Soluções para problemas concretos

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Pesquisa FAPESP - Ed. 106

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Ciência e Tecnologia

Dezembro 2004 • N° 106

TELECOMUNICAÇÕES E MEDICINA GANHAM COM NOVAS FIBRAS ÓPTICAS

FAPESP

PROSTAGLANDINA EVITA GORDURAS DAS ARTÉRIAS

PESQUISA EM POLÍTICAS PÚBLICAS N

SOLUCOES PARA PROBLEMAS CONCRETOS

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IMAGENs DO MÊS

CRIATURAS OCEÂNICAS

Um projeto que une pesquisadores de mais de 70 países já descobriu l3 mil novas espécies de organismos oceânicos. Entre os achados do Censo da Vida Marinha (sentido horário) há novas espécies de estrelas-do-mar e de medusas, um tipo desconhecido de peixe-escorpião, seres unicelulares e zooplânctons.

PESQUISA FAPESP 106 • DEZEMBRO DE 2004 • 3

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PeieTecnologiaiSB www. revistapesqu is a. fapesp . br

24 CAPA Universidades, setor público e ONGs desenvolvem novas soluções para velhas mazelas

12 ENTREVISTA

Há quatro décadas fora do Brasil, o casal Victor e Ruth N ussenzweig fala sobre a vida acadêmica nos Estados Unidos e os avanços no desenvolvimento de uma vacina contra a malária

FAPESP

REPORTAGENS

POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

32 AD MINISTRAÇÃO Governador Geraldo Alckmin nomeia novos executivos da FAPESP

34 ORÇAMENTO Fundação recompõe patrimônio líquido e restabelece saúde financeira

3 7 DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA

Parceria entre Pesquisa FAPESP e Eldorado AM leva aos ouvintes o melhor da ciência nacional

4 · DEZEMBRO DE 2004 • PESQUISA FAPESP 106

38 AMBIENTE

Congresso em Bangcoc mostra por que ações de conservação só frutificam com visão de lucro no longo prazo

ARTIGO

O físico Roberto Salmeron narra a contribuição do Centro Europeu de Pesquisas Nucleares (CERNl, maior laboratório do mundo de estudo de partículas atômicas, criado há 50 anos

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REPORTAGENS

CIÊNCIA

44 ECOLOGIA

Em cinco anos, o programa Biota-FAPESP levantou informações sobre 56 mil espécies da biodiversidade paulista

49 FARMACOLOGIA Composto desenvolvido no Rio Grande do Sul dissolve as placas de gordura que obstruem as artérias

52 GENÉTICA

Enzima extraída de canguru reduz a perda de células de pele expostas à radiação ultravioleta

54 FÍSICA ESTATÍSTICA Apenas 3 graus de separação se interpõem entre todos os jogadores brasileiros, craques ou pernetas

60 USP 70

Com projeto acadêmico inovador, campus da USP na Zona Leste começa a funcionar em março

TECNOLOGIA

70 FOTÔNICA

Nova geração de fibras ópticas propicia aumento da capacidade de redes de telecomunicações

7 4 ENGENHARIA DE MATERIAIS

Uso de plasma aumenta a vida útil de próteses ortopédicas e ferramentas industriais

78 BIOTECNOLOGIA ,,., • • •• ') .

o

• • •• Estudo procura identificar genes responsáveis pela doçura da cana-de-açúcar

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• •

HUMANIDADES

82 CULTURA

Utopias de Mário de Andrade à frente do Departamento de Cultura de São Paulo

86 HOMENAGEM A morte de Celso Furtado reacende o debate sobre o crescimento

SEÇÕES

IMAGENS DO MÊS .............. 3

CARTAS ....................... 6

CARTA DO EDITOR ............... 9

MEMÓRIA ................... . 10

ESTRATÉGIAS ................. 18

LABORATÓRIO ................. 40

SCIELO NOTÍCIAS .............. 64

LINHA DE PRODUÇÃO ........... 66

RESENHA ..................... 90

LIVRO ........................ 91

FICÇÃO ....................... 92

Capa: Hélio de Almeida Foto da Capa: Robson Fernandes/ AE

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CARTAS [email protected]

Roberto Santos

Parabéns pela entrevista com Ro­berto Santos (edição no 105) na exce­lente revista Pesquisa FAPESP. A en­trevista faz justiça a um cientista e educador que não se encontrou bem com a política. Foi, no entanto, um dos melhores governadores que aBa­hia teve, todavia em uma fase péssi­ma, de repressão e atraso po-lítico e cultural. Todos os votos de sucesso.

L UíS HENRIQUE DIAS TAVARES

Salvador, BA

Revista

Sou um grande aprecia­dor e assíduo leitor desta re­vista fantástica. Não é exa­gero, não: é a pura verdade. Informa na linguagem certa o que interessa. Assino algu­mas outras revistas e tenho só uma sugestão a fazer: dis­ponibilizem uma versão em PDF (programa Acrobat Rea­der) da revista, na íntegra mesmo. Facilita a navegação, por ser uma forma mais análoga a um impresso. Ficaria muito contente em poder fazer o download das edi­ções anteriores e poder tê-las todas na íntegra também. Parabéns pelo excelente trabalho que realizam, e muito obrigado por abrirem esse es­paço de sugestões.

HYGOR BELTRÃO AMO RIM

São Carlos, SP

Embora não se possam fazer re­paros à excelência do projeto gráfico e do conteúdo da revista Pesquisa FAPESP, penso que há um certo de­sequilíbrio na atenção que a revista dá às diferentes áreas do conheci­mento, um desequilíbrio que vem se mantendo historicamente desde seu primeiro número. A título de exem-

6 • DEZEMBRO DE 2004 • PESQUISA FAPESP 106

plo, menciono a revista de no 105 (novembro 2004). Um exame rápido de seu índice revela a existência de oito matérias no campo da Ciência e Tecnologia (nove, se incluirmos aquela sobre biossegurança) e ape­nas três sobre assuntos afeitos às Humanidades (quatro, se somarmos àquelas a matéria sobre pesquisa na Faculdade de Educação). Essa ênfase

EMPRESA QUE APÓIA A PESQUISA BRASILEIRA

lJ) N O V A R T I S Trop1Net.org

nos assuntos ditos "científicos" tem se mantido de forma sistemática, em detrimento de uma área que tem da­do importantíssimas contribuições no avanço da pesquisa no país. Co­mo leitora assídua da revista, deseja­ria ver nela refletida, de maneira mais equilibrada, a relevância da pesquisa nas Humanidades.

SAN DRA G UARDI NI T . VASCONCELOS

FFLCH/USP São Paulo, SP

Por me interressar pelo estágio em que anda a pesquisa no país, re­solvi comprar um exemplar de Pes­quisa FAPESP, para ficar mais infor­mado, após ver um anúncio na TV Cultura. A revista é ótima e aborda os vários campos da pesquisa (até as artes, veja só). Só tenho uma suges-

tão: a capa precisa conter mais infor­mações sobre o conteúdo (fica difícil comprar algo sem saber o seu con­teúdo). O resto está ótimo.

REGINALDO RESENDE

Pirassununga, SP

Cogumelo-do-sol

Confesso que nunca ha­via lido uma única revista Pesquisa FAPESP em toda a minha vida, mas, por coin­cidência, um amigo meu que estava viajando de volta para nossa cidade encon­trou esquecido em um ban­co na Rodoviária do Tietê o no 100 desta conceituada re­vista e o trouxe para mim. Parabenizo Pesquisa FA­PESP por tão útil conteúdo editorial, com reportagens tão importantes para o nosso dia-a-dia, desenvolvimento e progresso do nosso querido Brasil. Sinceramente não sabia que existiam publica­ções de tão alto nível. De to­das as reportagens e pesqui-

sas que ali foram publicadas, a que mais me chamou a atenção e des­pertou mais interesse foi a pesquisa com o fungo Agaricus blazei, conhe­cido popularmente como cogume­lo-do-sol.

VALDIVINO XISTO R OSA

ltabira, MG

Viver em risco

Ocorreu grave problema com o título da reportagem "Onde mora o perigo" (edição no 104). Ao ler o tex­to enviado pelo repórter, acrescentei "e também a dignidade", frase que foi omitida. Devo frisar que isso pode colocar em xeque a continuidade da pesquisa, pois destrói a confiança e o respeito, indispensáveis ao bom an-

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damento de uma investigação. Por outro lado, a omissão escamoteia o duro cotidiano das populações que habitam regiões pobres. Viver em ris­co supõe moralidade e perseverança que se expressam na luta contra as injustiças: é o esforço da autoconstru­ção de moradias, os arranjos familia­res para enfrentar o desemprego, o sufocamento nos cortiços, o medo que os filhos escolham os caminhos do tráfico, este sim mora ao lado, e é imperioso distinguir-se dele em silên­cio, sem nada ouvir porque existem a arbitrariedade e a impunidade dos bandidos e da polícia. Chamo esses processos de dignidade. Finalmente penso que deixar o título como está reforça o preconceito de quem vê de longe e de forma viesada as várias manifestações da imensa desigualda­de presente em nossas cidades. É esti­mular a visão daqueles que misturam pobreza com perigo e daí o passo pa­ra a discriminação de áreas e pessoas potencialmente violentas, porque mo­ram em certos locais, vestem-se de certa forma, têm sotaque peculiar, mas não conseguem carteira de trabalho assinada, são jovens e, sobretudo, têm pele escura. Não pode ser a aborda­gem de uma revista de divulgação científica como Pesquisa FAPESP.

Lúcio KowARICK

FFLCH/USP São Paulo, SP

N. da R.: Como o próprio pro­fessor Lúcio Kowarick atesta na sua carta, os termos da reportagem es­tão corretos. Quanto ao título, não julgamos que exprima preconceito, mas apenas a dura realidade retrata­da na pesquisa e a urgência das solu­ções para os problemas apontados.

Cartas para esta revista devem ser enviadas para

o e-mail [email protected], pelo fax (11) 3838-4181

ou para a rua Pio XI, 1.500, São Pau lo, SP,

CEP 05468-901. As cartas poderão ser

resumidas por mot ivo de espaço e clareza.

PESQUISA FAPESP 106 • DEZE MBRO DE 2004 • 7

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O melhor da ciência nacional

num clique

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Peiijüiiá. FAPESP

Quem entra, não sai mais.

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Pesquisa CARLOSVOGT

PRESIDENTE

CONSELHO SUPERIOR

ADILSON AVANSI DE ABREU, CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ, CARLOS VOGT, CELSO LAFER,

HERMANN WEVER, HORÁCIO LAFER PIVA, JOSÉ ARANA VARELA, MARCOS NIACARI, NILSON DIAS VIEIRA JÚNIOR,

RICARDO RENZO BRENTANI.VAHAN AGOPYAN, YOSHIAKI NAKANO

CONSELHO TÉCNICO-ADM1NISTRATIV0

JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER DIRETOR ADMINISTRATIVO

E DIRETOR PRESIDENTE (INTERINO)

JOSÉ FERNANDO PEREZ DIRETOR CIENTIFICO

PESBUISA FAPESP

CONSELHO EDITORIAL

LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS (COORDENADORCIENTÍFICO), EDGAR DUTRA ZANOTTO, FRANCISCO ANTÔNIO

BEZERRA COUTINHO, JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER, JOSÉ FERNANDO PEREZ,

LUIZ EUGÊNIO ARAÚJO DE MORAES MELLO, PAULA MONTERO.WALTER COLLI

DIRETORA DE REDAÇÃO MARILUCE MOURA

EDITOR CHEFE NELDSON MARCOLIN

EDITORA SÊNIOR MARIA DA GRAÇA MASCARENHAS

DIRETOR OE ARTE HÉLIO DE ALMEIDA

EDITORES CARLOS FIORAVANTI (CIÊNCIA), CARLOS HAAG (HUMANIDADES),

CLAUDIA IZIQUE (POLÍTICAC1T), HEITOR SHIMIZU (VERSÃOON-LINE), MARCOS DE OLIVEIRA(TEC«0L06IA)

EDITORES ESPECIAIS FABRÍCIO MARQUES, MARCOS PIVETTA

EDITORES ASSISTENTES DINORAH ERENO, RICARDO ZORZETTO

CHEFE DE ARTE TÂNIA MARIA DOS SANTOS

DIAGRAMAÇÃO JOSÉ ROBERTO MEDDA, MAVUMI OKUYAMA

FOTÓGRAFOS EDUARDO CÉSAR, MIGUEL BOYAYAN

COLABORADORES ALESSANDRA PEREIRA, ANA LIMA, BRUNO ZENI, CAROL LEFÈVRE, EDUARDO GERAQUE (ON-LINE),

JÚLIO ASSIS SIMÕES, MARCELO HONÓRIO (ON-LINE), MÁRCIO GUIMARÃES DE ARAÚJO,

MARGÕ NEGRO, ROBERTO A. SALMERON, SIMONE BIEHLER MATEOS, SÍRIO J. B. CANÇADO,

THIAGO ROMERO (ON-LINE) E YURI VASCONCELOS

ASSINATURAS TELETARGET

TEL. (11) 3038-1434 - FAX: (11) 3038-1418 e-mail: [email protected]

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e-mail: [email protected] (PAULA ILiADIS)

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IMPRESSÃO PLURAL EDITORA E GRAFICA

TIRAGEM: 44.000 EXEMPLARES

DISTRIBUIÇÃO DINAP

CIRCULAÇÃO E ATENDIMENTO AO JORNALEIRO LMX (ALESSANDRA MACHADO)

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GESTÃO ADMINISTRATIVA INSTITUTO UNIEMP

FAPESP RUA PIO XI, N" 1.500, CEP 05468-901

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05 artigos assinados não refletem

necessariamente a opinião da FAPESP

í PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL

DE TEXTOS E FOTOS SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO

FUNDAÇÃO DE AMPARO A PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO

SECRETARIA DA CIÊNCIA, TECNOLOGIA, DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E TURISMO

GOVERNO DO ESTADO OE SÃO PAULO

CARTA DO EDITOR

No corpo-a-corpo com a sociedade

E possível que alguns ainda pensem que as respostas e, principalmen- te, as indagações cruciais da ciên-

cia são formuladas em laboratórios iso- lados do mundo dos mortais comuns, em algum lugar tantas vezes negativa- mente associado a inexpugnáveis torres de marfim. Se assim for, eles certamen- te são em número cada vez menor, por- que a saudável difusão da cultura cien- tífica pouco a pouco vai mostrando que se produz conhecimento científico e tec- nológico em bem-equipados laborató- rios tanto quanto nas ruas, escolas, pos- tos de saúde, hospitais, enfim, em meio ao burburinho da vida social corrente. Esta edição de Pesquisa FAPESP tem a sorte de demonstrar na prática, com duas belas reportagens que disputaram sua capa, as duas situações.

Comecemos pela reportagem que ganhou a capa e mostra, a partir da pá- gina 24, resultados de alguns dos mais bem-sucedidos projetos do Programa de Pesquisa em Políticas Públicas, em campos tão diversos quanto saúde, educação, abastecimento e finanças municipais, entre outros. Iniciado pela FAPESP em 1998, esse programa, hoje com 221 projetos em andamento, tem o objetivo de estimular parcerias entre, de um lado, universidades e institutos de pesquisa e, de outro, órgãos do setor público e do terceiro setor, tendo em vista a solução de problemas concretos e significativos que perturbam a vida cotidiana dos cidadãos. Estimulá-las, diga-se, no modo próprio da Funda- ção, ou seja, por meio do financiamen- to de projetos de pesquisa. No texto, a editora de política Claudia Izique e o editor especial Fabrício Marques, auto- res da reportagem, mostram com ri- queza de detalhes como a partir do exa- me direto de determinados problemas, in loco, no diálogo com outros atores sociais, e com o apoio de ferramentas da pesquisa científica, especialistas podem extrair do próprio problema as solu- ções que o superam. Ou como um pro- blema, por exemplo, as enchentes numa cidade, pode ser o ponto de partida para a solução de um segundo proble-

ma: o abastecimento de água da cidade. Trata-se de um relato de como criar co- nhecimento no contato com a socieda- de, encaminhando ao mesmo tempo soluções novas para velhas questões.

A segunda reportagem a que nos re- ferimos trata de uma nova geração de fibras ópticas, as chamadas fibras fotô- nicas, que, conforme relata a jornalista Simone Biehler Mateos a partir da pá- gina 70, tanto abrem perspectivas para o aumento da capacidade das redes de telecomunicações quanto prometem incrementos em equipamentos de as- tronomia, relógios de precisão e equi- pamentos de diagnóstico por imagem, entre outros itens. O que está em cena aqui é criação de tecnologia de vanguar- da, que, no Brasil, já vem sendo alvo da investigação de alguns grupos de pes- quisa em São Paulo, como os que fazem parte do Centro de Pesquisa em Ótica e Fotônica, em Campinas.

É recomendável também a leitura da reportagem sobre um novo com- posto, à base de prostaglandinas, que destrói placas de gordura nas artérias {página 49), entre outros textos que ficam sem destaque pela necessidade absoluta de comentar aqui duas novi- dades. A primeira é que, excepcional- mente, publicamos um artigo de um cientista, o físico Roberto Salmeron, a propósito dos 50 anos do Centro Euro- peu de Pesquisas Nucleares (CERN), que se constitui numa aula magistral sobre a física de partículas {depois da página 49). E a segunda é que em 12 de dezembro estréia na Rádio Eldorado, graças a uma parceria entre esta revista e a emissora, o programa Pesquisa Bra- sil, uma contribuição para a difusão da cultura científica {página 37). Vamos assim também ajudar os pesquisadores a entrar ainda mais no corpo-a-corpo com a sociedade, no caso representada pelos ouvintes da Eldorado, já que estes poderão encaminhar suas indagações à produção do programa para que os pri- meiros apresentem suas respostas.

Um bom final de ano para todos.

MARILUCE MOURA - DIRETORA DE REDAçãO

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MEMóRIA

Notícias do Novo Mundo Antes dos naturalistas já havia a preocupação em descrever bichos e plantas do Brasil

NELDSON MARCOLIN

^^ s viagens com o / % objetivo de g^\ descrever as

jL -A. riquezas do Novo Mundo tornaram-se freqüentes a partir do século 18 e uma série de normas foram elaboradas para definir o que deveria ser observado, coletado, descrito e desenhado, delimitando o que poderia ser interessante aos europeus e, em particular, às ciências. Antes disso, viajantes, colonos e religiosos escreveram relatos sobre animais, vegetais, minerais, geografia e nativos das Américas. Todos descreviam a flora e a fauna desconhecidas no hemisfério Norte e alguns tentavam dar o máximo de informações sobre o comportamento e a utilidade do bicho ou da planta investigada. Havia grande curiosidade pelas terras recém-descobertas e muitas dessas obras foram publicadas a partir do século 16, mas várias outras só vieram a público muito

tempo depois. Alguns relatos chegavam à metrópole, eram lidos pelas autoridades ou nas academias e acabavam arquivados e esquecidos. Outros eram proibidos pelos governos de Portugal e da Espanha, que não

Edição de 1658 das viagens de Piso: gravura representa as índias Ocidentais (Brasil) e Orientais

Tatu desenhado por frei Cristóvão de Lisboa

tinham interesse em mostrar ao mundo as riqueza de suas colônias. O melhor exemplo desse cuidado em preservar a ignorância dos estrangeiros sobre o Brasil ocorreu

quando o italiano André João Antonil publicou em Lisboa seu livro Cultura e opulência do Brasil, em 1711. O governo português recolheu e queimou a edição - poucos exemplares

foram salvos. Mas qual teria sido a primeira descrição dos recursos naturais brasileiros com certo cuidado metodológico? "É impossível saber", diz Márcia Ferraz, do Centro Simão Mathias de Estudos em História da Ciência (Cesima) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, uma especialista no período. "Muitos textos apenas se tornaram conhecidos séculos depois de terem sido escritos e podem existir relatos não

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publicados do século 16 que desconhecemos." Um dos mais antigos documentos em que há nítida preocupação com a coleta de informações é uma carta escrita em 1560 pelo padre jesuíta José de Anchieta com o título Fazendo a descrição das inúmeras coisas naturais que se encontram na província de São Vicente. Nela, o religioso fez numerosas descrições e observações: do peixe-boi ao caranguejo, do tamanduá às abelhas, das árvores diversas às "plantas purgativas". Pero de Magalhães de Gandavo publicou em 1576 História da Província de Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil, com 48 páginas, em Lisboa. Ele relata rapidamente o descobrimento, fala das frutas, dos bichos venenosos, das aves e peixes e índios. Já o Tratado descritivo do Brasil, de Gabriel Soares de

Sousa, escrito na colônia e levado a Portugal em 1587, não foi publicado imediatamente. Rico em informações sobre as novas terras, teve apenas uma impressão parcial em 1800,

213 anos depois. "Com a extraordinária História dos animais e árvores do Maranhão ocorreu pior", conta Márcia. Frei Cristóvão de Lisboa, franciscano português, realizou entre

1624 e 1627 trabalho semelhante ao de Anchieta com uma vantagem: fazia desenhos do que observava, os descrevia e transcrevia o nome tal qual ouvia dos indígenas. "A primeira edição dos originais guardados pelo Arquivo Histórico Ultramarino foi impressa em 1967." Melhor sorte tiveram Guilherme Piso - médico de Maurício de Nassau e holandês como ele - e George Marcgrave, engenheiro alemão. Da autoria dos dois, saiu publicada em 1648 a História natural do Brasil, em Amsterdã. Piso escreveu sobre doenças e plantas e Marcgrave sobre animais e geografia do Nordeste. Dez anos depois Piso publicou uma edição revisada, que só ganhou versão em português no século 20.

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ENTREVISTA: RUTH E VICTOR NUSSENZWEIG

Uma química que deu certo

0 casal fala sobre os avanços na busca de vacinas contra a malária e a vida de cientista, aqui e nos Estados Unidos

MARCOS PIVETTA

N ão fosse por uma sensata colega da Faculdade de Me- dicina da Univer- sidade de São Pau- lo (USP), Victor Nussenzweig tal-

vez não tivesse se tornado cientista. Ruth, uma vienense que emigrara para o Bra- sil ainda menina, demoveu-o da idéia de continuar participando daquelas en- tediantes reuniões do Partido Comu- nista e o incentivou a seguir a carreira de pesquisador. Da paquera que se ini- ciou no terceiro ano de faculdade, há mais de meio século, surgiu uma parce- ria para a vida toda. Dentro e fora dos laboratórios. "Namorávamos falando de ciência", lembram, hoje ambos com 76 anos. O golpe militar em 1964 levou Ruth e Victor, que naquela época já ti- nham mais do que um pé no exterior, a se transferir em definitivo para a Es- cola de Medicina da Universidade de Nova York (NYU), onde permanecem até hoje - ela no Departamento de Pa- rasitologia Médica e Molecular, ele no Departamento de Patologia.

Nesta entrevista, concedida durante uma recente visita a São Paulo, o casal comenta os últimos avanços nas pes- quisas sobre o desenvolvimento de uma vacina contra a malária, tema que per- seguem há décadas. O nome de ambos está para sempre ligado à luta contra a doença, que, anualmente, mata ao me- nos um milhão de pessoas na África e continua a ser uma ameaça a várias par- tes do mundo tropical, como a Amazô- nia. Em 1967, Ruth foi a primeira cien- tista a provar que era possível imunizar roedores contra a doença por meio da irradiação dos esporozoítos, um dos es- tágios de vida dos parasitas que causam a malária, do gênero Plasmodium. Mais tarde, nos anos 1980, os Nussenzweig mostraram que uma proteína que reco- bre o parasita poderia ser usada para promover uma resposta imunológica contra a doença e, assim, dar alguma proteção contra a infecção. Desde en- tão, a proteína estudada pelo casal se tornou um componente fundamental de metade das vacinas que foram e vêm sendo testadas em humanos contra o parasita. Inclusive de uma formulação

recém-experimentada na África, com resultados promissores.

Os Nussenzweig também falam de uma nova linha de trabalho, em colabo- ração com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), do Rio de Janeiro, em que vão tentar desenvolver uma vacina de malá- ria que use a de febre amarela, produ- zida no Brasil, como seu vetor. Tecem ainda comentários sobre a vida de pes- quisador em Nova York, as facilidades e as dificuldades para se conseguir fi- nanciamento em ciência, e relembram as circunstâncias que os fizeram deixar para sempre o Brasil. Para sempre, em termos. Visitam com freqüência o país, por motivos de trabalho ou para ver amigos e parentes De seus três filhos, todos cientistas, dois estão nos Estados Unidos e um, na capital paulista.

■ Não é difícil vender para os norte-ame- ricanos a idéia de que é necessário inves- tir na pesquisa de uma vacina contra malária, hoje uma doença de país pobre? Victor - Por incrível que pareça, os Na- tional Institutes of Health (NIH) são muito generosos. Claro, a verba para

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doenças tropicais não é a mesma para câncer ou ataque cardíaco. Mas há bas- tante dinheiro envolvido com malária, talvez mais do que no Brasil. Ruth - Minha visão é um pouco dife- rente. É difícil arranjar dinheiro de vá- rias fontes. A fonte principal de toda pesquisa nos Estados Unidos são os NIH. Você obtém dinheiro, mas há muita competição pela verba. Os fun- dos de minhas pesquisas vieram sobre- tudo de dois lugares. Um era a Usaid (a Agência para o Desenvolvimento Inter- nacional dos Estados Unidos), que é muito política. A Usaid desenvolveu uma área de pesquisa de vacina contra a malária. Eles deram dinheiro para poucos laboratórios, uns quatro ou cinco, e o nosso foi o único que produ- ziu alguma coisa. Eu recebi milhões por vários anos. Depois a verba foi descon- tinuada, mudou a política. A segunda fonte muito importante de financia- mento, não simultânea à anterior, apa- receu mais tarde. Foi uma fundação que se chama Starr Foundation, cujo fi- nanciamento a nossa pesquisa se esten- deu por uns nove, dez anos. Com o di-

nheiro, milhões, compramos aparelhos modernos, porque não tinha nada, era primitivíssimo.

■ Isso aconteceu em que época? V - Na década de 1980. R - Acho que até um pouco antes, mea- dos de 1970. Essa fundação dava ações para a faculdade, e, quando tinham ter- minado as ações, deu uma doação. Deu três doações no período de nove anos, que ajudaram a reformar fisicamente o departamento, que ocupava um prédio de seis andares e mais o nível subter- râneo. O porão, um local horrível e no- jento que era usado pela cidade de Nova York para dar vacina, foi transfor- mado num lugar para manter os ani- mais de pesquisa. V - Há dois pontos importantes para enfatizar nessa história de financia- mento. Primeiro: os milionários ame- ricanos doam dinheiro para pesquisa com muita freqüência. Fundações imen- sas, como a Howard Hughes, são o sus- tentáculo da pesquisa nos Estados Uni- dos quase tanto quanto o próprio NIH. A BiÜ & Melinda Gates Foundation dá

muito dinheiro para várias coisas. No Brasil, isso é muito raro. R - Nos Estados Unidos, as fundações particulares têm muitas vantagens. Não pagam ou pagam menos imposto. V - A vantagem fiscal, aliás, é só no co- meço. O milionário que doa, digamos, US$ 500 milhões deduz esse valor ape- nas uma vez do imposto. Depois disso, ele não tem mais nenhum controle, ou tem muito pouco, sobre o dinheiro. O milionário também é obrigado a ar- ranjar um grupo de pessoas, às vezes um membro da família, para cuidar da fundação. Muitas fundações começa- ram assim, embora algumas não te- nham nada que ver com o seu início.

■ Elas se profissionalizam quase como uma agência de fomento à pesquisa. V - Exatamente. Tornam-se uma agência de fomento com o nome de seu funda- dor. Mas o dinheiro para parasitologia em si, básico, ainda vem do NIH. R - Quero também chamar a atenção para o fato de que a maior parte do dinheiro dessas fundações é carimbado para uma certa doença. Tem, por exem-

PESQUISA FAPESP 106 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ 13

Page 13: Soluções para problemas concretos

pio, uma fundação que financia apenas pesquisa em artrite. Hoje não há funda- ção financiando pesquisa em malária. Existia a Starr.

■ A fundação não existe mais? R - Existe, mas hoje ela financia outros tipos de pesquisa e não há uma funda- ção só para malária. V - Gostaria de contar uma anedota pa- ra você ver como esse negócio funciona. Quando eu trabalhava com imunologia básica, estava estudando indiretamente alguma coisa que tinha relação com lú- pus eritematoso, uma doença auto-imu- ne muito freqüente. Nessa época, exis- tia a Kroc Foundation, criada nos anos 1960 pelo dono do McDonakTs, um húngaro chamado Ray Kroc. Essa Kroc Foundation estava muito interessada em estudos sobre lúpus porque um mem- bro da família tinha a doença. Então, eu ganhei uma bolsa de um ano de dura- ção. No fim do prazo, recebi a seguinte notícia: acabou esse negócio de finan- ciar lúpus, agora estamos financiando (pesquisas sobre) alcoolismo. A mu- dança aconteceu porque outro mem- bro da família era alcoólatra. Esse tipo de coisa não ocorre com freqüência, mas acontece. No fundo, isso não impor- ta. Alcoolismo ou lúpus, por causa de membros da família ou não, as funda- ções estão sempre investindo dinheiro em problemas sociais importantes.

■ Por que no Brasil não há fundações pri- vadas financiando a pesquisa? V - Essa pergunta eu me faço também. As fundações são um negócio da cultu- ra anglo-saxã. Eu não sei, não posso di- zer quais as origens disso. De fato, essa cultura é muito arraigada tanto na In- glaterra quanto nos Estados Unidos. Na França, na Itália, no Brasil, não é. Mas não esqueça que existem algumas exce- ções. Por exemplo, agora tem um mi- lionário daqui, chamado Ricardo Sem- ler, que fez uma reunião com cientistas e pensadores (foi um evento do Institu- to DNA Brasil ocorrido em setembro). R - Acho que, além disso, precisa haver uma legislação que dê a mesma vanta- gem para os milionários brasileiros, co- mo nos Estados Unidos. Isso é muito importante, pelo menos para começar. V - Também depende muito de inicia- tiva local. Por exemplo: é preciso ter acesso a esses milionários. Quem são

esses milionários? Os reitores de uni- versidade precisam ter a iniciativa de procurar entrar em contato com os su- jeitos que têm muito dinheiro, que mui- tas vezes são inteligentes, e convencê- los de que o dinheiro que vão dar será útil. Os ricos precisam ser convencidos de que o dinheiro não vai ser jogado fora. Muitas pessoas ainda são céticas com relação à qualidade da ciência no Brasil. Pensam que nada de importan- te vai sair daqui, o que não é verdade. Nos Estados Unidos as universidades - estou falando das privadas, que são muitas, algumas delas as melhores do país - mantêm conselhos com milio- nários e cientistas de renome que to- mam conta de toda a direção. Esco- lhem o reitor. Os milionários ficam satisfeitos porque eles influenciam a política da Harvard ou da NYU. E, ao mesmo tempo, estabelecem os conta- tos financeiros para a universidade. R - Eles também têm uma compensa- ção pessoal no sentido de que o nome deles é colocado num hospital, numa faculdade da universidade. Quanto mais dinheiro doa um milionário, mais prestígio ele ganha - e maior é a placa com o seu nome na universidade. V - É curioso. Nos Estados Unidos muita gente tem desejo de imortalida- de. Aqui o sujeito ambiciona virar no- me de rua quando morre. Se é muito importante, vira nome de túnel.

■ Qual a avaliação que vocês fazem da ciência nacional atualmente? R - O nível científico é muitas vezes muito alto. Não digo que isso seja ver- dade para a grande maioria, mas para boa parte dos pesquisadores brasilei- ros. Por que eu digo isso? Experiência pessoal. Eu fiz parte por vários anos de uma fundação americana, a Pew Foun- dation, que paga bolsas generosas para estudantes de toda a América Latina se aperfeiçoar em laboratórios america- nos. Os brasileiros eram muitas vezes, acho que quase sempre, os melhores candidatos às bolsas. V - Na América Latina, não tenho dú- vida: o Brasil e a Argentina forneciam todo o contingente desses bolsistas.

