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Quarta Parte: A DOUTRINA DA APLICAÇÃO DA OBRA DE REDENÇÃO I. Soteriologia em Geral A. Relação entre Soteriologia e os Loci Anteriores. A soteriologia trata da comunicação das bênçãos da salvação ao pecador e seu restabelecimento ao favor divino e à vida de íntima comunhão com Deus. Esta doutrina pressupõe conhecimento de Deus como a fonte da vida, do poder e da felicidade da humanidade, e da completa dependência em que o homem está de Deus, para o presente e para o futuro. Desde que ela trata de restauração, redenção e renovação, só pode ser apropriadamente compreendida à luz da condição originária do homem, criado à imagem de Deus, e da subseqüente perturbação da adequada relação entre o homem e o seu Deus, perturbação causada pela entrada do pecado no mundo. Além disso, visto tratar da salvação do pecador considerada totalmente como obra de Deus, conhecida dele desde a eternidade, naturalmente ela transporta os nossos pensamentos retroativamente para o eterno conselho de paz e para a aliança da graça, em que foi feita a provisão para a redenção do homem decaído. A soteriologia parte da pressuposição da obra consumada de Cristo como o Mediador da redenção. Há a mais íntima relação possível entre a cristologia e a soteriologia. Alguns, como, por exemplo, Hodge, tratam de ambas sob o título comum de “Soteriologia”. Neste caso, a cristologia se torna soteriologia objetiva, distinguindo-se da soteriologia subjetiva. Ao definir-se o conteúdo da soteriologia, é melhor dizer que ela trata da aplicação da obra de redenção , que dizer que trata da apropriação da salvação . A matéria deve ser estudada teológica, e não antropologicamente. A obra de Deus, e não a do homem, é que está em primeira plana. Pope faz objeção ao uso da primeira expressão, visto que, ao empregá- la, “corremos o risco de cair no erro predestinacionista, que supõe que a obra de Cristo, concluída, é aplicada ao pecador de acordo com o propósito pré- fixado de uma eleição da graça”. Esta é  justamente a razão pela qual o calvinista prefere o suo daquela expressão. Todavia, para fazer justiça a Pope, deve-se acrescentar que ele faz objeção à outra expressão também, porque ela “tende ao outro extremo, pel agiano, muito obviamente fazendo da provisão de Cristo uma matéria de livre aceitação ou rejeição individual”. Ele prefere falar em “administração da redenção” , que, na verdade, é uma boa expressão.1 B. A Ordo Salutis (a Ordem da Salvação). Os alemães falam em “Heilsaneignum ”, os holandeses em “Heilsweg ” e “Orde de Heils ” e em inglês temos “Way of Salvation ”. A ordo  salutis descreve o processo pelo qual a obra de salvação, realizada em Cristo, é concretizada subjetivamente nos corações e vidas dos pecadores. Visa a descrever, em sua ordem lógica e também em sua inter-relação, os vários movimentos do Espírito Santo na aplicação da obra de redenção. A ênfase não recai no que o homem faz, 1 Christian Theology II, p. 319.

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Quarta Parte: A DOUTRINA DA APLICAÇÃO DA OBRA DE REDENÇÃO

I. Soteriologia em Geral

A. Relação entre Soteriologia e os Loci Anteriores.A soteriologia trata da comunicação das bênçãos da salvação ao pecador eseu restabelecimento ao favor divino e à vida de íntima comunhão com Deus. Estadoutrina pressupõe conhecimento de Deus como a fonte da vida, do poder e dafelicidade da humanidade, e da completa dependência em que o homem está deDeus, para o presente e para o futuro. Desde que ela trata de restauração,redenção e renovação, só pode ser apropriadamente compreendida à luz dacondição originária do homem, criado à imagem de Deus, e da subseqüenteperturbação da adequada relação entre o homem e o seu Deus, perturbaçãocausada pela entrada do pecado no mundo. Além disso, visto tratar da salvaçãodo pecador considerada totalmente como obra de Deus, conhecida dele desde a

