Soren Kierkegaard - o Banquete

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Meus caros amigos: Para falar dignamente da divindade, é preciso estar entusiasmado, inspirado pelo sopro ou espírito divino, e dele receber o que se vai comunicar. Análogo acontece quando se fala da mulher. A mulher não é mera idéia que surgisse do cérebro do homem, sonho em pleno dia, fantasia intelectual, tema para discussão ‘pro et contra’. Não; o que se sabe a respeito da mulher foi à mulher que ensinou; por isso quem mais sabe da mulher é quem teve mais amantes que o instruíssem. A primeira vez é-se um aprendiz; à segunda, já se está mais seguro da sua pessoa, como quem, nas discussões dos doutores, aproveita as amabilidades do primeiro adversário para as voltar contra o seguinte. Apesar dessas concessões, nada fica perdido. Porque, se o beijo é um jogo e o abraço uma façanha que acabam como tudo tem de acabar, na escola das mulheres nunca se chega a dar todo o programa, nem a doutrina se resume a uma proposição matemática, sempre idêntica, através das variações literárias dos métodos de demonstração. É que tais métodos são bons para as matemáticas e para os fantasmas, não para o amor e para a mulher. A verdade é que o sexo fraco, longe de ser inferior, é pelo contrario, o mais perfeito. Darei, todavia ao meu discurso a forma de m mito, e, defendendo o partido da mulher, que ofendeste de tão injusto modo, dar-me-ei por feliz se as minhas palavras representarem o pensamento das vossas almas quando chegardes a ver a aparição da volúpia, que fugirá de vós, tal como os frutos se afastam de Tântalo, porque ofendeste a mulher, senão o vosso, se bem que o castigo vingue quem teve a audácia tão impiedosa. Não quero melindrar ninguém. Mas as vossas idéias são meras invenções, calúnias próprias de homens casados, não as minhas, porque eu honro a mulher muito mais do que um marido seria capaz de a venerar. No principio havia só um sexo; dizem os gregos que era o sexo masculino. Dotado de faculdades magníficas, era uma criatura admirável em que se reviam os deuses; os dons eram tão grandes que aconteceu aos deuses o esmo que por vezes acontece aos poetas que gastaram todas as forças nas criações de uma obra: tiveram inveja do homem. O pior é que tiveram receio dele; temeram que ele não estivesse disposto a aceitar de bom grado o jugo divino; tiveram medo, embora sem razão para isso, que o homem chegasse a abalar o céu. Haviam feito surgir uma força nova que lhes parecia estar a ser indomável. A inquietação e a perplexidade dominavam então no concílio dos deuses. Mostraram-se primeiro de uma generosidade pródiga ao criarem o homem; mas agora tinham de recorrer aos meios mais violentos para legitima defesa. Os deuses pensassem que o seu poderio estava em perigo, e que não podiam voltar atrás, como um poeta que renegue sua obra. O homem já não poderia ser dominado pela força, porque se o pudesse ser, os deuses teriam facilmente resolvido o problema; e era isso precisamente o que lhe causava desespero. Era preciso cativá-lo pela fraqueza, por um poder mais fraco e mais forte do que ele, capaz de subjugá-lo. Que poder espantoso e que poder contraditória não havia de ser! A necessidade também ensina os deuses a transcenderam os limites do engenho. Pensaram , meditaram, encontraram. A nova potencia foi à mulher, maravilha da criação, que os próprios olhos dos deuses eram superiores ao homem; e os deuses, ingênuos e contentes, mutuamente se felicitaram pela nova invenção. Que mais poderei eu dizer em louvor da mulher? A mulher foi tida capaz de fazer o que parecia impossível aos deuses; além disso, a verdade é que desempenhou admiravelmente o seu papel; que maravilha não deve ser a mulher para conseguir tais fins! Tal foi à astúcia dos deuses. A encantadora foi dotada de uma natureza enganadora; mal encantou o homem, logo se transformou, enleando-o entre todas as dificuldades do mundo finito; era isso mesmo o que os deuses queriam. Que seria possível imaginar de mais fino, de mais atraente, de mais arrebatante, do que este subterfúgio dos deuses que querem salvaguardar um império, do que este processo para Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

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Soren Kierkegaard - Pequena parte copiada do livro O Banquete.Meus caros amigos: Para falar dignamente da divindade, é preciso estar entusiasmado, inspirado pelo sopro ou espírito divino, e dele receber o que se vai comunicar. Análogo acontece quando se fala da mulher....!

