Somos Todos Refugiados

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1 Somos todos refugiados 1 Diaby, Sabina, Obai, Ahmed, Ali, Ayad e Mubarak olham-nos de frente, como já se habituaram a fazer desde que reganharam a dignidade. Aqui recomeçaram as suas vidas interrompidas por guerras e perseguições políticas. Histórias de quem escolheu Portugal para fugir à morte Hoje, seria preciso ela andar com um cartaz, de letras garrafais, ou a palavra impressa na t-shirt. Sabina passa, Sabina fala e ninguém adivinha que Sabina é uma refugiada bósnia. Podia ser portuguesa, pensamos mal a conhecemos, secretamente à coca de um sotaque, de um deslize que denuncie as suas origens. Só quando a vemos sozinha num campo perto de sua casa, em Coimbra, um campo verde meio-desalinhado que ficaria bem em qualquer parte 1 http://visao.sapo.pt/actualidade/portugal/somos-todos-refugiados=f831165

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Somos todos refugiados1

Diaby, Sabina, Obai, Ahmed, Ali, Ayad e Mubarak olham-nos de frente, como já

se habituaram a fazer desde que reganharam a dignidade. Aqui recomeçaram as

suas vidas interrompidas por guerras e perseguições políticas. Histórias de quem

escolheu Portugal para fugir à morte

Hoje, seria preciso ela andar com um cartaz, de letras garrafais, ou a palavra

impressa na t-shirt. Sabina passa, Sabina fala e ninguém adivinha que Sabina é

uma refugiada bósnia. Podia ser portuguesa, pensamos mal a conhecemos,

secretamente à coca de um sotaque, de um deslize que denuncie as suas

origens. Só quando a vemos sozinha num campo perto de sua casa, em

Coimbra, um campo verde meio-desalinhado que ficaria bem em qualquer parte

1 http://visao.sapo.pt/actualidade/portugal/somos-todos-refugiados=f831165

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do mundo, é que somos transportados para a sua fuga à guerra na ex-Jugoslávia,

a um tempo em que ela não pertencia a lado nenhum.

Será isto a integração? Isto de as pessoas se aculturarem, se tornarem iguais

àqueles que as receberam ao ponto de não se distinguirem os traços originais?

O tema tem pano para mangas e ainda sobra, mas Sabina despacha-o como se

despachasse um esquisso no seu estirador de arquiteta: "Sou portuguesa. É

assim que me apresento desde que obtive a nacionalidade, há mais de dez

anos."

Também poderia dizer "Olá, chamo-me Sabina Godinho Karamehmedovic, o

apelido do meio a avisar que casou com um português. Mas para contar como

aqui chegou precisa de mais tempo. Tem de começar como lhe ensinaram, pelas

fundações, na sua história abanada por bombas.

Na noite em que as ouviram, a sua mãe e a sua tia, tomaram uma decisão: não

ficariam nem mais um dia em Derventa, cidade quase na fronteira com a Croácia.

Na manhã seguinte, pegariam nos filhos, dois cada uma (Sabina tem uma irmã

mais velha, Dragana), e fugiriam para casa do pai de ambas, em Split.

Sabina lembra-se bem da data: 8 de abril de 1992. A mãe, Vesna, fazia 42 anos

nesse dia e largava a casa, o ateliê de arquitetura e o marido - os homens

estavam proibidos de sair do país. Também não se esquece do comboio "a

abarrotar de mulheres e crianças" que apanharam rumo à Croácia.

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UMA CONSOADA EM SOURE

Em Split eram já muitos os refugiados a viverem num ambiente de rejeição.

"Diziam que iamos ocupar espaço", recorda, expressão que uma miúda de 12

anos não entendia mas que os adultos traduziam por falta de empregos para

todos.

Sabina e Dragana iam para a escola de ténis com buracos e fingiam não ligar

quando ouviam comentários do género: "Só tens esse par de calças?!" Enquanto

a mãe, a tia e a avó se desdobravam entre os centros de ajuda que davam

comida aos refugiados, as duas manas matavam o tempo na praia, com outras

meninas como elas que estavam instaladas nuns pavilhões de madeira perto de

casa dos avós. O mar Adriático ficava mesmo ali. "Foi o que nos safou para fugir

daquele ambiente", conta.

Os meses passaram, os ecos da guerra traziam histórias de destruição, o pai

haveria de aparecer em Split, deixando-se ficar sempre escondido em casa. O

avô vendeu o carro, a reforma não chegava para tanta gente. Desesperada, a

avó apostou que encontraria uma instituição que ajudasse as filhas e os netos a

mudarem-se para um país seguro. A 21 de setembro desse ano, conseguiu que

os seis fossem incluídos no grupo de cento e poucos bósnios que aterraram no

aeroporto de Figo Maduro, pela mão da revista Fórum Estudante e da Missão

Crescer em Esperança.