eternidade, naturalmente ela transporta os nossos pensamentos retroativamentepara o eterno conselho de paz e para a aliança da graça, em que foi feita aprovisão para a redenção do homem decaído. A soteriologia parte dapressuposição da obra consumada de Cristo como o Mediador da redenção. Há amais íntima relação possível entre a cristologia e a soteriologia. Alguns, como, porexemplo, Hodge, tratam de ambas sob o título comum de “Soteriologia”. Nestecaso, a cristologia se torna soteriologia objetiva, distinguindo-se da soteriologiasubjetiva. Ao definir-se o conteúdo da soteriologia, é melhor dizer que ela trata daaplicação da obra de redenção , que dizer que trata da apropriação da salvação . Amatéria deve ser estudada teológica, e não antropologicamente. A obra de Deus,e não a do homem, é que está em primeira plana. Pope faz objeção ao uso da

primeira expressão, visto que, ao empregá-la, “corremos o risco de cair no erropredestinacionista, que supõe que a obra de Cristo, concluída, é aplicada aopecador de acordo com o propósito pré-fixado de uma eleição da graça”. Esta é

 justamente a razão pela qual o calvinista prefere o suo daquela expressão.Todavia, para fazer justiça a Pope, deve-se acrescentar que ele faz objeção àoutra expressão também, porque ela “tende ao outro extremo, pelagiano, muitoobviamente fazendo da provisão de Cristo uma matéria de livre aceitação ourejeição individual”. Ele prefere falar em “administração da redenção” , que, naverdade, é uma boa expressão.1B. A Ordo Salutis (a Ordem da Salvação).

Os alemães falam em “Heilsaneignum ”, os holandeses em “Heilsweg ” e “Orde 

de Heils ” e em inglês temos “Way of Salvation ”. A ordo   salutis  descreve oprocesso pelo qual a obra de salvação, realizada em Cristo, é concretizadasubjetivamente nos corações e vidas dos pecadores. Visa a descrever, em suaordem lógica e também em sua inter-relação, os vários movimentos do EspíritoSanto na aplicação da obra de redenção. A ênfase não recai no que o homem faz,

1 Christian Theology II, p. 319.

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ao apropriar-se da graça de Deus, mas no que Deus faz, ao aplicá-la. Não é nadamais que natural que os pelagianos se oponham a este conceito.

O desejo de simplificar a ordo   salutis  levou muitas vezes a limitaçõesinfundadas. Weisaecker inclui nela somente as operações do Espírito Santoacionadas no coração do homem, e sustenta que, nem a vocação nem a

 justificação, podem propriamente ser incluídas nesta categoria.2 Kaftan, o maisproeminente dogmático da escola de Ritschl, é de opinião que a ordo salutis  tradicional não constitui uma unidade interna e, portanto, deveria ser dissolvida.Ele trata da vocação sob a Palavra como meio de graça; da regeneração, da

 justificação e da união mística sob a obra redentora de Cristo; e relega aconversão e a santificação aos domínios da ética cristã. O resultado é que só ficarestando a fé, e esta constitui a ordo salutis .3 Segundo ele, a ordo salutis só deveincluir o que é exigido da parte do homem para a salvação, e isso é a fé, a fé somente   – um ponto de vista puramente antropológico, o que provavelmenteencontra a sua explicação na tremenda ênfase da teologia luterana à fé ativa.

Quando falamos de uma ordo salutis , não nos esquecemos de que a ação de

aplicar a graça de Deus ao pecador individual é um processo unitário, massimplesmente ressaltamos o fato de que é possível distinguir vários movimentosno processo, que a obra de aplicação da redenção segue uma ordem definida erazoável, e que Deus não infunde a plenitude da Sua salvação ao pecador numato único. Fizesse isso, a obra de redenção não viria à consciência dos filhos deDeus em todos os seus aspectos e em toda a sua plenitude divina. Tampoucoperdemos de vista o fato de que muitas vezes utilizamos os termos empregadospara descrever os diversos movimentos num sentido mais limitado que o da Bíblia.