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Meus caros amigos: Para falar dignamente da divindade, é preciso estar entusiasmado, inspirado pelo sopro ou espírito divino, e dele receber o que se vai comunicar. Análogo acontece quando se fala da mulher. A mulher não é mera idéia que surgisse do cérebro do homem, sonho em pleno dia, fantasia intelectual, tema para discussão ‘pro et contra’. Não; o que se sabe a respeito da mulher foi à mulher que ensinou; por isso quem mais sabe da mulher é quem teve mais amantes que o instruíssem. A primeira vez é-se um aprendiz; à segunda, já se está mais seguro da sua pessoa, como quem, nas discussões dos doutores, aproveita as amabilidades do primeiro adversário para as voltar contra o seguinte. Apesar dessas concessões, nada fica perdido. Porque, se o beijo é um jogo e o abraço uma façanha que acabam como tudo tem de acabar, na escola das mulheres nunca se chega a dar todo o programa, nem a doutrina se resume a uma proposição matemática, sempre idêntica, através das variações literárias dos métodos de demonstração. É que tais métodos são bons para as matemáticas e para os fantasmas, não para o amor e para a mulher. A verdade é que o sexo fraco, longe de ser inferior, é pelo contrario, o mais perfeito. Darei, todavia ao meu discurso a forma de m mito, e, defendendo o partido da mulher, que ofendeste de tão injusto modo, dar-me-ei por feliz se as minhas palavras representarem o pensamento das vossas almas quando chegardes a ver a aparição da volúpia, que fugirá de vós, tal como os frutos se afastam de Tântalo, porque ofendeste a mulher, senão o vosso, se bem que o castigo vingue quem teve a audácia tão impiedosa. Não quero melindrar ninguém. Mas as vossas idéias são meras invenções, calúnias próprias de homens casados, não as minhas, porque eu honro a mulher muito mais do que um marido seria capaz de a venerar. No principio havia só um sexo; dizem os gregos que era o sexo masculino. Dotado de faculdades magníficas, era uma criatura admirável em que se reviam os deuses; os dons eram tão grandes que aconteceu aos deuses o esmo que por vezes acontece aos poetas que gastaram todas as forças nas criações de uma obra: tiveram inveja do homem. O pior é que tiveram receio dele; temeram que ele não estivesse disposto a aceitar de bom grado o jugo divino; tiveram medo, embora sem razão para isso, que o homem chegasse a abalar o céu. Haviam feito surgir uma força nova que lhes parecia estar a ser indomável. A inquietação e a perplexidade dominavam então no concílio dos deuses. Mostraram-se primeiro de uma generosidade pródiga ao criarem o homem; mas agora tinham de recorrer aos meios mais violentos para legitima defesa. Os deuses pensassem que o seu poderio estava em perigo, e que não podiam voltar atrás, como um poeta que renegue sua obra. O homem já não poderia ser dominado pela força, porque se o pudesse ser, os deuses teriam facilmente resolvido o problema; e era isso precisamente o que lhe causava desespero. Era preciso cativá-lo pela fraqueza, por um poder mais fraco e mais forte do que ele, capaz de subjugá-lo. Que poder espantoso e que poder contraditória não havia de ser! A necessidade também ensina os deuses a transcenderam os limites do engenho. Pensaram , meditaram, encontraram. A nova potencia foi à mulher, maravilha da criação, que os próprios olhos dos deuses eram superiores ao homem; e os deuses, ingênuos e contentes, mutuamente se felicitaram pela nova invenção. Que mais poderei eu dizer em louvor da mulher? A mulher foi tida capaz de fazer o que parecia impossível aos deuses; além disso, a verdade é que desempenhou admiravelmente o seu papel; que maravilha não deve ser a mulher para conseguir tais fins! Tal foi à astúcia dos deuses. A encantadora foi dotada de uma natureza enganadora; mal encantou o homem, logo se transformou, enleando-o entre todas as dificuldades do mundo finito; era isso mesmo o que os deuses queriam. Que seria possível imaginar de mais fino, de mais atraente, de mais arrebatante, do que este subterfúgio dos deuses que querem salvaguardar um império, do que este processo para

