Somos Todos Refugiados
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Somos todos refugiados1
Diaby, Sabina, Obai, Ahmed, Ali, Ayad e Mubarak olham-nos de frente, como já
se habituaram a fazer desde que reganharam a dignidade. Aqui recomeçaram as
suas vidas interrompidas por guerras e perseguições políticas. Histórias de quem
escolheu Portugal para fugir à morte
Hoje, seria preciso ela andar com um cartaz, de letras garrafais, ou a palavra
impressa na t-shirt. Sabina passa, Sabina fala e ninguém adivinha que Sabina é
uma refugiada bósnia. Podia ser portuguesa, pensamos mal a conhecemos,
secretamente à coca de um sotaque, de um deslize que denuncie as suas
origens. Só quando a vemos sozinha num campo perto de sua casa, em
Coimbra, um campo verde meio-desalinhado que ficaria bem em qualquer parte
1 http://visao.sapo.pt/actualidade/portugal/somos-todos-refugiados=f831165
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do mundo, é que somos transportados para a sua fuga à guerra na ex-Jugoslávia,
a um tempo em que ela não pertencia a lado nenhum.
Será isto a integração? Isto de as pessoas se aculturarem, se tornarem iguais
àqueles que as receberam ao ponto de não se distinguirem os traços originais?
O tema tem pano para mangas e ainda sobra, mas Sabina despacha-o como se
despachasse um esquisso no seu estirador de arquiteta: "Sou portuguesa. É
assim que me apresento desde que obtive a nacionalidade, há mais de dez
anos."
Também poderia dizer "Olá, chamo-me Sabina Godinho Karamehmedovic, o
apelido do meio a avisar que casou com um português. Mas para contar como
aqui chegou precisa de mais tempo. Tem de começar como lhe ensinaram, pelas
fundações, na sua história abanada por bombas.
Na noite em que as ouviram, a sua mãe e a sua tia, tomaram uma decisão: não
ficariam nem mais um dia em Derventa, cidade quase na fronteira com a Croácia.
Na manhã seguinte, pegariam nos filhos, dois cada uma (Sabina tem uma irmã
mais velha, Dragana), e fugiriam para casa do pai de ambas, em Split.
Sabina lembra-se bem da data: 8 de abril de 1992. A mãe, Vesna, fazia 42 anos
nesse dia e largava a casa, o ateliê de arquitetura e o marido - os homens
estavam proibidos de sair do país. Também não se esquece do comboio "a
abarrotar de mulheres e crianças" que apanharam rumo à Croácia.
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UMA CONSOADA EM SOURE
Em Split eram já muitos os refugiados a viverem num ambiente de rejeição.
"Diziam que iamos ocupar espaço", recorda, expressão que uma miúda de 12
anos não entendia mas que os adultos traduziam por falta de empregos para
todos.
Sabina e Dragana iam para a escola de ténis com buracos e fingiam não ligar
quando ouviam comentários do género: "Só tens esse par de calças?!" Enquanto
a mãe, a tia e a avó se desdobravam entre os centros de ajuda que davam
comida aos refugiados, as duas manas matavam o tempo na praia, com outras
meninas como elas que estavam instaladas nuns pavilhões de madeira perto de
casa dos avós. O mar Adriático ficava mesmo ali. "Foi o que nos safou para fugir
daquele ambiente", conta.
Os meses passaram, os ecos da guerra traziam histórias de destruição, o pai
haveria de aparecer em Split, deixando-se ficar sempre escondido em casa. O
avô vendeu o carro, a reforma não chegava para tanta gente. Desesperada, a
avó apostou que encontraria uma instituição que ajudasse as filhas e os netos a
mudarem-se para um país seguro. A 21 de setembro desse ano, conseguiu que
os seis fossem incluídos no grupo de cento e poucos bósnios que aterraram no
aeroporto de Figo Maduro, pela mão da revista Fórum Estudante e da Missão
Crescer em Esperança.
Primeiro na Pousada da Juventude do forte de Catalazete, em Oeiras, depois no
campo de férias da CP, na praia das Maçãs, Sabina maravilhou-se com a beleza
dos lugares e fez amigos entre as outras crianças. Perder-lhes-ia o rasto porque
a maioria das famílias foi para a Malásia, através de uma instituição islâmica. Os
Karamehmedovic não quiseram ir, são ortodoxos e têm horror à segregação.
Ainda não sabiam, mas o seu futuro seria em Portugal.