Pode-se levantar a questão sobre se a Bíblia alguma vez indica uma ordo salutis  definida. A resposta é que, embora ela não nos dê explicitamente umaordem da salvação completa, oferece-nos base suficiente para a referida ordem. A

melhor aproximação a algo como uma ordo salutis na Escritura é a declaração dePaulo em Rm 8.29,30. Alguns teólogos luteranos baseavam artificialmente aenumeração dos vários movimentos na aplicação da redenção em At 26.17,18.Mas, conquanto a Bíblia não nos dê uma nítida ordo  salutis , ela faz duas coisasque nos ajudam a elaborar uma ordem. (1) Dá-nos uma completa e ricaenumeração das operações do Espírito Santo na aplicação da obra realizada porCristo a pecadores individuais, e das bênçãos da salvação comunicadas a eles.Ao fazê-lo, ela nem sempre usa os termos empregados na dogmática, masfreqüentemente recorre ao uso de outros nomes e figuras de linguagem. Alémdisso, muitas vezes ela emprega termos que vieram a adquirir sentido técnicomuito definido na dogmática, de forma muito mais ampla. Palavras como

regeneração, vocação, conversão e renovação, repetidamente servem paradesignar toda a transformação que se opera na vida interior do homem. (2) Elaindica, em muitas passagens e de muitas maneiras, a relação que os diferentesmovimentos atuantes na obra de redenção mantêm uns com os outros. Ela ensina

22 Cf. McPherson, Chr. Dogm., p. 368.

3 Dogm., p. 651.

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que somos justificados pela fé, e não pelas obras, Rm 3.30; 5.1; Gl 2.16-20; que,sendo justificados, temos paz com Deus e acesso a ele, Rm 5.1,2; que ficamoslivres do pecado para tornar-nos servos da justiça, e para colhermos o fruto dasantificação, Rm 6.18,22; que, quando somos adotados como filhos,4 recebemoso Espírito, que nos dá segurança, e também nos tornamos co-herdeiros com

Cristo, Rm 8.15-17; Gl 4.4-6; que a fé vem pelo ouvir a Palavra de Deus, Rm10.17; que a morte para a lei redunda em vida para Deus, Gl 2.19,20; que, quandocremos, somos selados com o Espírito de Deus, Ef 1.13, 14; que é necessárioandar de modo digno da vocação com que somos chamados, Ef 4.1,2; que, tendoobtido a justiça de Deus pela fé, participamos dos sofrimentos de Cristo, tambémdo poder da ressurreição, Fp 3.9,10; e que somos gerados de novo mediante aPalavra de Deus, 1 Pe 1.23. Estas passagens e outras semelhantes indicam arelação dos vários movimentos da obra redentora, uns com os outros, e, assim,dão base para a elaboração de uma ordo salutis .

E567 Posteriormente, os teólogos reformados (calvinistas) corrigiram estedefeito. As seguintes exposições da ordem da salvação refletem as concepções

** Adoção de filhos, no grego hyothesia. Sua natureza, quanto aos cristãos, pode ser mais bem entendida à luz

de passagens como Jo 1.12; Ef 2.1-10; 1 Jo 3.1,2, inclusas as citadas por Berkhof. Nota do tradutor.

m vista do fato de que a Bíblia não especifica a ordem exata seguida na aplicação da obrade redenção, há naturalmente amplo espaço para diferenças de opinião. E, de fato, asigrejas não estão todas de acordo quanto a ordo salutis. A doutrina da ordem da salvaçãoé fruto da Reforma. Dificilmente se achará nas obras dos escolásticos algo que se lheassemelhe. Na teologia da Pré-Reforma pouca justiça é feita a soteriologia em geral. Elanão constitui um lócus separado, e suas partes constitutivas são discutidas sob outrasrubricas, mais ou menos como disjecta membra (membros diversos). Mesmo os maioresescolásticos, como Pedro Lombardo e Tomaz de Aquino, passam diretamente da