■ Por que os países temperados pratica- mente eliminaram a malária e os tropi- cais não conseguiram fazer o mesmo? V - Saneamento básico. Você sabe que

houve um período na Itália - parece in- crível - em que morria o papa e os car- deais tinham de ir para lá. Mas eles não queriam ir porque tinham medo de morrer de malária. Isso é conhecidíssi- mo. Tinha que postergar a eleição por- que havia os pântanos e os mosquitos... Quando se descobriu que mosquitos do gênero Anopheles transmitiam ma- lária, o saneamento foi a solução. Na costa dos Estados Unidos também ti- nha muita malária, e o saneamento re- solveu o problema. R - Isso e o progresso econômico.

■ Então, se tivéssemos feito isso na Ama- zônia... V - Mas na Amazônia não dá para fa- zer saneamento. Como é que faz isso na floresta? Lembre-se de que a malá- ria também é transmitida na floresta. O sujeito sai de casa para trabalhar e é picado pelo mosquito. Não é como (o mal de) Chagas em que se pode borri- far as cabanas dos moradores e eliminar o barbeiro (transmissor da doença). O Brasil poderia eliminar a malária. Nas áreas costeiras é fácil. Mas na Amazônia é complicado. Você vai destruir a flo- resta, cortar as árvores? Não se pode fa- zer isso. Assim, fica difícil implantar o saneamento em toda a região. R - Mas, Victor, talvez não seja possível eliminar a malária de toda a região amazônica, porque há áreas em péssi- mas condições e outras em situação não tão ruim. Mas se as pessoas tomas- sem antimaláricos e algumas áreas com imensa transmissão da doença, como aquelas escavações ilegais de ouro ou de pedras preciosas, tivessem sido tra- tadas com inseticidas, a situação pode- ria ser melhor e restrita a certos focos. V - Mas, Ruth, hoje no Brasil o serviço de saúde pública é muito bom nesse sentido. É raríssimo alguém morrer de malária.

■ Dados oficiais, de 2002, apontam cerca de cem mortes por ano. Mas a incidência de malária, que foi muito maior no pas- sado, ainda é alta, algo como 350 mil ca- sos, quase todos na Amazônia. R - Mas a melhora também se deve a outra razão. Houve uma mudança mui- to grande no tipo de malária presente no Brasil. Essa mudança aconteceu tal- vez dez anos atrás, não sei exatamente. As pessoas que sofriam de malária gra-

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ve, causada pelo parasita Plasmodium falciparum, e que estavam mais ou me- nos perto de um posto de saúde públi- ca, iam lá e se tratavam logo. Essa me- dida eliminava também a parte do parasita que era responsável pela trans- missão. Com isso, diminuiu muito a transmissão de P. falciparum e aí sur- giu, como em outros países também aconteceu, um outro tipo de infecção. A infeção ocasionada pelo Plasmodium vivax, que mata muito pouco.

■ Hoje P. vivax responde por uns 80% dos casos do Brasil. R- Como a infecção por vivax pode ser tratada a mortalidade diminuiu muito. Mas o vivax também é um caso sério, e vai ser mais sério no futuro porque o parasita está ficando resistente à droga mais barata contra a malária, a cloro- quina. Isso já aconteceu em países asiá- ticos e, mais cedo ou mais tarde, vai acontecer aqui. Quando isso ocorrer, vai haver recaída sobre recaída. Em re- gião tropical, o vivax dá recaídas muito freqüentes, várias por ano. Então a si- tuação vai piorar. V - Agora, tem o seguinte: o Brasil é rico e há drogas novas, que são muito mais caras. Mas imagino que, no Brasil, o quadro é sempre menos catastrófico do que na África. R - Ah, nem tem dúvida. V - No Brasil, a saúde e a riqueza per- mitem que se comprem outros medica- mentos. O problema é que eles são mais caros e mais tóxicos.

■ Quais medicamentos, por exemplo? V - Não faço essa medicina, mas tem esse medicamento chinês, uma erva...

■ A artemísia? R - Artemísia é fantástica.

■ Algumas pessoas advogam o seu uso conjunto com a alopatia. O que a senho- ra acha disso? R-A artemísia tem efeito quase instan- tâneo. Faz a parasitemia cair muito, mas nunca a elimina. Para acabar com o parasita, tem que dar mais uma me- dicação depois da artemísia. Mas a ar- temísia é muito cara. Ninguém na Áfri- ca pode tomar. V - Mas não é tóxica. É um grande me- dicamento novo. E tem muitos outros. A coisa mais importante disso é que, de-

pois que o genoma do parasita da malá- ria foi desvendado, existem novos alvos para terapias. R - Acho que vai demorar mais dez anos para esses novos remédios serem testados e adotados na prática clínica.

■ Por que as vacinas contra a malária não deram certo? No final da década de 1980, quando candidatas a vacinas foram de- senvolvidas a partir de seus trabalhos, vo- cês achavam que iria dar certo? R - Ela vai dar certo. V - Não, espera aí. Ele está perguntan- do por que houve o entusiasmo inicial. Foi por causa principalmente dos tra- balhos da gente. Quando começaram os testes com humanos, estávamos en- tusiasmadíssimos. Muita gente achava que aquela vacina sintética que nós ha- víamos idealizado iria resolver o pro- blema. Em animais de laboratório, os níveis de anticorpos que eram obtidos com a vacina eram suficientes para proteger contra a malária. Mas quan- do fizeram o primeiro teste no homem

aconteceu o seguinte: dos cerca de 15 voluntários, só três tiveram títulos altos de anticorpos. Esses três foram protegi- dos, mas era uma proporção muito pe- quena. Alguns pesquisadores e a indús- tria farmacêutica abandonaram os testes quando viram que não era sopa, que tinha que investir dinheiro e capi- tal humano. Aí o trabalho parou, porque não havia mais companhia farmacêuti- ca realmente que estivesse interessada em levar uma segunda ou terceira gera- ção de vacina. Não foi só o nosso teste que falhou. O do Exército dos Estados Unidos que também estava testando uma vacina obteve o mesmo resultado. Mas, como a malária é um problema muito importante para o Exército ame- ricano, a pesquisa continua dirigida pa- ra resolver essa e outras questões. Eles têm um ótimo centro de pesquisa, o Walter Reed Army Institute of Research. R - Ocupa todo um prédio. V - E eles persistiram nos trabalhos com essa molécula que descobrimos por mais dez anos. Fizeram testes e mais testes. No fim, chegaram a uma vacina com essa molécula, numa conformação que não interessa discutir em detalhe, com um ad- juvante muito poderoso, que aumentava a sua potência. Dessa forma, consegui- ram, em testes, proteger 70% das pessoas nos Estados Unidos que receberam a va- cina. Mas a proteção durava pouco. Ain- da assim foram para a África, onde rea- lizaram mais testes na população local. Cerca de 70% das pessoas ficavam pro- tegidas com a vacina, mas o efeito du- rava três meses. Depois a quantidade de anticorpos caía. O problema é, então, manter a proteção. Agora um grupo do Exército americano e do laboratório GlaxoSmithKline está fazendo testes na África com a mesma vacina e novos ad- juvantes, para tentar melhorá-la.

■ Essa é a vacina que obteve recentemente resultados promissores em Moçambique? V - Os resultados de testes dessa vacina em mais de 2 mil crianças de 1 a 4 anos foram muito encorajadores. Sua efi- ciência em relação à malária grave, que pode levar à morte, foi perto de 60%. Esse trabalho saiu numa edição da re- vista Lancet em outubro. E esses resul- tados foram obtidos seis meses depois da aplicação da última dose de vacina. Isso é um triunfo realmente. O passo seguinte já está em andamento e é vaci-

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nar bebês. Afinal, depois de mais de 30 anos de trabalho em pesquisa básica, saiu uma vacina. E tenho certeza de que ainda não é o fim da história. A vacina ainda pode ser melhorada. Hoje exis- tem cerca 30 vacinas de malária em de- senvolvimento, em diferentes fases de experimentação. Dessas, mais ou me- nos a metade é baseada na molécula que descobrimos. A outra metade usa outras moléculas.

■A molécula ainda é o principal alvo pa- ra o desenvolvimento de uma vacina? V - É a mais importante de fato, mas há outras estratégias, inclusive uma inicia- da pela Ruth com colaboradores da Fio- cruz, do Rio de Janeiro. Antes a idéia era fazer o doente produzir mais anticorpos, mas para chegar a esses níveis altos era difícil. Mas também se pode proteger contra a malária atacando a forma he- pática do parasita, que vai do sangue para o fígado. Para atacar o fígado, você precisa de imunidade celular. E, para atingir essa imunidade celular, você pre- cisa de outra estratégia. A Ruth traba- lhou mais nisso. Ela tem um approach extraordinário e interessante: usa-se a vacina de febre amarela, que contém um vírus atenuado, como vetor de malária. Essa é a melhor vacina do mundo por- que toma-se uma dose só e a proteção é praticamente pela vida inteira. A Orga- nização Mundial da Saúde (OMS) pede para as pessoas se revacinarem a cada dez anos, mas é por excesso de zelo.

■ Como é essa linha de pesquisa? R - Por meio de técnicas de biologia molecular, inserimos no vírus da febre amarela, uma parte pequenininha do parasita de malária, nove ou dez ami- noácidos. Ainda não sabemos qual é o melhor lugar da vacina para inserir se- qüências da malária. E também não se sabe o quanto se pode inserir sem tor- nar o vírus inviável. V - A idéia é fazer um vacina contra a malária que precisa de apenas uma do- se para proteger as pessoas. Na África, muitas vezes só se consegue dar vacina uma vez na vida, quando a criança nas- ce. E o melhor é que o maior produtor de vacinas de febre amarela está aqui no Brasil. Se a estratégia der certo, vai-se fazer vacina para malária no Brasil. Isso é extraordinário, porque não precisa de companhias farmacêuticas.

■ Quando eram estudantes de medicina, no Brasil, vocês logo perceberam que se- riam cientistas e iriam trabalhar juntos? V - Isso era óbvio. Namorávamos fa- lando de ciência. Em grande parte, esse era o nosso namoro. Falávamos de ciên- cia e do que a gente poderia fazer. Nos- sas idéias se confundiam, andavam jun- tas e assim continuaram. R - Mas nem sempre nossas linhas de pesquisa coincidiram. Na NYU tive até um laboratório que fisicamente ficava a alguns quarteirões do Victor, em outro prédio. Em minha carreira, segui uma linha constante e o Victor, muitas vezes, trabalhou com outros assuntos novos. V - Houve momentos em que nossas carreiras se diversificaram. Em 1958 fo- mos fazer pós-doutorado na França. Ruth foi para o Collège de France, onde trabalhou em bioquímica. Eu fui para o Instituto Pasteur me especializar em imunologia. A partir dessa escolha, nos- sas trajetórias se diversificaram mesmo. Em 1960 voltamos ao Brasil. Mas, de- pois de algum tempo, verificamos que talvez fosse melhor continuar no exte- rior. Então pedimos bolsas para ir aos Estados Unidos.

■ A ditadura ainda não havia começado. Por que fizeram isso? V - Havia sempre problemas menores. Nada muito sério. Mas verificamos que, no Brasil, não dava para fazer o que queríamos de forma rápida. Que- ríamos aprender mais, avançar mais. Então eu pedi e consegui uma bolsa da Guggenheim (John Simon Gugge- nheim Memorial Foundation, de Nova York) e fui para a NYU. Com a bolsa, a Ruth naturalmente teria de viver comi- go nos Estados Unidos. Dessa vez deci- dimos que ela não iria para outra insti- tuição de pesquisa. Inicialmente, ela iria trabalhar com o Baruj Benacerraf (que depois ganharia o Prêmio Nobel de Medicina em 1980). Mas, quando chegamos lá, a Ruth foi trabalhar com um pesquisador chamado Zoltan Ovary. Não é piada, não. O nome dele quer dizer ovário mesmo. Ovary, aliás, é um sujeito muito bom. No final, eu acabei trabalhando diretamente com o Benacerraf. Mas depois de dois anos nos Estados Unidos nós queríamos voltar ao Brasil. Então, em abril de 1964, resolvemos voltar. Chegamos no aeroporto...

■ Justo em abril! V - Talvez fosse maio ou junho. Nossos colegas do Brasil já estavam dizendo "não venham, aqui tem muito proble- ma". Mas nós viemos.

■ Então já havia ocorrido o golpe? V - Já havia ocorrido o golpe, mas des- conhecíamos a sua intensidade. A Ruth e eu estranhamos quando desembarca- mos no aeroporto e não tinha ninguém nos esperando. R - Não, não, não, espera um pouqui- nho. Tinha alguns amigos nossos e eles disseram "não vão para a faculdade". V - A memória da Ruth é diferente da minha. Mas isso não tem importância. A minha recordação é que não tinha ninguém lá. Achamos esquisito, porque tínhamos muitos e bons amigos. Mas acho que a Ruth tem razão. Na verdade, me telefonaram mais tarde e disseram "olha, não vai para a faculdade de me- dicina". Era domingo de manhã e eu achei que era bom ir à faculdade. Se a situação estava preta, talvez fosse bom olhar na minha escrivaninha, ver se eu tinha algum documento compromete- dor, de esquerda, sei lá, do Partido Co- munista... E eu fui lá, às 10 horas da ma- nhã. Saí de lá às 11 e não tinha nada. Quando voltei para casa, telefonaram. R - Não, senhor, me telefonaram assim que você se foi. Peguei o telefone e já disseram que estava marcada uma en- trevista com você na segunda-feira, no dia seguinte, com o secretário-geral da faculdade de medicina. V - Imagine a situação. No domingo, eu mal tinha entrado na faculdade e já sabiam que eu estava ali. Imediatamen- te alguém ligou para casa e disse que eu tinha uma entrevista com um coronel. Eu, sozinho, sem a Ruth, fui falar com o coronel, que me fez perguntas cretinas, sem sentido. Antes de ir para a França tínhamos organizado uma série de se- minários, de bioquímica, de parasitolo- gia, que eram feitos para cientistas. Pois bem, me perguntaram se aquelas reu- niões eram subversivas, porque ocor- riam a portas fechadas. Respondi que discutíamos estritamente ciência, que não tinha nada disso, não. Então perce- bi que esse coronel estava realmente mandando na faculdade. Se mandava na faculdade, mandava em mim. Perce- bi que eu não tinha poder algum. O co- ronel não ligava se eu era professor ou

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não. Percebi que não poderia mais ficar no Brasil. A Ruth e eu voltamos para os Estados Unidos e nossas carreiras se se- pararam. Ela foi trabalhar com o Ovary e eu, com Benacerraf. Nesse momento houve uma coincidência. Eles precisa- vam de um imunologista para a cadeira de parasitologia. E, como ela tinha feito uma carreira brilhante com o Ovary, este a recomendou muito para o cargo. Ela então foi parar na parasitologia. Aí nossas carreiras divergiram completa- mente. Ela ficou na parasitologia, e de- pois de alguns anos virou chairman, e eu continuei na patologia, fazendo com- plemento, trabalhando com imunolo- gia básica. Logo ela começou a trabalhar em malária. R - A biologia da malária já estava sen- do estudada por dois professores do departamento, mas não havia estudos com imunologia. Por isso eles queriam que eu fosse para lá. Fui assistente, rapidamente virei professor. Depois criaram uma divisão - porque nesse ín- terim o chefe do departamento se apo- sentou - e me escolheram como chefe. Mais tarde criaram uma cadeira que não existia, a de doenças parasitárias. Aliás, até hoje em nenhuma outra fa- culdade de medicina dos Estados Uni- dos há essa cadeira. V - Tem uma coisa importante nessa história. Logo que chegou - e foi por isso que a Ruth virou rapidamente líder da divisão - ela fez uma grande desco- berta, a de que esporozoítos irradiados poderiam proteger contra a malária. A descoberta foi a base para as pesquisas com vacinas contra a malária. Muita coisa aconteceu em função dessa desco- berta. Nos Estados Unidos as promo- ções dependem muito do seu currículo, do que você faz. É um sistema muito competitivo, diferente do brasileiro. Quando um pesquisador começa a fa- zer coisas mais importantes, ele é pro- curado por outras faculdades. Que- riam, por exemplo, que nós fôssemos para La Jolla (na Universidade da Cali- fórnia em San Diego). Chegaram a ofe- recer uma cadeira para ela. R - Mais tarde, o próprio Benacerraf, depois de ter ganho o Prêmio Nobel, ofereceu uma posição muito prestigio- sa para o Victor e para mim na Escola Médica de Harvard (para onde Bena- cerraf se transferira em 1970). Ofereceu uma divisão, um negócio grande. Fotos

do meu laboratório foram tiradas para fazer igualzinho em Harvard.

mlsso ocorreu nos anos 1980? V - Sim. Nessa ocasião tínhamos mui- to suporte para desenvolver a vacina. Eu já tinha feito avanços na identificação de moléculas. O Benacerraf achou que devia nos levar para Harvard. Fez várias démarches, mas era complicado obter uma cadeira para nós. R - Não éramos bem moços naquela ocasião e eles gostam de ter um chair- man de 40 anos. V - A oferta de Harvard gerou um di- lema. Tínhamos estudantes e tudo na NYU e gostávamos de Nova York. Bos- ton (onde está Harvard) é uma espécie de província. Além disso, tínhamos fi- lhos em Nova York. Por essas e outras razões resolvemos não aceitar o convite e ficamos na NYU.

■ Estrangeiros, com passado de esquerda, vocês tiveram alguma dificuldade para se adaptar aos Estados Unidos?

R-Variou muito para nós dois. Eu nun- ca me adaptei. Não quis me adaptar. Não fiz nem esforço e...

■ Até hoje não se adaptou? R - Até hoje. E eu não nasci no Brasil. Eu vim ao Brasil já com 11 ou 12 anos. V - A Ruth fica feliz e se sente bem aqui. Basicamente isso. Às vezes, a gen- te não quer, mas acaba se adaptando. Ela está adaptada, mas gosta do Brasil. Gosta mais de vir aqui do que estar lá. R - Meus amigos são daqui. Lá não te- nho praticamente ninguém. V - Eu me adaptei perfeitamente bem, continuo adaptado e me sinto muito bem nos Estados Unidos. Não é que eu não me sinta bem no Brasil, me sinto muito bem aqui também. Mas, quando chego aqui, sinto que preciso voltar o mais rapidamente possível para fazer as coisas que eu estou fazendo. Eu gosto do que estou fazendo. R - Também quero continuar o traba- lho. Mas gosto dos Estados Unidos uni- camente pela facilidade em fazer pes- quisa de forma rápida e eficiente.

■ Nunca pensaram em voltar ao Brasil? V - Houve períodos em que eu ainda considerava isso, mas hoje não mais. Depois de um certo tempo você perde essa possibilidade. Vou te contar: eu tentei voltar faz pouco tempo, uns cin- co anos. Queria fazer um centro inter- nacional de estudo de malária em São Paulo. Contatei várias pessoas, falei com o reitor da Escola Paulista de Me- dicina, falei com muita gente, até na FAPESP, para ver se tinha possibilidade de arranjar posições para esse centro. Mas aí o negócio engasgou. Até escrevi um projeto e mandei-o para a FAPESP, que estava disposta a apoiar. Mas fal- tavam as tais posições... R - O centro precisava estar debaixo de uma universidade. V - No Brasil, não estão acostumados a trabalhar numa coisa que garante carreira vitalícia. Nos Estados Unidos não é assim. Você recebe um bom sa- lário e garantia de três, quatro, cinco anos de trabalho e depois vai...

■ Vai à luta. V - Aqui o sujeito quer já entrar num posto federal ou estadual, quer garantir a carreira. Então verifiquei que voltar era impossível. •

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I POLíTICA CIENTIFICA E TECNOLóGICA

ESTRATéGIAS MUNDO

Onde há fumaça, há perigo

A pressão dos ecologistas para que os Estados Unidos se submetam ao Protocolo de Kyoto ganhou mais las- tro com a divulgação de duas pesquisas sobre altera- ções ambientais em territó- rio norte-americano atri- buídas ao aquecimento do clima e à emissão de poluen- tes. Um dos estudos, que en- volveu 300 cientistas de oito países, mostra que o Ártico

perdeu 8% de sua capa de gelo desde 1973, o equiva- lente à área da Região Su- deste do Brasil. Graças ao degelo, o nível dos mares já subiu 7 centímetros. Outro estudo, divulgado pelo Pew Center on Global Climate Change, uma instituição independente de pesquisas, indica que certas espécies de plantas nativas passaram a florescer precocemente e

alguns pássaros atrasaram o início dos vôos migrató- rios, em resposta às tempe- raturas mais altas. Um dos exemplos citados é o da ra- posa-vermelha, antes disse- minada pelo território do país, que se mudou para la- titudes mais altas. "Chegou a hora de os Estados Uni- dos seguirem a mobilização internacional no combate ao aquecimento global", afir-

Em vermelho, áreas com maior concentração do poluente dióxido de nitrogênio

ma Benjamin Preston, pes- quisador do Pew Center. Ele se refere à recente ade- são da Rússia ao Protocolo de Kyoto, cujas metas de re- dução de emissão de gases o governo norte-americano rejeita. (Nature.com, 9 de novembro) •

■ Os cobiçados macacos chineses

Cientistas europeus e norte- americanos apelam à China para fazer pesquisas que uti- lizam primatas como modelo animal. Enquanto pesquisa- dores do Ocidente sofrem restrições impostas por gru- pos de defesa dos direitos dos animais, na China há bichos de sobra e a legislação é flexí- vel. O Instituto de Zoologia Kunming, no sudoeste da Chi- na, é um pólo de atração de pesquisadores estrangeiros. Suas instalações abrigam 1.400

macacos. O neurofisiologista Fraser Wilson, da Universida- de do Arizona, é um dos três cientistas norte-americanos que dão expediente no Insti-

tuto Kunming. A Universida- de Sun Yat-sen, na província de Guangzhou, começa a criar macacos transgênicos talha- dos para o estudo de doenças.

Macacos em reserva na península Nanwan, na China

Cada primata na China custa US$ 1.000, 10% do valor co- brado nos Estados Unidos. "A questão não é dinheiro. Nin- guém agüenta mais essa tur- ma dos direitos dos animais", diz Paul Malatesta, cientista obrigado a parar suas experiên- cias com primatas. Weizhi Ji, diretor do Instituto Kunming, garante que seus laboratórios respeitam o sofrimento dos bichos. Mas alfineta as inquie- tações ocidentais. "Na China, a saúde humana está em pri- meiro lugar. Os direitos dos animais vêm depois." (Natu- re, 4 de novembro). •

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■ O medo da reengenharia

Os cientistas russos nunca se sentiram ameaçados de de- semprego como agora. Te- mem que algumas dezenas de milhares de postos de traba- lho sejam extintos se o gover- no levar à prática um plano de reengenharia dos 450 ins- titutos vinculados à Acade- mia Russa de Ciências e de outros 2 mil laboratórios fi- nanciados pelo Estado. A boa- taria sobre as demissões levou o ministro da Educação e da Ciência, Andrei Fursenko, a pronunciar-se no dia 18 de outubro. Ele confirmou a existência do plano de mo- dernização, sustentou que o objetivo não é cortar gastos e cabeças e garantiu que os cri- térios da reforma serão traça- dos em parceria com a Acade- mia Russa de Ciências. Mas admitiu que uma parte da es- trutura atual pode desapare- cer ou ser privatizada. "Vamos debater com a comunidade científica os critérios para de- terminar que institutos serão preservados e quais serão pri- vatizados ou liquidados", dis- se. Yury Osipov, presidente da Academia Russa de Ciências, confirmou que está traba- lhando no assunto com o mi- nistério. A academia foi uma entidade de enorme prestígio nos tempos da extinta União Soviética, ainda que concen- trasse seus esforços em pou- cas áreas, como a matemática e o desenvolvimento arma- mentista. Nos anos recentes, tem sido criticada por contri- buir pouco com a indústria russa para superar os desafios de inovação tecnológica e também por ser deficiente em ciência básica. Os pesquisa- dores acusam o governo de planejar a privatização dos institutos apenas para gerar

caixa e fazer que os investido- res privados tirem sua liber- dade de trabalhar. "Todos concordamos que a ciência russa precisa de uma refor- ma", diz Boris Stern, físico do Instituto de Pesquisa Nuclear, em Moscou. "Mas as expe- riências com privatizações na Rússia mostram que elas nem sempre produzem os objeti- vos desejados", afirma. Yury Osipov, presidente da acade- mia, vê vantagens na reenge- nharia. "Podemos nos livrar da burocracia que o governo sempre nos impôs", afirma. (Nature, 21 de outubro) •

■ Oxigênio para a ciência muçulmana

A maioria dos países predo- minantemente muçulmanos se caracteriza por gastos res- tritos com pesquisa e univer- sidades de baixa qualidade. E os líderes políticos desses paí- ses freqüentemente são inca- pazes de avaliar o papel da ciência no desenvolvimento. Em artigo publicado na revis- ta Nature, o ex-ministro da Ciência do Paquistão Attaur- Rahma e o conselheiro ci- entífico da Organização da Conferência Islâmica (OCI),

Anwar Nasim, lembraram es- sas deficiências para propor um renascimento científico no mundo muçulmano. Di- zem que isso é crucial para garantir um futuro de paz e de prosperidade. "Temos que nos fazer algumas perguntas duras: quais são as nossas idéias? Estamos indo para onde", indaga o artigo. Exem- plos a serem seguidos, dizem os autores, são o Irã, a Tur- quia e o Paquistão, que am- pliaram investimentos e sua produção acadêmica nos úl- timos vinte anos. {Nature, 18 de novembro) •

Batata para quem tem fome

Parcerias podem levar países como a índia a aumentar a produção de batata

Engenheiros agrônomos e produtores de batata da América Latina estão crian- do uma rede destinada a partilhar tecnologias com seus colegas da África e da Ásia. O objetivo é combater a fome e aumentar os ga- nhos e a produtividade nes- ses continentes. Batizada de Plataforma para a Ino- vação, a rede começou a sair do papel em setembro num encontro de pesqui-

sadores de dez países lati- no-americanos no Centro Internacional da Batata, em Lima, Peru. Entre os países que poderão bene- ficiar-se, destacam-se a China, a índia, a Etiópia, o Quênia e o Casaquistão, que carecem de tecnologia agrícola e de variedades ge- néticas da batata. A Améri- ca Latina tem mais de 200 variedades adaptadas a di- ferentes climas e sistemas

agrícolas, e tolerantes a pra- gas. "Temos muito a ofere- cer a esses países", diz Ste- phan de Haan, agrônomo do centro. Enquanto a produtividade nos Estados Unidos e na Europa alcan- ça 40 toneladas por hecta- re, em boa parte dos países pobres ela mal chega à me- tade disso. A rede deve co- meçar a operar em junho de 2005. (SciDev.Net, 9 de novembro) •

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ESTRATéGIAS MUNDO

■ De volta ao espaço, depois da tragédia

A Nasa anunciou a retomada das missões de seus ônibus espaciais em maio de 2005, que estavam interrompidas desde a tragédia da nave Co- lumbia, que em fevereiro de 2003 se desintegrou, matan- do sete astronautas. A nave Discovery será lançada do Centro Espacial Kennedy, na Flórida, com sete astronautas a bordo, numa missão que deve durar doze dias. A reto- mada promete tirar da letar- gia a Estação Espacial Inter- nacional, laboratório orbital instalado a 400 quilômetros da Terra, que depende de mis- sões regulares dos ônibus es- paciais para ser concluída. Nos últimos tempos, só dois astronautas cumpriram plan- tão na estação, levados até lá por naves russas. O desafio da Nasa é reduzir riscos nas futu- ras missões. Uma nova gera- ção de naves deve demorar alguns anos para ser desen- volvida. "Os ônibus espaciais

0 Discovery, em missão em 1999: retomada

fizeram 113 viagens e tiveram dois acidentes graves, que ma- taram 14 pessoas", diz Wayne Hale, técnico da agência. "Nossa tarefa é impedir uma terceira tragédia", diz. Foram seguidas as recomendações da comissão que investigou o acidente do Columbia, com mudanças na proteção térmi- ca e nos tanques. •

■ Barrados nos Estados Unidos

No ano letivo de 2003, os Estados Unidos receberam 572.509 estudantes universi- tários e de pós-graduação es- trangeiros, contingente me- nor que os 586.323 do ano de 2002. É a primeira vez que esse exército decresce em três

décadas. O trauma do 11 de Setembro, evidentemente, de- termina a restrição nos vistos. Não por acaso, a principal re- dução atingiu estudantes do Oriente Médio, cujo contin- gente de estudantes caiu 10% em 2002 e outros 9% em 2003. Nações européias e asiá- ticas também mandaram menos jovens para estudar nos Estados Unidos. O tom- bo só não foi maior graças à índia, que enviou um exército 7% maior em 2003. Entre os estudantes chineses, a queda foi de 5%. O exemplo da alu- na de doutorado chinesa Li Gao é emblemático das difi- culdades. Ela foi convidada a passar seis meses na Universi- dade Duquesne, em Pitts- burgh, mas perdeu a chance porque o visto demorou mui- to para sair. "Quando eles vi- ram que a minha especiali- dade é química, disseram que era preciso checar meus da- dos e demoraram três meses para responder", diz. (Pitts- burgh Post-Gazette, 10 de no- vembro) •

Ciência na web Envie sua sugestão de site científico para [email protected]

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www.centrodametropole.org.br/divercidade/

A revista Divercidade, do Centro de Estudos da Metrópole, traz dados e análises sobre a Grande São Paulo

http://www.globalamphibians.org7

0 site fornece dados e o status de conservação de 5.743 espécies de anfíbios do planeta

http://www.lpi.usra.edu/research/lunar_orbiter/

Versão digital de um Atlas da Lua lançado pela Nasa em 1971 com imagens e dados obtidos em missões

20 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 106

Page 20: Soluções para problemas concretos

ESTRATéGIAS BRASIL

Butantan investe contra a gripe

A partir de 2006 uma nova fábrica do Instituto Butan- tan produzirá 20 milhões de doses contra a gripe por ano que atenderão à demanda nacional. Isso graças a um investimento de R$ 30 mi- lhões do Ministério da Saú- de, em aquisição de equipa- mentos, e de R$ 19 milhões do governo paulista, em obras. A unidade terá 9,8 mil metros quadrados e deve começar a operar no final de 2005. Será a primei- ra fábrica de vacina contra gripe do hemisfério Sul, com tecnologia transferida pelo laboratório franco-ale- mão Aventis Pasteur. Hoje o Butantan já envasa as va-

0 instituto: maior produtor de vacinas

cinas fornecidas pelo labo- ratório para distribuição no país. Sessenta profissionais especializados serão contra- tados para trabalhar na uni- dade. Atualmente o Brasil compra vacinas contra a

gripe da França, a R$ 5 a dose, e as utiliza em campa- nhas de imunização de pes- soas com mais de 60 anos de idade. Além da vacina contra a gripe, o Butantan também desenvolverá um

novo pacote de imunizan- tes graças a uma parceria com o Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Uni- dos. Nesse pacote incluem- se vacinas contra rotavirus, HPV (papiloma do colo do útero), coqueluche e hepa- tite B (juntas), entre outras. O Instituto Butantan, cria- do em 1889 para produzir soro contra a peste bubô- nica, tornou-se famoso por desenvolver soros antipeço- nhentos. Hoje é responsá- vel por 80% das vacinas que o país produz. São 200 mi- lhões de doses por ano, na maioria contra tétano, dif- teria, coqueluche, hepatite B, BCG e raiva.