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seduzir o homem? Tal é a realidade; a mulher é a sedução mais poderosa do céu e da terra. Comparado com ela, homem é um ente muito imperfeito. II A astúcia dos deuses veio a dar resultado. Nem sempre, porém, com êxito igual. Em todos os tempos surgiram homens que estiveram atentos à fraude. Uns ficaram isolados; outros observavam a graciosidade da mulher, e, mais do que os primeiros, viram de perto a armadilha. A estes chamo eu eróticos, e conto-me no número deles; os homens chamam-lhes sedutores, e as mulheres não lhe dão classificação especial, porque, para elas, representa o inefável. Os eróticos são os homens felizes. Vivem com maior magnificência do que os deuses, porque se alimentam de um manjar muito mais delicioso do que a Ambrósia, e bebem um licor mais inebriante do que o néctar; e bebem um licor mais inebriante do que o néctar; nutrem-se do que é divino, porque vão comendo o astucioso pensamento dos deuses que o queriam seduzir; gozam o delicioso sabor da isca, sem que nunca mordam no anzol. Os outros homens correm para o engodo, e devoram tudo, à maneira do aldeão que come salada de pepinos, e ficam presos pela boca. Só o erótico é dotado de delicadeza para fruir o gosto da isca e atribuir-lhe um valor infinito. A mulher distingue-o e estima-o; entre ambos se firma um entendimento secreto. Mas o erótico sabe que lhe cumpre guardar o segredo, se não quiser sofrer, mais cedo ou mais tarde, a vingança terrível dos deuses. Que nada se pode imaginar de mais maravilhoso, de mais encantador, de mais sedutor do que a mulher, os deuses o afirmaram e da afirmação nos deram garantia. O próprio embaraço que os obrigou a dobrar de engenho é mais uma prova de que eles jogaram tudo quando removeram o céu e a terra para formar a mulher. Deixamos o mito. A idéia do homem responde À sua realidade. Podemos imaginar um só homem, e por essa imagem, representarmo-nos a humanidade. A idéia de mulher é, pelo contrário, uma noção geral que na realidade não coincide com nenhuma espécie, com nenhum indivíduo. A mulher nem sequer é um ente da mesma condição que o homem; será talvez uma parte deste, más é mais perfeita do que ele. Admitamos que os deuses hajam extraído uma parte do homem, enquanto ele dormia um sono profundo; ou admitamos ainda que o dividisse, e que a mulher seja a sua metade; num caso como no outro, foi sempre o homem que ficou dividido. A mulher não está, portanto, em relação de igueldade com o homem perfeito; a relação de igualdade só aparece depois da divisão. A mulher é um engano, mas só para o homem tal como se encontra nesta segunda fase; a mulher é um engano só para o homem que se deixa enganar. A mulher é o finito elevado à potência de um infinito enganador, - a infinita ilusão humana e divina. Nesta ilusão não há mentira: mas se o homem der um passo em falso, fica imediatamente enleado. Ela é o finito, portanto o multiplicável, portanto um ente coletivo: não há mulher, há mulheres. Mas isto é o que só o erótico parece capaz de compreender; por isso ele é capaz de amar muitas mulheres sem se deixar iludir; por isso ele não vai além da volúpia com que os deuses astuciosos o queriam enganar. A idéia de mulher não se encerra, pois, numa formula qualquer; é um infinito de coisas finitas. Quem quiser pensar essa idéia, faze - lá passar por todas as categorias lógicas, ver-se-á na situação de quem mergulha os seus olhares profundos num oceano de fantasmagorias em perpétua formação, ou na situação de quem mergulha os seus olhares profundos num oceano de fantasmagorias em perpétua formação, ou na situação de quem se perde a contemplar as ondas sobre a espuma das quais aparecem às sereias para se rirem constantemente do ingênuo. A idéia da mulher, para o pensador, não é mais do

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que uma oficina com a categoria do possível, e para o erótico, a categoria do possível é uma fonte inesgotável de fantasia. Vou agora dizer-vos como é que os deuses fizeram à mulher: um ser fluído, subtil, etéreo como as exalações de uma noite de Verão, mas que se reveste de formas tão consistentes e palpáveis como a de um fruto amadurecido; leve como a andorinha, consegue transportar o peso do imenso desejo do mundo; na sua levitação vence a gravidade, por que todo segredo das forças que a animam se encontra no centro invisível da relação negativa, que ela tem consigo própria; altiva na sua estatura de desenho firme, consegue dar nas vistas pela natural ondulação da beleza; perfeita, pela frescura, parece todavia que acabou de sair da gênese do mundo; de uma pureza celestial