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No Natal de 1992, Géna e Zé Macedo entraram nas suas vidas ao convidá-los
para passarem a Consoada em Soure. O meio era pequeno e toda a vizinhança
deu atenção à família bósnia. O convite estendeu-se ad aeternum: o casal queria
ajudá-los e não esperava nada em troca; a vivenda tinha espaço para todos.
Os Macedo arranjaram rapidamente um emprego ao patriarca, Fuad, num
armazém, uma voluntária da missão mexeu os cordelinhos para Vesna conseguir
lugar num ateliê, e as duas crianças entraram na escola. Três ou quatro meses
depois, os quatro arrendaram um apartamento na mesma rua dos seus anfitriões.
"A nossa integração começou aí", analisa hoje Sabina, aos 35 anos, "porque
finalmente dependíamos de nós próprios."
Os vinte anos seguintes resumem-se aqui numa frase, com mil agradecimentos
de Sabina aos pais, que arriscaram começar de novo depois dos 40 anos, e um
final feliz: as duas manas casaram-se com portugueses, dois Antónios, e a mais
velha já vai a caminho da segunda filha.
FOTOGRAFIAS NEM DE COSTAS
Não foi por acaso que iniciámos o artigo por uma história com final feliz. No
momento em que assistimos à maior crise humanitária desde a Segunda Guerra
Mundial, e que Portugal está prestes a receber milhares de refugiados, são
histórias como a de Sabina que nos mostram a importância da sociedade civil.
Foi o que nos disseram e repetiram Adel e Yara, um casal de sírios que
chegaram a Lisboa há um ano e luta para recomeçar a vida aqui. "Se eu
encontrar trabalho cá, é o paraíso", dirá ele quase à despedida. "Porque o
sistema é mau mas não as pessoas. Encontrámos nos portugueses um calor que
nos deu pés mais fortes para ficar definitivamente."
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Adel não se chama assim e Yara é o nome que ambos tinham escolhido para a
filha que não chegou a nascer. Conhecemo-los através de Lisa Matos,
especialista em tortura e trauma, e consultora do programa de reinstalação no
Serviço Jesuíta dos Refugiados, e contar-nos-ão tudo aquilo por que passaram
nos últimos anos, com uma condição: não publicar dados que possam identificá-
los. Fotografias nem de costas. Se o Governo sírio souber que têm o estatuto de
refugiados, tira-lhes todos os bens que possuem no país, das propriedades às
contas bancárias.
Adel e Yara pertencem a uma família rica; a maioria dos seus membros saiu do
país e espera vender terrenos e casas para recomeçar onde estão. A vontade de
regressar à vida ativa é tão grande que Adel explica tudo isto antes de falar do
medo que tem de ser detetado por apoiantes do presidente sírio, Bashar al-
Assad, que possam eventualmente morar em Portugal.
Ele, a mulher e o filho, menor, estavam num país africano quando a guerra
começou na Síria. Bastou pisarem solo sírio para Adel ser detido sob a acusação
de enviar dinheiro a terroristas. A tortura deixou marcas visíveis no seu corpo.
CONSELHOS PARA QUEM VEM AÍ
Em Portugal, Adel passa despercebido, a não ser quando está com a mulher,
sempre bem vestida, muito maquilhada e de cabeça coberta. Há umas semanas,
numa loja onde escolhia roupa, Yara foi abordada por uma senhora que quis
saber o seu país de origem. Ao ouvir "Síria", agarrou-se a ela, a chorar. "As
pessoas recebem-nos muito bem", sublinha Adel. "Não têm dinheiro para nos dar
mas dão-nos sentimentos."
Só que não basta as pessoas serem calorosas, gostaria ele de dizer aos milhares
de refugiados que chegarão em breve. "Tenho alguns conselhos para quem vem
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aí: 'Se pensas que Portugal é a Suécia, estás enganado porque os portugueses
têm muitos problemas; o país é lindo mas encontrar trabalho é difícil; prepara-te
para uma situação dura; e não contes só com o Estado'." Adel acredita que os
sírios vão gostar do povo, do clima e da comida. O mais complicado será a
língua. "Mas se aprenderes Português", continua, "vais a todo o lado, misturas-te
bem na sociedade, enquanto na Alemanha ao fim de dez anos continuas a ser
um refugiado".
É o que lhe contam os familiares que lá moram, os mesmos que ainda tentam
convencê-los a mudarem-se para lá. Adel e Yara estiveram quase, quase; só
uma doença súbita da mãe dela, que os acompanhou na fuga, os demoveu. O
médico desaconselhou viagens nos meses seguintes e eles acabaram por se
adaptar à vida em Lisboa.