■ Rascunhos nervosos e traços delicados

Quarenta e nove aquarelas da ilustradora botânica Marga- ret Mee (1909-1988) estão ex- postas na mostra Do esboço à natureza, aberta até 27 de fevereiro no Museu de Zoo- logia da Universidade de São Paulo. Nascida na Inglaterra, Margaret Mee veio para o Brasil em 1952 trabalhar co- mo professora de arte. Come- çou a pintar plantas e flores da Mata Atlântica, nos arra- baldes paulistanos, e logo se interessou pela Amazônia. Entre 1956 e 1988 fez 15 ex- pedições à região, nas quais colecionou espécies e registrou imagens de bromélias, orquí- deas e helicônias, algumas de- las desconhecidas. As obras em

exposição, que pertencem ao acervo do Bradesco, são apre- sentadas em uma ordem que aproxima esboços com traços

nervosos e trabalhos acabados que apresentam a delicadeza da natureza. Em 1988 ela fez sua última viagem à Amazô-

Cattleya guttata, aquarela em exposição

nia, planejada especialmente para registrar uma espécie, a üor-da-\ua (Selenicereuswittii), cuja flor desabrocha num úni- co dia do ano. E viajou à In- glaterra e aos Estados Unidos para chamar a atenção sobre a devastação das florestas tropicais. A ilustradora, que passou seus últimos anos no Rio de Janeiro, morreu em no- vembro de 1988 num acidente de carro em Leicester, Ingla- terra, logo depois de fundar o Margaret Mee Amazon Trust com o objetivo de preservar suas pinturas e oferecer bolsas de estudos para cientistas bra- sileiros. Em 1989 foi criada no Rio de Janeiro a Fundação Botânica Margaret Mee, tam- bém voltada para a concessão de bolsas, inclusive para ilus- tradores botânicos. •

PESQUISA FAPESP 106 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ 21

Page 21: Soluções para problemas concretos

ESTRATéGIAS BRASIL

A popularização das imagens de satélite

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Ji-Paraná, em Rondônia, nos anos 1070 (esqü e hoje (d/r.): fotos de satélite ajudam a monitorar a devastação

■ Importações desembaraçadas

Desfez-se o embaraço que, durante quase três meses, bloqueou as importações de equipamentos e insumos pa- ra pesquisadores feitas pelo Conselho Nacional de De- senvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Cons- tava dos cadastros da Secre- taria da Receita Federal uma dívida do conselho que re- montava aos anos de 1997 e 1998. Entre agosto e novem- bro, mais de 40 equipamen- tos importados para pesquisa estão retidos no Aeroporto Internacional de Brasília e outros nem receberam auto- rização para sair do país de origem. O CNPq argumenta- va que a dívida não era sua, mas de institutos de pesquisa, hoje vinculados ao Ministério da Ciência e Tecnologia, com

Desde julho o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), em Cachoeira Paulista, disponibiliza gratuita- mente pela internet o catálogo de imagens do Satélite Sino-Brasileiro de Recursos Terrestres (CBERS). Em apenas quatro meses, 40 mil imagens já foram distri- buídas a usuários em território brasileiro, entre empre- sas públicas, universidades, pesquisadores de diversas áreas e agricultores. Antes, quando o serviço era pago, a distribuição era de apenas 3 mil imagens por ano. A política de popularização do uso de imagens terá novos desdobramentos. Além das fotos do CBERS, parte das imagens do Landsat, o satélite mais utilizado em pesqui- sas em todo o mundo, também será oferecida. Estarão disponíveis dados históricos de 1973 a 1985, que permi- tem o acompanhamento das mudanças ambientais, urba- nas e hídricas no país. Dados mais recentes do Landsat também poderão ser abertos, mas ainda resta definir qual período será franqueado. No início de novembro, o Inpe apresentou sua nova política de distribuição para empresas que vivem de comercializar imagens de satélite - e, agora, correm o risco de perder o ganha- pão. "Algumas ficaram preocupadas, mas entenderam que a distribuição vai ampliar o uso das fotos de saté- lites e de outros serviços que elas poderão oferecer", diz Luís Geraldo Ferreira, da Divisão de Imagens do Inpe. Mais informações podem ser obtidas no endere- ço vAvw.dgi.inpe.br/usr/principal/atus.html. •

os quais partilhou o mesmo registro de pessoa jurídica. No dia 18 de novembro, a Recei- ta aceitou o argumento e li- berou as importações. •

■ Personalidades do ano

Carlos Henrique de Brito Cruz, reitor da Universidade Estadual de Campinas e di- retor científico nomeado da FAPESP, foi agraciado pelo Sindicato dos Engenheiros de São Paulo com o prêmio Personalidade da Tecnologia 2004, categoria Ensino e Pes- quisa. A entrega será no dia 14 de dezembro. Concedido desde 1987, o prêmio home- nageia personalidades que contribuem para o desenvol- vimento. Foram agraciados, em outras categorias, o presi- dente da Embraer, Maurício Botelho; Aron de Andrade, do

22 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 106

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Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia; Laércio Cosen- tino, presidente do Grupo Microsiga; Nelson Zuanella, presidente da Fundação pa- ra o Desenvolvimento Tec- nológico da Engenharia; e Carlos Lessa, ex-presidente do Banco Nacional de Desen- volvimento Econômico e So- cial (BNDES). •

■ 0 pensamento do diplomata

Organizado por Jacques Mar- covitch, ex-reitor da Univer- sidade de São Paulo (USP), o livro Sérgio Vieira de Mello - Pensamento e memória foi lançado no dia 25 de novem- bro, num seminário na USP sobre o pensamento do di- plomata brasileiro que che- fiou missões da Organização das Nações Unidas (ONU) na reconstrução do Timor Leste e de Kosovo e morreu em Bagdá, em agosto de 2003, num atentado contra o escri- tório da ONU no Iraque ocu- pado. Publicado pela Edusp em parceria com a Editora Saraiva, o livro reúne textos de Vieira de Mello e ensaios sobre suas idéias assinados por jornalistas, intelectuais e diplomatas, entre eles Celso Lafer, Jacques Marcovitch, Gelson Fonseca Júnior, Luiz Felipe de Seixas Corrêa, Paulo Sérgio Pinheiro e Ronaldo Sardenberg. Os autores dos en- saios foram os palestrantes no seminário, que aconteceu na Sala da Congregação da Facul- dade de Economia, Adminis- tração e Contabilidade. •

■ Espaço para debater a arte

A Fundação Bienal de São Paulo acaba de lançar uma revista voltada para o público que gosta de arte. Com tira-

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CORPO-A-CORPO _

0 livro: ensaios e artigos

gem de 25 mil exemplares, a revista BienArt está sendo distribuída para um público restrito, composto por diri- gentes de instituições cultu-

A revista da Fundação Bienal

rais, professores e estudan- tes, galeristas e autoridades. Mas já nas próximas edições deverá ser colocada à venda em algumas livrarias de São

Paulo. O primeiro número tem como mote a 26a Bienal, aberta ao público, gratuita- mente, até o dia 19 de de- zembro, no Pavilhão Ciccil- lo Matarazzo, no Parque do Ibirapuera, na capital pau- lista. Entre os destaques há reportagens sobre a arte chi- nesa e sobre a presença da pintura na mostra e perfis dos pintores Luc Tuymans, da Bélgica, e Eugênio Ditt- born, do Chile. A ambição da revista, longe de ser um órgão de divulgação da fun- dação, é dar voz a tendências diversas das artes plásticas, com conteúdos produzidos por outras instituições, mu- seus e artistas. •

Entre os líderes da ciência O neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis é um dos 50 líderes de 2004, premia- ção concedida pela revista Scientific American para indivíduos e instituições que se destacaram no cam- po da pesquisa, dos negó- cios ligados à tecnologia e da política científica. Nico- lelis foi um dos 20 vence- dores na categoria Pesquisa, que, entre outros, também premiou o Laboratório de Propulsão a Jato da Nasa pela iniciativa de mandar robôs a Marte. Paulista de 43 anos, Miguel Nicolelis é professor titular de neuro- biologia e engenharia bio- médica da Universidade Duke, na Carolina do Nor- te. Ele demonstrou que é possível usar a atividade elétrica dos neurônios de macacos para controlar ro- bôs e próteses. A pesquisa abre caminho para, um dia, permitir que indivíduos in-

Mayana Zatz e Miguel Nicolelis: reconhecimento internacional

válidos manipulem objetos usando apenas a atividade da mente. No dia 23 de no- vembro outros dois brasi- leiros receberam reconhe- cimento internacional. A bióloga Mayana Zatz, da Universidade de São Paulo, e Welington Celso de Melo, do Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa), fo- ram a Trieste, na Itália, re- ceber o Prêmio da Acade-

mia de Ciências do Tercei- ro Mundo. No evento, fo- ram anunciados os vence- dores da edição 2005 do prêmio. O médico Jorge Kalil, professor da USP e diretor do Laboratório de Imunologia do Instituto do Coração, foi um dos agra- ciados, graças a pesquisas imunológicas com aplica- ção em doenças como a Aids e a febre reumática. •

PES0UISA FAPESP 106 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ 23

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Enchente em Guarulhos: projeto estuda a viabilidade de captar a chuva e injetá-la no subsolo, perto dos aqüíferos que abastecem boa parte da cidade

Page 24: Soluções para problemas concretos

POLÍTICAS PÚBLICAS

Insumos para o desenvolvimento Universidades, setor público e ONGs desenvolvem projetos para a solução de problemas sociais

CLAUDIA IZIQUE E FABRíCIO MARQUES

Page 25: Soluções para problemas concretos

Bntre 1997 e 2002 a arre- cadação do Imposto Predial e Territorial Ur- bano (IPTU) e do Im- posto sobre Serviços (ISS), em São João da Boa Vista, no interior de São Paulo, cresceu 110%. Em 2003 as con- tas registraram superá-

vit de R$ 1,2 milhão e a prefeitura pôde quitar as dívidas com fornecedores. "Com o aumento da receita foi possí- vel ampliar os investimentos nas áreas de saúde e educação", conta Vanderlei Borges de Carvalho, diretor do Depar- tamento de Finanças do município. "Neste ano também vamos fechar equilibrado", ele prevê. A melhora do desempenho fiscal não implicou au- mento no valor dos impostos para os cidadãos. Foi resultado da moderniza- ção e informatização da gestão tribu- tária implementada por meio de uma bem-sucedida parceria entre a prefeitu- ra de São João da Boa Vista, o Institu- to Uniemp, a Fundação de Desenvolvi- mento Gerencial e a Agência Dinheiro Vivo, com o apoio da FAPESP, no âm- bito do Programa de Pesquisa em Po- líticas Públicas.

O projeto Gestão Tributária e Acom- panhamento da Execução Orçamentária Municipal, iniciado em 1998, está total- mente implantado e as contas da pre- feitura já estão disponíveis na internet, acessíveis a qualquer cidadão, de acor- do com as exigências da Lei de Res- ponsabilidade Fiscal. "No site da pre- feitura estão discriminados todos os gastos, desde o consumo de café até a quantidade de pneus consumidos por qualquer área da administração", exem- plifica Borges de Carvalho.

Parcerias estratégicas - O Programa de Pesquisa em Políticas Públicas é parte da estratégia adotada pela FA- PESP, a partir de 1995, que teve como meta estabelecer parcerias entre uni- versidades e institutos de pesquisa, de um lado, e órgãos do setor público e do terceiro setor, de outro, na busca de so- luções para problemas concretos que comprometem o dia-a-dia dos cidadãos ou que emperram a boa gestão admi- nistrativa. Os 221 projetos aprovados estão sendo desenvolvidos por pesqui- sadores junto com 106 prefeituras, 133

Sistema criado pelo IPT em parceria com os bombeiros

agilizou o registro de ocorrências e permitiu

tratamento qualitativo das estatísticas

secretarias do estado ou de municípios e envolvem 26 organizações não-gover- namentais (ONGs).

Os projetos do Programa de Pesqui- sa em Políticas Públicas são realizados e implementados em três etapas. Na primeira fase, com seis meses de dura- ção, os parceiros realizam estudos de viabilidade e iniciam as pesquisas con- tando com recursos de até R$ 50 mil. As propostas são então submetidas a uma nova avaliação antes de chegar à fase 2, de execução do projeto, finan- ciada com até R$ 300 mil da FAPESP. A terceira fase, de implementação das propostas do projeto, é de exclusiva responsabilidade dos órgãos e entida- des parceiros.

O Corpo de Bombeiros da Polícia Militar do Estado de São Paulo, por exemplo, está construindo um softwa- re para implantar o Sistema de Dados Operacionais (SDO) desenvolvido em parceria com o Instituto de Pesqui- sa Tecnológica (IPT) com recursos do programa.

O projeto, iniciado em 2001, teve como objetivo melhorar o sistema de coleta de informações do Centro de Comunicações de Bombeiros e do Posto de Bombeiros. O primeiro re- cebe as chamadas de emergência e o segundo responde às emergências em sua área de jurisdição. O novo sis- tema permitirá dar um tratamento qualitativo às estatísticas e criará po- líticas de atuação dos bombeiros em todo o estado.

Os bombeiros passaram a utilizar um sistema eletrônico de tabulação de dados, a partir de 1992, para a produ- ção de informações quantitativas ope- racionais sobre o atendimento a mais

de 500 mil ocorrências. Esse sistema, no entanto, apresentava várias limita- ções, como estrutura inadequada dos dados em tabelas e campos e até sobre a vítima. "Os chamados dirigidos à cen- tral de emergência pelo número 193 eram digitados, mas ficavam na cen- tral sem nenhuma ligação com a rede", lembra Rosário Ono, na época no IPT, coordenadora do projeto. "Além disso, boa parte do sistema não estava infor- matizada."

O projeto avaliou a forma de cole- ta de dados, estruturou relatórios que permitem análises mais detalhadas e arquitetou um piloto do novo sistema de tabulação de dados que foi instalado no 8o Grupamento de Bombeiros, em Santo André. O programa, no entanto, por utilizar rede de comunicação de dados via ondas de rádio, não permitia a expansão do modelo para as demais regiões do Estado de São Paulo. O novo aplicativo que está sendo desenvolvido

26 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 106

Page 26: Soluções para problemas concretos

pelos bombeiros vai utilizar infra-estru- tura de intranet do governo paulista e deverá estar implantado, e em funcio- namento, em janeiro de 2005.

Saúde da família - Oitenta e quatro projetos do programa de Políticas Pú- blicas já estão concluídos e em fase de implementação. As propostas incorpo- radas pelos parceiros têm subsidiado o desenvolvimento de ações em diversas áreas de gestão, especialmente a de saú- de, objeto de diagnóstico de 52 projetos.

Em Campinas, por exemplo, um projeto piloto desenvolvido pela Facul- dade de Ciências Médicas da Universi- dade Estadual de Campinas (Unicamp) junto com a Secretaria Municipal de Assistência Social de Campinas arqui- teta uma metodologia para ampliar a atuação dos agentes de saúde da família, que, desde a década de 1990, têm sido um poderoso instrumento de combate a doenças em regiões pobres.

Um grupo de 300 agentes da famí- lia que atuam na periferia da cidade, foi treinado para fazer mais do que moni- torar a carteira de vacinação e a medi- cação dos doentes crônicos ou acom- panhar a evolução dos indicadores de saúde da população. Eles estão prepara- dos para interferir na dura realidade so- cial da região, como a violência, o uso de drogas e a gravidez na adolescência. "Nosso trabalho é interdisciplinar", ex- plica o coordenador do projeto, Carlos Roberto Silveira Corrêa. "Não basta diag- nosticar e tratar as pessoas. É preciso in- ventar e propor ações que melhorem a saúde e a qualidade de vida."

No bairro de Santa Mônica um gru- po de diabéticos coordenado por uma agente de saúde se reúne para trocar informações sobre receitas de alimen- tos sem açúcar, mas saborosas e bara- tas, para melhor conviver com a doen- ça. O grupo tem uma regra: ali médico não entra. "Se tivesse um médico lá den-

tro, iria dar bronca e aplicar restrições alimentares", diz Corrêa. "No nosso pa- radigma, há espaço para soluções dos próprios envolvidos."

As ferramentas tradicionais nem sempre funcionam também no enfren- tamento da gravidez na adolescência. "Fiquei desconcertado na primeira vez que atendi uma adolescente e ela disse que seu problema era não conseguir engravidar. Para algumas, ter um filho garante um status diferente, que elas perseguem", afirma Corrêa.

O programa teve início em 1999. A prefeitura de Campinas, na época, não tinha interesse em criar um programa de saúde da família e a Faculdade de Ciências Médicas pediu autorização para realizar, ela própria, um progra- ma piloto. Foram treinados, com o apoio da FAPESP, os primeiros 25 agentes sociais selecionados entre os moradores do bairro. Em 2000, com a mudança de prefeito, o município en-

PES0UISA FAPESP 106 • DEZEMBRO DE 2004 ■ 27

Page 27: Soluções para problemas concretos

campou o programa e o grupo original criou uma ONG, batizada de Ipês, que passou a coordenar o projeto em con- vênio com a prefeitura. "Nossa missão é interferir na política pública, e não se tornar concorrente do governo", subli- nha Corrêa.

roblemas relacionados à educação também têm destaque e são objeto de estudo de 21 proje- tos. Em São Carlos, um grupo de professores do Departamento de Metodologia de Ensino da Universidade Fede- ral de São Carlos (UFS-

Car) e do Departamento de Arqui- tetura e Urbanismo da Escola de Engenharia de São Carlos - USP vem desenvolvendo pesquisas e projetos na área de educação infantil em parceria com a Secretaria Municipal de Educa- ção e Cultura.

O projeto Diagnóstico das Creches Municipais de São Carlos, encerrado em meados de 2004, preencheu as ex- pectativas tanto dos pesquisadores como do poder público: São Carlos dispõe hoje de um banco de dados iné- dito no país, que revela o perfil de 1.106 crianças atendidas pelas creches e é capaz de separar os dados de acor- do com gênero, renda, raça e região, entre outros. "A falta de informações sobre educação infantil é um proble- ma em quase todas as cidades brasilei- ras", diz a coordenadora do projeto, Anete Abramowicz, professora do De- partamento de Metodologia de Ensino da UFSCar.

O banco também reúne outros da- dos, como o perfil dos professores e funcionários das creches, as condições físicas dos prédios e o público não aten- dido por elas (através do cruzamento com dados do IBGE).

Um programa de computador foi desenvolvido para o projeto, utilizando uma plataforma de software livre, que já está sendo usado por outras cidades. Por meio do software, as diretoras das creches fizeram as matrículas das crian- ças on-line e as informações prestadas abasteceram o banco de dados. "O dia- gnóstico é um instrumento indispen- sável para traçar políticas públicas, para saber onde é preciso oferecer mais

creches e de que forma elas estão aten- dendo seu público", diz a especialista em metodologia de ensino.

Ação contra a enchente - O Programa de Pesquisa em Políticas Públicas tem garantido que o conhecimento gerado no setor de pesquisa aponte soluções estruturais para problemas que com- prometem a qualidade de vida dos ci- dadãos, como é o caso, por exemplo, das enchentes, foco do projeto Subsí- dios Técnicos ao Plano Diretor de Dre- nagem do Município de Guarulhos. A cidade retira boa parte da água que consome dos aqüíferos subterrâneos, que já dão sinais de exaustão. O Aero- porto de Cumbica, por exemplo, é to- talmente abastecido por meio de poços artesianos. Essa estratégia, no entanto, não será sustentável para suprir o novo terminal de passageiros que será cons- truído nos próximos anos. O único jei- to será criar um sistema de reaprovei-

tamento de água, já que os lençóis freá- ticos não se reabastecem adequada- mente porque a cidade está impermea- bilizada. O resultado é que, quando chove, a água corre sobre o asfalto, produzindo enchentes. Para agravar o problema, o solo argiloso da região também contribui para dificultar a ab- sorção da água.

A solução idealizada por Hélio Nóbi- le Diniz, pesquisador do Instituto Geo- lógico, órgão da Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São Paulo e co- ordenador do projeto, que será testada na segunda fase do projeto, é captar a água das chuvas e injetá-la no subsolo a 100 metros de profundidade, perto dos aqüíferos, abreviando o processo de fil- tragem pela terra. Trata-se de uma idéia polêmica. Em tese, envolve risco de con- taminação da água do subsolo. "Preten- demos fazer uma experiência controla- da, com a construção de dois poços, um para a injeção de água no aqüífero

28 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 106

Page 28: Soluções para problemas concretos

Mapeamento de áreas de interesse ecológico identificou unidades de conservação de uso sustentável

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e outro para retirar a água e controlar sua qualidade", diz Nóbile Diniz.

Na primeira etapa do projeto foram feitos ensaios de infiltração e métodos para diagnosticar a permeabilidade do solo. Caso a estratégia se revele viável, a prefeitura de Guarulhos, parceira no projeto, cogita propor mudanças no Plano Diretor da cidade. Uma possibi- lidade é exigir que novos empreendi- mentos imobiliários e também grandes galpões industriais construam poços de infiltração para injetar a água captada da chuva. "Alguns desses galpões têm telhados enormes, que escoam a água para a superfície e ajudam a causar en- chentes", explica o geólogo Edilson Pis- sato, da Secretaria de Meio Ambiente de Guarulhos.

O problema de abastecimento de água também foi o tema do projeto Sis- tema de Diagnóstico e Avaliação de Proje- tos Executados por Municípios, Órgãos Es- taduais e Associações da Sociedade Civil

no Comitê da Bacia Hidrográfica do Alto Tietê. Foi implementado pelo Comitê da Bacia do Alto Tietê - órgão colegiado composto por especialistas, represen- tantes do governo e da sociedade civil - em parceria com a Unicamp, no âmbi- to do Programa de Políticas Públicas.

0 projeto teve duas ver- tentes. De um lado, construiu-se um instru- mento para avaliação dos projetos submeti- dos ao Comitê da Bacia do Alto Tietê. Os comi- tês de bacias dispõem de um fundo de finan- ciamento e têm a tarefa

de definir os projetos a serem apoiados. Estão credenciados para pleitear essas verbas os projetos que tratem de pro- blemas como a construção de estações de tratamento de esgoto ou o remane- jamento de adensamentos urbanos em

regiões de mananciais, entre outros. O desafio do grupo de pequisadores era encontrar uma metodologia capaz de avaliar adequadamento os melhores projetos a serem financiados.

Para construir esse instrumento, que acaba de ficar pronto, foi fundamental implantar a segunda vertente do pro- jeto: os cursos de capacitação para os representantes do Comitê do Alto Tie- tê e de seus colegiados regionais da Billings, Cabeceiras do Tietê, Pinhei- ros/Pirapora, Cantareira e Cotia e Gua- rapiranga, além de universitários de iniciação científica e de mestrado.

Os comitês de bacias hidrográficas são responsáveis, desde os anos 1990, pelas decisões acerca de projetos e po- líticas envolvendo o abastecimento e o tratamento de água. A Região Metro- politana de São Paulo está na jurisdi- ção do Comitê do Alto Tietê. A ausên- cia de coordenação entre os membros e a complexidade dos problemas da bacia ameaçavam a grande finalidade do comitê, que é levar a uma transfor- mação da gestão da água, evitando a deterioração dos mananciais e atacan- do os ralos do desperdício, em vez de continuar investindo bilhões em cap- tação de água.

Ao reunir os representantes nos cur- sos de capacitação, os responsáveis pelo projeto puderam conhecer a dinâmica dos comitês e subcomitês, condição fundamental para construir a metodologia de avaliação dos proje- tos. Ao mesmo tempo, tiveram a chance de sensibilizar os alunos para a com- plexidade de sua tarefa. Divididos em três módulos, os cursos foram minis- trados entre os anos de 2001 e 2004, envolvendo 400 pessoas.

PESQUISA FAPESP 106 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ 29

Page 29: Soluções para problemas concretos

"A meta do primeiro módulo foi dar um choque de realidade nos repre- sentantes", diz Ricardo Toledo Neder, atualmente professor do Centro de Es- tudos Ambientais da Universidade Es- tadual Paulista (Unesp), de Rio Claro, que coordenou o projeto. Por choque de realidade entenda-se a exposição dos motivos na raiz do problema da água no estado: até recentemente, a falta de água era resolvida com o aumento da captação, como se não houvesse limite de água ou de dinheiro. A Lei Estadual de Recursos Hídricos, de 1991, propôs a inversão dessa lógica: em vez de am- pliar cada vez mais a demanda, a solu- ção seria combater o desperdício e arti- cular a proteção dos mananciais.

0 segundo módulo do projeto buscou articu- lar a gestão da água com a gestão do solo urbano, uma vez que um dos fa- tores mais dramáticos da deterioração de ma- nanciais é a construção de moradias irregulares em áreas de proteção

ambiental. O terceiro módulo discu- tiu a importância da capacidade asso- ciativa para pensar soluções, indepen- dentemente das iniciativas e idéias do poder público. "Avançamos muito no conhecimento sobre como as formas de representação social em órgãos cole- giados, como os comitês de bacias, en- contram obstáculos para atuar de for- ma coordenada", afirma Neder.

Radiografia do crime - O tratamento de dados estatísticos também permitiu traçar o perfil dos criminosos no Esta- do de São Paulo. O projeto Construindo um Modelo de Análise Integrada das In- formações, desenvolvido em parceria pela Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade) e a Secretaria de Segurança Pública, iniciou-se em 1999 e foi concluído no ano passado. Resultou na construção do Sistema In- tegrado de Informações Criminais, dis- ponível no site do Seade, que integra quase 20 milhões de dados criminais, registrados entre 1981 e 2002, e faz uma radiografia da Justiça criminal paulista, com informações sobre o tem- po médio dos processos, desde a ocor- rência do inquérito até a execução da

pena. Os dados de 2003 estão sendo pre- parados e devem estar disponíveis a partir de 2005.

Os números coletados foram orga- nizados em quatro categorias: gênero, escolaridade, estado civil e cor da pele. Sua análise traz informações revelado- ras. Um exemplo: apesar de a maioria dos inquéritos policiais envolver sus- peitos de cor branca, os negros são, proporcionalmente, mais presos. Essa diferença pode ser atribuída ao melhor nível de escolaridade e renda dos bran- cos, o que lhes garantiria acesso mais fácil aos mecanismos de defesa, e ao caráter discriminatório do sistema ju- diciário, já que boa parte dos proces- sos de crimes violentos é submetida a júri popular, como afirmou Luiz Hen- rique Proença Soares, que foi coorde- nador-geral do estudo, (veja Pesquisa FAPESP n° 69).

Além de criar uma metodologia pa- ra a análise de dados da Secretaria de Segurança Pública, o sistema permite o monitoramento de informações antes restritas ao pessoal técnico, sublinha Renato Sérgio de Lima, coordenador- técnico do projeto. "A Secretaria de Se- gurança Pública é a principal usuária dessas informações", diz ele.

Preservação da memória - Os recursos do Políticas Públicas também permi- tiram a organização de arquivos públi- cos e a recuperação do patrimônio his- tórico e arqueológico em municípios paulistas. Apesar da obrigação legal (lei 8.159/91), apenas 17 cidades do Esta- do de São Paulo organizaram arquivos permanentes para a preservação de do- cumentos. Duas delas - São José dos Campos e Itatiba - o fizeram com re- cursos da FAPESP.

O projeto Gestão de Documentos, Institucionalização e Implantação de Ar- quivos Municipais no Estado de São Paulo, resultado de parceria entre o Centro Brasileiro de Análise e Planeja- mento (Cebrap) e o Fórum Nacional de Dirigentes de Arquivos Municipais (Fo- rumdam), começou em 2000 e se en- cerrou este ano.

São José dos Campos já tinha uma arquivo, mas em Itatiba o projeto co- meçou do zero. Nos dois casos foi fun- damental a participação das secretarias de Cultura, Administração e Assuntos Jurídicos, lembra Pedro Puntoni, coor-

denador do projeto. Os pesquisadores trabalharam com metodologia que per- mite integrar o acervo de documentos já existentes com a produção de docu- mentos correntes e que inclui tabelas de temporalidade. "Estabelecemos, por exemplo, o período em que um docu- mento de solicitação para poda de ár- vore deve ficar guardado antes de ser destruído", ele exemplifica. Pelo menos uma amostra de cada documento tem que ser guardada para a posteridade, acrescenta.

Os pesquisadores elaboraram, ain- da, um manual com todos os passos necessários para a instalação de um arquivo público municipal, conforme as exigências da lei, e que podem ser facilmente seguidos por outras admi- nistrações municipais. "Já estamos trabalhando com o município de Pa- racatu, em Minas Gerais, e negocian- do a implantação de projeto seme- lhante na cidade de Campinas.

Bm São José dos Cam- pos os arquivos, devi- damente reorganiza- dos, estão guardados na Fundação Cassiano Ricardo. "Em Itatiba conseguimos conven- cer o prefeito a alugar uma casa histórica, do início do século 20, que

a FAPESP ajudou a equipar", afirma Puntoni. O projeto incluiu o desen- volvimento de softwares e até sites dos dois municípios com parte dos ar- quivos já digitalizados. "Os sites estão prontos para serem disponibilizados na internet."

Em São Caetano do Sul, um projeto desenvolvido pelo Museu de Arqueolo- gia e Etnologia (MAE) da Universidade de São Paulo (USP), em parceria com a Fundação Pró-Memória, da prefeitura municipal, colaborou na preservação do patrimônio histórico da cidade. "Era preciso organizar o material para que o museu tivesse noção de seu acervo e para permitir a organização de outros projetos", explica Maria Cristina Oli- veira Bruno, pesquisadora do MAE e coordenadora do projeto.

O resultado foi a organização do acervo arqueológico do Museu Munici- pal, que reúne peças dos séculos 18,19 e 20, a preparação de um livro com a ca-

30 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ PESdUISA FAPESP 106

Page 30: Soluções para problemas concretos

Sistema de Informações Criminais, organizado pela Fundação Seade, faz radiografia dos delitos no estado

talogação do material e a elaboração de um projeto de expansão e divulgação desse acervo.

Áreas protegidas - O mapeamento das áreas de relevante interesse ecológico no Estado de São Paulo também foi pa- trocinado pelo Programa de Políticas Públicas. No projeto, desenvolvido pelo Instituto de Biociências da USP em parceria com a Fundação Florestal, foi realizado um amplo levantamento de áreas públicas e privadas especial- mente protegidas com o objetivo de de- finir parâmetros para a gestão ambien- tal. A idéia é que parte dessas áreas poderia ser aberta ao público para a ex- ploração comercial sustentável, como o ecoturismo, por exemplo. "Atualmente é impossível fazer isso sem se enredar na burocracia. É mais fácil dizer não", diz Paulo Nogueira Neto, coordenador do projeto.

Depois de levantar os instrumentos legais relacionados ao manejo ambien- tal e relacionar as áreas vinculadas a cada uma das categorias de proteção, houve seleção dos fragmentos de ecos- sistemas que foram avaliados sob o ponto de vista da conservação ambien- tal e classificados segundo o grau de vulnerabilidade. Alguns foram consi- derados unidades de conservação de uso sustentável, cuja proteção não exi- ge a desapropriação.

Nesse momento a Secretaria do Meio Ambiente estuda a publicação de um decreto que autorizará a cons- trução de pousadas ecológicas e a uti- lização comercial dessas áreas. "O pro- prietário poderá utilizar essa área com finalidade lucrativa", adianta Noguei- ra Neto. •

PESQUISA FAPESP 106 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ 31

Page 31: Soluções para problemas concretos

I POLíTICA CIENTIFICA E TECNOLóGICA

ADMINISTRAÇÃO

A sucessão tranqüila Governador Geraldo Alckmin nomeou rapidamente novos executivos da Fundação

MARILUCE MOURA

A FAPESP está vivendo entre g^L este final de ano e o começo ^^^ de 2005 um processo iné-

Ê M dito, mas indiscutivel- ^L. -m> mente tranqüilo e ma- duro de substituição simultânea de alguns de seus executivos e conselhei- ros, com efeitos, aliás, sobre outras im- portantes instituições do sistema pau- lista de ciência e tecnologia. Assim, em 17 de novembro passado, o governador Geraldo Alckmin nomeou Marcos Macari, pró-reitor de Pós-graduação e Pesquisa da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e candidato a reitor da instituição, vice-presidente da Funda- ção; Ricardo Renzo Brentani, hoje dire- tor presidente do Hospital do Câncer e do Instituto Ludwig de São Paulo, para o cargo de diretor presidente do Conse- lho Técnico-Administrativo (CTA); e Carlos Henrique de Brito Cruz, atual rei- tor da Universidade Estadual de Cam- pinas (Unicamp), diretor científico da Fundação — todos três membros do Conselho Superior (CS) da FAPESP.

