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SOTERIOLOGIA: A DOUTRINA DA SALVAÇÃO

Hélio Wahlbrinck1

O que é salvação? O que é perdição? Quem necessita de salvação? Qual a profundidade e qual a

extensão da salvação? Salvação é um produto religioso, que necessitamos “comprar” e consumir para que

sejamos transformados misticamente em um dos salvos? Ser um dos salvos significa enriquecer? Ou, ainda,

a salvação é um poderoso resgate da nossa autoconfiança para, então, alcançar v itória sobre v itória nesse

mundo e conseguir nos sobrepor a tudo e a todos? Ou salvação é assumir a cruz e carregá-la junto aos

humildes e necessitados, num processo contínuo de resgate da dignidade e da v ida humana? A salvação é

absolutamente indiv idual, solipsista e íntima (do coração)? Ou ela é tanto indiv idual como coletiva, histórica e

relac ional? Existe uma salvação acima da história e fora dela?

A salvação, do ponto de v ista cristão, é um produto a que somente os santos (salvos, separados) –

misticamente iniciados – têm acesso ou qualquer humano está incluído e, inclusive a natureza, pode nela

estar incluída? A salvação é uma emoção muito forte numa experiência religiosa ou ela é uma mudança

radical na consciência de filiação, consciência de co-pertença, com intrínseca disposição e efetiva mudança

de mentalidade, de v ida, intra e inter-humana? Salvação é algo para um futuro glorioso e dis tante ou é já e

também no e sobre o passado como bases sobre o qual o futuro se constrói?

A igreja é dona da salvação e, por isso, só dentro dela é possível acessá-la – a salvação é assunto do

sagrado – Deus div ide a his tória entre sagrado e profano, tem interesse em separar os humanos no aqui e no

agora entre salvos (santos) e profanos (mundanos) não iniciados, ou Deus tem um projeto para a

humanidade toda e, inc lusive, para a natureza? Talvez, ainda, salvação seja um nome eufemista para um

estado de crise permanente do humano diante de si, num processo não de reforma, mas de decisão, como

todo ôntico, na busca de corresponder com o transcendental ontológico que o persegue como persegue o

amante a sua amada?

Quem está com a salvação? O Cristo crucificado não está com ela, mas veio trazê-la: ela não está

com o nu, forasteiro, cego, desprezado, faminto, sofredor; no entanto, eles são os seus destinatários

prediletos! Ela também não está com os “cães” famintos, v iolentos e vorazes e nem se destina a eles (ou

1 Acadêmico do curso de integralização de Teologia pela FTBP, turma 2010.

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também a eles se destina?). Nem tampouco está com os “porcos” e os escarnecedores. O que é salvação

para quem esta morrendo de fome? O que é salvação para quem padece de sofrimento psíquico-mental,

inclusive com alienação mental e não consegue ser pai, marido, esposa, filho/a, irmão/ã; seu status é

vergonha?

O Reino de Deus, inaugurado por Jesus como o Cristo, tem algo para quem está em profunda crise e

correndo risco de não ter v iv ido e nem ter descoberto a esperança? Do que necessitamos nos salvar: do

Deus v ingativo, que ex ige sacrifício para aplacar a sua ira? Ou necessitamos nos salvar das conseqüênc ias

dos nossos atos? Ou, mais especificamente, da nossa ‘alienação’ como seres humanos? Deus é um deus de

amor ou é implacavelmente ex igente e v ingativo? Se, no Antigo Testamento, Deus mostrou a Abraão que não

requer sacrifício humano (Isaque), porque, em Jesus Cristo, teria o sacrifício perfeito por ele ex igido,

conforme alguns, para a expiação dos pecados e da culpa?

Elencamos as perguntas acima para nos deixar sensibilizados com a multifacetada realidade em que

nos movemos quando falamos em soteriologia, especialmente se a v isualizamos como determinante também

da imanência da v ida humana. Parece-nos claro não ser v iável responder a todas essas inquietações em

torno da questão do que seja salvação do ser humano como integralidade física, psíquica, mental, espiritual,

transcendente e transcendental. Para direcionar a nossa exposição, pensamos ser razoável trabalharmos a

partir e especialmente esse tema em Paul Tillich (1984). Iniciamos essa tarefa a partir da seguinte colocação