E, no entanto, o início não podia ter sido pior. Queriam ir para a Suécia - "Porque
o paraíso [dos refugiados] é lá" - e pagaram a um traficante de pessoas 24 mil
euros por quatro passaportes falsos. Partiram de um país africano. Lisboa era só
uma escala, mas foram detetados e acabaram no Centro de Instalação
Temporária do aeroporto da Portela. Yara sofrera um aborto espontâneo dois
dias antes da viagem, o filho só chorava, Adel bem pediu para o incriminarem
apenas a ele, deixando que a família ficasse num hotel. Em vão.
COMEÇA O PINGUE-PONGUE
No centro, tiraram-lhes todos os pertences, só podiam sair do quarto uma vez por
dia e receberam insultos da empregada de limpeza ("Muçulmanos, problemas").
"Parecia que estávamos numa prisão", resume Adel. Até que, à terceira noite,
foram visitados por uma técnica do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF)
que, após lhes contarem a sua história, prometeu tirá-los dali o mais depressa
possível.
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Na manhã seguinte, estavam a caminho do centro de acolhimento do Conselho
Português para os Refugiados (CPR) - a instituição que, por lei, recebe todos os
requerentes a asilo -, e acabaram numa pensão suja, em Alcântara, por falta de
vagas.
Proibidos de se mudarem para um hotel, ali ficaram três meses, num quarto no
sótão, sem acesso à cozinha nem serviço de limpeza. Passaram-lhes para as
mãos uma esfregona e eles desenvencilharam-se como puderam. O subsídio
para a alimentação (€525 no total) gastou-se em poucas refeições e, mais tarde,
arrendar a casa foi um calvário porque no SEF e no CPR só tinham um conselho
para lhes dar: "Procurem no OLX."
As aulas de Português no CPR são tão poucas (três horas por semana) que se
inscreveram num curso intensivo na Faculdade de Letras, a expensas próprias. E
quando quiseram pôr o filho na escola, ouviram dos técnicos: escolham a que
lhes parece melhor que depois nós escrevemos uma carta.
O rol de dificuldades não se fica pelos parágrafos anteriores, mas chegam e
sobram para Adel falar na falta que faz um manual de integração, um "passo a
passo" que ajude a resolver questões práticas. "A tragédia do refugiado em
Portugal é essa", diz. "A Segurança Social dá-nos o dinheiro e diz: 'Não voltes
cá'. Quando queremos falar com alguém numa instituição, marcam-nos uma
reunião só para dali a muito tempo, e, no fim, por vezes é para recebermos uma
resposta negativa. Sentimos que não têm tempo para nós, nem sequer para nos
explicar onde se paga a fatura da eletricidade."
E depois há o pingue-pongue entre as instituições. "Vou dar-lhe um exemplo:
quando quisemos reaver as nossas cinco malas, no CPR mandaram-nos para o
SEF, no SEF disseram-nos que tínhamos de ir diretamente ao aeroporto, no
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aeroporto recambiaram-nos de novo para o SEF. Até que no SEF, uma senhora
muito simpática nos deu uma cópia do código das malas. Aí, só precisámos de ir
novamente ao CPR, onde fizeram o favor de nos emprestar uma carrinha para
podermos levantar as malas no aeroporto."
E O APOIO PSICOLÓGICO?
A família de Adel recebe 750 euros de subsídio no total. Muitos agregados de
cinco ou seis pessoas recebem menos. A contabilidade faz-se assim: €250 para o
homem e €125 para a mulher e cada um dos filhos. "O apartamento custa 500
euros, a luz, a água e o gás leva-nos os outros 250. Todos os meses, tenho de
pedir dinheiro emprestado à família", explica. "Mas, aqui, também só dão 250
euros aos reformados. Nós não viemos para cá à procura de subsídios. Nós
fugimos da guerra, de muito sangue, e agradecemos a segurança que temos em
Portugal."
Adel é licenciado em Engenharia Civil e tem experiência em marketing e
desenvolvimento empresarial. Fala inglês fluentemente e faz-se entender em
português. Continua sem emprego, mas acredita que melhores dias virão. "Nós,
sírios, gostamos de trabalhar, somos ativos e criativos."
Há uma semana, tornou a recusar o convite dos familiares que estão na
Alemanha. "Respondi-lhes que fiz a escolha certa porque sou muito feliz cá.
Portugal tem pessoas boas, clima bom, comida boa. Os figos..." Yara toca-lhe no
braço. "Só pensas em comida! Eu acredito que Deus escolheu por nós."
