivismo provoca uma espcie de afastamento entre religio e cincia.

    Por sua vez, a Geografia Crtica, portadora de uma proposta austera de questionamentos s bases da Geografia Tradicional que adotava o positivismo como premissa , no conseguiu ensejar grande interesse nos gegrafos para que estudassem as dimenses geogrficas da religio. O procedimento rigorosamente materialista de anlise em busca das foras que realmente moviam a sociedade levou os gegrafos a marginalizar as questes religiosas de seus estudos (ROSENDAHL, 1996, p.22). Influenciados diretamente pelas concepes marxistas, os gegrafos crticos se pautaram, sobretudo, por questes que denotavam as contradies do modelo de produo capitalista, ficando, assim, negligenciados das averiguaes outros comportamentos do ser humano, como a religiosidade.

    tambm verdade afirmar que a relao entre marxismo e Geografia Cultural no se desenvolveu por um dilogo mtuo (COSGROVE, 2007). A esse respeito, Claval (1999, p. 59) ressalta:

    Os regimes marxistas tentavam apagar as culturas ou reduzi-las a um folclore indigente [...] Os intelectuais marxistas contriburam amplamente para o declnio dos estudos geogrficos culturais, pois para eles, o econmico explicava tudo em ltima instncia.

    A esse perodo em que a Geografia esteve a se descuidar do estudo da religio, Santos

    (2002) denominou-o de Geografia sem religio. Concordando que tanto a chamada

    [...] Geografia Tradicional quanto a Geografia Marxista (com raras excees) negligenciaram a dimenso sensvel do homem de percepo do mundo. A primeira por negar o conhecimento subjetivo; a segunda, por rotular de alienao toda e qualquer relao afetiva ou simblica do homem com a natureza (p.24).

    Mesmo na Geografia Humana algumas correntes de estudo pouco consideraram a

    religiosidade do ser humano, deixando margem de suas investigaes aspectos como a percepo e a imaginao das criaturas diante das expresses religiosas (CLAVAL; 1999; GOMES, 2007; ROSENDAHL, 1996; OLIVEIRA, 2001; SANTOS, 2006.). A IMPORTNCIA DA RENOVAO E DIFUSO DA GEOGRAFIA CULTURAL

    consenso que a denominada virada cultural na Geografia trouxe grandes avanos s pretenses das anlises dos gegrafos que enveredavam seus estudos por uma tica cultural, ampliando as possibilidades terico-metodolgicas. Neste bojo, a religio passava a ser estudada de forma mais estruturada nesse campo cientfico, assim como outros temas. Simbolismo e identidade so alguns desses. Essa passagem resulta no processo de renovao da chamada Geografia Cultural e tem como referncia inicial a segunda metade da dcada de 1970. Uma leitura das aes que levaram a tal acontecimento ajudar a compreender como a religio, em meio insero de novas perspectivas Geografia, passou a ser incorporada pelo julgamento dos gegrafos como fenmeno cultural de seus interesses.

    A Geografia Cultural3, considerada por alguns autores como subcampo da Geografia e por outros como uma forma de abordagem geogrfica, tem seu processo de difuso iniciado na Europa, estendendo-se da para outros lugares, j possuindo mais de um sculo de existncia (CORRA; ROSENDAHL, 2007). Nasce a partir das observaes dos diferentes gneros de vida e paisagens, quase que exclusivamente levando-se em considerao as comunidades rurais. O 3 Em nota explicativa: o termo Geografia Cultural lanado pela primeira vez por Ratzel em 1880 na obra chamada

    Culturgeographie der Vereinigten Staaten von Nord-Amerika unter besonderer Bercksichtigung der wirtschaflichen Verhltnisse (CLAVAL, 1999).

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    modo de vida urbano no interessava. A paisagem ficava compreendida como o resultado do trabalho do homem, produto de sua cultura.