Primeiro na Pousada da Juventude do forte de Catalazete, em Oeiras, depois no

campo de férias da CP, na praia das Maçãs, Sabina maravilhou-se com a beleza

dos lugares e fez amigos entre as outras crianças. Perder-lhes-ia o rasto porque

a maioria das famílias foi para a Malásia, através de uma instituição islâmica. Os

Karamehmedovic não quiseram ir, são ortodoxos e têm horror à segregação.

Ainda não sabiam, mas o seu futuro seria em Portugal.

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No Natal de 1992, Géna e Zé Macedo entraram nas suas vidas ao convidá-los

para passarem a Consoada em Soure. O meio era pequeno e toda a vizinhança

deu atenção à família bósnia. O convite estendeu-se ad aeternum: o casal queria

ajudá-los e não esperava nada em troca; a vivenda tinha espaço para todos.

Os Macedo arranjaram rapidamente um emprego ao patriarca, Fuad, num

armazém, uma voluntária da missão mexeu os cordelinhos para Vesna conseguir

lugar num ateliê, e as duas crianças entraram na escola. Três ou quatro meses

depois, os quatro arrendaram um apartamento na mesma rua dos seus anfitriões.

"A nossa integração começou aí", analisa hoje Sabina, aos 35 anos, "porque

finalmente dependíamos de nós próprios."

Os vinte anos seguintes resumem-se aqui numa frase, com mil agradecimentos

de Sabina aos pais, que arriscaram começar de novo depois dos 40 anos, e um

final feliz: as duas manas casaram-se com portugueses, dois Antónios, e a mais

velha já vai a caminho da segunda filha.

FOTOGRAFIAS NEM DE COSTAS

Não foi por acaso que iniciámos o artigo por uma história com final feliz. No

momento em que assistimos à maior crise humanitária desde a Segunda Guerra

Mundial, e que Portugal está prestes a receber milhares de refugiados, são

histórias como a de Sabina que nos mostram a importância da sociedade civil.

Foi o que nos disseram e repetiram Adel e Yara, um casal de sírios que

chegaram a Lisboa há um ano e luta para recomeçar a vida aqui. "Se eu

encontrar trabalho cá, é o paraíso", dirá ele quase à despedida. "Porque o

sistema é mau mas não as pessoas. Encontrámos nos portugueses um calor que

nos deu pés mais fortes para ficar definitivamente."

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Adel não se chama assim e Yara é o nome que ambos tinham escolhido para a

filha que não chegou a nascer. Conhecemo-los através de Lisa Matos,

especialista em tortura e trauma, e consultora do programa de reinstalação no

Serviço Jesuíta dos Refugiados, e contar-nos-ão tudo aquilo por que passaram

nos últimos anos, com uma condição: não publicar dados que possam identificá-

los. Fotografias nem de costas. Se o Governo sírio souber que têm o estatuto de

refugiados, tira-lhes todos os bens que possuem no país, das propriedades às

contas bancárias.

Adel e Yara pertencem a uma família rica; a maioria dos seus membros saiu do

país e espera vender terrenos e casas para recomeçar onde estão. A vontade de

regressar à vida ativa é tão grande que Adel explica tudo isto antes de falar do

medo que tem de ser detetado por apoiantes do presidente sírio, Bashar al-

Assad, que possam eventualmente morar em Portugal.

Ele, a mulher e o filho, menor, estavam num país africano quando a guerra

começou na Síria. Bastou pisarem solo sírio para Adel ser detido sob a acusação

de enviar dinheiro a terroristas. A tortura deixou marcas visíveis no seu corpo.

CONSELHOS PARA QUEM VEM AÍ

Em Portugal, Adel passa despercebido, a não ser quando está com a mulher,

sempre bem vestida, muito maquilhada e de cabeça coberta. Há umas semanas,

numa loja onde escolhia roupa, Yara foi abordada por uma senhora que quis

saber o seu país de origem. Ao ouvir "Síria", agarrou-se a ela, a chorar. "As

pessoas recebem-nos muito bem", sublinha Adel. "Não têm dinheiro para nos dar

mas dão-nos sentimentos."