discussão da encarnação para a da igreja e dos sacramentos. O que se pode chamar desoteriologia consiste apenas de dois capítulos, de Fide et de Poenitentia (Da Fé e DoArrependimento). As bona opera (boas obras) também recebem considerável atenção.Desde que o protestantismo teve como ponto de partida a crítica e a remoção do conceitocatólico romano de fé, arrependimento e boas obras, era simplesmente natural que ointeresse dos Reformadores se centralizasse na origem e desenvolvimento da nova vidaem Cristo. Calvino5 Vide um bom resumo da posição de Calvino quanto à ordo salutis em Berkhof, The

 History of Christian Doctrines, p. 224,225. Nota do tradutor.

foi o primeiro a agrupar as várias partes da ordem da salvação de maneira sistemática,mas mesmo a sua formulação, diz Kuyper, é um tanto subjetiva, visto que salientaformalmente a atividade humana, e não a divina.6 Dict . Dogm., De Salute, p. 17,18.

 Quanto à posição de Kuyper de que a ênfase de Calvino é à atividade humana, é estranha essa opinião,

porque as exposições básicas de Calvino a contrariam. Ver, e.g, Institutas, Livro III, cap. I e cap. II. Traduzo etranscrevo algumas expressões significativas: “Devemos ver agora de que modo nos tornamos  possuídos das

bençãos que Deus conferiu ao Seu unigênito Filho, não para uso particular, mas para enriquecer os pobres e

necessitados. E a primeira coisa a que devemos dar atenção é que, se estivermos sem Cristo e separados dele,

não teremos nem o menor benefício daquilo que Ele sofreu e fez pela salvação da espécie humana. Para

comunicar-nos as bençãos que Ele recebeu do Pai, Ele precisava tornar-se nosso e habitar em nós” (III, I, 1).

Calvino cita 1 Pe 1.2 e 1 Co 6.11 para argumentar que o derramamento do sangue de Cristo só não será vão se

formos lavados pela “secreta purificação do Espírito Santo”, e termina esse ponto dizendo que “o Espírito

Santo é o laço pelo qual Cristo se une efetivamente a nós” (ibid). – O assunto que poderia dar margem ao

 julgamento de Kuyper é o da fé, que Calvino define em termos de conhecimento. Mas este conhecimento se

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fundamentais do método de salvação que caracterizam as diversas igrejas, desdea Reforma.

1. O CONCEITO REFORMADO (CALVINISTA). Partindo do pressuposto deque a condição espiritual do homem depende do seu estado, isto é, da suarelação com a lei; e que é somente com base na imputada justiça de Jesus Cristo

que o pecador fica livre da influência corruptora e destrutiva do pecado, asoteriologia reformada (calvinista) toma o seu ponto de partida na uniãoestabelecida no pactum salutis (aliança da redenção) entre Cristo e aqueles que oPai Lhe deu, em virtude da qual há uma imputação eterna da justiça de Cristoàqueles que Lhe pertencem. Em vista desta prioridade do legal sobre o moral,alguns teólogos, como Maccovius, Comrie, A. Kuyper e A. Kuyper Jr. Começam aordo salutis  com a justificação, e não com regeneração. Ao fazê-lo, aplicam onome “justificação” também à imputação ideal da justiça de Cristo aos eleitos noeterno conselho de Deus. O dr. Kuyper diz, ademais, que os reformados diferemdos luteranos em que aqueles ensinam a justificação per justitiam Christi  (pela

 justiça de Cristo), ao passo que estes dizem que a justificação per fidem (pela fé)