Agora, além de um emprego para Adel - e, quem sabe, para a sua mulher, que
tem competência para trabalhar como secretária -, já só lhes falta apoio
psicológico. Yara chora constantemente e recusa-se a falar no passado, a sua
mãe não dorme por causa dos pesadelos e o filho tornou-se uma criança
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agressiva. "Esta população precisa de serviços de saúde especializados", nota
Lisa Matos. "Temos cá muitos sobreviventes de tortura e não há sequer
tratamento para o stresse pós-traumático."
Ahmed Abdalla há de responder com um sorriso triste quando lhe perguntamos
pelo apoio psicológico. "O que estava escrito no papel que o ACNUR [a Agência
da ONU para Refugiados] mostrou, quando me disse que eu vinha para Portugal,
era fabuloso", conta. "Íamos ter boas condições de sobrevivência, receber
documentos legais e apoios nos transportes, educação, saúde, uma verdadeira
integração na sociedade portuguesa e trabalho. Viemos com alegria, mas, afinal,
o ambiente que encontrámos é diferente. Dão-nos a autorização de residência e
pouco mais."
'SOU PORTUGUÊS', ORGULHA-SE
Ahmed tinha 45 anos quando saiu da Somália. Com ele ia a mulher e três filhos,
de 1 ano e meio, 4 e 5 anos. Passaram pelo Egito, Sudão e deserto da Líbia
antes de se meterem num barco de oito metros, com mais vinte pessoas. Salvos
pelos Royal Marines de Malta, pediram asilo na ilha e ali ficaram até dezembro de
2007, altura em que o ACNUR escolheu enviá-los para Portugal. "Já sou
português", orgulha-se. Obteve a nacionalidade em abril deste ano. Nunca teve
um emprego certo.
Estamos sentados numa esplanada junto à Rua Alexandre Herculano, em Lisboa,
a uns passos da Avenida da Liberdade, por onde pouco antes desceu uma
manifestação de apoio a refugiados, convocada pelas redes sociais. Ahmed fez
uma parte do percurso com quatro amigos e juntamo-nos todos a conversar.
![Page 10: Somos Todos Refugiados](https://reader036.fdocumentos.tips/reader036/viewer/2022080105/577c83321a28abe054b3fe21/html5/thumbnails/10.jpg)
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A dias de formalizar a União dos Refugiados e Emigrantes em Portugal, Ahmed
quer falar das responsabilidades do Estado e cada exemplo é bom para mostrar o
que é preciso mudar para que os refugiados se sintam bem-vindos.
O encontro fora marcado inicialmente para junto da Mesquita Central de Lisboa,
no Bairro Azul, mas o local seria descartado. "Se nos fotografassem lá, as
pessoas iam logo dizer: 'São muçulmanos, são terroristas!'", argumenta Diaby
Abdourahamane, 33 anos, nascido na Costa do Marfim, em Portugal desde
agosto de 2007.
A sua viagem começou dois anos antes. Antes de cá chegar, passou por vários
países africanos até que se enfiou numa patera rumo à costa espanhola. Em
Espanha, decidiu seguir um grupo que tinha família em Portugal. "O que é que eu
conhecia do país? O Luís Figo! Mais? Humm... ?O Rui Costa."
Licenciado em Economia ("Mas como é que eu provo?"), Diaby chegou a
trabalhar no aeroporto, como Relações Públicas, antes de se tornar um ativista
pelos direitos dos refugiados. Além do Francês e do Inglês que usa
indiscriminadamente, fala Português com correção. Não tem qualquer dificuldade
em dizer o que lhe vai na alma. Só não lhe peçam para contar a travessia do
Mediterrâneo.
'QUIS PROTEGER OS MEUS FILHOS'
Não é o único parco em palavras quando se trata de reviver o passado. Foi difícil,
mas já passou. Agora, vamos ao presente, por favor. Mesmo assim, escreva-se
que Ali Bilal é iraquiano, tem 44 anos e chegou a Lisboa em 2011, vindo da
Ucrânia, com a mulher, originária da Crimeia, e dois filhos. Estudou Finanças em
Bagdad, aos 23 anos estava na Turquia, mais tarde em Moscovo. Nunca poderá
regressar ao Iraque, saiu de lá por razões políticas. Os filhos, dois rapazes de 14
![Page 11: Somos Todos Refugiados](https://reader036.fdocumentos.tips/reader036/viewer/2022080105/577c83321a28abe054b3fe21/html5/thumbnails/11.jpg)
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e 7 anos, ainda não têm os livros para a escola. O 400 euros que o agregado
recebe mensalmente não esticam.