A escolha do governador, feita a par- tir de listas tríplices encaminhadas pelo CS em 10 de novembro, envolve a Uni- camp, que, a essa altura, já deu início ao processo de eleição do novo reitor que substituirá Brito. Em grau bem mais

suave, sem dúvida, alcança também a Universidade de São Paulo (USP), cujo Conselho Universitário deverá em breve encaminhar uma lista tríplice para que o governador escolha o nome de um no- vo conselheiro da FAPESP em substitui- ção a Brentani, já que ele era um dos três da cota tradicional dessa universidade no CS da Fundação. E, claro, altera ain- da o próprio conselho da FAPESP, com a substituição de dois de seus 12 mem- bros - Macari permanece conselheiro. Vale observar que a segunda vaga aber- ta no conselho está na cota das seis que são preenchidas por nomes de livre es- colha do governador.

O conselho tem marcada ainda pa- ra dezembro mais uma votação, dessa vez para a elaboração da lista tríplice de diretor administrativo, em razão de o atual mandato de Joaquim J. de Camar- go Engler terminar em fevereiro.

Acasos e determinações - Todas essas mudanças resultam de uma combina- ção de acasos e decisões pessoais. Uns e outras convergiram para uma alteração na cúpula da Fundação, que era impen- sável no início deste ano. Primeiro, foi o falecimento repentino de Francisco Romeu Landi, 72 anos, em 22 de abril, que abriu a vaga de diretor presidente.

Em luto, a Fundação, por decisão de seu presidente, Carlos Vogt, baseada em consulta ao Conselho Superior, adiou por algum tempo a votação da lista tríplice para o cargo. Já em julho ter- minava o mandato do vice-presidente da Fundação, Paulo Eduardo de Abreu Machado. O conselho decidiu então que votaria as duas listas tríplices em agosto. Mas, justamente nessa reunião, o dire- tor científico, José Fernando Perez, cujo mandato terminaria em dezembro de 2005, anunciou que colocava o cargo à disposição, depois de ter amadurecido a decisão de iniciar uma experiência no setor privado, para daí continuar, sob uma nova forma, contribuindo com o desenvolvimento científico e tecnológi- co do país.

Ampliava-se assim a dimensão das mudanças por que passaria a cúpula da Fundação e o conselho decidiu coman- dar o processo sucessório à altura do desafio apresentado, com ampla con- sulta à comunidade científica. Instau- rou um Comitê de Busca e Seleção, que receberia as indicações da comunida- de e organizaria o encaminhamento das listas de candidatos ao conselho. Com dez candidatos a diretor presidente e lia diretor científico, o processo foi concluído em 11 de novembro.

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"As listas tríplices encaminhadas ao governador espelharam uma vontade institucional consistente da FAPESP, por meio de seu Conselho Superior, e o go- vernador escolheu nomes que conside- ramos de grande destaque acadêmico, científico e intelectual", diz o presidente Carlos Vogt. "São nomes altamente re- presentativos na construção das condi- ções para o desenvolvimento cada vez melhor da produção científica, tecnoló- gica e cultural em São Paulo e no Brasil."

Novos desafios - De fato, bastam uns poucos traços das biografias intelec- tuais dos nomeados para sustentar a afirmação de Carlos Vogt. O físico Brito Cruz, por exemplo, 48 anos, presidente da FAPESP de 1996 até 2002, ano em que assumiu a reitoria da Unicamp, é um dos mais respeitados especialistas em políticas de desenvolvimento científico e tecnológico, sem ter abandonado as atividades de pesquisador em sua área. Engenheiro eletrônico pelo Instituto Tec- nológico de Aeronáutica, mestre e doutor pelo Instituto de Física Gleb Wataghin da Unicamp, onde começou sua carrei- ra em 1982, aos 26 anos, e que dirigiu em duas ocasiões.

Brito entende que o sistema de ciên- cia e tecnologia no estado tem que se

apoiar em três pilares: formação de re- cursos humanos, pesquisa acadêmica e pesquisa na empresa. "O primeiro é es- sencial porque sem pessoas preparadas não há produção de conhecimento. O segundo é fundamental porque faz avan- çar o conhecimento humano de manei- ra desinteressada e, ao mesmo tempo, forma as pessoas. E o terceiro é vital por- que transforma conhecimento em ri- queza", resume ele.

Brentani, 67 anos, médico for- mado pela Faculdade de Me- dicina da USP, da qual é professor titular desde 1981, doutor em bioquímica tam-

bém pela USP, é autor de uma respei- tável lista de 119 artigos científicos pu- blicados em periódicos internacionais. Além de dirigir o Hospital do Câncer A. C. Camargo e o Instituto Ludwig, en- tre outras atividades, coordena o Cen- tro Antônio Prudente para Pesquisa e Tratamento do Câncer.

A situação financeira tranqüila da FAPESP, depois das turbulências vivi- das em 2002, e a informatização do pro- cessamento de bolsas e auxílios, que o agilizará, "além de aumentar a seguran- ça da comunidade em relação ao pron- to julgamento de seus pedidos", são dois

pontos positivos, segundo ele, para quem assume um cargo executivo na Fundação hoje. Brentani observa que ainda tem que tomar pé nas coisas, mas destaca "o trabalho muito bonito de Landi na or- ganização do fórum das fundações es- taduais de amparo à pesquisa de todo o país", que ele gostaria de continuar.

Finalmente, Marcos Macari, 54 anos, graduado em ciências biológicas pela USP, doutorado em fisiologia pela Fa- culdade de Medicina da USP de Ribei- rão Preto e com pós-doutoramentos no Agricultural Research Council de Cam- bridge, Inglaterra, na Universidade de Yamagushi, Japão, e na Universidade de Lavai, Canadá, é hoje, além de pró-rei- tor da Unesp, professor titular do De- partamento de Morfologia e Fisiologia Animal da Faculdade de Ciências Agrá- rias dessa universidade em Jaboticabal.

Macari acredita que a FAPESP terá cada vez mais a função de apoio à pro- dução do conhecimento básico voltado para a interação com o setor produtivo, "o que é vital porque ninguém nos pas- sará gratuitamente as tecnologias de que carecemos para o desenvolvimen- to de nosso país". Isso, entretanto, deve se dar sem que a Fundação descuide "de seu lado humanístico, de apoio às ciências humanas". •

PESQUISA FAPESP 106 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ 33

Page 33: Soluções para problemas concretos

I POLíTICA CIENTIFICA E TECNOLóGICA

ORÇAMENTO

Sacrifício recompensado

Fundação recompõe patrimônio líquido e restabelece saúde financeira

A execução orçamentária da FA- i^L PESP dos últimos dois anos L^^ - que exigiu, em um deter-

m ^ minado momento, a ado- ^L J^k. ção de medidas amargas como a contenção temporária de des- pesas em moeda estrangeira - per- mitiu a recomposição do seu patrimô- nio líquido e a volta da normalidade dos investimentos na importação de equipamentos e insumos para a pes- quisa, sem comprometer o apoio à pesquisa científica e tecnológica. Os problemas orçamentários ocorreram principalmente em virtude da alta ace- lerada do dólar no segundo semestre de 2002.

Os US$ 60 milhões de recursos de- mandados para a importação, cuja li- beração tinha sido suspensa em julho de 2002 como saída para enfrentar a cri- se cambial, por exemplo, puderam ser paulatinamente autorizados a partir de setembro do mesmo ano para não com- prometer a realização dos projetos em andamento. Em 31 de outubro deste ano, apenas 1% desse valor ainda não tinha sido realizado, não por indisponibilida- de de verbas, mas porque os pesquisa- dores interessados não tinham enviado

a documentação para a consumação da compra, conta Joaquim J. de Camargo Engler, diretor administrativo.

Outro indicador da normalidade fi- nanceira nas compras externas é que das novas concessões para importação - aprovadas entre agosto de 2002 e ou- tubro de 2004 e que somam R$ 40 mi- lhões - cerca de 25% estão em anda- mento. As demais já estão agendadas ou aguardam agendamento pelos pes- quisadores. Atualmente não há nenhu- ma restrição, por razões de câmbio, às importações de bens e serviços conce- didos pela FAPESP.

Superávit financeiro - No mesmo pe- ríodo, e em decorrência de uma pro- gramação estratégica de investimentos, o patrimônio líquido da Fundação, que tinha caído para uma faixa de R$ 500 milhões, em 2002, retornou a patama- res históricos de R$ 700 milhões, segun- do Engler. A recuperação do patrimônio financeiro líquido também foi signifi- cativa: aumentou de R$ 3 milhões, em 2002, para R$ 117,1 milhões em 2003. E até setembro de 2004 já atingia a casa dos R$ 182,6 milhões. "Saímos de um déficit relativamente à receita real

de mais de R$ 50 milhões em 2002 pa- ra um superávit de R$ 89 milhões em 2003. Neste ano esse valor será supera- do e pode chegar a R$ 90 milhões. Até setembro, o superávit registrado já es- tava na casa dos R$ 79 milhões", afirma Carlos Vogt, presidente da FAPESP.

Dispor de um patrimônio conside- rável é condição para que a Fundação cumpra com regularidade sua tarefa em momentos de crise, como queda de arrecadação ou disparada do dólar.

A recomposição do patrimônio e o superávit financeiro foram possíveis com um "novo modelo de gestão de re- cursos" que permitiu manter os progra- mas financiados pela Fundação e re- tomar as obrigações contratadas que tinham sido suspensas em situação de emergência. A estratégia foi regulamen- tar o sistema por meio de portarias. "A primeira, aliás, foi publicada em agos- to de 2002, no meio da crise cambial", lembra Vogt.

As portarias, preparadas pela dire- toria executiva e aprovadas no Conse- lho Superior, se constituíram em "um sistema de normas, regras e procedi- mentos públicos para tornar o sistema mais eficiente", que acabaram por criar

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Page 34: Soluções para problemas concretos

Proposta para 2005 (em R$)

Transferências correntes Transferências do Estado de São Paulo Transferências do governo federal

Subtotal

Receitas patrimoniais Receitas imobiliárias Receitas de aplicações financeiras

Subtotal

ceitas correntes Restituições de auxílios

Subtotal

Receitas diversas Outras receitas

Subtotal

Receitas de capital Alienação de bens móveis

Subtotal

Total geral

388.653.000 5.000.010

393.653.010

uma nova "cultura" entre os funcioná- rios da Fundação, conforme observa o presidente da FAPESP.

O novo modelo de gestão prevê também a informatização de todos os procedimentos da Fundação, inclusive os milhares de processos de bolsas, au- xílios e programas de pesquisa. "A in- formatização imprime mais agilidade, permite maior organização e planeja- mento e ainda garante mais visibilida- de às decisões, porque todos os arqui- vos estarão acessíveis, preservados os níveis de confiabilidade", ele argumen- ta. O processo de informatização, ini- ciado no final do ano passado, estará pronto em abril do próximo ano. "Tu- do isso tem que ser acompanhado de uma ampla participação dos gerentes e gestores em reuniões sistemáticas e pe- riódicas com o Conselho Técnico e Ad- ministrativo, onde as políticas da Fun- dação são harmonizadas", diz Vogt.

Orçamento de 2005 - Outra prova da saúde financeira da Fundação é o seu or- çamento para 2005. A receita prevista pa- ra o próximo ano, de R$ 487.353.030,00, será 8,89% superior à de 2004. Deste total, R$ 388,6 milhões correspondem

às transferências do governo do Estado de São Paulo. As projeções da Secretaria de Economia e Planejamento foram ela- boradas a partir da expectativa de que as taxas de juro recuem para patamares próximos a 14% no ano que vem. Os valores a serem repassados pelo gover- no estadual eqüivalem à parcela de 1% do Imposto sobre a Circulação de Mer- cadorias e Serviços (ICMS), conforme previsto na Constituição estadual.

Mais de 18% do orçamento é for- mado por receitas patrimoniais e de aplicações financeiras da Fundação, entre outras receitas próprias. As re- ceitas imobiliárias serão 10% maiores em 2005 e as de aplicações financeiras tiveram redução de 15%. O restante da receita da Fundação, pouco mais de 1%, é formado por contribuição do governo federal.

No próximo ano serão destinados R$ 462.993.030,00 para o apoio à pes- quisa, sendo que deste total R$ 74,3 mi- lhões provenientes de receitas próprias da FAPESP. As bolsas contarão com va- lores idênticos aos do exercício atual: algo em torno de 39% do orçamento de 2005. Esses valores incluem as bolsas embutidas em auxílios nas modalida-

des Jovem Pesquisador, Mídia Ciência, Capacitação Técnica, entre outros. No cômputo total, às 24 modalidades de auxílio à pesquisa serão destinados R$ 333,9 milhões, valor cerca de 13,36% superior ao do corrente exercício.

O orçamento de 2005 prevê um au- mento nos recursos destinados aos pro- gramas especiais - Jovem Pesquisador, Apoio à Infra-estrutura, Mídia Ciência, Capacitação Técnica, Ensino Público, entre 12 programas -, que contarão com R$ 116 milhões, ante R$ 46,2 milhões do ano passado, e nos recursos destina- dos aos programas de inovação tecno- lógica, como, por exemplo, os Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Ce- pid), Tecnologia da Informação no De- senvolvimento da Internet Avançada (Tidia), FAP Livros e o Sistema Integra- do de Hidrometrologia do Estado de São Paulo (Sihesp), entre outros.

Os dispêndios de custeio serão finan- ciados com recursos da receita própria. "Esse tem sido um diferencial da FA- PESP em relação às demais fundações", diz. "Temos mantido a saúde financeira da instituição e um patrimônio líquido rentável para poder complementar o orçamento", sublinha Engler. •

PESQUISA FAPESP 106 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ 35

Page 35: Soluções para problemas concretos

• POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA

Nas ondas do rádioParceria entre Pesquisa FAPESPe a Eldorado AM leva aos ouvinteso melhor da ciência nacional

Vjocê gosta de ler reporta-

gens sobre descobertascientíficas recentes e pro-

dução tecnológica nacional?Agora também poderá ouvi-

Ias. A partir de 11 de dezembro a RádioEldorado AM passa a transmitir todosos sábados às 12h30 - com reprise nomesmo dia às 19h30 e, nos domingos,às 20h30 - o programa Pesquisa Brasil,realizado por Pesquisa FAPESP em par-ceria com a rádio, do mesmo grupoque publica o Jornal da Tarde e O Estadode S. Paulo, e produção do Cotta Hos-sepian/Escritório de Comunicação.

A idéia de realizar um programacom base no conteúdo da revista surgiuno final de 2003, a partir de conversa-ções entre os dirigentes dos dois veícu-los de comunicação, que compartilhamcredibilidade e estilos jornalísticos se-melhantes. "A Eldorado é uma rádiojornalística que sempre busca excelên-cia em conteúdo e inovação", diz IsabelBorba, diretora executiva da emissora."Essa será nossa primeira experiênciavoltada exclusivamente à divulgação deciência e tecnologia."

Apresentado pela jornalista TatianaFerraz, o programa contará com a par-ticipação de Mariluce Moura, diretorade redação da Pesquisa FAPESP. "Esseé um casamento de dois talentos", co-menta Isabel. "Tatiana contribui para oprograma com sua habilidade em co-municação e na interação com o ouvin-te, enquanto Mariluce agrega sua expe-riência em divulgação científica." Cadaedição de Pesquisa Brasil trará uma en-trevista principal com pesquisadoresbrasileiros a respeito de temas de pesotratados na revista, que afetam direta-mente a vida das pessoas. Também des-tacará um fato científico da semana e

apresentará notícias sobre pesquisas re-centes, como a descoberta de alteraçõesgenéticas que favorecem fumar menos,e inovações tecnológicas a caminho domercado, a exemplo dos grafites de la-piseira que se tornaram mais resistentescom a adição de nanocompostos.

O ouvinte também terá a oportuni-dade de relembrar fatos científicos sig-nificativos, como a contribuição doCentro Europeu de Pesquisas Nucleares(Cem) para a física ou o trabalho donaturalista alemão Fritz Müller no suldo Brasil, comentados no quadro Me-mória, e poderá tirar suas dúvidas naseção Pesquisa-responde. "Gravaremosas perguntas e procuraremos pesquisa-

Pesquisa Brasil:fatos científicos comoestudos de borboletas,de Fritz Müller,e o inovador grafitemais resistente

dores para respondê-Ias", explica Mil-ton Leite, editor chefe da equipe de re-portagem da rádio.

Com transmissão na freqüência de700 kHz, a Eldorado AM atinge a po-pulação de São Paulo e das cidades a até100 quilômetros da capital paulista -também é possível acompanhar os pro-gramas pela Direct TV e pelo site darádio www.radioeldoradoam.com.br."Nosso esforço será o de apresentar osassuntos científicos em linguagem aces-sível ao público leigo", afirma o editorchefe da Eldorado. Afinal, como lembraIsabel: "O fundamental é mostrar parao Brasil a riqueza da produção científi-ca e tecnológica nacional': •

PESQUISA FAPESP 106 • DEZEMBRO DE 2004 • 37

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POLíTICA CIENTIFICA E TECNOLóGICA

AMBIENTE

0 caoital ism Ações de conservação só fmtificarão com visão de lucro no longo prazo

CARLOS FIORAVANTI, DE BANGCOC

s medidas de proteção às paisagens naturais não são contrárias ao capitalismo; opõem-se apenas às for-

, mas de exploração eco- nômica que buscam o lucro fácil e ime- diato, garantiram especialistas reunidos no Terceiro Congresso da União Inter- nacional de Conservação da Natureza (IUCN), realizado no final de novem- bro em Bangcoc, capital da Tailândia. Uma multidão estimada em 5 mil pes- soas participou durante três dias de apresentações e debates que analisaram as perspectivas de mudança da situação muitas vezes crítica dos ecossistemas e da biodiversidade no mundo.

"Temos de rever algumas escolhas", sugeriu Robert Watson, cientista-chefe do Banco Mundial e um dos coorde- nadores do Millenium ecosystem as- sessment, provavelmente o mais amplo estudo sobre a exploração dos recur- sos naturais no planeta. "Temos de ver se queremos pensar no curto ou no longo prazo, em atender somente às necessidades dos ricos ou também a dos pobres e em destruir ou preservar os recursos naturais." Atualmente, se- gundo cálculos de Watson, 5% da po- pulação do mundo consome 80% dos recursos naturais, na forma de alimen- tos, energia e água.

Se o crescimento econômico no curto prazo significa esquecer as preo- cupações com a preservação do am- biente, na avaliação de Eduardo Guer- rero, coordenador de programa da América do Sul da IUCN, a opção pelo

desenvolvimento de longo prazo e pela inclusão social implica a necessidade "de conciliar os interesses econômicos e a conservação, promovendo o orde- namento da ocupação do território". Segundo ele, quando se definem as áreas de agricultura intensiva e as que serão protegidas, a paisagem natural deixa de ser um obstáculo à acumula- ção de riquezas e se torna um espaço essencial para manter os estoques de água, a qualidade do solo e a estabili- dade do clima.

De acordo com Guerrero, a Améri- ca Latina é uma região do mundo em que esses conflitos entre economia e conservação se expressam com mais ni- tidez, a exemplo da pressão que os plantadores de soja brasileiros exercem para ocupar as áreas de floresta ainda intactas. Essa é uma das razões pelas quais o Brasil aparece na Lista vermelha de espécies ameaçadas, um estudo da IUCN divulgado no início desse con- gresso, como um dos países com o mai- or número de mamíferos e aves amea-

Papagaio-de-ouvido- amarelo: já são raros na Colômbia

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38 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 106

Page 37: Soluções para problemas concretos

çados de extinção, ao lado da Indonésia, da índia e da China. Segundo esse levan- tamento, 15.589 espécies de plantas e animais - ou uma em cada três variedades de anfíbios, uma em cada qua- tro de mamíferos e uma em cada oito de aves - correm alto risco de desaparecer em um futuro próximo, como resultado de razões diversas como a perda de hábitats, a poluição e as mudanças cli- máticas globais. Trata-se de um fenômeno que se agrava com o tempo e a ação hu- mana: os ecologistas esti- mam que as atuais taxas de extinção sejam de cem a mil vezes maiores que os valores esperados de desapareci- mento natural das varieda- des de plantas e animais.

Ações articuladas - Nos úl- timos anos, no entanto, o problema principal dos pro- jetos que procuram manter intactos os ambientes natu- rais não é o financiamento. Segundo Guerrero, o que falta é uma articulação mais Garou eficaz entre os agentes finan- ciadores, os implementado- res dos projetos, as iniciativas multila- terais, os governos e a sociedade civil. "Há uma enorme quantidade de atores trabalhando de modo descoordenado", observou. Como resultado, instala-se uma desconfiança das ações do governo e uma frustração da sociedade civil em relação às medidas que deveriam pre- servar as áreas de floresta ocupadas por atividades econômicas.

Rosalia Arteaga Serrano conhecia esses abismos ao assumir em maio a se- cretaria-geral da Organização do Trata- do de Cooperação Amazônica (OTCA). Mas desde então ela tem procurado fa- zer as pontes entre financiadores, go- verno e comunidades dos oito países cobertos, em maior ou menor propor- ção, pela Floresta Amazônica. "O ser humano", disse, referindo-se a um dos princípios de seu trabalho, "é o princi- pal elemento do meio ambiente". Já no início do próximo ano, segundo Rosa- lia, deve começar a ser implantado o

Sapo-arlequim: poucos remanescentes na Costa Rica

Garoupa: em extinção nas Bahamas e no Caribe

primeiro projeto regional de gestão de recursos hídricos, que conta com fi- nanciamentos internacionais da ordem de US$ 30 milhões, dos quais US$ 700 mil já foram liberados. Para ela, o Bra- sil, mesmo abrigando 67% da bacia amazônica, não deve deixar de olhar para os países vizinhos. "É muito im- portante a relação entre os Andes e a bacia amazônica para preservação dos recursos hídricos e da biodiversidade."

Além da busca de ações integradas e de soluções comuns, outra conquista da OTCA, segundo sua secretária-geral, é que os problemas da região deixaram de ser tratados apenas pelos altos diri- gentes dos ministérios das relações ex- teriores, assumiram um caráter mais prático e agora, nas reuniões setoriais, há também representantes dos ministé- rios do meio ambiente, da defesa, da saúde e das obras públicas. Algumas ve- zes tomam parte ainda representantes de outros países, como se deu em um

|| encontro realizado no Rio de Janeiro para tratar da con-

| taminação dos rios por mer- | cúrio, do qual participou a

Guiana Francesa, que não in- tegra a OTCA.

Áreas protegidas - Há pers- pectivas de mudanças nos próprios projetos de conser- vação, que, de modo geral, mundo afora, privilegiam a criação de áreas protegidas e excluem as comunidades lo- cais. Mas os representantes dos povos indígenas que

_, compareceram ao congresso | a da Tailândia querem mudar

essa situação. "Deve haver participação dos povos in- dígenas na definição das es- tratégias de conservação", comentou Ramon Tomedes Kuyujani, da Organização Indígena Rio Caura, da Ve- nezuela. De pés descalços e microfone na mão, em uma tenda de bambu coberta de palha ao lado do edifício principal do centro de con- venções, ele reivindicou: "Não queremos ficar de fora da negociação, mas compar- tilhar o conhecimento que acumulamos em milhares de

anos e conservar a terra para vocês e para nós". Em seguida, Esther Comac, da Associação Ixacavaa de Desenvolvi- mento e Informação Indígena, de Por- to Rico, acrescentou: "Queremos somar o conhecimento ancestral à pesquisa científica".

Mas o diálogo que leve a soluções inovadoras e socialmente mais justas necessita também da participação dos representantes das empresas, lembrou Esther, citando como exemplo o Equa- dor, cujas mineradoras não consultam as comunidades locais nem os planos de preservação ambiental antes de avançarem em busca de novos espaços para explorar. À medida que as conver- sas prosseguiam, tornava-se claro que as alianças - entre culturas, setores da sociedade, formas de pensar e mesmo gerações - deixavam de ser uma opção. Agora são uma necessidade para conci- liar os interesses imediatos com os de longo prazo. •

PESOUISA FAPESP 106 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ 39

Page 38: Soluções para problemas concretos

I CIÊNCIA

■ Vacina promissora contra a tuberculose

Pela primeira vez em oito dé- cadas surge uma possível no- va vacina contra a tuberculo- se, infecção transmitida pelo ar que afeta os pulmões e, a cada ano, mata 1,8 milhão de pessoas no mundo. Desenvol- vido por pesquisadores da Universidade de Oxford, In- glaterra, e do Instituto Pas- teur em Bruxelas, Bélgica, o composto apresentou resul- tados animadores nos testes iniciais em seres humanos: au- mentou de 5 a 30 vezes a ati- vidade do sistema de defesa contra a Mycobacterium tu- berculosis, bactéria causadora da tuberculose, cada vez mais resistente aos medicamentos disponíveis. Mas é necessário muito trabalho antes que a va- cina chegue ao mercado. Pri- meiro, a nova formulação - à base de um vírus inofensivo à saúde, geneticamente altera- do para estimular o sistema imune - tem de comprovar sua eficiência em duas outras baterias de testes em seres hu- manos, que podem demorar dez anos. Se tudo der certo, a vacina belgo-britânica deverá

Mapa dos futuros assaltos

Com esta os gatunos não contavam. É possível que em alguns anos a polícia se mantenha um passo à fren- te dos assaltantes e os este- ja aguardando na hora do furto, em vez de persegui- los depois do crime. Pes- quisadores ingleses desen- volveram um programa de computador que permite prever as áreas da cidade em que os maganos estão de olho com uma eficiência ao menos 30% superior à dos tradicionais mapas de crime. Kate Bowers, Shane Johnson and Ken Pease, to- dos da University College, em Londres, constataram que a disseminação do cri- me segue o padrão de es- palhamento das doenças contagiosas. Os crimes ocorrem em grupos e de- pendem da arquitetura das casas e das rotas de fuga. Enquanto os mapas tradicionais são feitos com

Áreas visadas: construções com arquitetura semelhante

base no local dos assaltos, o novo método - o mapea- mento prospectivo do cri- me - leva em conta tam- bém o tempo passado desde a ocorrência. Testes reve- laram que as casas a 400 metros de uma residência furtada, em especial as do mesmo lado da rua, correm mais risco de serem assal- tadas nos dois meses se- guintes. "Os mapas pros- pectivos são dinâmicos",

disse Shane Johnson ao London Press Service. "As projeções das áreas visadas são ajustadas constantemen- te e evoluem para refletir os novos incidentes." No con- dado de Merseyside, o ma- peamento prospectivo pre- viu de 62% a 80% das vezes a região dos assaltos. Já o mapa tradicional anteviu a área dos crimes em 46% dos casos (British Journal of Criminology). •

ser usada como reforço, e não em substituição, à BCG, vaci- na antituberculose criada em 1921. Os pesquisadores com- pararam a ação do novo com- posto, o MVA85A, com a da BCG em um estudo com 42 pessoas, separadas em três grupos. O primeiro recebeu MVA85A e o segundo, BCG. O terceiro grupo, formado por pessoas tratadas anterior- mente com BCG, tomou uma dose da nova vacina e apre- sentou os índices de imunida- de mais elevados - até 30 ve- zes maior que nos outros -, mantidos por até seis meses, segundo estudo publicado na Nature Medicine. •

■ Parente distante

Paleontólogos espanhóis de- senterraram perto de Barce- lona, noroeste da Espanha, o

fóssil de uma nova espécie de grande macaco: o Pierolapi- thecus catalaunicus ou, numa tradução livre, macaco cata- lão de Pierola - uma referên- cia à região em que foi en- contrado, Eis Hostalets de Pierola, na Catalunha. Des- crito em artigo publicado na Science, o exemplar recém- identificado era um macho de quase 55 quilos que viveu há cerca de 13 milhões de anos. A idade do fóssil e suas carac- terísticas levaram os pesqui-

Reconstituição doPierolapithecus: face achatada e punho forte

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Page 39: Soluções para problemas concretos

sadores a crer que o Pierolapi- thecus seja o mais recente an- cestral compartilhado pela espécie humana e pelos gran- de macacos - gorilas, chim- panzés e orangotangos, entre outros -, que começaram a evoluir separadamente entre 16 milhões e 11 milhões de anos atrás. A coluna vertebral mais rígida, o tronco curto e a articulação do punho mais forte são particularidades que permitiam ao Pierolapithecus subir verticalmente nas árvo- res. Por outro lado, suas mãos são mais curtas que as de espé- cies de macacos atuais, uma indicação de que o £ catalau- nicus não era capaz de se de- pendurar em galhos e balan- çar, característica que pode ter evoluído em tempos dife- rentes nas distintas espécies de macacos. "Nosso fóssil tem a estrutura básica dos grandes macacos, mas guarda carac- terísticas que não se encon- tram nas espécies atuais", dis- se o paleontólogo Salvador Moyà-Solà, descobridor do fós- sil, à revista Newscientist. •

Restos de supernova: fonte de partículas de altas energias

■ De onde vêm os raios cósmicos

Por quase um século os as- trofísicos buscaram provas irrefutáveis da origem dos raios cósmicos, partículas energéticas que incessante- mente bombardeiam a Terra a partir do espaço - milhares delas atravessam nossos cor- pos por dia. Usando dois te- lescópios especiais instalados

na Namíbia, capazes de de- tectar a radiação emitida pe- los raios cósmicos ao se cho- carem com os átomos da atmosfera da Terra, pesquisa- dores europeus e africanos conseguiram restabelecer o caminho percorrido pelos raios cósmicos até seu ponto

Gigante e com vida

de partida: os restos da super- nova RX J1713.7-3946, como relata o grupo internacional em artigo na Nature. Distan- tes pelo menos 3.200 anos- luz do sistema solar - algo como 30 quatrilhões de qui- lômetros -, esses remanes- centes são o que sobrou da explosão violentíssima de uma estrela há aproximada- mente mil anos e hoje são vi- síveis no céu do hemisfério Sul na constelação de Escor- pião. "Essa é a primeira prova inequívoca de que as super- novas podem produzir quan- tidades enormes de raios cós- micos galáticos, algo de que suspeitávamos havia tempo, mas não éramos capazes de comprovar", disse Ian Halli- day, diretor do Conselho de Pesquisa em Física de Partí- cula e Astronomia (Pparc), do Reino Unido, órgão finan- ciador da participação britâ- nica no projeto. •

Os biólogos costumam clas- sificar os vírus como agentes infecciosos sem vida. Extre- mamente simples, forma- dos apenas por uma capa de proteína envolvendo seu material genético, os vírus em geral só se reproduzem no interior de outros orga- nismos vivos - unicelulares, como bactérias e protozoá- rios, ou formados por con- juntos de células, a exemplo de plantas e animais. Mas esse conceito terá de ser re- visto. A equipe de Didier Raoult, da Universidade do

Mediterrâneo, em Marse- lha, França, identificou um vírus bastante singular, o Mimivírus. Com 400 nanô- metros de diâmetro, é qua- se duas vezes maior que os maiores vírus conhecidos e do tamanho de bactérias pequenas. Mais importan- te: o Mimivírus produz 150 de suas proteínas - inclu- sive algumas que reparam danos no material genéti- co -, uma característica até agora exclusiva dos orga- nismos vivos. Em tese, tal fato permitiria a esse vírus,

descoberto ao acaso em 1992, sobreviver e se repro- duzir sem infectar micro- organismos vivos. Embora seja semelhante a uma bac- téria, seu ciclo de vida é ca- racterístico de um vírus, re- lataram os pesquisadores na descrição do Mimivírus, pu- blicada na Science em 2003. Agora, em outro artigo na

Mimivírus: capaz de fabricar suas próprias proteínas como os organismos vivos

mesma revista, o grupo de- talha o resultado do seqüen- ciamento do genoma desse vírus e da análise de seus 1.262 genes. "A complexida- de do genoma do Mimiví- rus desafia a demarcação de uma fronteira entre os vírus e os parasitas formados por células", escreveram os pes- quisadores. •

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LABORATóRIO BRASIL

ereías de Abrolhos

Ópera aquática: baleias-jubartes cantam melodias complexas no cortejo às parceiras