    Oculta ou explicitamente, o tema cultura sempre fez parte das anlises dos gegrafos humanos4, ocorrendo uma espcie de sistematizao dessas consideraes a partir do sculo XX. Alemanha, Frana e Estados Unidos apresentaram-se como os pases mais expressivos no tocante disseminao dos estudos de Geografia que optavam por uma perspectiva cultural de explicao dos fenmenos. A saber, essa abordagem era denominada Geografia Cultural.

    Nos Estados Unidos, a Geografia Cultural ganhou uma slida base de sustentao, principalmente atravs dos estudos de Carl Sauer. A obra deste autor, hoje considerada tradicional, sobretudo pela crtica sua viso supraorgnica de cultura, teve importante papel na histria do pensamento geogrfico, deixando um rico legado. Dialeticamente, sua presena se faz sentir na geografia cultural renovada (CORRA; ROSENDAHL, 2007, p.11).

    Atualmente, o favorecimento da insero da variante temtica cultural nas discusses geogrficas j apresenta um relativo entendimento epistemolgico no corpo da cincia do espao, a Geografia (MARTINS; SILVA, 2007), fator que, em parte, deve-se melhor compreenso do conceito de cultura, que passou a incorporar as subjetivas maneiras de se vivenciar o contedo simblico dos fenmenos geogrficos.

    At que acontecesse o processo de reviso dos gegrafos ao conceito de cultura, seus estudos se desenvolviam de uma forma reducionista, limitando-se s tcnicas e utenslios que os homens utilizavam na transformao da paisagem, reflexo do que se entendia por cultura (CLAVAL, 1999). Os temas cultura, paisagem cultural, regio cultural, histria da cultura e ecologia cultural predominavam no seio da disciplina5.

    Como a viso de cultura nos estudos geogrficos se resumia aos modos de existncia e sobrevivncia de alguns grupos que estariam margem do progresso, esta Geografia se negava a estudar as implantaes modernas. Por isso a sensao de crise, afinal a globalizao surgia com uma promessa de homogeneizao.

    Contraditoriamente quilo que foi pensado, os efeitos do processo da globalizao no conseguiram extinguir os diferenciados estilos de vida dos grupos sociais, tornando-os inclusive mais notveis na maioria dos casos. A massificao no ocorreu por completo. A cultura ganhou ares de multiplicidade, brotando de diversas interaes. Portanto, grosso modo, incidiu que, diante de um mundo multicultural, tornava-se manifesto crescente o interesse de gegrafos por esse campo, elegendo a cultura como elemento essencial de suas anlises. Em registro, postula-se que a religio faz parte decisivamente do cotidiano cultural de grupos e lugares.

    Num apontamento embasado frente s limitaes analticas engendradas pelas epistemologias naturalistas e funcionalistas, vises de parte dos gegrafos do final do sculo XIX e de parte do sculo XX, que ideologicamente dispensavam o questionamento crtico natureza e sociedade, Paul Claval (2002, p. 38) vem nos elucidar o fato de que estas concepes no deram o lugar devido s aes executadas pelo indivduo. Ressalta o autor que

    El enfoque cultural corrige estas orientaciones: al concebir el espacio como una escena donde los seres humanos se ofrecen al espectculo, representan papeles que los valorizan, los enriquecen o les aseguran ciertos poderes, tiene en cuenta al individuo y las iniciativas de que es autor. Nos hace descubrir el sentido que le dan los seres humanos a los decorados que los rodean y que, en gran medida, han construido. Nos hace entrar en el universo de sus valores y creencias, y aclara las estrategias que retienen en su vida social, poltica o cultural.

    4 Da maioria dos gegrafos humanos pode dizer-se que esto a fazer geografia cultural de uma forma ou de outra,

    mesmo quando eles se chamam a si prprios de gegrafos urbanos, gegrafos histricos, gegrafos da populao, etc. (KONG apud SANTOS, 2006, p.146). Complementando este raciocnio, Paul Claval (2007, p.163) comunga com a concepo de que todos os fatos que a geografia humana trata so apreendidas por meio de mediaes culturais.