Ayad-sh-Mahmoud, também iraquiano, de 55 anos, foi motorista e carpinteiro no
Iraque e na Síria, para onde fugiu no final de 2006. Em Portugal há já sete anos,
nunca trabalhou. Ele, a mulher e os quatro filhos vivem da caridade alheia e da
venda de cartão. "No ACNUR, foi assim: 'Queres ir para onde? Para a América?
Não, não, eu quero é Portugal! Mas tu és maluco?'. Sabia que era um país calmo,
com pessoas simpáticas e sem grandes problemas de droga. Quis proteger os
meus filhos. Fui a primeira família reinstalada da Síria."
Mubarak M. Hussein tinha 20 anos quando os pais decidiram fugir de Mogadíscio,
na Somália. Passaram pelo Djibuti, Iémen e Líbia antes de pararem na Ucrânia,
de onde Mubarak veio em dezembro de 2010. Aos 31 anos, com o curso de
Direito Internacional e três filhos a seu cargo, tem saudades do tempo em que
trabalhava como tradutor, no ACNUR. "Escolhi Portugal porque o país me
interessava historicamente, conhecia o seu passado. Vim encontrar um país bom,
mas os governantes..."
Para quem se refugiou em Portugal há vários anos as queixas acumulam-se.
Viram como, em março de 2013, a Segurança Social equiparou os refugiados que
chegaram há pelo menos três anos aos estrangeiros - perdendo, por isso, o apoio
da Ação Social e ficando apenas com o Rendimento Social de Inserção (bastante
mais baixo). Entretanto, no acesso ao Serviço Nacional de Saúde passaram a
"insuficientes económicos", tendo de prová-lo anualmente.
A LÍNGUA É UMA BARREIRA
É, aliás, no acesso à saúde que dizem sentir mais discriminação. Num dia em
que Ayad foi ao centro de saúde, com dores de estômago, seguiu-se este diálogo
![Page 12: Somos Todos Refugiados](https://reader036.fdocumentos.tips/reader036/viewer/2022080105/577c83321a28abe054b3fe21/html5/thumbnails/12.jpg)
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com o médico de família: "[Olhos no computador] Como se chama? Por que não
trabalha? Eu procuro, há cinco anos que vou todos os meses ao centro de
emprego. E a criança? [um filho, de 3 anos] Por que não fala Português?"
Ayad queixa-se ainda de só lhe receitarem Paracetamol, e de já terem recusado
fazer análises ao sangue. "'Não, não, não!', disse o médico. 'Quem paga? Nós é
que pagamos! Você só tem direito aos mínimos'." Mubarak interrompe: "E o que
eu ouvi da assistente social? Quando soube do corte nos subsídios, disse-lhe que
somos cinco pessoas, 427 euros por mês não chega. E ela respondeu: 'Os
portugueses estão piores do que tu. Se não achas suficiente, a porta está aberta."
É o género de argumento que arrepia Cristina Santinho, especialista do Centro
em Rede de Investigação em Antropologia do ISCTE, autora da tese de
doutoramento Afinal, que asilo é este que não me protege? "Há aqui uma
agravante, que é o facto de a maior parte não possuir uma rede social de apoio,
não ter cá família."
A aprendizagem do Português é determinante. "Se não falam, ficam sempre no
fim da fila para conseguir emprego. Depois, como não têm documentos que
provem as suas habilitações, são todos nivelados por baixo. Numa situação de
guerra, a prioridade não foi trazer documentos, foi salvar a vida."
Em Portugal, só raramente a língua deixará de ser uma barreira. Ao palestiniano
Obai Radwan, hoje com 33 anos, bastou-lhe falar Árabe e Inglês para conseguir
um lugar no call-center da multinacional Xerox. Quando o contrato terminou, ao
fim de um ano e meio, foi a correr estudar Português na Faculdade de Letras -
porque queria fazer um mestrado em Turismo e Comunicação. As aulas, afinal,
são todas dadas em Inglês, mas assim ganhou mais uma competência e mais um
grupo de amigos.
![Page 13: Somos Todos Refugiados](https://reader036.fdocumentos.tips/reader036/viewer/2022080105/577c83321a28abe054b3fe21/html5/thumbnails/13.jpg)
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Nascido em Abu Dabi, de pais palestinianos expulsos de Gaza nos anos 70, Obai
teve de abandonar os Emirados Árabes Unidos quando perdeu o emprego e o
direito ao visto. Agora, em Alfama, onde mora, sente que pertence a um lugar. Só
lamenta ter escrito "refugiado" no seu título de residência - não há muito tempo,
bastou essa palavra para ser barrado no check in de um hotel, em Itália.