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As baleias em geral emitem variadas seqüências de sons, que lembram cantos. Mas as únicas capazes de cantar mes- mo são as baleias-jubartes, segundo o zoólogo Jacques Vielliard, da Universidade Es- tadual de Campinas (Uni- camp). "Seus sons compõem seqüências melódicas de 20 minutos, em média, quase uma sinfonia", afirma o pes- quisador, especialista em bioacústica. Entre julho e no- vembro de 2000, Vielliard e o biólogo Eduardo Arraut pas- saram dias em um pequeno barco no arquipélago de Abro- lhos, litoral da Bahia, para gravar o canto das baleias-ju- bartes (Megaptern novaeangli- ae) - mamíferos marinhos de até 16 metros de comprimen- to e 50 toneladas, também co-

nhecidos como baleias-cor- cundas por causa da forma do dorso. As cinco horas de can- to registradas são compostas por 20 ciclos de canções, com duração de 6 a 35 minutos cada. No período de reprodu- ção, as jubartes migram das águas frias do Atlântico Sul, onde se alimentam de plânc- ton, pequenos peixes e crus- táceos, para as águas quentes da costa brasileira, em especial Abrolhos. Chamadas de balei- nes chanteuses pelos france- ses, as jubartes fazem cortejos longos e elaborados. Enquan- to as fêmeas cuidam dos fi- lhotes, os machos se isolam em grandes círculos, com qua- se 10 quilômetros de diâme- tro. Com a cabeça mergulha-

no ar, como se plantassem ba-

naneira, permanecem horas cantando na expectativa de seduzir uma parceira, a exem- plo das mitológicas sereias. Na análise das gravações, pu- blicada nos Anais da Acade- mia Brasileiras de Ciências, Vielliard e Arraut identifica- ram cinco temas diferentes, compostos por frases de ex- tensão variável e 24 notas dis- tintas - de longas notas graves semelhantes a mugidos (huu- ummtnm) às mais agudas (fiiiiii) ou curtas (táá-tá-tá- tá). As populações de baleias- jubartes se distribuem ao re- dor do planeta, mas cada grupo tem um canto caracte- rístico, uma espécie de dialeto - o canto dos outros grupos estudados é composto por 16 a 20 notas diferentes. "As ju- bartes da costa brasileira são

mais musicais: produzem maior variedade de notas e temas", diz Vielliard. Isso tor- na possível, em teoria, iden- tificar uma jubarte brasileira entre as que se reproduzem na costa da África. Segundo o zoólogo, uma característica distingue as jubartes dos ou- tros animais - os seres huma- nos inclusive. Quando um in- divíduo se une a um novo grupo, os membros do grupo passam a imitar as novidades da canção estrangeira, como se os norte-americanos apren- dessem a língua de um visi- tante brasileiro. Essa caracte- rística talvez influencie na escolha do seu parceiro pelas fêmeas, que selecionariam os machos com maior capacida- de de aprender e inovar, suge- rem os pesquisadores. •

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Células polivalentes

Capazes de originar dife- rentes tipos de tecido, as cé- lulas-tronco vêm se mos- trando uma alternativa possível para tratar a insufi- ciência cardíaca. Testes co 20 pacientes - seis e doze meses após o implante des- sas células no coração - re- velaram importante melho- ra na capacidade física, segundo estudo de pesqui- sadores do Hospital Pró- Cardíaco e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), publicado na Cir- culation. Diante desse resul- tado e de pesquisas com ani-

ü mais, as Dohmann, do Pró-Cardía- co, e de Radovan Borojevic e Rosália Mendez-Otero, da UFRJ, iniciaram em agosto o implante experimental de células-tronco no cérebro de pessoas com isquemia, a

rônios por fal- ta de sangue. A primeira pa- ciente foi Maria Pomaceno, de 54 anos. Sete dias após a cirurgia, imagens da área cerebral afetada mostravam metabolismo onde antes não havia atividade. "Não

podemos afirmar que a re- cuperação se deve às célu- las-tronco, mas não dá para imaginar outro fator", diz Dohmann, que deve repetir o procedimento em 14 pa- cientes. A equipe do Pró- Cardíaco também avaliará a eficácia do implante dessas células no coração de 300 pessoas vítimas de infarto agudo. Pesquisadores do Ins- tituto Nacional de Cardio- logia Laranjeiras analisarão o uso dessa técnica na insu- ficiência cardíaca. No Incor, ela será testada na isquemia crônica do coração. •

Contra a hepatite e o HIV

Muitas pessoas infectadas pelo HIV também adquirem o vírus da hepatite C, igual- mente transmitido pelo san- gue. Mas, com receio de que o tratamento da hepatite pre- judique a eficácia dos remé- dios anti-HIV, em geral os médicos optam por combater apenas o vírus da Aids. Um estudo internacional recente, publicado no New England Journal of Medicine, desfaz esse mito e renova a esperan- ça de pessoas contaminadas por ambos os vírus - em um terço dos casos, esses indiví- duos são hospitalizados ou morrem por causa da hepati-

Mais um dino brasileiro

e câncer hepático. Os pesqui- sadores submeteram 860 pes- soas - todas contaminadas com os dois vírus e atendidas em 95 centros de 19 países, inclusive do Instituto de In- fectologia Emilio Ribas, em São Paulo - a três tratamen-

Santa Maria, no Rio Gran- de do Sul, é o que se pode chamar de berço dos di- nossauros. Três das mais antigas espécies desses rép- teis foram achadas ali. Ago- ra paleontólogos do Mu- seu Nacional, no Rio, e da Universidade Federal de Santa Maria descrevem na revista Zootaxa uma quar- ta espécie de dinossauro primitivo, que habitou a

região há 220 milhões de anos: o Unaysaurus tolen- tinoi. Com 2,5 metros da cabeça à cauda, o Unay- saurus é a 1 Ia espécie iden- tificada no país e a primei- ra de um prossaurópode: dinossauro herbívoro com membros anteriores cur- tos e pescoço e cauda lon- gos. O exemplar brasileiro é mais semelhante ao da Alemanha do que ao da Argentina ou da África, in- dicação da complexa dis- persão desses répteis quan- do os continentes estavam unidos. •

Unaysaurus: parentesco com dinossauro da Alemanha

tos contra a hepatite. O pri- meiro grupo tomou interfe- ron alfa-2a e ribavirina. Os outros dois receberam um dos dois esquemas terapêuti- cos com o interferon alfa-2a peguilado, que permanece ativo mais tempo no organis- mo: o interferon peguilado puro ou associado à ribaviri- na - esta última terapia pa- drão contra a hepatite C. Os participantes foram tratados por um ano e acompanhados por mais seis meses. Durante esse período, 86% deles tam- bém tomavam drogas anti- HIV. Resultado: o interferon peguilado - com ribavirina ou puro - foi mais eficiente e eliminou o vírus da hepatite em 40% e 20% dos casos, res- pectivamente. O interferon comum associado à ribaviri- na funcionou para 12% dos

pacientes. O tratamento não interferiu na

ação dos remédi- os que comba-

tem o vírus da Aids. •

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CIÊNCIA

ECOLOGIA

Natureza sob novo olhar

Aos cinco anos, programa Biota consolida dados sobre fauna e flora e investe em educação ambiental

Lançado oficialmente em março de 1999, o pro- grama Biota-FAPESP encerra seu quinto ano de vida com feitos sem paralelo entre iniciativas si- milares destinadas a mapear a biodiversidade numa grande faixa de terra. Nunca se soube tan-

to quanto hoje sobre as mais variadas formas de vida encon- tradas no Estado de São Paulo, um território com 250 mil quilômetros quadrados, um pouco maior do que a Grã-Bre- tanha - sejam elas microorganismos, plantas ou animais que habitam a terra firme, a água doce ou o mar. Até agora, US$ 10 milhões foram destinados a cerca de 50 projetos do Bio- ta, um programa guarda-chuva que abriga iniciativas das mais diversas e em áreas distintas. Dentro do Biota, há estu- dos sobre peixes de água doce e animais marinhos; trabalhos sobre a distribuição dos mamíferos das Américas; projetos que tentam descobrir árvores capazes de retirar grandes quantidades do poluente gás carbônico da atmosfera; levan- tamentos sobre o grau de preservação da vegetação nativa no estado. Um dos filhotes mais recentes do programa é a BIO- prospecTA, rede que procura biofármacos escondidos nas matas e rios, cujos primeiros quatro projetos de pesquisa acabam de ser aprovados (veja quadro na página 46). Esses são apenas alguns exemplos da abrangência do Biota. Have- ria outros, mas a lista seria enorme.

Com a dedicação e a competência dos 500 pesquisadores e 500 alunos de graduação e pós-graduação que participam de seus projetos, o Biota inaugurou uma nova forma de fa- zer pesquisa na área ambiental. Estimulou o trabalho em conjunto e o intercâmbio de informações, em especial via in- ternet, entre pesquisadores baseados em dezenas de insti- tuições de São Paulo (e de outros estados e até do exterior) que antes tendiam a ficar isolados em seu campo específico de trabalho. "A FAPESP não passou a gastar mais em estudos ambientais com o Biota. Passou a gastar melhor", afirma o biólogo Carlos Alfredo Joly, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ex-coordenador do programa. "Mu- damos o paradigma de quem trabalha com história natural. O lema agora é compartilhar dados."

Biodiversidade paulista: pequi, típico do Cerrado; casal de aranhas-gigante e jacupemba, comuns na Mata Atlântica. No litoral o peixe-borboleta

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O espírito cooperativo norteou as grandes iniciativas do programa. Quan- do vão a campo procurar amostras de espécies para seus trabalhos, os pesqui- sadores do Biota utilizam, por exemplo, a mesma metodologia de coleta de or- ganismos e preenchem uma ficha pa- dronizada sobre os exemplares captu- rados. Em seguida, os dados da coleta são inseridos no Sistema de Informação Ambiental do Biota, o SmBiota, uma fer- ramenta virtual que contabilizava re- gistros de aproximadamente 56 mil es- pécies encontradas em São Paulo (44 mil de vida terrestre, 8 mil de água ma- rinha e 4 mil de água doce). Assim, com os cientistas adotando procedimentos comuns, fica mais fácil comparar os re- gistros de distintas coletas feitas por di- ferentes pesquisadores do programa. "Mesmo pesquisadores de fora do Bra- sil comentam que não há projeto inter- nacional como o Biota", comenta Maria Cecília Wey de Brito, diretora-geral do Instituto Florestal, de São Paulo.

Desde outubro passado, as informações geradas pe- lo Biota estão integradas à rede SpeciesLink, um banco de dados ainda

maior que junta os registros de 38 cole- ções científicas, 24 de instituições pau- listas e 14 do exterior. A própria criação do SpeciesLink - a cargo do Centro de Referência em Informação Ambiental (Cria), em Campinas, que também im- plantou o SmBiota - só foi possível gra- ças à existência do programa sobre a biodiversidade do estado. O SpeciesLink é um dos projetos do Biota. Ainda fal- tam informações ambientais sobre al- gumas partes do estado, como a região oeste, onde restou pouca vegetação e há escassez de pesquisadores. Mas nin- guém duvida de que o conhecimento sobre a biodiversidade paulista era um antes do Biota e hoje é outro. "Já atin- gimos massa crítica suficiente para, sem pararmos os trabalhos de coleta de espécies em campo, começarmos a ge- rar propostas de políticas públicas na área de conservação ambiental", diz Ri- cardo Ribeiro Rodrigues, da Escola Su- perior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), de Piracicaba, novo coordena- dor do Biota.

Uma das idéias defendidas é não restringir os esforços de preservação da

natureza apenas ao interior das áreas públicas ou privadas legalmente cons- tituídas como unidades de conserva- ção. Vários estudos do Biota mostram que manter um parque como uma ilha de biodiversidade enquanto o seu en- torno se encontra devastado não é uma política muito eficaz. A destruição das cercanias afeta a vida dentro do oásis de verde. É um efeito semelhante à in- fluência das bordas sobre os destinos de um rio. Não há cursos d'água sadios com margens doentes ou destruídas (e vice-versa). Por falar em meio líquido, ao coordenar a confecção do recém- lançado Catálogo de peixes de água doce no Brasil, Naércio Aquino de Me- nezes, do Museu de Zoologia da Uni-

versidade de São Paulo (USP), ficou espantado com a realidade submersa nas áreas do Cerrado, as savanas do coração do Brasil. "Encontramos mui- tos resíduos de soja contaminando rios na região central", comenta Menezes, um dos pesquisadores-líderes do Bio- ta. "Tentamos registrar todas as espécies de peixes que encontramos antes que elas acabem."

Rios sufocados - O cidadão comum tende a associar a poluição dos rios e la- gos basicamente à existência de ativida- des industriais e grandes cidades em sua vizinhança. A imundície do Tietê em seu trecho que corta a capital paulista é o exemplo mais gritante da ação dele-

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Terra, água e ar: a copa do jequitibá, a tartaruga-verde; uma visitante da costa paulista, e a joaninha se alimentando de pólen de margarida

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teria dos dejetos huma- nos e fabris sobre um rio. Essa é parte da tragédia aquática, mas não toda ela. O avanço das planta- ções e pastagens também sufoca muitos rios e ri- beirões pelo interior do estado e do Brasil, além de promover diretamente o desmatamento de áreas de vegetação nativa. Uma das boas notícias oriun- das de um trabalho do Biota, coordenado por pesquisadores do Institu- to Florestal, foi que, neste início de século, a área com vegetação natural em São Paulo aumentou 3,8% (1,2 quilômetro quadrado) em relação à existente há dez anos. O crescimento, ainda tími- do, concentrou-se na fai- xa de Mata Atlântica, o ecossistema mais extenso do estado.

No norte e no noroeste de São Pau- lo, onde há fragmentos de Cerrado que respondem por somente 1% da vegeta- ção nativa paulista, o desmatamento ainda viceja. Nessas regiões, diferente- mente do que ocorre nas savanas do

Brasil central, a expansão agrícola é di- tada pelo cultivo da cana-de-açúcar, e não da soja.

Avanços na questão ecológica, como o pequeno crescimento na área paulis- ta de Mata Atlântica, decorrem da en- trada em vigor de uma legislação con-

Hora do lanche: cambacica se alimenta em flor de bromélia. Ao lado; iguana e borboleta Agraulis

servacionista mais severa e da adoção de medidas concretas para reduzir as agressões à natureza. E, acreditam os pesquisado- res, sobretudo da tomada de consciência pela po- pulação da necessidade de preservar o ambiente. Daqui para a frente, um dos pontos a serem mais enfatizados pelo Biota é a questão da educação am- biental. Como se pode transformar e difundir o conhecimento técnico ge- rado pelos cientistas do programa em informa- ção intelegível para mes- tres e professores, que

têm a função de repassar esses concei- tos para as novas gerações de cidadãos? Estimulando iniciativas específicas de educação ambiental dentro do Biota. "Hoje temos três projetos com esse perfil", afirma Rodrigues, o novo timo- neiro do programa.

Remédios da biodiversidade Desde o seu início, o Biota apoia

pesquisas voltadas ao desenvolvi- mento de fármacos a partir de extra- tos vegetais ou moléculas de plantas e animais encontrados em São Paulo. Em 1999, um dos primeiros projetos do programa, coordenado por Van- derlan da Silva Bolzani, do Instituto de Química da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Araraquara, ti- nha como objetivo procurar por dro- gas em meio à biodiversidade do Cer- rado e da Mata Atlântica.

O interesse pelo tema cresceu tan- to que, em junho de 2003, foi criada uma rede para abrigar iniciativas com esse perfil dentro do Biota. Inicial- mente denominada RedeBio, a Rede Biota de Bioprospecção e Bioensaios

passou a se chamar BIOpropescTA. Quase 60 pré-projetos de pesquisa em bioprospecção foram submeti- dos à FAPESP. Por serem semelhan- tes, algumas propostas foram redi- mensionadas ou fundidas e geraram 32 projetos para a BIOprospecTA, hoje subprograma do Biota. Quatro desses projetos acabam de ser aprova- dos - os demais estão sob análise.

As propostas aceitas são de pes- quisadores de distintas instituições. João Valdir Comasseto, do Instituto de Química da USP, pretende estudar o metabolismo de bactérias de ecos- sistemas brasileiros. Luis Eduardo Soares Netto, do Instituto de Biociên- cias da USP, vai procurar inibidores de proteínas antioxidantes na Xyllella

fastidiosa, a bactéria que causa nos la- ranjais a clorose variegada dos citros, o popular amarelinho. O trabalho de Monamaris Marques Borges, do Ins- tituto Butantan, terá como objetivo a implantação de ensaios in vitro para identificar produtos com atividade an- timicrobacteriana. Mario Sérgio Pal- ma, da Unesp de Rio Claro, vai procu- rar na fauna de artrópodes paulista compostos úteis para o desenho de novas drogas e pesticidas seletivos. "A maioria dos fármacos no mercado foi inspirada em moléculas extraídas de fontes naturais", diz Vanderlan, uma das coordenadoras da BIOprospecTA. "Com a implantação da rede, quere- mos dominar todas as etapas do pro- cesso de bioprospecção."

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CIÊNCIA

Faxina arterial Composto desenvolvido no Rio Grande do Sul dissolve placas que obstruem vasos sangüíneos

DlNORAH ERENO E

RICARDO ZORZETTO

s vezes nossas artérias lembram canos velhos de metal, que com o tempo enferrujam e acu- mulam detritos até entupirem por comple-

i to. É assim ao menos com a mais freqüen- _k^ te das doenças que danificam os vasos

sangüíneos, a aterosclerose, associada a 17 milhões de mortes no mundo por ano. Marcada pela formação de placas de gordura que impedem a passagem do sangue, a aterosclerose em geral é fatal quando afeta as artérias do coração ou do cérebro, órgãos que resistem apenas pou- cos minutos sem oxigênio. Parece paradoxal, mas pesquisa- dores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) descobriram que um tipo de hormônio pro- duzido pelo organismo com estrutura similar à das gor- duras, as prostaglandinas, pode auxiliar no tratamento e até mesmo na prevenção desse problema.

Utilizando prostaglandinas, a equipe do bioquímico Paulo Ivo Homem de Bittencourt Júnior produziu um composto que, em experimentos com camundongos, mostrou-se capaz de dissolver as placas de gordura que se acumulam nas artérias - os ateromas, como dizem os médicos. Essa formulação, que recebeu o nome pro- visório de LipoCardium, também impediu a formação de placas, conseqüência do consumo de alimentos gor- durosos, do tabagismo e do sedentarismo. Caso se de- monstre a segurança e a eficácia desse composto nos fu- turos testes com coelhos, cães e seres humanos, é possível que em até dez anos chegue às farmácias um

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medicamento novo para evitar a for- mação das placas que impedem a cir- culação normal do sangue.

Fabricadas em pequeníssimas quan- tidades no interior das células, as pros- taglandinas formam uma vasta família de moléculas pequenas - cada uma de- las composta por uma seqüência de apenas 20 átomos de carbono -, com ações distintas nas diferentes partes do corpo, que vão do controle da pressão arterial e da ativação do centro cerebral da dor à indução ao parto.

Entre as 36 prostaglandinas naturais conhecidas, o pes- quisador da UFRGS sele- cionou as ciclopentenônicas (CP-PGs, na sigla em inglês),

em cuja estrutura cinco dos 20 átomos de carbono se unem formando um anel. Não foi uma escolha ao acaso. Durante seu doutoramento, orientado pelo bio- químico Rui Curi, da Universidade de São Paulo, Homem de Bittencourt pas- sou um ano no laboratório da bióloga Maria Gabriella Santoro, da Universi- dade de Roma, Itália. Foi ela que des- cobriu uma propriedade fundamental dessas prostaglandinas: uma vez no in- terior das células, essas moléculas im- pedem dois fenômenos ligados ao sur- gimento do ateroma, a inflamação e a multiplicação celular.

É mais fácil entender o valor desse composto com uma rápida explicação de como se formam essas placas de gor- dura nas paredes das artérias. A hiper- tensão arterial crônica, a ingestão de alimentos ricos em gorduras ou o con- sumo de cigarros, por exemplo, produ- zem lesões imperceptíveis no endotélio, a camada de células que reveste o inte- rior das veias e artérias. É um efeito res- trito, mas que ecoa pelo organismo. Nas células danificadas, um sinal químico induz a produção de proteínas típicas da inflamação, que, expostas na super- fície celular, servem como um cartaz luminoso, indicando ao sistema de de- fesa: "Há problemas por aqui!". Células de defesa se deslocam até a região afeta- da dos vasos sangüíneos e destroem as células doentes.

Mas o sinal químico que dispara a produção dessas proteínas também in- dica às células do endotélio que elas de- vem se multiplicar. As novas células do revestimento das artérias passam então

a envolver as células de defesa, que não param de chegar à região do ferimento. Não fosse o bastante, as moléculas de gordura em excesso no sangue - e não apro- veitadas pelo organis- mo na produção de energia - aderem a esse bolo celular que cresce para o interior das veias e artérias. Eis o atero- ma, que não é formado apenas por moléculas de gordura como nor- malmente se imagina. Há também átomos eletricamente carrega- dos (íons) de cálcio, que se depositam sobre o ateroma e tornam a artéria menos elástica e mais propensa ao rom- pimento.

Com as prostaglan- dinas ciclopentenôni- cas, imaginou Homem de Bittencourt, em tese seria possível travar o gatilho que dispara a formação do ate- roma e eliminar o mal antes de seu aparecimento. É que essas moléculas se ligam a uma proteína-chave no pro- cesso de multiplicação celular e infla- mação, a enzima I-kappaB quinase ou simplesmente IKK. Como um goleiro que intercepta a bola a caminho do gol, as prostaglandinas se atracam à IKK e impedem o envio do sinal para as células multiplicarem e o sistema de defesa entrar em ação. Há um efeito benéfico extra: as CP-PGs auxiliam no reparo de proteínas danificadas pela lesão na célula.

Embalagem segura - Era a escolha per- feita. Mas faltava encontrar uma forma de levar as prostaglandinas ciclopen- tenônicas até o ateroma. É que, embora sejam naturalmente produzidas pelo organismo, essas moléculas não podem ser injetadas diretamente no sangue. Por causa de sua potente ação antiprolifera- tiva, se lançadas na circulação sangüí- nea, essas prostaglandinas causariam os mesmos efeitos indesejados da quimio- terapia convencional com medicamen- tos anticâncer, como queda de cabelo,

Acesso Lipossomos - cápsulas de gordura recheadas de uma espécie de hormônio, as prostaglandinas alcançam a região da artéria bloqueada pela placa de gordura e recoberta pelas células do endotélio, camada que reveste internamente os vasos sangüíneos

Lipossomo

Células endoteliais

Placa de gordura

problemas intestinais, além de um in- tenso mal-estar geral. "A solução foi em- balar as prostaglandinas em liposso- mos, cápsulas de gordura produzidas artificialmente, com uma estrutura se- melhante à de uma bola de futebol", ex- plica Homem de Bittencourt. Mas mes- mo o uso de lipossomos não garantia a ação das prostaglandinas no local certo. Como essas cápsulas gordurosas apre- sentam a mesma carga elétrica que as células do endotélio, seriam repelidas pelas paredes das artérias e permanece- riam no sangue até as células de defe- sa as consumirem. Ainda era preciso encontrar um modo de conduzir as cápsulas ao local da lesão.

A equipe da UFRGS só encontrou a saída quando notou uma peculiari- dade das células danificadas do endo- télio: elas apresentam em sua superfície uma proteína que não é encontrada em nenhum outro lugar do corpo. São as moléculas de adesão vascular, o tal car- taz luminoso que atrai a atenção das células de defesa e ao qual elas se li- gam. O pesquisador gaúcho teve então a idéia de acrescentar aos lipossomos carregados de prostaglandinas uma

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Page 49: Soluções para problemas concretos

Cavalo-de-tróia

Anticorpos

Adesão Revestidos de anticorpos, os lipossomos se ligam a proteínas chamadas moléculas de adesão na superfície das células que se multiplicaram sobre a gordura acumulada

0 Limpeza

_^ Como um cavalo-de-tróia; os lipossomos liberam as © prostaglandinas no interior das células endoteliais.

Assim, bloqueiam a reprodução dessas células e permitem que o sistema imune elimine a gordura

proteína que se encaixa perfeitamente às moléculas de adesão vascular.

Ação pontual - Resultado: os liposso- mos mergulhados no sangue enras- cam nas moléculas de adesão ao passa- rem pelo ferimento e, como o cavalo recheado de guerreiros que os gregos ofertaram aos troianos, são absorvidos pelas células avariadas. Assim, as pros- taglandinas atuam apenas no ponto desejado, sem gerar os efeitos indese- jáveis. Eis a principal diferença entre o composto desenvolvido pelo grupo do Rio Grande do Sul e os outros medi- camentos usados no combate à ate- rosclerose - as estatinas, por exemplo, atuam de outra forma e reduzem o ris- co de aterosclerose porque inibem a produção de colesterol em especial no fígado. "Além de usado para tratar a aterosclerose, o composto à base de prostaglandinas talvez possa prevenir a formação dos ateromas nos casos em que há histórico familiar de colesterol alto", diz Homem de Bittencourt, que já obteve o registro de patente da nova formulação no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI).

Na primeira bateria de testes, o composto da UFRGS mostrou resulta- dos animadores. Experimentos com camundongos geneticamente altera- dos para desenvolver aterosclerose e alimentados por quatro meses com uma dieta rica em gorduras mostra- ram que o composto à base de prosta- glandinas eliminou as placas de atero- ma após duas semanas de uso diário - os animais que não receberam a for- mulação, em geral, morreram em 15

0 PROJETO

Prostaglandinas ciclopentenônicas no sistema cardiovascular: potencial terapêutico na hipertensão arterial e na aterosclerose por citoproteção e redirecionamento do metabolismo lipídico

COORDENADOR PAULO IVO HOMEM DE BITTENCOURT

JúNIOR- UFRGS

INVESTIMENTO R$497.000,00 (CNPq) R$34.250,00 (UFRGS) R$61.050 (Fapergs)

dias. Segundo o pesquisador, esse re- sultado - claro, guardadas as devidas proporções - corresponderia ao caso de uma pessoa com 80% das artérias do coração bloqueadas que se curaria da doença após um ano e meio de tra- tamento com o composto.

De acordo com Homem de Bitten- court, uma indústria farmacêutica na- cional, cujo nome se mantém em sigilo, atualmente negocia com o escritório de transferência de tecnologia da UFRGS para tornar o composto à base de prostaglandinas de fato em um novo medicamento. É uma parceria funda- mental, uma vez que os testes necessá- rios para comprovar a eficácia e a segu- rança do composto devem custar cerca de R$ 5 milhões, quase oito vezes mais do que já se gastou. Dificilmente as ins- tituições que apoiaram essa pesquisa até agora - o Conselho Nacional de De- senvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a Fundação de Amparo à Pes- quisa do Estado do Rio Grande do Sul (Fapergs) e a própria UFRGS - teriam condições de financiar, sozinhas, a etapa de desenvolvimento desse limpa- dor de artérias. •

PESQUISA FAPESP 106 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ 51

Page 50: Soluções para problemas concretos

■ CIÊNCIA

À prova deluz Enzima reduz a perda de células saudáveis expostas à radiação ultravioleta

ALESSANDRA PEREIRA

uem teve filhos ou foi criança na década de 1980

| certamente se lembra de um jogo de videogame famoso na época, o Pac- Man. O personagem, uma

Ia amarela, saía comendo as pílulas que encontrava pela frente em um labirinto cheio de fantasmas. Vencia o jogo quem conseguisse papar mais pílulas e fugir dos monstrinhos. No corpo humano acontece algo seme- lhante quando alguns genes estão alte- rados. As células velhas ou com mate- rial genético danificado se desintegram e são engolidas por células vizinhas ou do sistema imunológico. Esse mecanis- mo de morte celular programada, ou apoptose, é um processo normal de re- novação das células. Mas, quando ocor- re de maneira descontrolada, causa da- nos ao organismo - tumores, inclusive.

É assim com os portadores de xero- derma pigmentosum (XP), uma rara doença genética que afeta um em cada 250 mil norte-americanos e, estima-se, quase mil brasileiros - embora apenas cerca de cem casos tenham sido iden- tificados no país. Por causa de altera- ções no DNA, as células da pele dessas pessoas apresentam uma forma defei- tuosa de certo tipo de proteína - as en- zimas de reparo, que detectam e con- sertam as alterações na estrutura do

DNA causadas pelos raios ultravioleta, após reiteradas exposições ao sol. Como essas células perdem a capacidade de corrigir esses defeitos, mensageiros quí- micos dão a ordem de suicídio celular, evitando a transmissão de genes defei- tuosos aos descendentes. Os portadores dessa doença nascem com alta sensibi- lidade à luz solar - por isso são obriga- dos a usar cremes protetores, óculos es- curos e roupas compridas - e correm o risco 2 mil vezes maior de ter câncer de pele do que a população em geral, por- que algumas das células que deveriam morrer eventualmente não seguem as ordens e não se suicidam.

Pois um outro tipo de luz ajudou pesquisadores do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Pau- lo (USP) a consertar lesões no DNA de células retiradas da pele de pessoas com xeroderma pigmentosum e a reduzir pe- la metade a morte de células saudáveis expostas à radiação ultravioleta, crian- do uma técnica que poderá vir a ser em- pregada no tratamento de outros tipos de câncer de pele. Usando um aden- ovírus, a equipe de Carlos Menck intro- duziu, pela primeira vez com sucesso, o gene da enzima fotoliase em células re- tiradas de pessoas com xeroderma. Ati- vada pela luz visível e encontrada em bactérias, vegetais e animais, mas não em mamíferos placentários como os se-

res humanos, essa enzima restaurou em menos de uma hora as lesões mais nu- merosas, chamadas de dímeros de piri- midina-ciclobutano (CPD), em geral corrigidas muito lentamente. O sistema natural de reparo em humanos - as pro- teínas XP - consegue consertar em qua- tro horas apenas parte dessas lesões ge- radas pelos raios ultravioleta.

Terapia gênica - "Demos às células a capacidade extra de reparar lesões. As que já tinham sistemas de reparo conse- guiram consertar melhor o DNA. Nas que apresentavam defeito a enzima fo- toliase [extraída] de canguru resolveu o problema das lesões CPD", atesta Menck. Em julho, ele e Vanessa Chigan- ças publicaram um artigo sobre o estu- do no Journal ofCell Science, em colabo- ração com a equipe de Alain Sarasin, do Instituto Gustave-Roussy, na França. Os resultados permitem entender me- lhor como funciona o sistema de reparo em células humanas e as conseqüências das lesões causadas pela luz ultraviole- ta. E, embora ainda faltem várias etapas - testes em animais e ensaios clínicos com humanos -, os dados desse traba- lho abrem perspectivas para a terapia gênica. "Se forem bem-sucedidos, será possível pensar em usar no futuro a fo- toliase como prevenção para qualquer câncer de pele", afirma Vanessa.

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Page 51: Soluções para problemas concretos

Para verificar se a fotoliase era capaz de pôr em ordem o DNA das células de portadores de xeroderma - os pesqui- sadores mostraram em 2000 ser possível reparar com essa proteína o material ge- nético de células humanas normais -, a equipe da USP usou um vírus inofen- sivo à saúde como uma espécie de car- teiro celular, que carregou o gene capaz de reparar o defeito e uma proteína ver- de fluorescente de água-viva, que permi- tiu mapear o caminho percorrido pelo gene da fotoliase. Depois expôs as célu- las à radiação ultravioleta. Algumas de- las também foram submetidas à luz vi- sível para ativar a enzima.

Vanessa dividiu as células em qua- tro grupos: o primeiro, no qual foi im- plantado o gene da fotoliase, foi manti- do na luz branca após a exposição aos raios ultravioleta; o segundo recebeu a fotoliase, mas permaneceu no escuro. No terceiro e no quarto, também ex- postos à radiação, o gene não foi im- plantado e um dos grupos permaneceu no escuro e outro, na luz. A taxa de mortalidade entre as células expostas à luz ultravioleta, que receberam ou não a enzima fotoliase e permaneceram no escuro, variou de 55% a 68%. A morte das células com o gene de reparo XPA defeituoso, nas quais a fotoliase foi im- plantada e que foram mantidas na pre- sença de luz, caiu pela metade: entre

25% e 29%. "Eliminei a lesão, que é um dos sinais de apoptose das células, e com isso preveni a indução da morte delas", explica Vanessa.