completa a obra de Cristo.8 Contudo, em sua grande maioria, os teólogosreformados, embora pressupondo a imputação da justiça de Cristo no pactum salutis , discutem somente a justificação pela fé na ordem da salvação, enaturalmente fazem a discussão disso em conexão com a da fé ou imediatamentedepois desta. Eles principiam a ordo salutis com a regeneração ou com a vocaçãoe, assim, salientam o fato de que a aplicação da obra redentora de Cristo é, emseu início, uma obra de Deus. Segue-se a isto uma discussão da conversão, naqual a obra da regeneração penetra a vida consciente do pecador, e ele se voltado ego, do mundo e de Satanás para Deus. A conversão inclui o arrependimento ea fé, devido à sua grande importância, esta é geralmente estudadaseparadamente. A discussão da fé leva naturalmente à da justificação,

considerando que esta nos é mediada pela fé. E porque a justificação coloca ohomem numa nova relação com Deus, levando junto consigo a dádiva do Espíritode adoção e impondo ao homem uma nova obediência, e também lhe dandocapacidade para fazer de coração à vontade de Deus, a obra de santificação éconsiderada logo a seguir. Finalmente, conclui-se a ordem da salvação com adoutrina da perseverança dos santos e a sua glorificação final.

Bavinck distingue três grupos de bênçãos da salvação. Começa dizendo que opecado é culpa, corrupção e miséria, pois envolve rompimento da aliança dasobras, perda da imagem de Deus e sujeição ao poder da corrupção. Cristo livrou-nos dos três males com o Seu sofrimento, satisfazendo as exigências da lei e coma Sua vitória sobre a morte. Conseqüentemente, as bênçãos de Cristo consistem

dos seguintes fatos: (a) Ele restabelece a relação correta do homem com Deus e

deve à ação divina. Observe-se esta def inição colhida da extensa exposição que o Reformador faz da fé: Fé “é

um firme e seguro conhecimento do favor divino para conosco, fundado na verdade da livre promessa em

Cristo, e revelada a nossas mentes e selada em nossos corações pelo Espírito Santo” (III, II, 7). Duas

observações: Utilizei a tradução inglesa de H. Beveridge, edição de 1964 (estas anotações as fiz em 1968,

quando professor no SPS); os grifos são meus. Nota do tradutor.

8 Dict . Dogm., De Salute, p. 69.

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com todas as criaturas pela justificação, incluindo o perdão dos pecados, a adoçãode filhos, a paz com Deus e uma gloriosa liberdade. (b) Ele renova o homem àimagem de Deus pela regeneração, pela vocação interior, pela conversão, pelarenovação e pela santificação. (c) Ele preserva o homem para a sua herançaeterna, livra-o do sofrimento e da morte, e lhe dá posse da salvação eterna pela

preservação, pela perseverança e pela glorificação. O primeiro grupo de bênçãosnos é concedido pela iluminação do Espírito Santo, é aceito pela fé e põe emliberdade a nossa consciência. O segundo nos é dado pela obra regeneradora doEspírito Santo, renova-nos e nos redime do poder do pecado. E o terceiro nos vempela obra de preservação, direção e selagem do Espírito Santo, como o penhor danossa completa redenção, e nos liberta, corpo e alma, do domínio da miséria e damorte. O primeiro grupo nos unge como profetas, o segundo, como sacerdotes, eo terceiro, como reis. Em conexão com o primeiro, olhamos retrospectivamentepara a obra consumada por Cristo na cruz, onde os nossos pecados foramexpiados; em conexão com o segundo, olhamos para as alturas, para o Senhorque vive no céu e que, como Sumo Sacerdote, está assentado à destra do Pai; e

em conexão com o terceiro, olhamos prospectivamente, para a futura vinda deJesus Cristo, quando Ele sujeitará todos os inimigos e entregará o reino ao Pai.Há algumas coisas que devemos Ter em mente, com relação a ordo salutis ,

como esta aparece na teologia reformada (calvinista).a. Alguns termos nem sempre são empregados no mesmo sentido. O termo

 justificação  limita-se geralmente ao que se chama justificação pela fé, mas àsvezes se lhe dá um sentido que abrange uma justificação objetiva dos eleitos naressurreição de Jesus Cristo e a imputação da justiça de Cristo a eles no pactum salutis . Igualmente a palavra regeneração , que agora geralmente designa o ato deDeus pelo qual Ele infunde o princípio da nova vida no homem, também éempregada para designar o novo nascimento ou a primeira manifestação da nova

vida, e na teologia do século dezessete ela ocorre freqüentemente como umsinônimo de conversão, ou mesmo de santificação. Alguns falam dela comoconversão passiva , em distinção da conversão propriamente dita, que, neste caso,é chamada conversão ativa .