    5 Ver: Os temas da Geografia Cultural dos autores Philip L. Wagner e Marvin W. Mikesell, (2007).

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    Destarte, seguindo a orientao indicada acima, as anlises dos gegrafos comeavam a considerar as representaes imaginrias do indivduo. A partir da o mundo passa a ser visto pelo lado perceptivo de quem o vivencia, de quem lhe traz animao. A cultura passa a se constituir em um elemento primaz s anlises de tal natureza, no mais explicando tudo, e sim precisando ser explicada quando abordada em estudos sobre as realidades geogrficas de regies, territrios, paisagens e lugares instncias estas constitudas de fixos e fluxos, fatores bsicos da conceituao de espao geogrfico (SANTOS, 2005). Espao que palco da vida social, onde os homens descansam seus laos afetivos e desenvolvem seus mecanismos de comunicao. diante deste novo patamar de abordagem que a Geografia Cultural se renova.

    Uma possvel definio dessa nova geografia cultural seria: contempornea e histrica (mas sempre contextualizada e apoiada na teoria); social e espacial (mas no reduzida a aspectos da paisagem definidos de forma restrita); urbana e rural; atenta natureza contingente da cultura, s ideologias dominantes e s formas de resistncias. Para essa nova geografia a cultura no uma categoria residual, mas o meio pelo qual a mudana social experenciada e, contestada e constituda. (COSGROVE; JACKSON, 2007, p. 136).

    Os estudos de Geografia Cultural devem, ento, reclamar por explicaes que

    relacionem o meio geogrfico com o homem atravs de suas atividades culturais. Devem incluir direcionamentos que destaquem a percepo do ser para com o espao que visita ou que habita. Por exemplo: Como peregrinos e romeiros ou turistas vivem a festa religiosa e percebem o espao sagrado? Como os moradores da localidade anfitri dessa mesma festa a entendem? Obviamente que suas experincias culturais refletiro diretamente em suas concepes de existncia e convivncia. tambm provvel que os estudos postos adotem conceitos variados de cultura, retratando da melhor maneira o fenmeno que esto a averiguar

    Superando a viso de cultura como um agente supraorgnico, como via Carl Sauer, onde o ser humano no passava de um simples receptor desta suposta fora dada, concordamos com a compreenso que a entende como uma varivel poltica e que enquanto criao social, parte integrante da trajetria humana (CORRA, 2007a, p. 172). Pouco acrescentaria se aqui recorrssemos por uma definio una de cultura, assim preferimos t-la como multi (BERKE, 2003), resultado das amplas relaes sociais, salvaguardando suas especificidades de tempo e lugar. Assim, acreditamos que a cultura possui simultneas geografias como lcus de sua representao e vivncia, com um status perceptivo peculiar.

    No obstante a produo bibliogrfica com abordagem centrada na dimenso cultural, por vrios motivos, ainda consista em uma quantidade relativamente menor do que outros ramos da Geografia, ao estudar religio ou temas outros, alguns autores se destacam nesse tratamento6 e contribuem para o incremento dessa discusso geogrfica.

    Aproximando as discusses da Geografia Cultural com as intenes marcadas nesta seo textual, salientamos que, na Geografia Cultural Tradicional, a religio se apresentava pelas formas descritivas dos lugares possuidores desse cariz. Mesmo com todo o preconceito vindo dos paradigmas positivistas, tornava-se quase que impossvel desconsiderar a questo religiosa frente realidade geogrfica de lugares e regies, pelo menos como uma atividade disseminadora de formas arquitetnicas magnficas tidas como sagradas, que geravam por ora uma atratividade surpreendente. Em causa:

    Os gegrafos preocupados com as realidades culturais dedicam uma ateno crescente aos fatos religiosos. Eles continuam, portanto, a abord-los do exterior, a partir dos signos que imprimem na paisagem. Hesitam em tratar de sua influncia sobre os comportamentos e sobre as escalas de preferncia que instituem (CLAVAL, 1999, p.45).