como a neve recentemente caída, e ao mesmo tempo calma e calmante, na coloração suave da epiderme; alegre como a palavra graciosa que faz esquecer os cuidados, consolativa como a plena realização do desejo que ela tão bem apazigua como excita. O homem, ao vê-la pela primeira vez, deve ter sido tomado de inexplicável espanto: - espanto por ver a sua própria imagem, ou uma imagem semelhante, ou uma imagem que lhe era familiar, espanto por ver sua própria imagem refletida no espelho da perfeição; espanto por ver o que nunca havia esperado de ver, aquilo de que talvez tivesse tido já um vago pressentimento; espanto por ver um elemento indispensável na sua vida, mas que lhe era, porém, dado como um enigma para sua vida. È precisamente essa contradição no espanto que vai despertar no homem o impulso erótico. O espanto ínsita o homem a aproximar-se cada vez mais, a querer ver cada vez melhor, a olhar, a admirar, a contemplar; não lhe é dado, porém, familiarizar-se completamente com essa visão, não lhe é dado deixar de deseja-lá, nunca poderá conseguir aproximar-se dela quanto quer. Quando os deuses conseguiram imaginar a essência dessa forma, recearam não poder dar-lhe a existência. Depois de conseguirem, por fim, recearam muito mais a própria mulher. Ela estava de tal maneira formosa, que não se atreveram a elogiá-la, com receio de que a inconfidência pusesse em perigo o plano da astúcia. Resolveram então coroar a obra. Concluíram a formosura, mas deixaram à mulher na ignorância da sua inocência, para que ela não soubesse a que fim se destinava; para maior precaução, envolveram a figura atraente da mulher no mistério impenetrável do pudor. Ficava assim apta para o combate, ficava assim segura da vitória. A mulher era natureza atraente; mais atraente se tornou com ser esquiva, evasiva, fugidia, porque todos os obstáculos servem para excitar o frenesi do homem. Os deuses rejubilavam, estavam radiantes de alegria. Não há no mundo isca tão atraente como a mulher, nenhuma isca tem maior poder do que a inocência, nenhuma tentação é mais fascinante do que o pudor, nenhum engodo iguala o da mulher. Virgem, a mulher tudo ignora; no entanto, já no seu pudor oculta um pressentimento da sua natureza; ela adivinha que esta separada do homem, separada pelo pudor, que é uma barreira mais poderosa do que a espada que foi posta entre Aladino e Guinar. O erótico, porém, procede como Pyrane nas Metamorfoses de Ovídio: admira e contempla o mistério do pudor e pouco a pouco vai vendo confusamente que para além da vedação, se configura a distancia toda a volúpia do prazer. Tal é a tentação que a mulher representa. Os homens, não sabendo o que de melhor poderiam sacrificar aos deuses, oferendaram-lhe o mais delicioso de todos os manjares; assim a mulher é fruto proibido para que se olhe com avidez; os deuses ainda não descobriram termo de comparação com a delicia da mulher. Vemo-la perto de nós, muito próxima, na nossa presença; e, no entanto, como esta distante, infinitamente distante, separada de nos pelo pudor. È como se estivesse dentro de um esconderijo, que nós ignoramos, até que nos diga por onde é a entrada. Como é que tal acontece? Nem

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ela sabe como se denuncia; a vida escorrega-se de quebrar o segredo. Tal como a criança que joga às escondidas e, sem dizer palavra, espreita com a cabeça fora do esconderijo, à imprudência da mulher é inexplicável, porque inconsciente; a mulher é sempre enigmática, tanto quando baixa pudicamente os olhos como quando dardeja um olhar especial que não pode ser explicado por pensamentos e, muito menos, por palavras. E, no entanto, se há <<olhares que são como punhaladas>>, como poderemos explicá-los, se a linguagem dele s nos é incompreensível? A mulher apresenta-se-nos quase sempre tranqüila como a paz das horas da tarde, quando já nenhuma folha treme, tranqüila como a consciência, ingênua, ignorante e inocente; respira tranquilamente sem que separe no ritmo da inspiração e da expiração; o sangue circula com toda a regularidade, sem que pelas pulsações se conheça o alvoroço do coração; e, no entanto o homem erótico, se souber auscultar como lhe convém, há-de perceber o s ruídos ditirâmbicos do desejo, como acompanhamento inconsciente do pensamento da mulher. Despreocupada como o vento que passa serena como a profundidade do mar, não