b. Várias outras distinções também merecem atenção. Devemos distinguircuidadosamente entre os atos judiciais e os atos recriadores de Deus, aqueles(como a justificação), alterando o estado ou posição, e estes (como a regeneraçãoe a conversão), alterando a condição do pecador;  – entre a obra realizada peloEspírito Santo no subconsciente (regeneração), e a obra realizada na vidaconsciente (conversão); – entre aquilo que se refere ao despojamento do homemvelho (arrependimento, crucificação do homem velho), e aquilo que constitui o

revestimento do homem novo (regeneração e, em parte, santificação);  – e entre oprincípio da aplicação da obra de redenção (na regeneração e na conversãopropriamente dita), e a continuação dessa aplicação (na conversão diária e nasantificação).

c. Em conexão com os vários movimentos atuantes na obra de aplicaçãodevemos Ter em mente que os atos judiciais de Deus constituem a base dos Seusatos recriadores, de modo que a justificação, embora não temporalmente, é, nãoobstante, logicamente anterior a tudo mais;  – que a obra realizada por Deus no

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subconsciente precede à que é realizada na vida consciente, de modo que aregeneração precede à conversão; e que os atos judiciais de Deus (justificação,incluindo o perdão de pecados e a adoção de filhos) sempre se dirigem àconsciência, ao passo que, dos atos recriadores, um, a saber, a regeneração, temlugar na vida subconsciente.

2. O CONCEITO LUTERANO. Os luteranos, embora não negando asdoutrinas da eleição, da união mística e da imputação da justiça de Cristo, nãotêm o seu ponto de partida em nenhuma delas. Eles reconhecem plenamente ofato de que a realização subjetiva da obra de redenção nos corações e vidas dospecadores é uma obra da graça divina, mas, ao mesmo tempo, fazem umaexposição da ordo salutis que coloca a principal ênfase naquilo que é feito a parte hominis (da parte do homem), antes que naquilo que é feito a parte Dei (da partede Deus). Eles vêem na fé primeiramente um Dom de Deus, mas, ao mesmotempo, fazem da fé, considerada mais particularmente como um princípio ativo nohomem e como uma atividade do homem, o fator absolutamente determinante emsua ordem da salvação. Assim é que Pieper: “So kommt denn hinsichtkich der 

Helsaneignung alles darauf na, dass im Menschen der Glaube na das Evangeliumentstehe”.9 Já foi dada atenção ao fato de que Kaftan considera a fé como sendotoda a ordo salutis . Esta ênfase à fé como um princípio ativo deve-seindubitavelmente ao fato de que a Reforma Luterana a doutrina da justificaçãopela fé  – freqüentemente denominada princípio material da Reforma  – estavaostensivamente no primeiro plano. Segundo Pieper, o luterano toma o seu pontode partida no fato de que, em Cristo, Deus se reconciliou com o mundo dahumanidade. Deus anuncia este fato ao homem no Evangelho e se oferece paracolocar subjetivamente o homem na posse do perdão de pecados ou da

 justificação que foi realizada objetivamente em Cristo. Esta vocação sempre vemacompanhada de certa medida de iluminação e vivificação, de modo que o homem