Só que não basta as pessoas serem calorosas, gostaria ele de dizer aos milhares

de refugiados que chegarão em breve. "Tenho alguns conselhos para quem vem

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aí: 'Se pensas que Portugal é a Suécia, estás enganado porque os portugueses

têm muitos problemas; o país é lindo mas encontrar trabalho é difícil; prepara-te

para uma situação dura; e não contes só com o Estado'." Adel acredita que os

sírios vão gostar do povo, do clima e da comida. O mais complicado será a

língua. "Mas se aprenderes Português", continua, "vais a todo o lado, misturas-te

bem na sociedade, enquanto na Alemanha ao fim de dez anos continuas a ser

um refugiado".

É o que lhe contam os familiares que lá moram, os mesmos que ainda tentam

convencê-los a mudarem-se para lá. Adel e Yara estiveram quase, quase; só

uma doença súbita da mãe dela, que os acompanhou na fuga, os demoveu. O

médico desaconselhou viagens nos meses seguintes e eles acabaram por se

adaptar à vida em Lisboa.

E, no entanto, o início não podia ter sido pior. Queriam ir para a Suécia - "Porque

o paraíso [dos refugiados] é lá" - e pagaram a um traficante de pessoas 24 mil

euros por quatro passaportes falsos. Partiram de um país africano. Lisboa era só

uma escala, mas foram detetados e acabaram no Centro de Instalação

Temporária do aeroporto da Portela. Yara sofrera um aborto espontâneo dois

dias antes da viagem, o filho só chorava, Adel bem pediu para o incriminarem

apenas a ele, deixando que a família ficasse num hotel. Em vão.

COMEÇA O PINGUE-PONGUE

No centro, tiraram-lhes todos os pertences, só podiam sair do quarto uma vez por

dia e receberam insultos da empregada de limpeza ("Muçulmanos, problemas").

"Parecia que estávamos numa prisão", resume Adel. Até que, à terceira noite,

foram visitados por uma técnica do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF)

que, após lhes contarem a sua história, prometeu tirá-los dali o mais depressa

possível.

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Na manhã seguinte, estavam a caminho do centro de acolhimento do Conselho

Português para os Refugiados (CPR) - a instituição que, por lei, recebe todos os

requerentes a asilo -, e acabaram numa pensão suja, em Alcântara, por falta de

vagas.

Proibidos de se mudarem para um hotel, ali ficaram três meses, num quarto no

sótão, sem acesso à cozinha nem serviço de limpeza. Passaram-lhes para as

mãos uma esfregona e eles desenvencilharam-se como puderam. O subsídio

para a alimentação (€525 no total) gastou-se em poucas refeições e, mais tarde,

arrendar a casa foi um calvário porque no SEF e no CPR só tinham um conselho

para lhes dar: "Procurem no OLX."

As aulas de Português no CPR são tão poucas (três horas por semana) que se

inscreveram num curso intensivo na Faculdade de Letras, a expensas próprias. E

quando quiseram pôr o filho na escola, ouviram dos técnicos: escolham a que

lhes parece melhor que depois nós escrevemos uma carta.

O rol de dificuldades não se fica pelos parágrafos anteriores, mas chegam e

sobram para Adel falar na falta que faz um manual de integração, um "passo a

passo" que ajude a resolver questões práticas. "A tragédia do refugiado em

Portugal é essa", diz. "A Segurança Social dá-nos o dinheiro e diz: 'Não voltes

cá'. Quando queremos falar com alguém numa instituição, marcam-nos uma

reunião só para dali a muito tempo, e, no fim, por vezes é para recebermos uma

resposta negativa. Sentimos que não têm tempo para nós, nem sequer para nos

explicar onde se paga a fatura da eletricidade."

E depois há o pingue-pongue entre as instituições. "Vou dar-lhe um exemplo:

quando quisemos reaver as nossas cinco malas, no CPR mandaram-nos para o

SEF, no SEF disseram-nos que tínhamos de ir diretamente ao aeroporto, no

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aeroporto recambiaram-nos de novo para o SEF. Até que no SEF, uma senhora

muito simpática nos deu uma cópia do código das malas. Aí, só precisámos de ir

novamente ao CPR, onde fizeram o favor de nos emprestar uma carrinha para

podermos levantar as malas no aeroporto."

E O APOIO PSICOLÓGICO?

A família de Adel recebe 750 euros de subsídio no total. Muitos agregados de

cinco ou seis pessoas recebem menos. A contabilidade faz-se assim: €250 para o

homem e €125 para a mulher e cada um dos filhos. "O apartamento custa 500

euros, a luz, a água e o gás leva-nos os outros 250. Todos os meses, tenho de

pedir dinheiro emprestado à família", explica. "Mas, aqui, também só dão 250

euros aos reformados. Nós não viemos para cá à procura de subsídios. Nós

fugimos da guerra, de muito sangue, e agradecemos a segurança que temos em

Portugal."