O significado universal de Jesus como o Cristo [...] pode também ser expresso no termo “ salvação” . Ele mesmo é chamado Salvador, Mediador ou Redentor. [...] O termo “ salvação tem tantas conotações quantas são as negatividades que necessitam de salvação. Mas pode-se distinguir salvação com relação à negatividade última e com relação àquilo que conduz à negatividade última. Negatividade última é chamada de condenação ou morte eterna, que é a perda do t e l o s intrínseco ao próprio ser, a exclusão da unidade universal do Reino de Deus, a exclusão da vida eterna (TILLICH, 1984, p. 371-2)

Til lich segue colocando que, na esmagadora maioria das vezes em que se usa o termo “salvação” ou

a frase “ser salvo”, pensa-se a salvação diante da negativ idade última. Essa questão torna-se, assim, uma

questão de “ser ou não ser”. A v ida eterna é o alvo último e a forma como pode ser conquistada ou perdida,

aponta o sentido mais l imitado do termo “salvação”. Conforme Tillich, partindo do original (de salvus, “curado”)

pode ser adequado interpretar salvação como “cura”. Assim, cura significa reunir aquilo que está alienado,

reorientar aquilo que está disperso, separar o abismo entre Deus e o homem, entre o homem e seu mundo e

do homem consigo mesmo. A partir dessa interpretação é que se desenvolve o conceito de Novo Ser.

Salvação é a saída do antigo ser e a transferência para o Novo Ser. Essa compreensão inclui os elementos

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de salvação que foram enfatizados em outros períodos; inclusive, sobretudo, a realização do sentido último

da própria ex istência, mas o considera sob uma perspectiva especial, que é a de tornar salvus, curado.

Na igreja grega a compreensão de salvação era ser salvo do erro e da morte; na compreensão da

igreja romana, salvação tem a ver com salvar-se da culpa e de suas conseqüências nesta e na outra v ida. No

protestantismo clássico, salvação tem a ver com liv rar-se do fardo da lei no seu poder de causar ansiedade e

condenação. Já no pietismo e no rev ivalismo, salvação tem a ver com a conquis ta do estado de impiedade

através da conversão e da transformação daqueles que se convertem. De forma semelhante, no

protestantismo ascético e liberal, salvação tem a ver com conquis ta de pecados especiais e o progresso na

dimensão da perfeição moral. Nesses termos, salvação está para o transcendente e para o transcendental,

bem como para o imanente. Na forma do tempo imediato, no hic et hoc do homem comum, tem a ver com a

transformação do homem em direção ao Novo Ser; a salvação se configura como processo já na imanência,

se é que compreendemos Tillich corretamente.

Nesse sentido, haveria uma convergência entre Paul Tillich e JFLeite (2010) no sentido de a salvação

ter implicância direta no modo de v ida do crente? JFLeite, comentando Lutero diz

A idéia de “plena, livre e presente salvação” para os “ justificados pela fé” , como se Cristo tivesse feito tudo e o cristão não tivesse nada a fazer para sua própria salvação, levou à terrível doutrina de que a fé e não o procedimento é que importa – doutrina que é a própria base da hipocrisia. Por isso, Cristo preveniu os seus ouvintes contra a imitação dos fariseus, dos quais declarou: “ Eles dizem, mas não fazem” (Mt 23.3). Com toda evidência, ele pensava que não é somente o que cremos que importa, mas também como procedemos. Por outras palavras, ele insistiu sobre a necessidade, para a salvação, tanto da fé como das boas obras; como o faz a igreja católica (BOISSET, 1971, p.19). O próprio Cristo fez questão de acentuar a necessidade das boas obras para a salvação. Advertiu-nos: “nem todo aquele que me diz: Senhor, Senhor, entrará no Reino dos céus, mas sim aquele que faz a vontade do pai que está nos céus” (Mt 7. 21). Louvando as boas obras, disse: “Rejubilai-vos e alegrai-vos, pois grande é a vossa recompensa no céu” (Mt 5.12). Declarou que essas boas obras ou a ausência delas serão um fator decisivo no Juízo Final. Então ele dirá “ vinde benditos [...] pois eu estava com fome e me destes de comer” ou “ Afastai-vos de mim, malditos, pois estava com fome e não me destes de comer” (Mt 25. 34 e 41). Como se pode, então, dizer que a salvação é “ totalmente sem obras” , se, por falta de boas obras, ela pode ser perdida? (JFLEITE, p.20)

Poderíamos dizer ainda mais. Quando o apóstolo Paulo fala “todas as coisas me são lícitas, mas nem

todas convêm. Todas as coisas me são lícitas, mas eu não me deixarei dominar por nenhuma delas” (1Co