deixa mulher de ser removida por um desejo languesceste, de um desejo inexplicado. Meus amigos: Tenho a alma deliqüescente, de maneira que não articulo a expressão. Sei, porém, que também a minha vida corresponde a uma idéia, se bem que vos a não compreendeis. Sim, também eu revelei o segredo da vida; também eu estou a servir, algo que é divino, e certamente, o meu culto não é vão. Já que a mulher é um engano dos deuses, pode com verdade dizer-se que a existência dela consiste em querer ser seduzida; e como ela não é uma idéia ou uma essência, há só uma conclusão a tirar, que é a seguinte: o homem erótico quer amar o maior numero possível. Só o erótico é capaz de compreender a volúpia de gozar o engano sem ser enganado. Só a mulher conhece verdadeiramente a felicidade que consiste em se deixar seduzir. O que digo e sei, aprendi-o com a mulher, se bem que não tenha agora tempo para maiores explicações; digo e sei por que me mantenho ao serviço da idéia por um rompimento tão decisivo quanto à morte; porque noivo e renuncia estão na mesma relação que masculino e feminino. Só a mulher que o sabe, e sabe-o n a sua relação com o sedutor. Nenhum homem casado é sequer capaz de conceber tudo isto. A mulher nunca chega a confessar esta verdade ao marido. Casando aceita resignado o novo destino, adivinha que tal é a ordem natural das coisas, admite que não possa ser seduzida mais do que uma vez. No intimo, apesar de quanto diga nunca a mulher volta seu ódio contra o sedutor. É preciso ver que ele tenha efetivamente realizado ato de sedução, o que implica exprimir a respectiva idéia. A falsa promessa de casamento, e outras mentiras tais, constituem esperteza e expedientes indignos da vida humana, e nada têm que ver com o problema da sedução. Sendo assim, não há grande infelicidade para mulher no fato de ser seduzida; pelo contrario, a felicidade dela está em ter essa sorte. Uma donzela seduzida por arte superior, pode vir a ser esposa modelar. Se eu não tivesse aptidões necessárias para ser um sedutor, se bem que reconheça as minhas deficiências quando me considero como tal, e se quisesse casar-me, escolheria sem dúvida uma rapariga já seduzida, para não ter o trabalho de começar a seduzir minha mulher. É que o casamento também exprime uma idéia, e essa idéia tem um significado completamente diferente em relação ao absoluto que a minha idéia exprime. O casamento nunca deveria ser considerado como ponto de partida, nunca deveria ser confundido com o principio de uma história de sedução. Enfim, de uma coisa estou certo: é de que para cada mulher há um sedutor possível, más feliz só será aquela que o encontrar. O casamento significa, pelo contrario, a vitória dos deuses sobre os homens. A mulher que foi uma vez seduzida vai continuar ao lado de um marido; por vezes ela olha par traz como coração pleno de desejo; mas resigna-se com sua sorte, até chegar ao termo

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dos seus dias. Morre, sem que sua morte se compare com a do homem; desvanece-se e dissolve-se no elemento inefável de que os deuses a formaram; desaparece como um sonho, como imagem efêmera, com imagem de tempos passados. Que mais é a mulher do que um sonho, sonho que não deixa de ser a mais alta realidade? È assim que o homem erótico compreende a mulher, é assim que ele a conduz, é assim que ele se deixa conduzir por ela ao momento da sedução, momento que está já fora do tempo, que pertence já à pátria da ilusão, que é a pátria da mulher. Junto ao marido, a mulher vive no tempo, pertence ao tempo, e o marido também. Natureza maravilhosa!... Se não te admirasse de há muito, a mulher ensinar-me-ia a admirar-te, porque a mulher é venustidade do mundo! Tu, Natureza, fizeste da mulher um ser esplêndido, más tua maior gloria está em nunca teres dado ao mundo duas mulheres iguais! No homem, o essencial é essencial, e, portanto, sempre o mesmo; na mulher o essencial é o acidental e, por conseguinte, a inesgotável diversidade. O reino da mulher dura pouco, más pouco dura também à dor que cai no esquecimento. Creio que nunca cheguei a observar a dor quando outra vez o mesmo voltava a ser-me oferecido. Há também a fealdade que pode surgir mais tarde; também a vi, também sei que ela existe; mas não é pelo aspecto da fealdade que a mulher é vista pelo seu sedutor.

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