Adel é licenciado em Engenharia Civil e tem experiência em marketing e

desenvolvimento empresarial. Fala inglês fluentemente e faz-se entender em

português. Continua sem emprego, mas acredita que melhores dias virão. "Nós,

sírios, gostamos de trabalhar, somos ativos e criativos."

Há uma semana, tornou a recusar o convite dos familiares que estão na

Alemanha. "Respondi-lhes que fiz a escolha certa porque sou muito feliz cá.

Portugal tem pessoas boas, clima bom, comida boa. Os figos..." Yara toca-lhe no

braço. "Só pensas em comida! Eu acredito que Deus escolheu por nós."

Agora, além de um emprego para Adel - e, quem sabe, para a sua mulher, que

tem competência para trabalhar como secretária -, já só lhes falta apoio

psicológico. Yara chora constantemente e recusa-se a falar no passado, a sua

mãe não dorme por causa dos pesadelos e o filho tornou-se uma criança

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agressiva. "Esta população precisa de serviços de saúde especializados", nota

Lisa Matos. "Temos cá muitos sobreviventes de tortura e não há sequer

tratamento para o stresse pós-traumático."

Ahmed Abdalla há de responder com um sorriso triste quando lhe perguntamos

pelo apoio psicológico. "O que estava escrito no papel que o ACNUR [a Agência

da ONU para Refugiados] mostrou, quando me disse que eu vinha para Portugal,

era fabuloso", conta. "Íamos ter boas condições de sobrevivência, receber

documentos legais e apoios nos transportes, educação, saúde, uma verdadeira

integração na sociedade portuguesa e trabalho. Viemos com alegria, mas, afinal,

o ambiente que encontrámos é diferente. Dão-nos a autorização de residência e

pouco mais."

'SOU PORTUGUÊS', ORGULHA-SE

Ahmed tinha 45 anos quando saiu da Somália. Com ele ia a mulher e três filhos,

de 1 ano e meio, 4 e 5 anos. Passaram pelo Egito, Sudão e deserto da Líbia

antes de se meterem num barco de oito metros, com mais vinte pessoas. Salvos

pelos Royal Marines de Malta, pediram asilo na ilha e ali ficaram até dezembro de

2007, altura em que o ACNUR escolheu enviá-los para Portugal. "Já sou

português", orgulha-se. Obteve a nacionalidade em abril deste ano. Nunca teve

um emprego certo.

Estamos sentados numa esplanada junto à Rua Alexandre Herculano, em Lisboa,

a uns passos da Avenida da Liberdade, por onde pouco antes desceu uma

manifestação de apoio a refugiados, convocada pelas redes sociais. Ahmed fez

uma parte do percurso com quatro amigos e juntamo-nos todos a conversar.

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A dias de formalizar a União dos Refugiados e Emigrantes em Portugal, Ahmed

quer falar das responsabilidades do Estado e cada exemplo é bom para mostrar o

que é preciso mudar para que os refugiados se sintam bem-vindos.

O encontro fora marcado inicialmente para junto da Mesquita Central de Lisboa,

no Bairro Azul, mas o local seria descartado. "Se nos fotografassem lá, as

pessoas iam logo dizer: 'São muçulmanos, são terroristas!'", argumenta Diaby

Abdourahamane, 33 anos, nascido na Costa do Marfim, em Portugal desde

agosto de 2007.

A sua viagem começou dois anos antes. Antes de cá chegar, passou por vários

países africanos até que se enfiou numa patera rumo à costa espanhola. Em

Espanha, decidiu seguir um grupo que tinha família em Portugal. "O que é que eu

conhecia do país? O Luís Figo! Mais? Humm... ?O Rui Costa."

Licenciado em Economia ("Mas como é que eu provo?"), Diaby chegou a

trabalhar no aeroporto, como Relações Públicas, antes de se tornar um ativista

pelos direitos dos refugiados. Além do Francês e do Inglês que usa

indiscriminadamente, fala Português com correção. Não tem qualquer dificuldade

em dizer o que lhe vai na alma. Só não lhe peçam para contar a travessia do

Mediterrâneo.

'QUIS PROTEGER OS MEUS FILHOS'

Não é o único parco em palavras quando se trata de reviver o passado. Foi difícil,

mas já passou. Agora, vamos ao presente, por favor. Mesmo assim, escreva-se

que Ali Bilal é iraquiano, tem 44 anos e chegou a Lisboa em 2011, vindo da

Ucrânia, com a mulher, originária da Crimeia, e dois filhos. Estudou Finanças em

Bagdad, aos 23 anos estava na Turquia, mais tarde em Moscovo. Nunca poderá

regressar ao Iraque, saiu de lá por razões políticas. Os filhos, dois rapazes de 14

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e 7 anos, ainda não têm os livros para a escola. O 400 euros que o agregado

recebe mensalmente não esticam.