    6 Julgamos que as referncias que usamos aqui denunciam em parte algumas dessas fontes.

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    Na seqncia das palavras ditas acima, Paul Claval aponta como importante contributo ao avano da discusso da religio pela Geografia a obra do francs Pierre Deffontaines: Gographie et religion (Geografia e religio), datada de 1948. Em outro nmero literrio, Claval (2007) faz meno a mais um trabalho cientfico tambm inerente ao amadurecimento da apreciao posta: L Homme et la Terre (O Homem e a Terra), de outro francs, do historiador Eric Dardel, escrita em 1952. De fato, estas produes configuraram-se como contribuies respeitveis aos anseios da Geografia da Religio objeto de nossas prximas discusses.

    No entanto, no podemos deixar de mencionar que os avanos epistemolgicos da Geografia Cultural refletiram em potencialidades para os estudos da Geografia da Religio. Um dos grandes feitos reside na mudana de escala das anlises, antes focadas em grandes paisagens e regies, passando a permitir o estudo de espaos mais reduzidos, como um bairro, uma rua ou um santurio (SANTOS, 2006).

    Com a reformulao da Geografia Cultural, a Religio passou a fazer parte mais intensamente do rol das atividades culturais assim demarcadas pelos gegrafos, sendo vista at pelos seus aspectos simblicos. Assim, o foco desses estudos conseguiu ir alm das materializaes espaciais da religio, chegando at o modo como as pessoas ao vivenciarem suas crenas interpretam estes espaos.

    SOBRE A DISCIPLINA GEOGRAFIA DA RELIGIO

    De acordo com a subdiviso que realizam os gegrafos nesta cincia, estabelecendo nomenclaturas singulares s suas reas de especializao, em consonncia com as atividades que diretamente estudam7, a religio, como seu alusivo nome indica, analisada de forma mais acentuada pela disciplina Geografia da Religio. Situada mais acertadamente como subramo integrante da Geografia Cultural, pelas relaes estreitas existentes entre os aspectos religiosos e culturais exprimidos por pessoas e lugares, a Geografia da Religio enquadra-se mais perfeitamente na Geografia Humana (FICKELER, 2008).

    A Geografia da Religio8, como parte da Geografia que tece preocupaes acerca dos fatos religiosos, relacionando-os a quadros espaciais, faz atualmente um uso significativo de abordagens que privilegiam as compreenses dos seres humanos frente aos fenmenos simblico-religiosos. Por ordem, esta tem a tarefa de investigar e explicar as relaes entre a religio e a realidade geogrfica dos lugares.

    Enquanto disciplina, a Geografia da Religio passou por algumas etapas de evoluo (Ver Figura 1). Remontando ao perodo da Antiguidade grega, a partir dos sculos XVI e XVII que se denotam os primeiros indcios de conhecimentos referidos classificao geogrfica sobre a religio. Fazendo-se de informaes teolgicas, sobretudo para cartografar os lugares religiosos, os gegrafos contriburam nessa mesma poca para a sistematizao do que se chamou de Geografia eclesistica. Ao mesmo tempo do desenrolar desta ltima, ainda no decurso do sculo XVII, surge da necessidade e vontade do gegrafo de identificar, localizar e representar os lugares descritos pela Bblia a, denominada Geografia bblica, conhecimento que se estende at o incio do sculo XX. Este um perodo que se caracteriza incisivamente por estudos descritivos, geralmente analisando o cristianismo em seu nvel de crescimento (SANTOS, 2006).

    Segundo Santos (2006), a partir do Ps Segunda Guerra Mundial que acontece o movimento de despertar da verdadeira Geografia da Religio, agora baseado essencialmente em conhecimentos geogrficos formais, cujas informaes religiosas serviam apenas de suporte ao entendimento das realidades espaciais. No andamento do processo de evoluo, entre os anos

    7 o que Hissa (2002) chama de distritos do saber. Como por exemplo: Geografia do Turismo, Geografia da

    Indstria, Geografia Agrria, Geografia da Sade, dentre outras. 8 Em contribuio e acrscimo: a expresso Geografia da Religio foi usada pela primeira vez pelo telogo alemo

    Goulieb Kasche, em 1795. Bernhard Varenius (1649), por sua vez, pode ser compreendido como o precursor deste campo disciplinar. J Kant (1724-1808) pode ser visto como o fundador de uma moderna Geografia da Religio. Mas somente com os trabalhos de Fickeler (1947) e Deffontaines (1948) que surge a disciplina cientfica Geografia da Religio. Ver de forma mais amide sobre estes acontecimentos em Santos (2006), de onde tiramos estes esclarecimentos.