Dados preliminares de outro estu- do da equipe de Menck apontam uma forma de proteger ainda mais as célu- las da pele dos portadores de xeroder- ma pigmentosum. Está em teste um ade- novírus contendo um novo gene da fotoliase, dessa vez extraído da planta Arabidopsis thaliana, para corrigir um outro tipo de lesão chamada fotopro- dutos 6-4. Essa falha genética sempre foi considerada inofensiva por aparecer em menor quantidade e ser reparada rapidamente. Mas parece que o prejuí- zo que pode causar às células era subes- timado. "Embora surja numa propor- ção menor, essa lesão é tão importante

0 PROJETO

Genes de reparo de DNA: análise funcional e evolução

MODALIDADE Projeto Temático

COORDENADOR CARLOS MENCK- ICB/USP

INVESTIMENTO R$ 1.059.975,46 (FAPESP)

Poder extra: fotoliase ajuda a reparar

danos genéticos causados por excesso de sol

quanto a outra para induzir a morte ce- lular", afirma Keronninn de Lima, au- tora do estudo em andamento. Ela ex- pôs as células à radiação ultravioleta e inseriu o novo gene de reparo, específi- co para esse tipo de lesão. Resultado: também houve o aumento da sobrevi- vência das células.

A equipe da USP também vem ob- tendo sucesso com o uso do gene XPD, que integra o sistema natural de reparo em humanos. Por meio de um adeno- vírus, uma versão normal desse gene foi introduzida em células de pele reti- radas de pessoas com xeroderma e ou- tras duas doenças causadas por defeitos nas proteínas que consertam as altera- ções no DNA geradas pelos raios ultra- violeta - a síndrome de Cockayne e a tricotiodistrofia. "Enquanto nenhuma das células expostas à radiação, mas que receberam o gene de reparo, morreu, apenas 10% das células sem a proteína XPD sobreviveram", diz Melissa Arme- lini, cujo trabalho deve ser publicado em breve na Câncer Gene Therapy. É como se o jogo Pac-Man se invertesse e as pí- lulas arranjassem uma maneira de não serem engolidas pela bola amarela. •

PESQUISA FAPESP 106 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ 53

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CIÊNCIA

FÍSICA ESTATÍSTICA

A pequena pátria em chuteiras Apenas 3 graus de separação se interpõem entre todos os jogadores brasileiros, craques ou pernetas

MARCOS PIVETTA

perna-de-pau liga para o celular do craque.

— Alô, é o Romário? Aqui é o Cláudio Clara-de- Ovo

— Cláudio o quê? — Clara-de-Ovo, do Juventude. — Não te conheço. Vou desligar. O fu-

tevôlei vai começar. — Não, peraí. Sou amigo do Rafa-Três-

Em-Um, que jogou no Criciúma com o Fritz-Dogue-Alemão, que é amigo do Cai- çara, que foi seu parceiro no Fluminense.

— Ah, o Caiçara é meu peixe. O diálogo acima e os personagens,

com exceção de Romário, são fictícios. Mas um trabalho feito por pesquisado- res do Instituto de Física de São Carlos da Universidade de São Paulo (IFSC/USP) mostra que o mundo do futebol profis- sional no Brasil, onde há talentos e nuli- dades reais, é pequeno, um pouquinho menor do que, por exemplo, o universo dos atores de Hollywood. Na rede de rela- ções interpessoais que conectam a elite na- cional de boleiros, qualquer atleta, famo- so ou desconhecido, consegue estabelecer contato com outro colega de profissão com a ajuda de apenas outros três jogadores ou ex-jogadores. Estudos semelhantes realiza- dos na meca do cinema norte-americano sugerem que, em média, a distância social entre dois atores é de 3,7 graus de separa- ção, ligeiramente maior do que o nível de afastamento entre dois jogadores da elite do futebol nacional, calculado em 3,3 graus.

Segundo um trabalho clássico, feito em 1967 pelo psicólogo social Stanley Mil- gram, da Universidade Har- vard, meros 6 graus de sepa- ração - e não mais do que isso - interpõem-se entre todas as pessoas do mundo. Você e o papa, Bush e Bin Laden, Brad Pitt e sua irmã. Dá-se o nome de efeito mundo pequeno a essa pro- ximidade exagerada entre os 6,4 bi- lhões de habitantes do planeta. Um tipo de proximidade que deriva mais da rede de amigos e conhecidos das pessoas do que das barreiras geográ- ficas. "Achávamos que a distância en- tre os jogadores brasileiros seria menor que 6 graus, mas não imaginávamos que seria a metade", comenta o físico (e corin- tiano) Roberto Nicolau Onody, principal autor do estudo, publicado em setembro na revista Physical Review E.

Com a ajuda do também físico Paulo Alexandre de Castro, seu aluno de dou- torado e co-autor do artigo científico, Onody coletou e analisou dados de todos os atletas e clubes que, entre 1971 e 2002, participaram ao menos uma vez da série principal do campeonato brasileiro. Para conseguir essa montanha de informações brutas, os pesquisadores recorreram a um CD-ROM editado em 2003 pela revista Placar com a história de 32 edições do tor- neio. "Tentamos obter esse material na in- ternet, mas nem na página da Confedera-

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ção Brasileira de Futebol (CBF) acha- mos o que queríamos", conta Castro, torcedor do Santos. No período estu- dado, 13.411 jogadores e 127 equipes disputaram o campeonato. O artigo da dupla Onody-Castro enfoca a teia de relações sociais existentes entre os es- portistas e entre esses e suas (ex-)agre- miações. Eles trabalharam o assunto sob a ótica das redes complexas, um campo de estudo da física estatística que vem sendo utilizado para analisar a arquite- tura organizacional de sistemas tão dís- pares como as reações bioquímicas en- volvidas no metabolismo celular, os contatos sexuais entre pessoas e as co- nexões entre páginas da web.

Uma rede é um conjunto de vértices, também cha- mados de nós ou pontos, interligados. Uma lei cos- tuma reger a conexão en-

tre esses nós. Quando todos os vértices de um sistema apresentam sempre o mesmo número de conexões, como a estrutura de um cristal, há uma rede ho- mogênea ou cristalina. Se alguns vérti- ces de um sistema exibem muitas liga- ções enquanto a maioria dos nós tem poucas, existe um sistema complexo. Esse é o caso da rede de jogadores pro- fissionais do Brasil. No mundo do fute- bol, os físicos estudaram as inter- relações entre dois tipos de vértices, os jogado- res e os clubes da primeira divisão na- cional, com ênfase na primeira forma de nó. O que faz um atleta se ligar, se conectar, a outro esportista? Terem dis- putado a divisão de elite do campeona- to brasileiro pelo mesmo mesmo time numa mesma temporada. Não é neces- sário que tenham jogado lado a lado numa partida, mas devem ter feito par- te do elenco do mesmo time num de- terminado ano.

Essa foi a norma arbitrariamente usada pelos pesquisadores para encon- trar conexões entre os jogadores. Segun- do as regras propostas pelos pesquisa- dores, atletas que deixaram clubes da primeira divisão brasileira por qualquer motivo - transferiram-se para equipes das divisões inferiores, para times do ex- terior ou simplesmente penduraram as chuteiras - continuam fazendo parte da rede, mas não estabelecem novas cone- xões até que, eventualmente, retornem à elite do futebol nacional. Trabalhos si-

milares feitos na indústria cinemato- gráfica estabeleceram uma ligação en- tre dois atores quando ambos atuaram num mesmo filme. Portanto, boleiros que disputaram várias edições do tor- neio por uma equipe ou que trocaram constantemente de clube tendem a exi- bir muitas conexões. "Podem até não ter feito amizade com seus companheiros de equipe, mas certamente mantiveram uma relação social com eles enquanto jogaram lado a lado", pondera Onody.

A rede formada pela elite dos joga- dores brasileiros é complexa porque muitos (ex-)atletas têm poucas ligações enquanto poucos têm muitas. Em 2002, cada esportista inserido no sistema ti- nha estabelecido, em média, conexões com outros 47 jogadores. Em outras pa- lavras, tinha atuado ao lado dessa quan- tidade de boleiros. Como toda média, o número esconde os extremos. O mem- bro da rede com mais conexões é o ex- centroavante Dada Maravilha, um fol- clórico artilheiro que encerrou a longa carreira em meados da década de 1980. Dada entrou nos gramados com 305 colegas de profissão. "Foi um nômade do futebol", afirma Onody. Em mais de duas décadas de carreira, o atacante de- fendeu 11 clubes da primeira divisão, outro recorde pertencente ao rei Dada. No outro extremo, entre os menos in- terligados da rede, aparecem dez obs- curos jogadores, cuja trajetória foi cur- ta, pelo menos em equipes da primeira divisão. Um deles é o ex-goleiro Vílson,

que disputou uma partida pela equipe capixaba do Colatina em 1979 e se co- nectou com outros 14 jogadores.

Carreira mais longa - Um dado do es- tudo sugere que o tempo de duração da carreira dos jogadores de futebol au- mentou nas últimas três décadas. Isso porque em 1975 cada membro da rede tinha jogado - tinha conexões - com outros 39 colegas de profissão, quanti- dade 8% menor do que a verificada em 2002. "Ou a carreira dos jogadores está se tornando mais longa, ou eles estão trocando de times com mais freqüên- cia", comenta Castro. Como a maioria dos atletas que passaram pela primeira divisão do futebol nacional não chegou a atuar por duas equipes, a primeira hi- pótese parece mais razoável. Os físicos perceberam que, apesar de os esportis- tas exibirem mais conexões hoje do que no passado, a rede de jogadores de fute- bol torna-se cada vez mais elitista. Atle- tas muito populares, com um número elevado de conexões, tendem cada vez mais a se relacionar com jogadores de perfil semelhante, enquanto os que apre- sentam baixa conectividade transitam basicamente entre colegas igualmente pouco conhecidos. "Jogadores de clubes grandes tendem a se transferir para ou- tras equipes grandes e os de times pe- quenos mudam preferencialmente para agremiações modestas", resume Onody. Ou seja, a distância média entre todos os jogadores é pequena, de apenas 3 graus

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ou passos, mas tal proximidade não é suficiente para acabar com a existência de castas, de grupos bem definidos no mundo da bola.

Além de esmiuçar matematicamen- te as relações sociais entre os jogadores de futebol, os físicos produziram reve-

lações surpreendentes em outros cam- pos do mundo da bola. Descobriram, por exemplo, que um boleiro profissio- nal se torna razoavelmente conhecido — e, assim, garante sua empregabilidade nas melhores equipes do país - depois de ter participado de um certo número de jogos. Quantas partidas são necessá- rias para garantir o futuro de um atleta nos gramados do Brasil? Quarenta jo- gos, por qualquer clube, grande ou pe- queno. "Se esse número crítico é ultra-

passado, fica mais fácil para o atleta con- tinuar jogando na divisão de elite", co- menta Onody. O boleiro adquire uma certa estabilidade na ocupação, o que lhe garantirá ofertas de emprego.

Poucos fazem gols - Não faltam esta- tísticas curiosas no estudo dos físicos. No período analisado, o ex-atacante Tar- ciso, que atuou no Grêmio nas décadas de 1970 e 1980 e chegou à seleção bra- sileira, foi o atleta que mais entrou em campo: esteve em 336 partidas de 18 campeonatos, envergando a camisa do tricolor gaúcho em 13 edições. A lista dos atletas que disputaram apenas uma partida na primeira divisão é enorme, composta de 2.160 anônimos boleiros, pouco mais de 16% dos que atuaram no campeonato entre 1971 e 2002.

Gols é outro tema que rende núme- ros interessantes. Usando esse quesito como parâmetro de comparação, dois grupos de jogadores despontam na re- de montada por Onody-Castro: os que marcaram menos de dez tentos, a imen- sa maioria, e os que fizeram mais. No mínimo, dois terços dos atletas de fu- tebol jogam na defesa ou no meio de campo. Têm, portanto, menos probabi- lidade de estufar a rede dos adversários. Ainda assim, é surpreendente a escassez de artilheiros. No campeonato brasileiro, marcar gols é um privilégio para pou-

cos. Quase 65% dos jogadores - 8.709 para ser mais preciso - nun- ca fizeram um gol e cerca de 30% - 4.089 - assinalaram apenas entre um e dez tentos em sua carreira. O restante, 618 esportistas, podem se considerar íntimos da pelota: balançaram a rede 11 ou mais ve- zes. "A chance de um jogador qual- quer, escolhido ao acaso na rede, ter feito 13 gols é dez vezes maior do que a de ter marcado 36", diz Castro. Contabilizando os dados das 32 edições analisadas do cam- peonato, o ex-atacante Roberto Dinamite é o maior goleador da competição. Marcou 186 gols em 20 campeonatos disputados pelo Vasco da Gama, do Rio de Janei- ro, e um pela Portuguesa, de São Paulo. Quer dizer, segundo o es- tudo da USP, os jogadores não estão distantes uns dos outros, mas o gol está bem longe da maio- ria deles. •

PESQUISA FAPESP 106 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ 57

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USP 7G A conquista

do Leste Na última reportagem da série sobre os 70 anos da Universidade de São Paulo, Pesquisa FAP ESP mostra o inovador projeto pedagógico que, a partir de 2005, terá espaço num novo campus da capital paulista

FABRíCIO MARQUES

Universidade de São Paulo (USP) sempre se preocupou em renovar os compromissos de excelência acadê- mica e de expansão do ensino pú- blico estabelecidos em sua funda- ção, era 1934. No início buscou agrupar no campus na Zona Oeste de São Paulo, na antiga fazenda Butantan, todos os seus institutos e faculdades,

numa estratégia para assegurar a qualidade homogênea - só as tradicionais faculdades de Medicina e de Direito, que já existiam antes da fundação da USP, resistiram em seus endereços originais. Já consolidada, decidiu deitar raízes também em outras regiões do estado. Hoje possui campinos municípios de Bauru, Piracicaba, Pirassunun- ga, Ribeirão Preto e São Carlos. Pois agora, aos 70 anos de idade, a universidade dá mais um salto ambicioso. Em março de 2005 começam as aulas da USP Leste, um novo campus que está sendo erguido às margens do rio Tietê e da rodovia Ayrton Senna, que liga São Paulo a Ja- careí. Com cursos diferentes dos oferecidos na Cidade

Universitária e um projeto acadêmico inovador, em que as fronteiras entre as carreiras são mais flexíveis, a insti- tuição também é um marco na Zona Leste de São Paulo, região habitada por 4,5 milhões de pessoas, escassamen- te assistida pelo ensino superior público. No vestibular de 2005, a Escola de Artes, Ciências e Humanidades - nome ainda provisório da nova instituição - vai oferecer 1.020 vagas nos cursos de Sistemas de Informação, Ciên- cias da Natureza (Licenciatura), Obstetrícia, Gerontolo- gia, Ciências da Atividade Física, Marketing, Lazer e Tu- rismo, Gestão de Políticas Públicas, Gestão Ambiental e Tecnologia Têxtil. Os alunos serão divididos em turmas de 60 pessoas, distribuídas pelos períodos matutino, ves- pertino e noturno. No canteiro de obras, operários es- tão concluindo o primeiro prédio, que abrigará os alu- nos do ciclo básico, primeiro ano comum a todas as carreiras. "Trata-se da obra de maior repercussão duran- te as comemorações dos 70 anos da USP", disse o reitor da USP, Adolpho José Melfi.

O projeto demorou 30 meses para amadurecer e en- volveu o trabalho de mais de uma centena de docentes, sob a coordenação-geral de Celso de Barros Gomes, che-

60 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 106

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A concepção artística mostra como o campusda USP Leste estará em 2006, quando todos os prédios estiverem construídos

fe de gabinete da Reitoria, e de Myriam Krasilchick, professora da Faculdade de Educação e presidente da Comissão Central da USP Leste no tocante ao projeto acadêmico. O processo de escolha dos novos cursos en- volveu consultas a estudantes de escolas públicas e pri- vadas de São Paulo. Quase seis mil alunos foram convi- dados a opinar. A consulta mostrou a preferência por profissões tradicionais, como medicina e engenharia, mas outras carreiras puderam ser identificadas, como informática, marketing e esportes. A definição, contu- do, foi moldada por uma limitação jurídica. O Estatuto da USP proíbe que haja duplicidade de cursos numa mesma cidade. Ou seja, nenhuma carreira na Zona Oeste poderia ser oferecida na Zona Leste. Depois de muita discussão, em que todas as unidades da USP fo- ram ouvidas para evitar que os cursos da Zona Leste abortassem projetos em andamento na universidade, chegou-se ao conjunto de dez carreiras. Algumas che-

gam a tangenciar outras já oferecidas, mas os currículos não se chocam.

O desenvolvimento do projeto acadêmico é um dos capítulos mais vibrantes na trajetória da futura institui- ção. Embora as carreiras pertençam a áreas distintas do conhecimento, todas comungarão de um mesmo ciclo básico, o primeiro ano comum a todos os alunos ingres- santes na Escola de Artes, Ciências e Humanidades. O di- álogo entre os cursos, estimulado pela ausência de uma rígida estrutura de departamentos, também terá espaço na formação de núcleos de pesquisa interdisciplinares, como o Laboratório de Estudos e Pesquisas sobre Com- plexidade e Cidadania, o Observatório de Políticas Pú- blicas e o Observatório de Pesquisas Integradas sobre Meio Ambiente Urbano, para citar alguns exemplos.

O currículo do ciclo básico gira em torno de três ei- xos. Parte dele compreende matérias introdutórias, mas com propostas interdisciplinares, como "Sociedades com- plexas, multiculturalismo e direitos" ou "Psicologia, edu- cação e temas contemporâneos". "Essa diversidade de- verá ser encarada como oportunidade exemplar para a construção de novas fronteiras na organização do co-

PESQUISA FAPESP 106 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ 61

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USP 70 nhecimento", diz a professora Myriam. Outro quinhão da carga horária é específico de cada carreira. Isso para evitar a frustração dos ca- louros com o excesso de disciplinas genéricas e introdutórias no primeiro ano, que é um dos fatores responsáveis pela evasão escolar.

E um terceiro pedaço da carga horária se- gue uma experiência inovadora. É composto por disciplinas em que o desafio do estudan- te é dar solução a problemas concretos. "Pro- mover a iniciação acadêmica e científica por meio da resolução de problemas é uma das abordagens inovadoras surgidas nos últimos anos, que vem ganhando espaço em algumas das principais universidades européias e norte-americanas", diz a professora Myriam. "A intenção é criar um ambiente para dar au- tonomia intelectual aos alunos que acabam de sair da escola média", ela afirma.

Processos acadêmicos de reso- lução de problemas envolvem os alunos de várias manei- ras. Primeiro eles discutem o problema, que não tem res- posta simples. Depois utili- zam seus conhecimentos e

experiências na tentativa de achar uma saída. Levantam hipóteses, investigam-nas e, por fim, preparam um trabalho coletivo com possíveis soluções. "A proposta estimula o protagonismo dos estudantes na compreen- são da complexidade dos fenômenos e pro- move a troca e a cooperação entre docentes, estudantes e comunidade", diz Valéria Amorim Arantes, professora da Faculdade de Educação e coordenadora do ciclo básico, que se inspirou em modelos como o da Universidade de Aalborg, na Dinamarca, onde esteve re- centemente. Outra característica do projeto acadêmico é a utilização de recursos multimídia e da informática. Os cursos e atividades terão como suporte um site que reu- nirá seus conteúdos, a exemplo de uma experiência de sucesso realizada pela Escola Politécnica da USP.

Toda essa proposta foi submetida a um importante crivo, o das inscrições para o vestibular. Quase 6 mil can- didatos, na imensa maioria moradores da própria Zona Leste, inscreveram-se no primeiro vestibular e vão con- correr às 1.020 vagas oferecidas nas dez carreiras. O cur- so mais concorrido é o de Sistemas de Informação (9,47 candidatos por vaga), seguido pelos de Marketing, Lazer e Turismo, Obstetrícia e Tecnologia Têxtil. É certo que, entre os dez cursos menos concorridos no vestibular da Fuvest, cinco pertencem à USP Zona Leste: Ciências da Natureza (uma licenciatura para formação de professo-

No canteiro de obras, operários concluem as instalações que, em março de 2005, receberão a primeira turma de 1.020 alunos

res), Ciências da Atividade Física, Gerontologia, Gestão de Políticas Públicas e Gestão Ambiental - com concor- rência entre 2,17 e 4,44 candidatos por vaga. O saldo, contudo, é considerado positivo. Projetava-se um con- tingente de candidatos menor, na casa dos 4 mil a 5 mil inscritos. Como os cursos são novos e desconhecidos, é natural que não atraiam multidões. No final da década de 1930, logo depois de a USP ser fundada, as salas de aula da recém-criada Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) ficavam literalmente às moscas, pois os candidatos ao vestibular continuavam concorrendo às tradicionais Faculdade de Medicina, Escola Politécnica e Faculdade de Direito, incorporadas à estrutura da nova universidade.

O interesse de docentes por trabalhar na nova insti- tuição é animador. Os editais dos processos seletivos

62 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 106

Page 59: Soluções para problemas concretos

que preencherão as 69 vagas necessárias para o primei- ro ano estão em andamento. Isso envolveu a formação de 31 bancas examinadoras. Mas, antes que esse proces- so fosse aberto, fez-se uma consulta a professores da USP sobre o interesse de se transferirem para a Zona Leste. Dezoito foram pré-selecionados e, ao final do processo, dez professores tiveram seus pedidos de trans- ferência aceitos. "A idéia inicial era de evitar que esse aproveitamento superasse 20% das vagas", diz o coorde- nador-geral Celso de Barros Gomes. "É uma instituição nova e é importante que tenhamos também material humano novo para erguê-la." Da mesma forma, os atuais funcionários tiveram a chance de se candidatar aos 86 empregos que serão criados na Zona Leste, no primeiro ano de funcionamento. Despontaram 208 interessados. O trabalho da Comissão Central é avaliar quais se en- caixam nos cargos para, depois, abrir concursos para preencher os que sobrarem.

O plano de implantar a USP Leste começou a ser gestado em 2002. A princípio, duas áreas foram cogi-

tadas para abrigar o campusr. o Parque do Carmo, no bairro de Itaquera, e uma área na zona do Parque Ecológico do Tietê. O Parque do Carmo foi logo descartado por razões ambientais. A segunda área também tinha empecilhos ecológicos, mas eles puderam ser contornados. O plano inicial era erguer a unidade numa gleba de mata fechada, de 1 milhão de metros quadrados, paralela ao lei- to do rio. O conjunto arquitetônico, ideali- zado pelo professor Sylvio Sawaia, era ambi- cioso. Previa a construção de quatro prédios interligados e dispostos como lados de um quadrado. O miolo do quadrilátero formaria uma enorme praça. Outros prédios seriam erguidos acompanhando o leito do Tietê e, numa gleba próxima, de 250 mil metros qua- drados, haveria um centro esportivo. O plano desmoronou quando os órgãos ambientais vetaram o uso da área de mata fechada. Para salvar o projeto, inverteu-se a estratégia. A gleba à beira do Tietê vai ser aproveitada co- mo um laboratório ambiental a céu aberto. E o conjunto de prédios foi transferido para a segunda gleba, aquela que abrigaria o centro esportivo, onde não há entraves ecológicos. Trata-se de um aterro.

O projeto arquitetônico foi simplificado. Para não perder tempo, optou-se por come- çar as obras erguendo uma construção idên- tica a um dos prédios do campus da USP de São Carlos. É ali que, em março de 2005, co- meçará a funcionar o ciclo básico. No pri- meiro ano estarão prontos esse prédio, com 5.200 metros quadrados, uma guarita, um posto de segurança, o centro de apoio técni- co, de 600 metros quadrados, dotado de sa- las para docentes e funcionários, além de uma construção destinada ao serviço de re-

feições. As obras continuarão em 2005, com a constru- ção de outro prédio com 17 mil metros quadrados, de uma biblioteca com 7,2 mil metros quadrados e de ins- talações destinadas a serviços. Em 2006 um terceiro prédio será entregue, com 17 mil metros quadrados.

O acesso será feito pela rodovia Ayrton Senna, ou pela avenida Assis Ribeiro, no bairro de Ermelino Matarazzo, que delimita o novo campus. Outro meio de acesso é uma linha da Companhia Paulista de Trens Metropolita- nos (CPTM), que tem duas estações nas proximidades. No futuro será construída uma nova estação de trem des- tinada à USP Leste. A integração da nova instituição com a comunidade também está prevista. De um lado, conti- nuará funcionando numa casa do bairro o Núcleo de Apoio Social, Cultural e Educacional (Nasce), um centro de extensão universitária com atividades voltadas para a população, que já vem oferecendo cursos desde abril de 2004. Também funcionarão nas imediações do campus uma escola estadual de ensino fundamental e médio e outra municipal, de educação infantil. •

PESQUISA FAPESP 106 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ 63

Page 60: Soluções para problemas concretos

Implementações na metodologia SciELO permitem que as revistas da coleção publiquem seus artigos em mais de um idioma. Dentre as vantagens decorrentes da utilização desse recurso, destacam-se a diminuição dos custos de publicação, o aumento do alcance dos artigos da coleção no cenário internacional e, conseqüentemente, do impacto dos resultados das pesquisas brasileiras.

Biblioteca de Revistas Científicas disponível na internet www.scielo.org

Notícias

■ Agrotóxicos

Exposição de risco

O estudo "Tra- balho rural e into- xicações por agro- tóxicos", de Neice Faria, Luiz Facchi- ni, Anaclaudia Fas- sa e Elaine Tomasi, da Faculdade de Medicina da Universidade Fe- deral de Pelotas (UFPel), teve o objetivo de cons- truir um perfil da exposição aos agrotóxicos por parte dos trabalhadores rurais e analisar a incidência de intoxicações por estes produtos. "Apesar de o uso de agrotóxicos na agricultura brasileira ser intenso, são escassos os estudos de base populacional sobre as características de sua utilização ou sobre as intoxicações", justifi- cam os autores à realização da pesquisa. Foram avaliadas as características da propriedade e da exposição aos pesticidas. Entre 1.379 agriculto- res, a incidência anual de intoxicações por agro- tóxicos foi de 2,2 episódios por cem trabalha- dores expostos. "O levantamento evidenciou que entre as várias formas de exposição, aplicar agrotóxicos, entrar na cultura após aplicação e trabalhar com agrotóxicos em mais de uma propriedade se mostraram associadas a um au- mento no risco de intoxicação", diz o artigo. No Brasil, entre 1997 e 2000, houve um aumento médio de 18% nas vendas de agrotóxicos, com destaque para os herbicidas, cujas vendas cres- ceram 31%", dizem os pesquisadores. Segundo dados do Sistema Nacional de Informações Tó- xico-Farmacológicas (Sinitox), no ano 2000, por exemplo, os pesticidas de uso agrícola fo- ram responsáveis por 37% dos óbitos por into- xicação no país. "Além disso, ao se agruparem esses casos com aqueles causados por pestici- das de uso doméstico, produtos veterinários e raticidas, os pesticidas se tornam responsáveis por 57% dos óbitos por intoxicação", estimam os autores do artigo.

CADERNOS DE SAúDE PUBLICA - VOL. 20 - Rio DE JANEIRO - SET./OUT. 2004

N°5-

www.scielo.br/scielo.php?script=sci_art- text&pid=S0102-311 X2004000500024&lng=pt&nrm= iso&tlng=pt

■ Direito

Debate sobre impunidade

A partir de documentos legais e do relato de historiadores, cronistas e viajantes, o artigo "Im- punidade no Brasil: Colônia e Império", do ad- vogado e articulista Luís Francisco Carvalho Filho, mostra de que forma a impunidade está no centro do debate político. O autor teve como referência, entre outros enfoques, a aplicação de penas para delitos comuns, em contraposi- ção a delitos políticos, militares e religiosos. "Do ponto de vista estritamente jurídico, im- punidade é a não aplicação de determinada pe- na criminal a determinado caso concreto", ex- plica Carvalho Filho. "Fala-se em impunidade não apenas quando se verificam a incapacidade ou a falta de disposição de o Estado fazer pre- valecer a punição estabelecida, mas também quando a própria lei e o magistrado que a apli- ca são considerados benevolentes para com de- terminado ato criminoso", diz. O estudo mos- tra que a lei prevê uma punição para cada delito, e quando o infrator não é alcançado por ela o crime permanece impune. "Trata-se, ape- nas, de um olhar retrospectivo para a história do Brasil, que mostra que a impunidade sem- pre esteve na ordem do dia."

ESTUDOS AVANçADOS - VOL. 18 PAULO - 2004

N° 51 - SãO

www.scielo.br/scielo. php?script=sci_arttext&pid= S0103-40142004000200011 &lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

* Psicologia

Universo infantil

O artigo "O uso de entrevistas em estudos com crianças", de pesquisadoras do Instituto de Psico- logia da Universidade de São Paulo (USP), Cen- tro Universitário Fieo (Unifieo) e Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), relata algumas contribuições potenciais da entrevista como ins- trumento de coleta de dados com crianças, bem como algumas de suas limitações e riscos. O es- tudo foi baseado em observação direta, entre- vistas individuais e em grupo. "A entrevista com crianças é uma técnica ainda relativamente pou-

64 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 106

Page 61: Soluções para problemas concretos

co explorada na literatura, inclusive porque, usual- mente, se pensa a criança como incapaz de falar sobre suas próprias preferências, concepções ou avaliações", descreve o artigo. Com um conhecimento sobre a crian- ça cada vez mais acurado, tem sido explorado crescen- temente o uso de entrevista com crianças. "A entrevista ou o questionário é uma forma de obtenção de dados sobre fenômenos pouco suscetíveis de serem observa- dos diretamente, seja pela baixa freqüência de sua ocor- rência, seja por serem afetados pela presença do ob- servador", diz o artigo. O texto mostra uma série de situações e exemplos dos quais alguns ressaltam aspec- tos problemáticos e outros ilustram casos de emprego bem-sucedido dessa técnica. "A entrevista não é um ins- trumento melhor ou pior do que a observação direta", conclui o estudo. Em alguns dos casos comentados no artigo, a entrevista é o principal instrumento de cole- ta, na medida em que se desejava apreender as concep- ções da criança sobre determinado fenômeno ou situa- ção. Em outros, a entrevista complementa a análise da observação direta do comportamento.

PSICOLOGIA EM ESTUDO - VOL. 9 - N° 2 MAIO/AGO. 2004

MARINGá ■

www.scielo.br/scielo.php?script=scLarttext&pid=S1413- 73722004000200015&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

■ Temas de pesquisa

Foco no envelhecimento

As tendências da pesquisa sobre envelhecimento hu- mano no Brasil são discutidas no artigo "A pesquisa so- bre envelhecimento humano no Brasil: pesquisadores, temas e tendências", escrito por Shirley Prado e Jane Sayd, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). O estudo se desenvolve a partir de indicado- res que compõem o Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil (2002), do Conselho Nacional de Desenvol- vimento Científico e Tecnológico (CNPq). O critério para a identificação dos grupos estudados foi o desen- volvimento de, pelo menos, uma linha de pesquisa re- ferente ao envelhecimento humano. Ao todo, foram analisados 144 grupos, 511 pesquisadores e 209 linhas de pesquisa descritas como ativas na geração de co- nhecimento relativo ao envelhecimento humano no Brasil. O artigo revela que, no interior desses grupos, foram identificados dois subconjuntos: 43 grupos es- pecíficos, ou seja, aqueles que se voltam exclusivamen- te para o estudo dos idosos, da velhice e do processo de envelhecimento, e 101 grupos não específicos, ou seja, que têm a temática como uma questão abordada em uma área maior de interesse. "A pesquisa relativa à ve- lhice, ao velho e ao processo de envelhecimento se volta de forma enfática para o estudo das doenças crô- nicas e degenerativas e das síndromes geriátricas. A educação, a promoção da saúde e a prevenção de doen- ças, ao lado do envelhecimento biológico, se situam também como temas privilegiados", concluem os pes- quisadores. Segundo o artigo, há no Brasil alguns gru-

pos altamente qualificados, com geração de conheci- mento reconhecida nacional e internacionalmente, de- senvolvendo suas pesquisas em associação com reno- mados programas de pós-graduação.