Ayad-sh-Mahmoud, também iraquiano, de 55 anos, foi motorista e carpinteiro no

Iraque e na Síria, para onde fugiu no final de 2006. Em Portugal há já sete anos,

nunca trabalhou. Ele, a mulher e os quatro filhos vivem da caridade alheia e da

venda de cartão. "No ACNUR, foi assim: 'Queres ir para onde? Para a América?

Não, não, eu quero é Portugal! Mas tu és maluco?'. Sabia que era um país calmo,

com pessoas simpáticas e sem grandes problemas de droga. Quis proteger os

meus filhos. Fui a primeira família reinstalada da Síria."

Mubarak M. Hussein tinha 20 anos quando os pais decidiram fugir de Mogadíscio,

na Somália. Passaram pelo Djibuti, Iémen e Líbia antes de pararem na Ucrânia,

de onde Mubarak veio em dezembro de 2010. Aos 31 anos, com o curso de

Direito Internacional e três filhos a seu cargo, tem saudades do tempo em que

trabalhava como tradutor, no ACNUR. "Escolhi Portugal porque o país me

interessava historicamente, conhecia o seu passado. Vim encontrar um país bom,

mas os governantes..."

Para quem se refugiou em Portugal há vários anos as queixas acumulam-se.

Viram como, em março de 2013, a Segurança Social equiparou os refugiados que

chegaram há pelo menos três anos aos estrangeiros - perdendo, por isso, o apoio

da Ação Social e ficando apenas com o Rendimento Social de Inserção (bastante

mais baixo). Entretanto, no acesso ao Serviço Nacional de Saúde passaram a

"insuficientes económicos", tendo de prová-lo anualmente.

A LÍNGUA É UMA BARREIRA

É, aliás, no acesso à saúde que dizem sentir mais discriminação. Num dia em

que Ayad foi ao centro de saúde, com dores de estômago, seguiu-se este diálogo

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com o médico de família: "[Olhos no computador] Como se chama? Por que não

trabalha? Eu procuro, há cinco anos que vou todos os meses ao centro de

emprego. E a criança? [um filho, de 3 anos] Por que não fala Português?"

Ayad queixa-se ainda de só lhe receitarem Paracetamol, e de já terem recusado

fazer análises ao sangue. "'Não, não, não!', disse o médico. 'Quem paga? Nós é

que pagamos! Você só tem direito aos mínimos'." Mubarak interrompe: "E o que

eu ouvi da assistente social? Quando soube do corte nos subsídios, disse-lhe que

somos cinco pessoas, 427 euros por mês não chega. E ela respondeu: 'Os

portugueses estão piores do que tu. Se não achas suficiente, a porta está aberta."

É o género de argumento que arrepia Cristina Santinho, especialista do Centro

em Rede de Investigação em Antropologia do ISCTE, autora da tese de

doutoramento Afinal, que asilo é este que não me protege? "Há aqui uma

agravante, que é o facto de a maior parte não possuir uma rede social de apoio,

não ter cá família."

A aprendizagem do Português é determinante. "Se não falam, ficam sempre no

fim da fila para conseguir emprego. Depois, como não têm documentos que

provem as suas habilitações, são todos nivelados por baixo. Numa situação de

guerra, a prioridade não foi trazer documentos, foi salvar a vida."

Em Portugal, só raramente a língua deixará de ser uma barreira. Ao palestiniano

Obai Radwan, hoje com 33 anos, bastou-lhe falar Árabe e Inglês para conseguir

um lugar no call-center da multinacional Xerox. Quando o contrato terminou, ao

fim de um ano e meio, foi a correr estudar Português na Faculdade de Letras -

porque queria fazer um mestrado em Turismo e Comunicação. As aulas, afinal,

são todas dadas em Inglês, mas assim ganhou mais uma competência e mais um

grupo de amigos.

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Nascido em Abu Dabi, de pais palestinianos expulsos de Gaza nos anos 70, Obai

teve de abandonar os Emirados Árabes Unidos quando perdeu o emprego e o

direito ao visto. Agora, em Alfama, onde mora, sente que pertence a um lugar. Só

lamenta ter escrito "refugiado" no seu título de residência - não há muito tempo,

bastou essa palavra para ser barrado no check in de um hotel, em Itália.