6.12), há uma dificuldade no horizonte do status das obras. Paulo não deixa de explicar o que quer dizer, mas

no v . 12 em si, fica a aporia do status das obras do ponto de v ista soteriológico; ou seja, é apenas uma

questão de conveniência fazer boas obras ou, muito antes e mais que isso, as boas obras não são apenas

uma questão de conveniência, têm status de referendar a salvação, elas são a legitimidade de situação junto

ao Novo Ser (usando, aqui, a expressão de Paul Till ich)? As boas obras, na medida em que forem

v ivenciadas com autenticidade, são o carimbo da garantia de salvação depois, mas também junto à obra

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soteriológica de Jesus como o Cris to. São sinais de cura e integração. Elas, em sua autentic idade, são a

efetivação do processo de cura que o Novo Ser funda. Quando Paulo diz “não de obras, para que ninguém se

glorie”, ele constrói um argumento fundamental de sua teologia, quando na verdade deveria ser secundário.

Ele parte, talvez, do exemplo da v iúva pobre, que dá a sua “última moedinha” e assim, “faz muito [...]”. Para

Jesus, as obras são fundamento da salvação desde que observado entre nós a condição histórica e real de

cada um em contribuir, participar, laborar. As obras que para Jesus são a marca da fé, (espelhados no

exemplo da v iúva pobre), quando movidos pelo desejo honesto de contribuir, Paulo, em seu discurso,

relativ iza como secundário ou, até mesmo, como problema; seu discurso, assim, pode dar margem à falsa

modéstia e à hipocrisia.

Certamente a intenção de Martim Lutero (1987) não foi questionar as boas obras, mas questioná-las

no seu s tatus, diríamos nós, aqui, de legitimador histórico da salvação, tendo em v ista as obras i legítimas da

sua época como as indulgências; ou seja, para combater as obras ilegítimas ligadas ao catolicismo romano,

Lutero eclipsa, a nível de discurso, as obras da fé e a fé de obras, que tem, em Jesus como o Cristo, status

de asseguradoras da salvação diante do juízo e, também, status de concretizadoras da salvação no aqui e

agora.

O apóstolo Paulo teve, em sua época, problema estruturalmente semelhante expresso em seu

esforço por combater as obras da lei. Questionando as obras da lei na forma do judaísmo legalis ta, casuís ta e

cego, que leva as pessoas a agir de forma não autêntica e apenas por certa formalidade ritual, ele eclipsa,

igualmente, a nível de discurso, as obras da fé e a fé de obras, em seu status de asseguradoras e

concretizadoras e consumadoras da salvação. A carta de Tiago é um entre outros textos que deixa

referendada e fundamentada essa nossa v isão do ponto de v ista bíblico (ver Tg 2.14-26). Tiago, na verdade,

nos deixa claro que a fé sem obras é morta e esta fé não é a fé dos cristãos, mas dos demônios. Outrossim, é

pelas obras que a fé cris tã legítima se consuma; es ta é a cura.

Retomando a reflexão de Tillich, certo é que o cris tianismo deriva salvação da teofania em Jesus

como o Cristo, mas ele não separa salvação através de Cristo dos processos de salvação, ou seja, da cura,

que acontecem através de toda his tória. Em todos os períodos em que o homem existe, ex iste uma história

de eventos revelatórios. Se, por um lado, seria errôneo chamar esta mesma história de “história da salvação”

à moda humanista, por outro lado, seria igualmente errôneo negar que eventos revelatórios ocorrem onde

quer que seja, ao lado do aparecimento de Jesus como o Cristo2, pois

Existe uma história da revelação cujo centro é o evento Jesus, o Cristo; mas esse centro não está desprovido de uma linha que conduz até a ele (revelação preparatória) e uma linha que deriva dele

2 Sobre isso ver, também, JFLeite, p.15, onde o “ fora da igreja não há salvação” é relativizado.

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(revelação recebida). Além disso, afirmamos que onde ex iste revelação, existe salvação. Revelação não é informação a respeito de coisas divinas; é a manifestação estática do Fundamento do Ser em eventos, pessoas e coisas. Essas manifestações têm poder de abalar, transformar e curar. Eles são eventos salvíficos nos quais está presente o poder do Novo Ser. [...] está presente e cura onde quer que seja realmente aceito. A vida da humanidade depende dessas forças curadoras; elas impedem que as estruturas autodestrutivas da ex istência mergulhem a humanidade numa aniquilação completa. (TILLICH, Op.cit., p.372)