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    Antiguidade clssica

    1960 e 1970 que vem a ocorrer o perodo da construo9 disciplinar. Foi durante estes dois momentos citados por ltimo que paisagens e territrios passaram a ser mais bem analisados pelos seus aspectos de influncia religiosa.

    ......................................----------------------------------------------------- Sculos XVI-XIX

    Sculo XX

    Figura 1- Antecedentes, gnese e evoluo da Geografia da Religio (esquema-sntese)

    Fonte: Adaptado parcialmente de SANTOS (2006, p. 128).

    Somente no incio dos anos 1980 que a Geografia da Religio conhece seu processo de consolidao, firmando-se como campo reconhecido no seio da cincia geogrfica. Assim, com a validao cientfica, surge a oportunidade de inovaes nos mtodos de estudo, no por acaso seguindo as transformaes do processo de renovao da Geografia Cultural. O homem passa a ser visto por sua individualidade religiosa, o que enriquece as possibilidades deste campo de estudos. J o sculo XXI, diante do aumento das mazelas que vivem a populao num todo, desponta com muitos desafios a Geografia da Religio, requerendo respostas inteligveis no que concerne ao entendimento da formatao de quadros espaos-religiosos, suscitando novos caminhos de investigao (SANTOS, 2006).

    Tanto em nvel nacional como mundial, ganham cada vez mais importncia na cincia geogrfica discusses sobre os efeitos das diversas legendas religiosas. Cresce o nmero de departamentos, ncleos10, revistas, encontros e grupos de pesquisas11 de Geografia que incorporam esta temtica em seus anseios universitrios. Mesmo ainda em estgio inicial de evoluo, no Brasil o estudo geogrfico da religio conhece alguns nomes destacveis neste tratamento. Aqui relacionamos alguns desses: FRANA, 197212; ROSENDAHL, 1996; OLIVEIRA, 2001; GIL FILHO, 2001.

    Recentemente, a gegrafa Maria da Graa Poas Santos dispensou ao campo da Geografia da Religio uma ampla e significativa contribuio. Fruto de seu trabalho de 9 Santos (2006, p.174) apresenta um quadro-sntese com os nomes dos principais autores que concorreram com seus

    trabalhos para a construo do corpo terico da disciplina Geografia da Religio. 10 Em termos nacionais, o NEPEC (Ncleo de Estudos e Pesquisas sobre Espao e Cultura), coordenado pela

    professora doutora Zeny Rosendahl, que funciona na UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), destaca-se pelo trabalho desempenhado nesta rea. Ver: www.nepec.com.br. O NUPPER (Ncleo Paranaense de Pesquisas em Religio), sob coordenao do professor doutor Sylvio Fausto Gil Filho, da UFPR (Universidade Federal do Paran), outro meio de discusso geogrfica da Religio. Ver: http://www.geog.ufpr.br/nupper/.

    11 Como exemplo, citamos o grupo ESTUDOS GEOEDUCACIONAIS - Turismo, Religiosidade e Planejamento Regional na Formao do Imaginrio Geogrfico do qual fazemos parte, coordenado pelo professor doutor Christian Dennys Monteiro de Oliveira, cadastrado pelo CNPQ (Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico) e que se encontra vinculado ao LEGE (Laboratrio de Estudos Geoeducacionais) do Departamento de Geografia da UFC. Ver: www.lege.ufc.br.