recebe a capacidade de não resistir à operação do Espírito Santo. Muitas vezesisto resulta em arrependimento e deste decorre a regeneração, pela qual oEspírito Santo dá ao pecador a graça salvadora. Pois bem, todos estes atos, quaissejam, a vocação, a iluminação, o arrependimento e a regeneração, são naverdade apenas preparatórios e, estritamente falando, não constituem ainda asbênçãos da aliança da graça. Tem-se experiência delas independentemente deuma viva relação com Cristo, e elas servem apenas para levar o pecador a Cristo.“A regeneração é condicionada pela conduta do homem, quanto à influênciaexercida sobre ele”, e, portanto, “será efetuada imediatamente ou aos poucos,conforme a resistência do homem seja maior ou menor”.10 Nela o homem érevestido de uma fé salvadora pela qual ele se apropria do perdão ou da

 justificação objetivamente dada em Cristo, é adotado como filho de Deus, é unidoa Cristo numa união mística, e recebe o espírito de renovação e santificação, oprincípio vivificante de uma vida de obediência. A posse permanente  de todasestas bênçãos depende da continuidade da fé  – uma fé ativa da parte do homem.Se o homem continuar a crer, terá paz e alegria, vida e salvação; mas, se ele

9 Christl. Dogm. II, p. 477. Cf. também Valentine, Chr. Theol. II, p. 258 e segtes..

10 Schmid, Doct. Theo., p. 464.

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parar de exercer a fé, tudo isso se tornará duvidoso, incerto e sujeito a perde-se.Há sempre uma possibilidade de que o crente perca tudo o que possui.

3. O CONCEITO CATÓLICO ROMANO. Na teologia católica romana, adoutrina da igreja precede à discussão da ordo salutis. As crianças sãoregeneradas pelo batismo, mas os que conhecem o Evangelho mais tarde,

recebem a gratia suffciens  (graça suficiente), que consiste numa iluminação damente e num fortalecimento da vontade. O homem pode resistir a esta graça, mastambém pode dar-lhe assentimento. Se lhe der assentimento, ela se transformaránuma gratia co-operans  (graça cooperante). Sob a qual o homem coopera parapreparar-se para a justificação. Esta preparação consiste de sete partes: (a)confiante aceitação da Palavra de Deus, (b) percepção da condição pecaminosapessoal, (c) esperança na misericórdia de Deus, (d) o princípio do amor de Deus,(e) aversão pelo pecado, (f) a resolução de obedecer aos mandamentos de Deus,e (g) desejo de receber o batismo. É mais que evidente que a fé não ocupa umlugar importante nesse esquema, mas é simplesmente um elemento decoordenação com os outros preparativos. Ela é apenas um assentimento

intelectual às doutrinas da igreja (fides informis , fé informe, sem formadeterminada), e só adquire seu poder justificador através do amor infundido com agratia infusa, isto é, graça infusa (fides caritate formata , fé formada ou completadapelo amor). Pode ser chamada fé justificadora somente no sentido de que ela ébase e a raiz de toda justificação como o primeiro dos preparativos acima. Apósesta preparação, a justificação tem seqüência no batismo. Este consiste dainfusão da graça, das virtudes sobrenaturais, seguida pelo perdão dos pecados. Amedida deste perdão é proporcional ao grau em que o pecado é realmentedominado. Deve-se ter em mente que a justificação é dada gratuitamente, e nãomerecida pelos preparativos prévios. O dom da justificação é preservado pelaobediência aos mandamentos e pela prática de boas obras. Com a gratia infusa o

homem recebe forças sobrenaturais para praticar boas obras e para, deste modo,merecer, com um merecimento de condigno (condignamente), isto é, merecimentoreal, toda graça subseqüente e até mesmo a vida eterna para a salvação. Mas nãohá certeza de que o homem reterá o perdão dos pecados. A graça da justificaçãopode ser perdida, não somente pela incredulidade, ma por qualquer pecadomortal. Todavia, pode ser recuperada pelo sacramento da penitência, que consistede contrição (ou atrição) e confissão, juntamente com a absolvição e as obras desatisfação. Tanto a culpa do pecado como a punição eterna são removidas pelaabsolvição, mas as penalidades temporais só podem ser canceladas pelas obrasde satisfação.