Til lich segue dizendo que isso vale tanto para indiv íduos como para grupos e é fundamento de

evolução positiva das religiões e culturas humanas. Não obstante, qual é o caráter peculiar da cura através ou

no Novo Ser, em Jesus como o Cristo? Se o aceitamos como salvador, o que é essa salvação, como se

realiza, se consuma, his toricamente e na expectativa do telos? Conforme Till ich, a resposta não pode ser que

não ex iste salvação fora do Cristo e, sim, que ele é o crivo último de toda cura e de todo processo salv ífico,

mesmo que aqueles que o aceitaram ex istencialmente só estão curados fragmentariamente. Em Jesus como

o Cristo, no entanto, a qualidade curadora é completa e ilimitada.

Quando olhamos para Jesus, o Cris to, como salvador (mediador, redentor), ele traz salvação através

do significado universal de seu ser como Novo Ser, não sendo correto fazer dis tinção, nesse contexto, entre

pessoa e obra de Cris to. Isso para ev itar que se compreenda a expiação como um tipo de técnica sacerdotal

empreendida com o objetivo de realizar a salvação, mesmo que esteja incluso, nessa técnica, o auto-

sacrifício.

O significado de Jesus como o Cristo é seu ser, e os elementos profético-sacerdotal e real nele são conseqüência imediata de seu ser (além de vários outros), mas não são “ ofícios” especiais unidos a sua “obra” . Jesus como o Cristo é o salvador através do significado universal de seu ser como Novo Ser (Idem, p.374).

É nessa condição de Novo Ser que Jesus, como Cristo, representa Deus junto aos homens e os

homens junto a Deus; em ambas as direções, ele é mediador. Poderíamos dizer que ele é Deus e homem

junto aos homens e homem e deus junto a Deus, mas não submetido ou submisso a depravação humana e

efetivador da vontade infinita de Deus em Cris to como Deus que chega até nós (mediador) e como Deus que

nos resgata para dentro de seu agir salvador (redentor): a v ivência do Novo Ser – santificação. O termo

“redentor” significa “comprar de novo” e introduz a idéia de que alguém (que não Deus) tem o homem sob seu

domínio, Satanás, a quem deve ser pago um preço de resgate. Conforme Tillich, isto em parte é verdadeiro,

mas é problemático no sentido de colocar Deus na condição de negociador com poderes antidiv inos, antes de

poder libertar o homem da prisão, da culpa e do castigo. Daí, decorrem as diferentes doutrinas da expiação.

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Nesse escrito não há espaço para abordar as diferentes doutrinas da expiação; mencionaremos o

ponto de partida e de chegada de Tillich quanto a isso: “a doutrina da expiação é a descrição do efeito do

Novo Ser em Jesus como o Cristo sobre aqueles que são possuídos por ele em seu estado de alienação”

(Op. cit. p.375). Assim, aponta-se para dois aspectos da expiação: o aspecto da manifestação do Novo Ser,

que tem um efeito expiatório e o aspecto do que acontece ao homem sob o efeito expiatório; importante

ressaltar que expiação sempre é, para Tillich, tanto um ato div ino quanto uma reação humana. Deus supera a

alienação humana na medida em que esta é uma questão de culpa. Mesmo assim, esse ato de Deus

somente se torna efetivo se o homem reage e acolhe a eliminação da culpa entre ele e Deus; o elemento

objetivo é ato de Deus e o subjetivo, a reação humana diante desse ato.

Olhando para a his tória da Igreja, Tillich ressalta um novo enfoque a partir de Tomás de Aquino. Nele,

o aspecto subjetivo de forma alguma está presente no processo expiatório. O aquinate acrescenta a idéia da

participação do cristão no que acontece à “cabeça” do corpo cris tão, o Cristo. Aqui acontece a troca do

conceito substituição (o sofrimento de Cristo que tornaria desnecessário o sofrimento, castigo humano –

sofrimento v icário) pelo conceito de participação.