    12 Este trabalho configura-se como um estudo precursor na rea da Geografia da Religio brasileira.

    GEOGRAFIA DA RELIGIO

    Geografia bblica

    Geografia eclesistica

    Anos 40-50 -Despertar-

    Anos 60-70 -Construir-

    Anos 80-90 -Consolidar-

    Sculo XXI -Novos caminhos-

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    doutoramento, a obra em destaque se intitula Espiritualidade, Territrio e Turismo: Estudo Geogrfico de Ftima. Privilegiando uma tica da Geografia Cultural, situando a a Geografia da Religio, a autora portuguesa buscou entender as dimenses espacial, religiosa e espiritual exercidas pelo Santurio de Ftima de Portugal, entendendo-o como um atrativo religioso e turstico. Para tanto, parte de uma noo de territrio enquanto construo social que carrega vertentes de ordem material e temporal. O INTERESSE DA GEOGRAFIA PELA RELIGIO

    O mundo se revela por uma constituio crescente de simbologias interferentes na

    existncia social de pessoas e lugares. As atividades culturais a que o homem proporciona animao so por ordem segmentos de suas imagens simblicas, conforme indica Cassirer (2001). Expressas espacialmente, estas aes desenvolvem arranjos territoriais legtimos, s passveis de compreenso perante uma leitura das significaes que lhes so direcionados (SOUZA, 2009).

    Muito influenciadas pelas ideologias do historiador Mrcea Eliade, as investigaes geogrficas sobre a religio tm se pautado pela dualidade conceitual entre sagrado e profano. Segundo este autor, esses so os dois modos possveis de existncia do ser humano no mundo. Deste feito, no que tange s refletncias do espao sagrado, o homem deseja situar-se num centro, l onde existe a possibilidade de comunicao com deuses (ELIADE, 2008, p.141). Em geral, o que fica fora deste centro se torna espao profano.

    Contudo, a compreenso do acontecimento de processos, encontros e misturas culturais no mundo atual, cada vez mais heterogneo, nos leva ao entendimento de que sagrado e profano podem, porventura, ser analisados em conjunto num mesmo recorte espacial como espaos sacro-profanos , no sendo gerada necessariamente esta separao, ainda quando reconhe-cemos a importncia didtica desta. Afinal, no existe uma fronteira cultural ntida ou firme entre grupos, e sim, pelo contrrio, um continuum cultural. (BERKER, 2003, p.14). Diante de um mundo de carter hbrido, a cincia de hoje exige a produo de conhecimentos holsticos, conseguidos pela interpenetrao de saberes (HISSA, 2002). No far mal algum Geografia se for buscar em outras cincias conhecimentos para se enriquecer.

    Em todo caso, a heterogeneidade cultural-religiosa de lugares e pessoas reclama incessantemente da Geografia uma posio crtica na produo de consideraes analticas diante dos fenmenos religiosos. A religio imprime uma marca na paisagem atravs da cultura. (ROSENDAHL, 2008, p. 66). Portanto, eis mais um desafio ao gegrafo: desvendar as signi-ficaes espaciais disseminadas pela religio. Sobre esta incumbncia, Santos (2006, p.167) assinala:

    [...] tarefa do gegrafo da religio procurar discernir, no conjunto dos fatores explicativos (sociais, culturais, econmicos etc.) das transformaes do espao, quais so os elementos especificamente religiosos que a elas conduzem e qual o seu peso relativo nesse processo. Deve ter-se em conta que a religio no um fenmeno esttico, devendo ser situada no tempo e no espao, interpretando as mudanas temporalmente registradas e as mutaes espaciais da decorrentes.

    No que se remete ao interesse da Geografia pelo estudo da Religio, a assertiva nos

    parece mais do que legtima. A Religio, pelo menos na sua expresso institucional, possui uma base territorial de existncia, e s este fato j justifica a anlise precedida. Porm, algumas mentes por demais prticas e racionalistas no conseguem estabelecer relao sobre as duas reas em discusso. Em nossa compreenso, certo que a cultura religiosa proporciona um considervel campo de anlise para a Geografia.