CIêNCIA & SAúDE COLETIVA - VOL. 9 - N° 3 - Rio DE JA-

NEIRO - JUL./SET. 2004

www.scielo.br/scielo.php?script=sci„arttext&pid=S1413- 81232004000300027&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

■ Nutrição

Cuidados com o coração

Revisar os principais mar- cadores de risco para doen- ças cardiovasculares em adultos relacionados à nu- trição, como os antropomé- tricos, dietéticos e bioquí- micos, é a idéia contida no artigo "Nutrição e doenças cardiovasculares: os marca- dores de risco em adultos", de Luiza Castro, Sylvia do Carmo Franceschini, Sílvia Priore e Maria do Carmo Pelúzio, pesquisadoras do Departamento de Nutrição e Saúde da Universidade Fe- deral de Viçosa, em Minas Gerais. "A avaliação do es- tado nutricional é de grande utilidade para o estabele- cimento de estratégias visando à prevenção de doenças cardiovasculares", dizem as pesquisadoras. "Os mar- cadores de risco relacionados à nutrição podem ser modificados com a adoção de estilo de vida saudável e controle do peso corporal." O estudo enfatiza o impac- to dessas morbidades na sociedade, bem como a neces- sidade de serem estabelecidas medidas de prevenção primária. "As doenças cardiovasculares contribuem significativamente como grupo causai de mortalidade em todas as regiões brasileiras, principalmente na Re- gião Sudeste." De acordo com o Ministério da Saúde, o Sudeste possui o maior coeficiente de mortalidade por doenças do aparelho circulatório (207 mortes por 100 mil habitantes), enquanto a média brasileira é de 169 mortes/100 mil habitantes. Segundo o estudo, o ônus econômico das doenças cardiovasculares tem crescido nas últimas décadas. Em 2000, esse tipo de doença foi responsável pela principal alocação de recursos públi- cos em hospitalizações no Brasil. Entre 1991 e 2000, os custos hospitalares atribuídos às doenças cardiovascu- lares aumentaram 176%. Entre os fatores de risco de maior probabilidade detectados no estudo para o de- senvolvimento das doenças cardiovasculares, desta- cam-se o fumo, a hipertensão arterial, a obesidade, a inatividade física e o diabetes mellitus.

REVISTA DE NUTRIçãO - VOL. 17 JUL./SET. 2004

N° 3 - CAMPINAS -

www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415- 52732004000300010&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

PESQUISA FAPESP 106 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ 65

Page 62: Soluções para problemas concretos

■ TECNOLOGIA

LINHA DE PRODUçãO MUNDO

Sistema detecta fitas adulteradas O Instituto Nacional de Pa- drões e Tecnologia dos Es- tados Unidos (Nist, da sigla em inglês) desenvolveu um sistema de reprodução de imagens que permite desco- brir sinais de adulteração nas fitas de áudio. O sistema, que possibilita uma análise mais rápida e precisa, foi transfe- rido ao Federal Bureau of Investigation (FBI) e poderá ser usado em investigações criminais de rotina. O FBI recebe por ano centenas de fitas para análise com evi- dências de terrorismo, ho- micídios e fraudes, prove- nientes de aparelhos como secretárias eletrônicas, gra- vadores cassete e digitais. De- terminar a autenticidade da fita, comparar vozes e iden-

Investigações digitais revelam adulterações em gravações

tificar duplicação são algu- mas tarefas realizadas pelos investigadores. O coração da tecnologia criada pelo Nist é um toca-fitas modifi- cado com um arranjo de 64 sensores magnéticos que de- tectam e mapeiam o micros- cópico campo magnético das fitas quando estão em funcionamento. O arranjo é conectado a um computa- dor programado para con- verter os dados magnéticos em imagens. As fitas sem adulterações produzem ima- gens ininterruptas, com pa- drão previsível, enquanto os trechos apagados e adul- terados produzem borrões na imagem, associadas a es- talos e batidas no sinal de áudio. •

■ Submarino com célula a combustível

Um submarino que se move mais rápido e vai mais longe que os atuais movidos com os tradicionais motores diesel e elétricos foi projetado na In- glaterra em uma parceria en- tre as empresas British Mari- time Technology (BMT) e Rolls-Royce. A novidade é que a embarcação desprovida de qualquer combustível nuclear é movida por um sistema de turbinas a gás, células a com- bustível e baterias acumulado- ras de energia. O submarino, que viaja com velocidade má- xima de 30 nós (55 quilôme- tros por hora) e pode atingir até 11 mil quilômetros sem reabastecimento, utiliza o sis-

tema de propulsão conforme a posição de navegação. Quan- do ele está semi-submergido, a geração da energia vem das turbinas a gás instaladas na torre que fica para fora da água. As células a combustível geram energia elétrica tam- bém no modo semi-submer-

so ou quando o submarino está submerso. O hidrogênio que faz a célula funcionar é extraído do querosene por um sistema de reforma. Esse combustível fica estocado em compartimentos colocados na cobertura externa da embar- cação. O oxigênio, igualmen-

Turbinas a gás e hidrogênio impulsionam submarino britânico

te essencial para a célula, po- de ser extraído da superfície por um mastro ou obtido do oxigênio líquido estocado a bordo. Para a velocidade má- xima, também podem entrar em ação as baterias elétricas carregadas, quando necessá- rio, pelas turbinas a gás e pe- las células (London Press). •

■ Bactéria libera cobre do enxofre

Pesquisadores chilenos des- creveram, pela primeira vez, o mecanismo molecular de uma bactéria utilizada para extrair cobre e outros metais de minerais de baixa concen- tração, por um processo chamado de biomineração. "Conhecer o mecanismo da

66 • DEZEMBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 106

Page 63: Soluções para problemas concretos

bactéria é crucial para países mineradores como o Chile, onde reservas de cobre de alta concentração não estão mais disponíveis", disse o pesqui- sador David Holmes, da Uni- versidade Andrés Bello, do Chile, ao SciDev.Net. Em mi- nérios de baixa concentração, o cobre está ligado a uma ma- triz que contém enxofre. A bactéria Acidithiobacillus fer- rooxidans pode quebrar a li- gação entre cobre e enxofre para obter energia, o que re- sulta na liberação do metal. O entendimento da bioquí- mica do micróbio poderá ajudar a melhorar o método de biomineração. Investiga- ções experimentais do meta- bolismo da bactéria usando técnicas genéticas convencio- nais encontraram muitas di- ficuldades, apesar do esforço feito por muitos laboratórios no mundo. Para superar essa limitação, Holmes e seus co- legas usaram a bioinformáti- ca - a análise da informação biológica empregando com- putadores e técnicas estatísti- cas. Os pesquisadores analisa- ram duas seqüências públicas disponíveis do DNA da bacté- ria. Usando essa informação, eles identificaram o processo molecular que possibilita ao micróbio adquirir energia de minérios e confirmaram sua descoberta em um experi- mento em laboratório. •

■ Sensor revela doença respiratória

Um minúsculo aparelho para monitorar a respiração de ví- timas em situações de emer- gência e em pacientes em ci- rurgias foi desenvolvido por pesquisadores da empresa Nanomix, de Emeryville, na Califórnia, financiados pela Fundação Nacional de Ciên- cia (NSF, na sigla em inglês), o principal órgão de fomento à pesquisa nos Estados Uni- dos. Eles criaram um novo ti- po de transistor de nanotu- bos de carbono, fundidos com polímeros e silicone, dentro de um sensor utilizado para monitorar a concentração de dióxido de carbono no san- gue. Essa medida é impor- tante para evitar que o san- gue fique ácido, o que pode levar a conseqüências dano- sas para o funcionamento do organismo. O estudo mostra que os transistores de nano- tubos de carbono podem determinar concentrações de dióxido de carbono tanto no ambiente quanto no ar em que é exalado. Alexander Star, gerente de Desenvolvimento da Nanomix e seus colegas da empresa e da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, descreveram o novo sensor em um artigo publicado na revista Advanced Materials de 15 de novembro. •

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Nanotutaos de carbono, fundidos com polímero e

l silicone, vistos no i microscópio de

força atômica

BRASIL

Mil utilidades da tinta invisível

Marcas feitas com tinta invisível sob luz ultravioleta

Visível apenas com luz ultra- violeta, uma tinta sem cheiro pode ser utilizada como item de segurança para marcar li- vros raros, cartões de crédito, CDs e cédulas de dinheiro. A tinta invisível foi descoberta por acaso na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), quando pesquisado- res trabalhavam na síntese da wedelolactona, substância com propriedade antiofídica retirada da erva-botão {Eclip- ta erecta). Tentando chegar à estrutura química final, eles passaram por uma substância intermediária (3-aril cumari- na). Foi quando faltou ener- gia e um aluno de graduação que participava da pesquisa acendeu uma lâmpada ultra- violeta. "Ao dirigir a luz para a substância química, apa- receu um brilho azul forte", conta o professor Cláudio Lopes, do Laboratório de Análise e Síntese de Produtos Estratégicos (Lasape), do Ins- tituto de Química da UFRJ, e coordenador do projeto. Para

produzir a tinta invisível, foi colocada uma mistura de sol- ventes para formar uma so- lução incolor e transparente com a 3-aril cumarina. Cane- tas marca-texto já receberam a nova carga, que também po- de ser usada em carimbos. No momento, os pesquisadores estão à procura de uma em- presa que queira produzir a tinta. Entre os usos já testa- dos está a marcação do gado, que pode substituir o ferro em brasa e os ácidos, já que a tin- ta não é tóxica e resiste à água. Um bom lugar para a marca- ção de animais é a parte in- terna da orelha, que não está exposta diretamente à luz solar. O produto poderá ser usado ainda para imprimir documentos sigilosos em computadores ligados a im- pressoras com jato de tinta invisível. "Ao ser colocado em um scanner com leitor com luz ultravioleta, imediatamen- te será feita a tradução simul- tânea para o computador", diz o pesquisador. •

PESQUISA FAPESP 106 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ 67

Page 64: Soluções para problemas concretos

bactéria é crucial para países mineradores como o Chile, onde reservas de cobre de alta concentração não estão mais disponíveis", disse o pesqui- sador David Holmes, da Uni- versidade Andrés Bello, do Chile, ao SciDev.Net. Em mi- nérios de baixa concentração, o cobre está ligado a uma ma- triz que contém enxofre. A bactéria Acidithiobacillus fer- rooxidans pode quebrar a li- gação entre cobre e enxofre para obter energia, o que re- sulta na liberação do metal. O entendimento da bioquí- mica do micróbio poderá ajudar a melhorar o método de biomineração. Investiga- ções experimentais do meta- bolismo da bactéria usando técnicas genéticas convencio- nais encontraram muitas di- ficuldades, apesar do esforço feito por muitos laboratórios no mundo. Para superar essa limitação, Holmes e seus co- legas usaram a bioinformáti- ca - a análise da informação biológica empregando com- putadores e técnicas estatísti- cas. Os pesquisadores analisa- ram duas seqüências públicas disponíveis do DNA da bacté- ria. Usando essa informação, eles identificaram o processo molecular que possibilita ao micróbio adquirir energia de minérios e confirmaram sua descoberta em um experi- mento em laboratório. •

■ Sensor revela doença respiratória

Um minúsculo aparelho para monitorar a respiração de ví- timas em situações de emer- gência e em pacientes em ci- rurgias foi desenvolvido por pesquisadores da empresa Nanomix, de Emeryville, na Califórnia, financiados pela Fundação Nacional de Ciên- cia (NSF, na sigla em inglês), o principal órgão de fomento à pesquisa nos Estados Uni- dos. Eles criaram um novo ti- po de transistor de nanotu- bos de carbono, fundidos com polímeros e silicone, dentro de um sensor utilizado para monitorar a concentração de dióxido de carbono no san- gue. Essa medida é impor- tante para evitar que o san- gue fique ácido, o que pode levar a conseqüências dano- sas para o funcionamento do organismo. O estudo mostra que os transistores de nano- tubos de carbono podem determinar concentrações de dióxido de carbono tanto no ambiente quanto no ar em que é exalado. Alexander Star, gerente de Desenvolvimento da Nanomix e seus colegas da empresa e da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, descreveram o novo sensor em um artigo publicado na revista Advanced Materials de 15 de novembro. •

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força atômica

BRASIL

Mil utilidades da tinta invisível

Marcas feitas com tinta invisível sob luz ultravioleta

Visível apenas com luz ultra- violeta, uma tinta sem cheiro pode ser utilizada como item de segurança para marcar li- vros raros, cartões de crédito, CDs e cédulas de dinheiro. A tinta invisível foi descoberta por acaso na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), quando pesquisado- res trabalhavam na síntese da wedelolactona, substância com propriedade antiofídica retirada da erva-botão {Eclip- ta erecta). Tentando chegar à estrutura química final, eles passaram por uma substância intermediária (3-aril cumari- na). Foi quando faltou ener- gia e um aluno de graduação que participava da pesquisa acendeu uma lâmpada ultra- violeta. "Ao dirigir a luz para a substância química, apa- receu um brilho azul forte", conta o professor Cláudio Lopes, do Laboratório de Análise e Síntese de Produtos Estratégicos (Lasape), do Ins- tituto de Química da UFRJ, e coordenador do projeto. Para

produzir a tinta invisível, foi colocada uma mistura de sol- ventes para formar uma so- lução incolor e transparente com a 3-aril cumarina. Cane- tas marca-texto já receberam a nova carga, que também po- de ser usada em carimbos. No momento, os pesquisadores estão à procura de uma em- presa que queira produzir a tinta. Entre os usos já testa- dos está a marcação do gado, que pode substituir o ferro em brasa e os ácidos, já que a tin- ta não é tóxica e resiste à água. Um bom lugar para a marca- ção de animais é a parte in- terna da orelha, que não está exposta diretamente à luz solar. O produto poderá ser usado ainda para imprimir documentos sigilosos em computadores ligados a im- pressoras com jato de tinta invisível. "Ao ser colocado em um scanner com leitor com luz ultravioleta, imediatamen- te será feita a tradução simul- tânea para o computador", diz o pesquisador. •

PESQUISA FAPESP 106 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ 67

Page 65: Soluções para problemas concretos

LINHA DE PRODUçãO BRASIL

írculos da natureza e da integração Jm processo de desenvol-

vimento sustentável para pequenas comunidades agrícolas deverá ser imple- mentado pelo Programa Nacional de Estímulo ao Primeiro Emprego do go- verno federal. Serão 1.200 jovens do Distrito Federal e municípios vizinhos que irão iniciar atividades agrí- colas num sistema criado pela organização não-go- vernamental (ONG) Agên- cia Mandalla, de João Pes- soa, na Paraíba. Com uma perspectiva holística que abrange as técnicas agríco- las atuais, o sistema recebeu o nome de mandala, pala- vra que significa círculo mágico. "Ele funciona como o sistema solar em que o Sol, no caso, é um tanque com 6 metros de diâmetro e 1,80 metro de profundidade que

Mandala: sistema de cultivo de hortaliças por um sistema barato e auto-sustentável

prove água para os vários círculos de plantações, à se- melhança das órbitas dos planetas", diz Tárcio Handel, um dos diretores da ONG. Analogia à parte, o sistema é tecnicamente engenhoso. Nos círculos concêntricos, que vão até 25 metros do tanque, são plantadas hortaliças e

fruteiras. A água é aspergida nas plantas por um sistema de bomba de água, conduí- tes e cabos de cotonetes. No tanque são criados peixes e patos e os excrementos de- les adubam a plantação. "Chamamos esse tipo de sis- tema de permacultura, em que buscamos maximizar as

conexões da natureza e suas interações entre plantas, ani- mais, solo e chuva", diz Han- del. A agência já implantou 350 sistemas em estados do Nordeste, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Oito mandalas são suficientes para obter um faturamento bruto de R$ 5 mil. •

■ Modelo elétrico para áreas rurais

Fábio Luís de Oliveira Rosa, engenheiro gaúcho que de- senvolveu um novo modelo para levar eletricidade via energia solar a moradores de áreas rurais sem acesso às re- des convencionais de distri- buição, foi o vencedor deste ano do World Technology Award (WTA), prêmio mun- dial de tecnologia na catego- ria empreendedor social. O prêmio é concedido pelo World Technology Network (WTN), organização com cer- ca de 800 membros de 50 paí- ses, entre eles a Microsoft e a

Philips. "O modelo de atendi- mento compreende não só a aplicação da tecnologia mais adequada, mas também um modelo de negócio e de ges-

tão", diz Rosa, fundador e di- retor executivo do Instituto para o Desenvolvimento de Energias Alternativas e da Au- to-Sustentabilidade (Ideaas),

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Nova concepção para levar energia solar a áreas isoladas

de Porto Alegre. Inicialmente foi feito um estudo para en- tender melhor o perfil das pessoas atendidas e suas ne- cessidades. O levantamento apontou que 70% das famí- lias gastavam cerca de US$ 10 com energias não-renováveis, como querosene, vela de pa- rafina e pilhas, apenas para ouvir rádio e obter ilumina- ção precária. Com o mesmo valor, 40 famílias já atendidas pelo novo modelo têm acesso à luz elétrica, rádio, televisão, telefonia e bombeamento de água. A compra dos sistemas fotovoltaicos é financiada por um fundo internacional de investidores sociais. •

68 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 106

Page 66: Soluções para problemas concretos

■ Anel corrige imagem distorcida

No Observatório Pierre Au- ger, instalado na Argentina por instituições de 18 países, telescópios com espelhos e fo- todetectores, chamados de de- tectores de fluorescência, são utilizados para captar os raios cósmicos, partículas subatô- micas raríssimas, com ener- gia pelo menos 100 milhões de vezes superior à produzi- da no mais potente acelera- dor de partículas do mundo, o Tevatron, nos Estados Uni- dos. Como os espelhos esféri- cos dos equipamentos provo- cam distorção na imagem, conhecida como aberração es- férica, pesquisadores da Uni-

telescópio de 85 centímetros para 110 centímetros, sem perder a qualidade da ima- gem. "O anel foi criado com base na sugestão de um cola- borador norte-americano de aumentar a abertura do teles- cópio sem perder resolução na imagem formada na câmera fotomultiplicadora", diz o pro- fessor Marcelo Augusto de Oli- veira, que participou do pro- jeto para montagem do Pierre Auger na equipe do Instituto de Física da Unicamp. •

■ Acompanhamento em tempo integral

Diabéticos monitorados du- rante 24 horas todos os dias. Atualmente 1.200 pacientes já

Fotodetectores de raios cósmicos: imagens melhoradas

versidade Estadual de Cam- pinas (Unicamp) criaram um anel corretor, fabricado pela empresa Schwantz, de In- daiatuba, interior de São Pau- lo, que já está sendo usado em quatro dos 12 telescópios do observatório. Normalmen- te, para limitar essa distorção coloca-se um diafragma no centro de curvatura do espe- lho, que corta os raios afasta- dos do eixo óptico principal. Com o anel corretor, parte do diafragma, que regula a en- trada de luz, é retirada e, com isso, aumenta a abertura do

dispõem desse acompanha- mento, criado pelo professor Flávio Jota de Paula, da Facul- dade de Medicina da Univer- sidade de São Paulo (USP). Um aplicativo permite que o portador da doença, após fa- zer as medições de glicemia, o nível de açúcar no sangue, passe os resultados por tele- fone ou internet a um banco de dados da IDVida, empresa que trabalha com cartões de identificação e informação na área de saúde. Se a glicemia estiver fora do padrão, o mé- dico recebe um alerta. •

Patentes Inovações financiadas pelo Núcleo de Patenteamento

e Licenciamento de Tecnologia (Nuplitec) da FAPESP. Contato: [email protected]

Módulos da plataforma integrada de navegação

Mais segurança nos pequenos aviões

Uma única plataforma, onde estão integrados dois sistemas de navegação - sistemas inerciais e Siste- ma de Posicionamento Global (GPS) -, vai dar mais segurança e preci- são aos vôos de aviões de pequeno porte. Os dois sistemas são utilizados se- paradamente para deter- minar a posição, a traje- tória e a atitude (posição angular) de aeronaves. Os sensores inerciais, consi- derados instrumentos pri- mários de navegação e formados principalmente por giroscópios e acelerô- metros, independem de sinais externos para fun- cionar. Eles registram to- dos os movimentos da ae- ronave durante o vôo. Já o GPS é um sistema para informação de coordena- das formado por 24 saté- lites na órbita de 20 mil quilômetros de altitude

que enviam sinais capta- dos por receptores nos aviões. A plataforma in- tegrada, chamada de Sis- tema Modular de Atitude e Navegação (Sman), foi concebida para suprir fa- lhas que possam existir nos dois sistemas quando usados isoladamente. A forma modular também permite a utilização do Sman em outras aplica- ções, como lançadores de satélites, veículos terres- tres e navais. O projeto de pesquisa foi coordenado por Otávio Santos Cuper- tino Durão, do Instituto Nacional de Pesquisas Es- paciais (Inpe), em parceria com a empresa Navcon.

Título: Sman - Sistema Modular de Atitude e Navegação Inventor: Otávio Santos Cupertino Durão Titularidade: FAPESP

PESQUISA FAPESP 106 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ 69

Page 67: Soluções para problemas concretos

TECNOLOGIA

I na dose certa

Nova geração de fibras

ópticas abre espaço para o aumento

da capacidade das redes de

telecomunicações e traz novidades

para a medicina

SlMONE BlI

aprimoramento de uma 1 nova geração de fibras

ópticas - chamadas de fibras fotônicas (ou fi- bras de cristal fotônico,

do inglês photonic crystal fiber) - abre grandes perspectivas para o aumento da capacidade das redes de telecomuni-

mite a produção de fibras desenhadas para usos específicos em áreas tão di- versas como astronomia, equipamen- tos industriais, relógios de precisão, componentes para computadores mais rápidos que os atuais e diagnóstico por imagem - um protótipo de um endos- cópio com uma única fibra, dezenas de vezes menor que os convencionais, já foi produzido na Austrália. Nas telecomu- nicações, a maioria das pesquisas se di- rige para o desenvolvimento de fibras

s como a neces- sidade de aumento da velocidade em equipamentos de transmissão e recep- ção (amplificadores, conversores etc), lambem são candidatas a substituir os velhos cabos de cobre que conectam a re-

de de telecomunicações até os usuários. São novidades que estão na vanguarda tecnológica de centros acadêmicos na Inglaterra e na Austrália ou, como de- senvolvimento de aplicações, em mais de 60 grupos de pesquisa no Centro Nacional de Metrologia de Freqüência, da França, Instituto Max-Planck, da Alemanha, e o Laboratório Nacional de Pesquisa em Metrologia do Japão, além de vários institutos de pesquisa nos Es- tados Unidos, Itália e Israel.

No Brasil, as novas fibras são objeto de estudo de alguns grupos de pesquisa do Instituto de Física Gleb Wataghin da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) que fazem parte do Centro de Pesquisa em Óptica e Fotônica (Ce- POF). Também há grupos que estudam as fibras fotônicas na Universidade Es- tadual Paulista, de Araraquara, e no Ins- tituto de Estudos Avançados do Centro Técnico Aeroespacial, em São José dos Campos, onde há uma equipe envolvi- da com trabalhos teóricos sobre as pos- sibilidades das estruturas fotônicas.

Com mais de 30 anos de pesquisas na área de fibras ópticas, a Unicamp,

além de ter formado dezenas de profis- sionais, já repassou tecnologias e possui contratos de parcerias para o desenvol- vimento de inovações com várias em- presas. Um trabalho que passa agora a ter nas fibras fotônicas um dos pilares da tecnologia de ponta da área. Os estu- dos foram intensificados no intercâm- bio com os dois centros pioneiros mun- diais no desenvolvimento dessas fibras: o Grupo de Fotônica e Materiais Fotô- nicos, da Universidade de Bath, na In- glaterra, e o Centro de Tecnologia de Fi- bra Óptica, da Universidade de Sydney, na Austrália. Os pesquisadores de Bath desenvolveram, no início da década de 1990, o conceito de fibras fotônicas. Em novembro de 1995 eles fizeram a pri- meira fibra fotônica do mundo. Até

vidro (principalmente sílica), quando o grupo de Sydney elaborou a mesma es-

vembro deste ano um dos principais pesquisadores de Bath, o professor Jo- nathan Knight, que fez a primeira fibra fotônica, esteve em Campinas com pa- trocínio da FAPESP. Na mesma época,

Page 68: Soluções para problemas concretos

o grupo da Unicamp recebeu a visita de Maryanne Large, pesquisadora austra- liana que desenvolveu as fibras fotò- nicas plásticas. Os dois pesquisadores deram palestras e acompanharam os trabalhos realizados na Unicamp.

Para entender as novidades do fun- cionamento das novas fibras criadas

fibras ópticas tradicionais. Elas são fei- tas por um núcleo e uma camada exter- na, ambos quase sempre de sílica. Sua capacidade de confinar a luz e fazê-la viajar em seu interior com as informa- ções que se quer transmitir se baseia na alta transparência do vidro e no fato de o núcleo ter sempre um índice de refra- ção superior ao da camada externa. Essa diferença de índice permite aprisionar a luz porque a interface entre materiais com altos e baixos índices de refração funciona como um espelho que facilita o percurso da onda luminosa no interior desses dispositivos. Para ter um índice de refração superior ao da camada ex- terna, a sílica do núcleo é enriquecida (dopada) com átomos de outro material

como germànio e boro. O processo re- quer um excelente controle da química do vidro porque é nessa fase que se de- fine boa parte das características da fi- bra e, por conseqüência, do sinal que será transmitido.

ma das diferenças entre as fibras tradicionais e as novas é que as fotòni- cas não se baseiam em dopantes químicos para

a obtenção de variações no nível de re- fração. Elas possuem um núcleo (que pode ser de sílica, polímero ou mesmo ar) envolto por um conjunto regular de diminutos buracos de ar na forma de túneis, que correm paralelos ao longo de toda a fibra. No caso das fibras de núcleo sólido (sílica ou plástico), consi- dera-se que o guiamento se deva ao fato de a parte externa da fibra ter sido "dopada" com ar, um material com me- nor índice de refração. Surpreende, po- rém, que a luz possa também ser guia- da em fibras de núcleo oco, viajando no ar. Toda a física tradicional mostra que a luz prefere viajar em materiais com

altos índices de refração e o ar tem o mais baixo deles. Um comportamento estranho que é possível de ser aplicado para esse tipo de fibra fotônica com base em princípios físicos diferentes daqueles que regem as fibras tradicio- nais. Na década de 1980, físicos desco- briram que materiais estruturados na escala do comprimento de onda da luz - uma fração de micròmetro - podiam ter suas propriedades ópticas radical- mente alteradas. São os cristais fotòni- cos, assim chamados porque sua estru- tura interna, regular como a de um cristal, permite controlar o guiamento da luz. No caso das fibras fotônicas de núcleo oco, os espaços entre os buracos de ar na parte que envolve a fibra de- vem ter dimensões da mesma ordem do comprimento de onda da luz que se pretende guiar no seu núcleo. A região microestruturada cria então, ao redor do núcleo, uma zona proibida para cer- tos comprimentos de onda, um band gap, obrigando a luz a ficar confinada nnXiírlpn rLi fibra. É dessa forma que a

da fibra tradicional, agora

Pré-forma: a partir desse material, que possui alguns centímetros, são produzidas as finas fibras ópticas

Page 69: Soluções para problemas concretos

tos túneis de ar, passa a funcionar como um no- vo material, com proprie- dades ópticas inéditas.

As vantagens das fi- bras fotônicas em relação às convencionais é a pos- sibilidade de projetar sua microestrutura de manei- ra que a fibra apresente propriedades escolhidas segundo a necessidade de cada caso. Assim é possível projetar e fabricar fibras para um amplo espectro de aplicações, aumentan- do a concentração de luz ou alterando a sua pró- pria freqüência, para citar apenas alguns exemplos. "É uma nova tecnologia que permite ter diferen- tes tipos de fibras dese- nhadas com propriedades específicas", frisou o físico britânico Jonathan Knight durante sua visita à Unicamp.

Uma das boas perspecti- vas das fibras fotônicas está nas telecomunica- ções, área em que há três décadas as fibras ópticas

promovem uma verdadeira revolução, com ganhos de velocidade em relação aos fios de cobre. "As atuais limitações das fibras ópticas tradicionais devem- se ao fato de a luz viajar no vidro. Uma vez libertadas dessa amarra, o poten- cial é imenso", diz Knight. Ele se refere ao fato de a interação entre o vidro e a luz causar perda de potência e disper- são do sinal luminoso, um problema no caso de percursos longos. A disper- são, entre outras características, provo- ca o alargamento do comprimento de onda do sinal luminoso a ponto de tor- ná-lo irreconhecível. Já a perda de po- tência chega a ser de 96% em 100 qui- lômetros. Esses problemas hoje são contornados com amplificadores de si- nal e outros dispositivos, mas eles limi- tam o potencial da rede porque não re- cuperam integralmente o sinal.

"Com as fibras fotônicas é possível controlar muito melhor a dispersão e, teoricamente, reduzir a perda a quase zero", garante Knight. Foi a confiança nesse potencial, aliás, que levou o físico a fundar em março de 2001, junto com

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Estruturas da fibra fotônica de vidro com os túneis que correm em paralelo ao núcleo. Na última foto, a fibra produzida em polímero

seus colegas, uma empresa, a Blaze Pho- tonics, para desenvolver fibras fotôni- cas capazes de substituir os atuais cabos transatlânticos, que hoje dependem de amplificadores caríssimos e de manu- tenção com submarinos. A empresa aca- bou vendida por £ 3 milhões (quase R$ 15 milhões) para a Crystal Fibre, uma empresa dinamarquesa. A venda foi an- tes de a Blaze atingir um protótipo comer- cial, mas Knight considera promissores os resultados obtidos. "Não chegamos a obter uma perda menor do que a das fi- bras convencionais, mas essas levaram três décadas se aperfeiçoando e estão no limite de suas possibilidades tecno- lógicas, enquanto nós avançamos mui- to rápido em pouco tempo."

Dentro dos amplificadores - Se para transmissões em longas distâncias as fi- bras fotônicas ainda não apresentam vantagens, seu desempenho superior em muitas áreas já as converteu em opção para o desenvolvimento de novos dis- positivos usados em telecomunicações como amplificadores de sinal, contro- ladores de dispersão e conversores de comprimento de onda. Para aumentar a quantidade de informação transmiti- da nesses equipamentos hoje, por exem- plo, é necessário usar um leque maior de comprimentos de onda diferentes para transmitir simultaneamente mui- tos dados na mesma fibra. Os amplifi- cadores convencionais, porém, só am-

plificam uma pequena faixa de compri mento de onda. A solução são os am- plificadores paramétricos, que operam numa faixa muito maior {veja Pesquisa FAPESP n° 81). No CePOF da Unicamp, Hugo Fragnito trabalha no desenvolvi- mento desses amplificadores desde 2000 e este ano iniciou uma colaboração cien- tífica com o grupo de Bath. A idéia é desenvolver fibras fotônicas especial- mente projetadas para aumentar ainda mais a banda dos amplificadores para- métricos. Para concretizar essa colabo- ração, Paulo Dainese, aluno de Fragni- to, trabalhou três meses com o grupo de Knight em Bath.

Na Unicamp, o grupo de Luiz Carlos Barbosa, com os alunos Enver Chillcce e Sérgio Ozório, também estuda a pro- dução de suas próprias fibras fotôni- cas desde 2002, projeto que agora toma impulso com a volta de Cristiano Cor- deiro, que fez pós-doutorado nessa área na equipe de Knight, na Universidade de Bath. Recém-chegado ao Brasil, e com bolsa de pós-doutorado da FAPE- SP, Cordeiro continuará agora suas pes- quisas na universidade, voltadas para o desenvolvimento e caracterização de fi- bras fotônicas com propriedades ópti- cas não-lineares. São fibras com capaci- dade de alterar o comprimento de onda da luz que as atravessa. As pesquisas de Cordeiro pretendem também explorar outra possibilidade das fibras fotônicas, que é a geração de supercontínuo. Tra-

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Page 70: Soluções para problemas concretos

ta-se de uma luz muito forte e de com- primento de onda extenso para ser usa- da, por exemplo, em experimentos de espectroscopia (caracterização de ma- teriais), metrologia e num tipo especial de tomografia que fornece, de maneira não invasiva, imagens tridimensionais de tecidos biológicos (a tomografia de coerência óptica).