4. O CONCEITO ARMINIANO. A ordem da salvação elaborada pelos

arminianos, embora atribuindo ostensivamente a obra da salvação de Deus,realmente a torna dependente da atitude e da obra do homem. Deus abre apossibilidade de salvação, mas cabe ao homem aproveitar a oportunidade. Oarminiano considera a expiação de Cristo “como uma oblação e satisfação pelospecados do mundo inteiro” (Pope), isto é, pelos pecados de todos os indivíduos daraça humana. Ele nega que a culpado pecado de Adão seja imputada a todos osseus descendentes, e que o homem seja por natureza totalmente depravada e,portanto, incapaz de fazer algum bem espiritual; e crê que, embora a natureza

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humana esteja indubitavelmente prejudicada e deteriorada como resultado daQueda, o homem ainda é capaz de, por natureza, fazer aquilo que éespiritualmente bom e de converter-se a Deus. Mas, devido à propensão para mal,à perversidade e à frouxidão da pecaminosa natureza humana, Deus lhe infunde aassistência da Sua graça. Ele concede a graça suficiente a todos os homens e os

capacita a, se o quiserem, atingir a plena posse das bênçãos espirituais,e, porúltimo, a salvação. A oferta do Evangelho vem a todos os homens,indiscriminadamente, exerce apenas uma influência moral sobre eles, enquantoque eles detêm o poder de resistir-lhe ou de render-se a ele. Se se renderem,converter-se-ão a Cristo com arrependimento e fé. Estes movimentos da alma nãosão (como no calvinismo) resultados da regeneração, mas são meramenteintrodutórios ao estado de graça, propriamente assim chamado. Quando a sua férealmente termina em Cristo, esta fé é por amor dos méritos de Cristo, imputada aeles para justiça. Não quer dizer que a justiça de Cristo lhes é imputada comopertencente propriamente a eles, mas, sim, que, em vista do que Cristo fez pelospecadores, sua fé, que envolve o princípio da obediência, a sinceridade de

coração e boas disposições, é aceita em lugar de uma obediência perfeita e écreditada a eles para justiça. Sobre esta base, eles são justificados, o que noesquema arminiano significa simplesmente que os seus pecados são perdoados,e não que eles são aceitos como justos.Muitas vezes os arminianos colocam oassunto desta forma: O perdão de pecados baseia-se nos méritos de Cristo, masa aceitação da parte de Deus apóia-se na obediência do homem à lei, ou a suaobediência evangélica. A fé serve não somente para justificar os pecadores, mastambém para regenerá-los . Ela garante ao homem a graça da obediênciaevangélica, e esta, se deixada em ação através da vida, vai dar na graça daperseverança.

O arminiano wesleyano ou evangélico, assim chamado, não concorda

inteiramente com o arminianismo do século dezessete. Embora a sua posiçãomostre maior afinidade com o calvinismo do que com o arminianismo original,também é mais incoerente. Admite que a culpa do pecado de Adão é imputada atodos os seus descendentes, mas, ao mesmo tempo, sustenta que todos oshomens são justificados em Cristo e, portanto, a sua culpa é retiradaimediatamente, em seu nascimento. Admite igualmente a completa depravaçãomoral do homem em seu estado natural, mas vai adiante e ressalta que não existenenhum homem nesse estado natural, visto que há uma aplicação universal daobra de Cristo mediante o Espírito Santo, pela qual o pecador é habilitado acooperar com a graça de Deus. Este arminianismo dá ênfase à necessidade deuma obra supernatural  (hiper-física) da graça para efetuar a renovação e a

santificação do pecador. Além disso, ensina a doutrina da perfeição cristã ou dasantificação completa do cristão na presente existência. Pode-se acrescentar queao passo que Armínio fazia da dádiva da capacidade de cooperar com Deus aohomem uma questão de justiça, Wesley considerava isto como uma questão depura graça. Este é o tipo de arminianismo com o qual temos muito mais contato.Encontramo-lo, não somente nas igrejas metodistas, mas também em grandespartes doutras igrejas, e especialmente nas numerosas igrejas indenominacionaisdos nossos dias.

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