    Os fenmenos religiosos, como factos culturais e sociais, apresentam considerveis implicaes em termos espaciais, especialmente visveis quando se trata de grandes sistemas religiosos, em geral profundamente gravados no espao, desde logo porque propem aos respectivos crentes uma explicao da

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    ordem do universo (cosmogonia), muitas vezes presente tambm, em termos simblicos, no modo como modelam os seus espaos, nomeadamente no que se refere s suas formas arquitetnicas. semelhana do que, mais generi-camente, se pode afirmar para a cultura, a religio uma forma de pensar o espao e, a partir desta relao, possvel at, em certos casos, identificar regies culturais cuja marca distintiva fundamental dada pelo elemento religioso (SANTOS, 2006, p.110).

    Reconhecendo o espao como foco central da anlise geogrfica, seria possvel negarmos a relao entre Religio e Geografia? Ao contrrio, s possvel enxergarmos uma ntima relao. A Religio tem grande relevncia espacial, no podendo ficar fora das anlises geogrficas. Park apud Santos (2006, p. 126) complementa estas nossas palavras:

    Uma geografia que ignora o que podemos chamar o sobrenatural negligencia alguns dos mais fortemente enraizados detonadores das atitudes e dos comportamentos humanos, cega a algumas dimenses crticas da humanidade e passa ao lado de algumas implicaes profundamente significativas nos padres geogrficos da actividade humana.

    Alastrando formas e simbolismos pelas mais distintas realidades geogrficas,

    (re)dimensionando a estruturao de territrios, a religio , por isso mesmo, compreendida tambm como um fenmeno de implicaes geogrficas. Em muito, a cincia geogrfica vem detendo seus principais estudos nesta linha geogrfico-religiosa partindo da anlise de templos e santurios, ou seja, de lugares consagrados.

    Contribuindo com a anlise em tela, Bonnemaison (2002) se expe em propor o termo conceitual geossmbolo. Por nosso entendimento, foi a partir das expresses geogrficas das formas simblicas e atravs de sua tentativa de facilitar parcial e didaticamente a compreenso do processo de como um smbolo pode ser compreendido pela geografia que faz desenvolver, e ainda, por pensar como um objeto geogrfico pode se tornar examinvel pelas suas relaes simblicas, que este gegrafo nos apresentou esta exequvel contribuio ao campo da Geografia Cultural. Na mesma obra citada, Bonnemaison ressalta:

    Conduzido a um aprofundamento dos conceitos de cultura, etnia e territrio, a abordagem cultural nos leva a definir um espao novo: o espao dos geossmbolos. Um geossmbolo pode ser definido como um lugar, um itinerrio, uma extenso que, por razes religiosas, polticas ou culturais, aos olhos de certas pessoas e grupos tnicos assume uma dimenso simblica que os fortalece em sua identidade (p.109).

    Por esta assertiva, podemos reconhecer que quando o espao visto por seus elementos culturais, existir sempre um entendimento geossimblico incutido nesta compreenso, e que o geossmbolo realiza-se espacialmente por um vis simblico-cultural que faz marcar ou reforar a identidade de pessoas ou de uma coletividade frente a um territrio especfico. Destarte, espaos de valores simblicos se enquadram perfeitamente na qualidade de geossmbolos, como os santurios, shoppings, museus, cemitrios, procisses religiosas, comemoraes festivas etc., tratando-se de formas simblicas de rico contedo geogrfico (CORRA, 2007b).

    Dentre os mtodos de pesquisa empregados no campo de atuao estudante dos fenmenos religiosos por um olhar geogrfico, o caminho fenomenolgico parece ser um dos mais requisitados. Surgido de um novo contexto Geografia Cultural aps seu processo de renovao, as representaes subjetivas13 passaram a ter importncia premente nesses tipos de

    13 O filsofo Gaston Bachelard, quando est falando de Fenomenologia do Redondo, em seu livro A Potica do

    Espao, nos deixa a seguinte reflexo: As imagens da redondeza plena ajudam a nos congregarmos em ns mesmos, a darmos a ns mesmos uma primeira constituio, a afirmar o nosso ser intimamente, pelo interior (BACHELARD, 1988, p. 237).