Versando sobre princípios da doutrina de expiação, Tillich aborda seis, sendo o último deles o que

ancora na participação:

[...] através da participação no Novo Ser, que é o ser de Jesus como o Cristo, os homens também participam da manifestação do ato expiatório de Deus. Eles participam do sofrimento de Deus que assume as conseqüências da alienação ex istencial sobre si mesmo ou, para dizê-lo de forma sucinta, eles participam do sofrimento de Cristo. Disso se segue uma valoração do termo “ sofrimento substitutivo” . É um termo bastante impróprio e não deveria ser usado em teologia. Deus participa do sofrimento da alienação ex istencial, mas seu sofrimento não é um substituto para o sofrimento da criatura. Nem o sofrimento de Cristo é um substituto para o sofrimento do homem. Mas o sofrimento de Deus, universalmente e no Cristo, é o poder que supera a autodestruição da criatura mediante participação e transformação. Não substituição, mas participação livre, é o caráter do sofrimento divino. E, reciprocamente, não ter um conhecimento teórico da participação divina, mas ter uma participação na participação divina, aceitando-a e sendo transformada por ela – esse é o caráter tríplice do estado de salvação. (Ibidem, p.379-80)

Quando Till ich (apoiado em Tomás de Aquino) fala dessa relativ ização da compreensão do

sofrimento de Cristo como sofrimento v icário e coloca, em seu lugar, a v isão da “participação liv re” de Deus

na realidade humana, coloca, ainda, que precisa haver, da parte do homem, reciprocidade, não teórica, mas

participação na partic ipação div ina, acolhendo-a e sendo por ela transformado, ele aponta, também, para um

procedimento prático, as obras da pessoa como um resultado intrínseco desta participação (assim como a

obra de Jesus como o Cristo foi e é encarnada na História). Olhando a partir do princípio da não-contradição,

talvez Tillich e JFLeite não dizem a mesma coisa, mas apontam para um mesmo resultado prático na v ida das

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pessoas que se envolvem com o Novo Ser. Uma v ida que se enquadra no “quem quer ser meu discípulo,

tome a sua cruz e siga-me” e, também, “v inde a mim todos vós que estais cansados e sobrecarregados [...]”.

Seguindo, Tillich diz que o caráter tríplice da salvação à luz do princípio da participação e a base da

doutrina da expiação deve considerar que o efeito do ato expiatório div ino sobre o homem se expressa em

três momentos: participação, aceitação e transformação, o que, em termos clássicos se chama Regeneração,

Justificação e Santificação:

a) Regeneração – salvação como participação no Novo Ser

Aqui Til lich deixa claro que o poder salvador do Novo Ser em Jesus, como o Cris to, depende da

participação, do envolv imento do homem nele; somente assim o poder do Novo Ser pode abranger quem

está sob as garras do velho ser. Isso é uma questão de iniciação na espiritualidade cristã. Contudo, o que

esta na vez, aqui, não é o fator subjetivo, ou seja, a reação humana, mas o aspecto objetivo, é a

relac ionalidade do Novo Ser em relação aos que por ele são possuídos. Isso corresponde a “um impacto

e introduzir para dentro de si”, alcançando-se o estado que Paulo chama de “estar em Cristo”. A

terminologia clássica a esse estado são expressões como “Novo Nascimento”, “Regeneração”, “ser uma

nova criatura”. Aqui se pensa em fé ao invés de descrença, entrega, ao invés de hybris, amor, ao invés

de concupiscência. Esse processo, conforme Tillich, não é fato apenas no campo subjetivo (humano)

indiv idual; regeneração é um estado de coisas universal. É o novo éon trazido por Cristo. A realidade

objetiva do Novo Ser procede a participação subjetiva do indiv íduo nesse éon.

A mensagem de conversão é, antes de mais nada, a mensagem de uma nova realidade a qual somos solicitados a nos dirigirmos; à vista da mesma, deve afastar-se da antiga realidade, o estado de alienação ex istencial no qual se viveu. Regeneração (e conversão), entendidos nesse sentido tem pouca coisa em comum com a tentativa de criar reações emocionais apelando ao indivíduo em sua subjetividade. (TILLICH, Op. cit., p.380)

A questão é ter sido transportado para a nova realidade em Jesus como o Cristo. As conseqüências

subjetivas no indiv íduo podem ser e são fragmentárias, ambíguas e não configuram a base para

reiv indicar parte no Cristo, mas a fé que acolhe Jesus como o portador do Novo Ser é a base; a pessoa

apenas participa. Isso nos abre a v ista de uma segunda relação que o Novo Ser estabelece junto aos que

por ele são possuídos.