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    estudo. Desta forma, quando o estudo geogrfico da religio aposta por uma anlise fenomenolgica compreende que cada ser humano possui um mundo somente seu, em contraponto ao mundo nico objetivo das cincias positivistas (NOGUEIRA, 2004, p.229) e que a religio faz parte das idealizaes, ou seja, das representaes que os seres humanos fazem de seu mundo e de si mesmos (HOUTART, 1994, p. 25).

    A Geografia Humanista, quando associada fenomenologia, enquanto maneira distinta de enxergar as relaes geogrficas, remete o homem ao centro de suas anlises, tirando-lhe de uma situao secundria e limitada. De acordo com esse novo paradigma de conhecer o mundo, no somente em sua percepo do mundo, mas tambm pelo imaginrio que elabora acerca do meio em que vive, torna-se possvel uma reflexo do fenmeno religioso na Geografia (ROSENDAHL, 1996, p.23). Ela vai ao encontro da dimenso subjetiva do homem, entendendo-a como possuidora de fortes incidncias geogrficas. Nesta ordem, os fenmenos so analisados e apresentados a partir de onde ganham vida, do ntimo de cada ser.

    Segundo a concepo fenomenolgico-geogrfica, afirma-se que o lugar s ganha feies sagradas pela relao mitolgica e simblica criada na e pela imaginao do indivduo crente. Porm, sabe-se que a instituio de poder religioso que idealiza o espao sagrado em grande medida responsvel pelas consideraes imaginrias de sua demanda de fiis.

    Nesta perspectiva, Paul Claval (1999, p.53) afirma:

    Insistindo sobre o sentido dos lugares, sobre a importncia do vvido, sobre o peso das representaes religiosas, torna indispensvel um estudo aprofundado das realidades culturais. necessrio conhecer a lgica profunda das ideias, das ideologias ou das religies para ver como elas modelam a experincia que as pessoas tm do mundo e como confluem sobre sua ao (CLAVAL, 1999, p.53).

    , pois, verdade que nos estudos geogrficos da religio cada vez mais se mostra

    alentadora a considerao das representaes imaginrias do indivduo religioso14. Representaes geogrficas estas que podem, alm de ser religiosas, configurar-se por outras naturezas, tursticas por exemplo, dada a atrao exercida. CONSIDERAES FINAIS Tomando parte dos encaminhamentos dirigidos principalmente por Santos (2006) e Rosendhal (2008), foi de nossa inteno apresentar ao longo deste texto um quadro histrico e terico referente discusso da religio pela Geografia. Apostamos, ento, na ideia de que para se fazer uma Geografia da Religio consistente se torna necessria a realizao de um fundamentado embasamento nos preceitos da renovada Geografia Cultural, mesmo reconhecendo outras possibilidades. Oportunamente, somos favorveis considerao de que a contnua reconstruo terica da disciplina Geografia da Religio acontecer de forma mais significativa quando baseada em correlao com pesquisas empricas. Neste sentido, o Brasil se mostra como um pas-laboratrio expressivo, dada a sua variedade religiosa.

    Comungando com tudo o que j foi dito, no nos restam dvidas de que a religio pode ser um meio de entendimento das configuraes espaciais de um lugar, assim como o inverso tambm pode ser verdadeiro.

    14 Em ttulo de curiosidade e complemento: Claval (1999) lembra que Yi-Fu Tuan, no que se trata de fenomenologia,

    preferia usar o termo abordagem humanista, acreditando que as preocupaes humansticas, em suas abrangncias, do conta de encerrar a questo de possibilitar voz ao ser. Tuan, por vez, traz em sua obra Topofilia (1980) um apanhado de casos fenomenolgicos que demonstram como diversas culturas exprimem significados dos mais variados aos mais diferentes atributos simblicos do espao social.

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