b) Justificação – salvação como aceitação do Novo Ser

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O sentido do ato expiatório de Deus não reside na realidade subjetiva, fragmentária e ambígua do

indiv íduo, não depende do seu estado de desenvolv imento. Identifica-se com o elemento do “apesar de”,

ao processo de salvação. È a conseqüente implicação imediata da doutrina da expiação e, essa é o

coração e o centro da soteriologia. No horizonte da Regeneração, Justificação é, antes de tudo, um

evento objetivo (div ino) e, depois, é subjetivo na forma da recepção, aceitação dela por parte da pessoa:

“[...] no sentido objetivo é o ato eterno de Deus mediante o qual ele aceita como não alienados aqueles

que, na verdade, se acham alienados dele pela culpa, mediante o qual ele os introduz na unidade com

ele, que se manifesta no Novo Ser em Cristo” (Op. cit. p.381).

Seguindo, a doutrina paulina confere à palavra “justificação pela graça mediante a fé” um sentido que,

tendo em v ista a seqüência de nossa exposição, se acha radicalmente no sentido oposto ao da

santificação. A questão da justificação reside em a pessoa acolher, aceitar que é aceita por Deus e,

assim, curada em sua ansiedade, culpa e desespero. Justificação é “tornar justo”, tornar o homem aquilo

que ele é essencialmente e do que ele esta separado. Como em Lutero, sem o ato objetivo de Deus na

“justificação pela graça através da fé”, o homem não tem condições de lidar sozinho com sua

ambigüidade, alienação, frente à Lei; ele necessita aceitar ser aceito por graça, mediante a fé. A causa,

nisso tudo, é tão somente Deus (pela graça) e a fé de que somos aceitos é o canal dispensador da graça

ao homem (através da fé). Essa fé, por sua vez, também é dom de Deus, mediante a ação do espírito

Santo.

c) Santificação – salvação como transformação pelo Novo Ser

Til lich resume os dois itens acima dizendo que “como ato div ino, Regeneração e Justificação são um e

mesmo ato” (ato, aqui, tem sentido de evento). Por outro lado, santificação se dis tingue de ambos assim

como um processo se distingue de um evento no qual se iniciou. Nesse horizonte, santificação pode

significar “ser recebido na comunidade dos sancti [...]” esses seriam os que são possuídos pelo Novo Ser.

Til lich mesmo diz, aqui, que essa compreensão se deve ao ressurgimento do paulinismo durante a

Reforma. Talvez ele, nesse contexto, subentenda a questão do arrependimento. Não obstante, sentimos

falta da articulação clara de que para o alienado estar dentro e continuar no processo de salvação, o

arrependimento (realidade subjetiva humana), a atitude humana, na dimensão de um procedimento claro

de abandono de seu comprometimento com o velho ser e a caracterização, no dia-a-dia, do significado

prático de santificação como modus vivendi renovado e segundo o Espírito de Deus precisa ser

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mencionado. Estas são questões que já discutimos acima, quando falamos de Lutero e Paulo que, em

termos de discurso, parece-nos, não têm a questão do procedimento renovado do crente (as boas obras)

como consumação e asseguradoras da salvação (c laro, já não como fundadoras da salvação). Talvez

Til lich queira dizer isso daí, quando coloca a expiação não como um ato apenas de Deus, mas como

acontecimento no qual a partic ipação do ser humano é real (ou deve ser real), quer dizer, o ser humano

participa do proceder de Deus na v ida, na his tória. A erupção do Novo Ser no mundo, em Jesus como o

Cristo, tem como fim nossa participação, aceitação e transformação pessoal e coletiva (cura); quem não

mais é alienado, do ponto de v ista de div ino de si-mesmo, v ive, do ponto de v ista humano um novo

pensar, sentir e proceder. Como a salvação se realiza e efetiva historicamente e tem um telos, Tillich trata

disso no restante de sua obra, sob os títulos “A v ida e o Espírito” (parte 4) e “A história e o Reino de

Deus” (parte 5).

Santificação é, portanto, o processo no qual o poder do Novo Ser transforma a personalidade dos

indiv íduos, a identidade da comunidade, tanto dentro da igreja como também fora dela. Aqui, se lemos

Til lich corretamente, está todo o aspecto do proceder prático com status de salvação. Tanto a esfera

religiosa como a secular são objetos da ação santificadora do espírito de Deus que é, em cada momento

da pessoa e da coletiv idade, a atualidade do Novo Ser que atrai para a participação, a aceitação e a

transformação, a cura, a superação da alienação.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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