A s novas possibilidades tec- #W nológicas abertas com o Lmm supercontínuo eram im- j m pensáveis com as fibras

^L .^L- tradicionais. "Quero tra- balhar e fabricar fibras fotônicas para essas aplicações que são também obje- to de estudo de vários grupos brasi- leiros", diz Cordeiro. Um exemplo é a equipe coordenada por Nilson Dias Vieira, do Instituto de Pesquisas Nu- cleares e Energéticas (Ipen). Ele planeja utilizar fibras fotônicas para geração de supercontínuo a ser usado em experi- mentos de tomografia de coerência óp- tica. A recente visita de Knight selou o fornecimento de fibras ópticas produ- zidas em Bath para o laboratório brasi- leiro. Isso vai acontecer, inclusive para os experimentos de Cordeiro, enquan- to as fibras fotônicas brasileiras não são produzidas.

Outro projeto de Cordeiro é tentar, em colaboração com Maryanne, produ- zir no Brasil fibras fotônicas de plástico (polímero). Essas fibras têm um nicho

potencial de mercado nas redes de tele- comunicações: substituir as conexões dos usuários finais, área ainda domina- da pela tecnologia de cabos de cobre que se transforma em um empecilho para o aumento da velocidade de transmissão. Com o plástico, as vantagens em relação ao vidro são evidentes: é mais barato, menos frágil e seu método de fabricação permite desenvolver um leque muito mais amplo de estruturas fotônicas, além de ser possível dopar o material com uma diversidade muito maior de subs- tâncias e com quantidades bem maiores do que aquelas toleradas pelo vidro. As- sim, o plástico supera a desvantagem de sua menor transparência, irrelevante no caso de distâncias pequenas.

Na fase de fabricação, as fibras de polímero possuem características dife- rentes das tradicionais de vidro que são

0 PROJETO

Centro de Pesquisa em Óptica e Fotônica (CePOF), da Unicamp

MODALIDADE Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid)

COORDENADOR HUGO FRAGNITO - Instituto de Física da Unicamp

INVESTIMENTO R$ 1.000.000 por ano (FAPESP)

produzidas a partir de uma pré-forma de alguns centímetros, composta por pequenos tubos de vidro empilhados de forma a compor a estrutura dese- jada. Aquecida, essa pré- forma é puxada até con- verter-se numa fibra da espessura de um fio de cabelo (125 microns), que mantém, em escala mi- croscópica, a mesma estrutura da pré-forma original. O sistema só per- mite produzir as estrutu- ras que podem ser feitas por meio desse empilha- mento. Já as fibras de plás- tico possibilitam fazer qualquer tipo de estrutu- ra, basta usar uma fura- deira especial controlada

por computador para produzir na pré- forma a seqüência desejada de buracos.

Conexão de chips - O desenvolvimento dessas fibras pela equipe de Maryanne tem aplicação potencial não só nas co- nexões da rede com os usuários finais como em amplificadores e lasers e nas conexões internas de computadores e outros equipamentos. "Os dispositivos eletrônicos que conectam os chips de um computador não podem operar acima de certas velocidades porque se transformam em antenas que emitem e captam sinais para o ar. As nossas fibras poderão servir para fazer essas conexões com uso de luz, permitindo transmis- sões em velocidades milhares de vezes superiores às atuais", explica Maryanne.

Algumas aplicações das fibras fotô- nicas já estão deixando de ser apenas especulações. A equipe de Sydney pro- duziu, por exemplo, um protótipo de endoscópio dezena de vezes menor do que os convencionais porque transmite a imagem por uma única fibra óptica. Além de ser mais confortável para os pacientes que passam pelos vários tipos de exames endoscópicos, a nova tecno- logia permite melhor visualização para o médico. Isso acontece porque a fibra plástica microestruturada tem dezenas de núcleos microscópicos por onde a luz é transportada. O aparelho deverá primeiro orientar implantes de próte- ses no ouvido interno. •

PESQ.UISA FAPESP 106 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ 73

Page 71: Soluções para problemas concretos

TECNOLOGIA

Estado da resistência Uso de plasma amplia a vida útil de próteses ortopédicas e ferramentas industriais

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I :

o tudo correr bem, dentro de três anos a empresa Baumer, da cidade paulista de Mogi-Mirim, maior labricante latino-americana de implantes ortopé- dicos, colocará no mercado próteses cie joelho e de

produzidas atue do uso de um 11

que as

■>or imersao )écie de gás que é considerado um dos :om estrutura molecular, atômica e de

partículas aiterente dos tradicionais solido, liquido e gaso- so). Esse tratamento aumentou a dureza das ligas de aço que compõem as próteses em até 250% e reduziu o desgaste em cerca de 160 vezes. "O método revelou-se biocompatível e os resultados foram além das nossas expectativas. Testes labo- ratoriais demonstraram um considerável aumento na so- brevida das próteses, que normalmente é de 12 a 15 anos", diz o químico Roberto Parpaioli, gerente da Divisão de Pes- quisa e Desenvolvimento da Baumer. "Agora nossa intenção é organizai" um ou dois grupos clínicos para fazer exames in vivo nas próteses submetidas á implantação iònica por plas- ma. Acreditamos que dentro de dois ou três anos estaremos com a avaliação clínica concluída."

Para esses exames, a empresa vai escolher duas equipes de ortopedistas ligados a uma universidade. Cada grupo clíni- co terá, em média, cinco profissionais e de dez a 30 pacien- tes. A Baumer cederá todas as próteses e arcará com os custos dos testes. Melhorar a dureza e, conseqüentemente, a vida útil de implantes ortopédicos é uma cias muitas aplicações dessa técnica de tratamento superficial, desenvolvida de for- ma pioneira, no Brasil, pela Metrolab, empresa de São José dos Campos especializada na calibração, ajuste e manuten-

uusiriais mecânicos e ek desenvolvimento da técnica foi feito em colaboração com o

Prótese de cabeça de fêmuf na câmara de plasma

Page 72: Soluções para problemas concretos
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Laboratório Associado de Plasma (LAP) do Instituto Nacional de Pesquisas Es- paciais (Inpe). O método de implanta- ção iônica por imersão em plasma (IIIP ou 3IP) pode ser empregado para me- lhorar as propriedades tribológicas (ca- racterísticas que envolvem dureza, re- sistência à corrosão e ao desgaste e redução de atrito e fricção), ópticas e eletrônicas de um variado leque de ma- teriais, como alumínio, titânio, aço ino- xidável, ligas metálicas, polímeros, plásticos, teflon, náilon e, no caso de se- micondutores, possibilitar a criação de dispositivos cada vez menores. Assim, além das próteses ortopédicas, também podem ser beneficiadas as ferramentas e os componentes industriais das áreas automotiva, médica, odontológica e ae- roespacial, como facas de corte, moldes para alumínio, pistões de motores, rolamentos, brocas de aço, implantes odontológicos e garrafas de polímero poli (tereftalato de etileno), mais co- nhecidas como PET, usadas para acon- dicionar refrigerantes e água mineral.

Descoberta no final dos anos de 1980 por pesqui- sadores da Universidade de Wisconsin, nos Esta- dos Unidos, a técnica 3IP

ainda é pouco explorada comercial- mente no mundo. Os principais grupos de pesquisa localizam-se nos Estados Unidos, na Alemanha, na Austrália, no Japão, na China e na Coréia. "No Brasil nós trabalhamos com essa tecnologia na área de tratamento de materiais des- de 1995", diz o físico Mário Ueda, pes- quisador do LAP do Inpe que coorde- nou o final do projeto na Metrolab. No início, a coordenação foi do também pesquisador do Inpe, Raul Murete de Castro. "No instituto nós utilizamos vá- rios tipos de plasma, como, por exemplo, na aplicação em propulsão iônica para controle dos satélites no espaço e no tratamento de superfícies de polímeros em sistemas aeroespaciais", diz Ueda. "Desde o início já sabíamos que o uso do 3IP teria uma ampla aplicação co- mercial porque essa técnica mostrou-se altamente eficiente para estender a vida média de muitas ferramentas e compo- nentes utilizados nas indústrias."

O repasse da tecnologia e a realiza- ção de pesquisas complementares por parte da Metrolab só foram possíveis

com o financiamen- to da FAPESP recebi- do pela empresa por meio do Programa Inovação Tecnológi- ca em Pequenas Em- presas (PIPE). Os re- cursos, da ordem de mais de R$ 400 mil, foram usados para aquisição dos equi- pamentos necessá- rios para a constru- ção de uma estação de processamento 3IP. O coração do sis- tema é uma câmara de vácuo de aço inox, na qual é gerado o plasma e o tratamen- to é implementado na peça. Junto dessa câmara, que tem cer- ca de 100 litros de volume, está instala- do um sistema de vá- cuo e uma fonte de tensão de corrente contínua, responsá- vel pela geração do plasma. Comple- mentam o sistema um equipamento de injeção de gás, um pulsador de alta-ten- são e uma fonte para controle dos parâ- metros do plasma.

O primeiro passo do processo de tratamento é a colocação da peça na câ- mara de vácuo e a criação do plasma, um gás ionizado produzido em altas temperaturas. Ele é diferente dos esta- dos sólido, líquido e gasoso porque a ionização (perda ou ganho de elétrons) das suas partículas, moléculas e átomos é significativa. Para a produção do plas- ma foi usado principalmente o gás ni- trogênio - dependendo da aplicação, gases como hélio, argônio e hidrogênio também podem ser usados. A finali- dade do tratamento é implantar íons positivos de nitrogênio, presentes no plasma, na peça - são esses íons que conferem melhores características ao material. Para que isso ocorra, a peça sofre um bombardeio de pulsos negati- vos de alta-tensão, que variam de 10 mil a 100 mil volts. Ao receber esses pul- sos, a peça atrai os íons positivos de nitrogênio do plasma. Os íons pene- tram até dezena de milhares de ângs- trons de profundidade - 1 ângstron eqüivale a IO7 milímetros, ou 1 milí-

metro dividido 10 milhões de vezes. A temperatura da peça, a pressão dentro da câmara e o tempo de processamen- to variam de acordo com o material. "No caso de polímeros, o tratamento leva cerca de 15 minutos, enquanto ma- teriais feitos de aço precisam de uma implantação mais longa, em torno de uma hora", afirma Ueda.

Depois que as peças são modifica- das, elas passam por testes e medições para verificação da eficiência do pro- cesso. Como é quase impossível fazer esses testes nas próprias peças sem da- nificá-las, cada tratamento é acompa- nhado de amostras ou corpos de prova, avaliados posteriormente. "O teste mais importante é o perfil de concentração atômica, que revela se os íons de ni- trogênio penetraram adequadamente. Além dele, analisamos a estrutura do material e medimos seu perfil de dure- za e sua resistência ao desgaste", conta o físico Luiz Ângelo Berni, do LAP, que também participou do projeto.

Excelentes resultados - Durante a rea- lização do projeto PIPE a Metrolab fir- mou parceria com várias empresas, além da Baumer, para a execução de tratamento superficial em diferentes ma- teriais e componentes. Todas as peças

76 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 106

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foram cedidas de forma gratuita à Me- trolab. "Os resultados mais surpreen- dentes foram obtidos com as ferramen- tas da Refal, uma fabricante de rebites e rebitadeiras com sede em São Paulo", informa o engenheiro eletrônico Antô- nio Claret Pereira Fernandes, dono da Metrolab. Em uma das peças tratadas, no caso um martelo de aço, verificou-se uma melhoria de mais de 25 vezes na vida média comparada a uma peça que não foi modificada por 3IR Em outra, um rolete de aço, o prolongamento de vida média foi superior a quatro ve- zes. O principal resultado, no entanto,

0 PROJETO

Melhoramento das propriedades superficiais de componentes de uso industrial por implantação iônica tridimensional

MODALIDADE Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE)

COORDENADOR MáRIO UEDA - Inpe-Metrolab

INVESTIMENTO R$ 93.240,00 e US$ 121.314,75 (FAPESP)

Câmara de vácuo onde próteses e peças metálicas são tratadas por imersão em plasma

aconteceu numa fer- ramenta de punção para trabalhos em alta temperatura na produção de rebites que teve uma melho- ria na durabilidade de 70 vezes. Para a Refal, esses resulta- dos representam uma grande economia, não só na maior du- rabilidade, mas tam- bém na redução de tempo de troca, o que tem reflexos di- retos na produtivida- de da indústria. O sucesso dos trata-

mentos rendeu bons frutos à Metrolab. "Estamos contentes porque a Refal já formalizou um pedido para processa- mento de um lote de ferramentas em- pregadas na produção de rebites e de rebitadeiras", afirma Fernandes, acres- centando que com a estrutura atual a Metrolab tem capacidade para tratar cem peças por semana, entre rebites, martelos e próteses.

Outra parceira da Metrolab foi a AS Technology, empresa especializada na fabricação de implantes dentários de São José dos Campos. Segundo Luiz Ro- berto Castro de Souza Aguiar, gerente de projeto da companhia, o processo de implantação iônica tridimensional apre- sentou resultados altamente promisso- res quando aplicados a ferramentas de corte usadas na usinagem de implantes odontológicos. Em alguns casos, o au- mento da vida útil da peça foi de 40% a 100% e, em outros, a qualidade foi me- lhorada, mas a vida útil reduzida. "O processo de 3IP melhora sensivelmente a qualidade da usinagem dentro da nos- sa aplicação, como, por exemplo, não produzir película superficial, como no caso da nitretação (enriquecimento com nitrogênio) por produtos quími- cos. O plasma insere os íons na ferra- menta, melhorando sua aresta de cor-

te", afirma Aguiar, que ressalta: "Sem dúvida, existe um fenômeno de melho- ramento, mas ainda não dominamos todas as variáveis do processo". Por isso, a empresa continua fazendo testes nas peças submetidas ao tratamento 3IP para descobrir a condição ideal de pro- cessamento.

A Metrolab também experimentou a aplicação da técnica 3IP em garrafas PET, com a colaboração da fabricante de cervejas Primo Schincariol. Nesse ca- so, o objetivo da pesquisa não era tor- ná-las mais resistentes, mas reduzir a ta- xa de transmissão de oxigênio através das paredes da garrafa de polímero a fim de evitar a rápida degradação da cerve- ja que ocorre depois de uma ou duas semanas em PET não tratadas. Ao final do processo, testes preliminares revela- ram que houve um pequeno aumento da barreira contra penetração de oxigê- nio, o que proporcionou uma leve me- lhora na conservação do produto. No entanto, o processo ainda precisa ser aperfeiçoado para que a cerveja seja conservada por pelo menos seis meses.

Limpo e econômico - Uma das princi- pais características do método 3IP é o fato de ele poder ser aplicado em peças de grande porte e de formatos comple- xos porque o tratamento tem amplitude tridimensional. Além disso, as peças não sofrem alterações em suas dimensões e a implantação pode ser feita individual- mente ou em fornada, com várias peças ao mesmo tempo. Para Ueda, o método apresenta vantagens sobre os proces- sos normalmente empregados no trata- mento de superfícies, como a nitretação, que consiste na colocação de átomos de nitrogênio em peças de aço por meio de banhos de sais ou imersão em gás amô- nia sob alta pressão. "Esses métodos são tóxicos e de manuseio perigoso, já que são realizados a altas temperaturas, de até 600°C. Sem falar que são problemá- ticos do ponto de vista ambiental, por- que geram resíduos de alta periculo- sidade, como o banho de cianeto." Em comparação com os métodos tradi- cionais, o tratamento 3IP é similar no âmbito econômico. "Traz também as vantagens de tratar as peças de forma homogênea, com os íons atingindo a peça em todas as direções e perpendicu- larmente à superfície, além de não agre- dir o ambiente", garante Ueda. •

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TECNOLOGIA

BIOTECNOLOGIA

Segredos da doçura Estudo pretende identificar os genes responsáveis pela sacarose da cana-de-açúcar

"os próximos três anos, lâminas especiais de vi- dro do tamanho de um dedo, nas quais se inse- rem milhares de genes

ou fragmentos de DNA, poderão reve- lar ao homem os caminhos da biologia molecular que levam à produção de va- riedades mais doces de cana-de-açúcar. Até 2007, com a ajuda das lâminas, de- nominadas microarrays ou chips de DNA, pesquisadores paulistas preten- dem identificar genes que favoreçam a

se, o popular açúcar de mesa, durante seu processo de maturação. "Se desco- brirmos bons marcadores moleculares envolvidos nesse processo, poderemos mais rapidamente desenvolver varieda- des geneticamente modificadas mais ricas em açúcar", diz Glaucia Mendes Souza, do Instituto de Química da Uni- versidade de São Paulo (IQ/USP), coor- denadora dos estudos. "Num estudo

acúmulo de sacarose, mas a meta é en- contrar muitos outros. mcroarrays também serão utilizados para procurar

(insetos), na tolerância à escassez de água e na interação da cana com bacté- rias naturais que a auxiliam a fixar ni- trogênio em suas raízes e funcionam como fertilizantes da lavoura.

Plantas assim, ricas em sacarose e mais fortes, formariam a lavoura ideal para os produtores de açúcar e álcool. Por isso, o projeto recebe financiamen- to do programa Parceria para Inovação Tecnológica (PITE) da FAPESP, do Centro de Tecnologia Canaviera (CTC),

de Piracicaba, controlado pela Coop rativa de Produtores de Cana, Açúcar Álcool do Estado de São Paulo (Cope sucar), e da usina Centralcool, da cid de de Lucélia, no noroeste paulista. "E tamos investindo na melhoria da nos matéria-prima, a cana-de-açúcar", d Carlos Yokio Nomura, gerente de logí rica da Centralcool. A expressão dos g_ nes em 12 tipos de cana, todas desenvol- vidas pelos técnicos do CTC por meio do tradicional cruzamento de plantas com diferentes características, será alvo da análise da equipe de Glaucia. "São

programa de melhoramento genético, mas não são plantas transgênicas", afir- ma o engenheiro agrônomo Eugênio César Ulian, gestor de biotecnologia do CTC. Produzir canas transgênicas é uma meta para um segundo momento do trabalho, quando forem identificados

produção de sacarose na planta. Se o projeto gerar inovações tecno-

lógicas de interesse comercial, as três fontes financiadoras dos estudos serão as detentoras de sua patente. Também as universidades dos pesquisadores en- volvidos na iniciativa - além da USP, há cientistas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Universida- de Estadual Paulista (Unesp) engajados nos estudos — terão direito a uma par- cela dos royalties gerados por eventuais patentes. Menos preocupado em pro- duzir conhecimento básico nara a aca-

bara encontra soluções tecnológicas capazes de au- mentar a competitividade de setores da economia paulista e nacional, o PITE I

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li

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que junta as universida- des paulistas e empresas «6n do setor de açúcar e ál- cool é um filhote direto de uma grande emprei- tada científica sobre a cana, o projeto Sucest, si- gla em inglês para Sugar Cane EST, também co- nhecido como Genoma Cana. Entre as contribui- ções do Sucest, que mo- bilizou 240 pesquisado- res e foi concluído em 2003, destaca-se a mon- tagem de um grande banco de dados sobre o material genético do ve- getal. Nele há informa- ções sobre o seqüência- Genes igua mento de cerca de 240 expressos mil fragmentos de ge- nes, denominados ESTs, ou etiquetas de seqüência expressa. "O Sucest nos deu a base para montarmos o nosso projeto", comenta Glaucia, que vai armazenar as informações sobre as funções dos genes descobertas pelos estudos com microarray num segundo banco de bancos, recém-construído.

1 tecnologia de chips de DNA permite analisar quais genes ou pedaços de genes de um

, organismo são expressos , (usados) em diferentes

situações. Não é uma ferramenta para descobrir genes difíceis de serem iden- tificados, mas sim para mapear o papel, a função de genes ou trechos de DNA previamente conhecidos, cuja seqüên-

Genes do chip de DNA em forma de pontos

Genes igualmente expressos

Genes mais expressos

Genes menos

cas da biologia molecular. A metodolo- gia é muito empregada atualmente em trabalhos sobre as bases genéticas de doenças humanas. Em estudos sobre o câncer, por exemplo, os microarrays são usados para comparar o funcionamen- to de conjuntos de genes em tecidos sa- dios e doentes. Dessa forma, os cientis- tas identificam quais genes são mais, menos e igualmente expressos por cé- lulas normais e com tumores. Os expe- rimentos com chips de DNA geram fi- guras em que os genes inseridos nas lâminas são representados por pontos. Os pontos vermelhos representam ge-

terminada situação do que em outra.

Os verdes retratam os menos expressos, e os amarelos os que foram usados em ambas as situações. Se um gene se mos- tra superexpresso num dado contexto, como num tecido com câncer, ele deve ser importante para a ocorrência dessa condição.

Fração genômica - Em busca dos segre- dos moleculares que tornam a cana mais doce e resistente a pragas, os pes- quisadores vão construir um microar- ray com 4.608 genes. Esse não é o nú- mero total de genes que compõem o genoma do vegetal, mas apenas uma fração deles - a fração mais importante para os estudos comparativos a serem feitos. "Nossos resultados preliminares com um chip piloto com 1.920 genes fo- ram promissores", avalia Glaucia. Nos

0 PROJETO

Transcriptoma da cana-de-açúcar

MODALIDADE Programa Parceria para Inovação Tecnológica (PITE)

COORDENADORA GLAUCIA MENDES SOUZA - Instituto de Química/USP

INVESTIMENTO R$ 555.693,00 - US$ 82.867 (FAPESP)e R$ 800.000,00 (CTC e Centralcool)

experimentos mais cru- -0S ciais do projeto, que vão

tentar descobrir as bases g genéticas do acúmulo

precoce de sacarose no colmo da planta, o fun- cionamento desse con- junto de genes será me- dido em quatro tipos de cana-de-açúcar. Duas va- riedades produzem pre- cocemente muito açúcar, logo no início da safra, no mês de maio. As ou- tras duas variedades de- moram mais tempo para atingir teores elevados de sacarose. "Vamos obser- var a expressão dos genes

T)enos durante todo o processo Bos de amadurecimento da

planta", diz Ulian. As comparações serão fei-

tas em quatro momentos do ano: antes da colheita da cana (em março) e no início (maio), meio (julho) e fim (se- tembro) da safra. O comportamento dos genes será analisado em dois tipos de tecidos, nas folhas e no colmo (cau- le), onde se concentra a sacarose.

Os estudos que visam encontrar ge- nes para a promoção de outras caracte- rísticas economicamente desejáveis na cana-de-açúcar terão um desenho se- melhante. As bases moleculares para a tolerância à falta de água serão o alvo de um trabalho que vai comparar a ex- pressão de genes em quatro variedades de cana, duas adaptadas a climas secos e duas não acostumadas à aridez. Se- guindo essa lógica, de confrontar o funcionamento dos mesmos genes em variedades da planta com traços con- trastados, serão ainda analisadas varie- dades pouco e muito resistentes a doen- ças e suscetíveis à ação de bactérias fixadoras de nitrogênio. Se tudo der certo, os pesquisadores e as empresas de álcool e açúcar que participam do PITE terão identificado genes capazes de aumentar a capacidade produtiva de um canavial. Com esses dados, será possível, em tese, produzir plantas ge- neticamente modificadas mais eficien- tes e seguras para o ambiente - ou, se as empresas preferirem não criar plantas transgênicas, obter novas variedades pelo processo clássico de melhoramen-

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HUMANIDADES

CULTURA

Da teoria à prática A história do Departamento de Cultura de Mário de Andrade

CARLOS HAAG

iz o ditado popular que "quem sabe faz; quem não sabe fazer ensina". Por trás da evidente simplifica-

ção do dito está um dos grandes di- lemas dos intelectuais do século 20: é possível concretizar utopias teóri- cas, fazer delas realizações práticas e popula- res, unindo forças com a política sem sujar as mãos ou se sujeitar a concessões. O exemplo pioneiro desse dilema quase hamletiano ocorreu entre 1935 e 1938, durante a gestão de Mário de Andrade à frente do Departa- mento de Cultura de São Paulo, um paradig- ma até hoje do que é fazer cultura. "Não se- ria exagero afirmar que, com a experiência do Departamento de Cultura, começa haver no Brasil a noção do que seja propriamente uma política cultural", explica Roberto Bar- bato, autor de Missionários de uma utopia na- cional, tese de doutorado que contou com apoio da FAPESP e que acaba de ser lançada em livro pela Annablume. "Mário e seu gru- po abdicaram de suas obras pessoais por projeto cultural para a sociedade. O Estado figura nesse processo como um instrumento necessário à consecução dos fins colimados pelo Departamento", avalia o pesquisador.

Afinal, apenas o Estado tinha dinheiro suficiente para possibilitar a grande ambição modernista de "ir até o povo e mostrar o que era o Brasil para os brasileiros". Mas havia mui- tos senões: Mário e seu grupo (que incluía Sérgio Milliet, Paulo Duarte, entre outros) ti- nham aversão à política e acreditavam que

apenas a cultura poderia modi- ficar o homem e deixá-lo me- lhor. Daí o pacto algo mefisto- félico. "Os intelectuais acabam negociando a perspectiva de le- var a cabo uma obra pessoal em troca da colaboração que ofere- cem ao trabalho de constituição

nacional', silenciando quanto ao preço dessa obra que o Estado indiretamente subsidia", observa Sérgio Miceli. "Na condição de presas do Estado, resolveram esse dilema cedendo ao encanto de justificações idealistas." Como diz o personagem central de Mephisto, livro de Klaus Mann, ao se ver confrontado com a maldade com que colaborara: "Eu sou apenas

Mário de Andrade (ao lado), Cabeça de Cristo (acima) e figuras de Xangô

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Mamoeiro, de Tarsila do Amaral, Serão em casa de Mário de Andrade, de Noemia Mourão {abaixo), e Retirantes, de Clóvis Graciano (.ao lado)

um ator". "Parece haver uma certa inge- nuidade do grupo do Departamento de Cultura em relação à política. A ilusão de que era possível prescindir da políti- ca para empreender seu trabalho cus- tou muito a Mário de Andrade, mos- trando, além disso, que a cultura era insuficiente como álibi de sua posição e mesmo como instrumento de transfor- mação social", observa Barbato. Não sem razão, o próprio modernista cha- mou sua gestão de "meu túmulo", ao mesmo tempo que, para aumentar a ambigüidade da sua situação, exclama- va num discurso, feito após o malogro do Departamento, que "se refugiar em livros de ficção e valores eternos como amor, amizade, Deus, a natureza, é um abstencionismo desonesto e desonroso como qualquer outro. Uma covardia como qualquer outra. De resto, a forma política da sociedade é um valor eterno também".

O pacto teve início com uma con- versa entre Paulo Duarte e o prefeito Fá- bio Prado sobre a criação de um organis- mo que começaria paulista para, depois, se expandir pelo Brasil. O "nomão"que lhes veio à cabeça para dirigir a iniciati- va foi o de Mário de Andrade. "Você vai acabar com meu sossego iríermão", rea- giu o modernista, que repensou ao re-

fletir que, talvez, "as antigas aspirações dos modernistas que queriam ver con- cretizado um veículo de cultura seriam abandonadas enquanto simples fanta- sia", nota Barbato. Quem sabe faz. Afi- nal, dizia Mário, "ainda não se percebeu em nossa terra que a cultura é tão ne- cessária quanto o pão e essa é a nossa mais dolorosa imoralidade cultural".

Como observa o pesquisador, o De- partamento, no fundo, era uma continui- dade da posição pessoal do modernista

e o que houve foi uma personificação de seu projeto de realidade nacional. No entanto havia uma ligação indesejável entre esse projeto e outro, conservador e bairrista, levado a cabo pelos paulistas da Revolução de 32, que desejavam, também por meio da cultura, retomar a hegemonia paulistana no Brasil. "De certa forma, a aventura dos intelectuais paulistanos pode ser vista como um desdobramento desse objetivo, ao me- nos no plano cultural." O preço subia.

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Ainda assim, a utopia parecia valer e muito: o Departamento de Cultura pretendia "rechaçar o caráter ornamen- tal da cultura brasileira e uma 'ida ao povo' que se exprime no ideal de demo- cratização do acesso à cultura", explica Barbato. Mário e seus amigos deseja- vam "elevar" o povo à cultura burguesa e não destruí-la, propiciando o acesso a concertos, exposições e aos livros em bi- bliotecas ambulantes. Ao mesmo tempo, quiseram buscar o Brasil profundo e trazê-lo ao conhecimento das socieda- des urbanas que, em geral e por vontade das elites, nem sabiam da sua existên- cia. "Nesse contexto, eles são utópicos, no sentido de um estado de espírito incongruente com a realidade social. A utopia só se realiza na medida em que há a subversão da ordem social estabe- lecida. No caso deles, fica claro o papel de democratização da cultura na cida- de de São Paulo", avalia o pesquisador. Há, porém, a sutileza do dilema: como subverter a ordem social fazendo parte

integrante do Estado que está lá para manter essa ordem burguesa em vigor?

"Sempre considerei o problema má- ximo dos intelectuais brasileiros a pro- cura de um instrumento de trabalho que os aproximasse do povo", escreveu Mário. "Podemos entendê-los então co- mo divulgadores e administradores no papel de uma missão civilizatória, cujo cerne não poderia se situar fora da esfe- ra cultural", analisa o autor. Daí o seu ca- ráter, segundo Barbato, de missionários do nacional-popular.

Exclusão - "O público que vai ao Mu- nicipal não representa absolutamente o povo da cidade, que elegeu os donos da Prefeitura, pra que esta por preços exorbitantes satisfizesse uma moda da elite. O povo foi abolido da manifesta- ção melodramática oficial da cidade", reclamava o modernista. Assim, ingres- sos gratuitos para todos e programas di- dáticos que chegavam mesmo ao ponto de ensinar quando aplaudir durante os

concertos. O mesmo se deu com as bi- bliotecas ambulantes, que deveriam democratizar o acesso à leitura, chama- das de "loucura de menino" por Prestes Maia, para quem a iniciativa "oferecia romances policiais para os desocupa- dos da praça da República". O prefeito que iria substituir Fábio Prado não se interessava por cultura, e sim por urba- nismo. Em vez de livros e música, Maia queria gastar seu dinheiro com aveni- das e pontes.

Mas enquanto isso, às pressas, antes de cair, Mário despachou para o Nor- deste a sua Missão de Pesquisas Folcló- ricas, para tentar trazer de volta o Bra- sil ainda intocado pela industrialização. Boa parte do resultado desse esforço de "mostrar o Brasil aos brasileiros" pode ser visto até 25 de janeiro no Instituto de Estudos Brasileiros da USP, na ex- posição Coleção Mário de Andrade, com curadoria de Marta Rossetti Batista, reunindo as obras de arte sacra, tradi- cional e popular, arte indígena e afro- brasileira, reunidas pelo poeta ao longo de sua vida e, em especial, pela Missão. Ao mesmo tempo, a Edusp acaba de editar o catálogo dessa mostra.

Em 1938 Mário foi demitido e par- tiu para o exílio no Rio de Janeiro. Para o amigo Paulo Duarte, foi o início de sua morte. Seja como for, a experiência foi um paradigma usado por Getúlio du- rante o Estado Novo, quando a ambi- güidade da relação entre artistas, inte- lectuais que queriam construir uma consciência de nacionalidade e o poder estatal iria se consolidar. "A questão da cultura passa a ser concebida em ter- mos de organização política, ou seja, o Estado cria aparatos culturais próprios, destinados a difundir sua visão de mun- do para o conjunto da sociedade", diz Barbato. O dilema mefistofélico se des- vanece. "O Estado Novo, como o coroa- mento da 'revolução passiva', correspon- dia a uma demanda de Estado expressa também como demanda de unificação cultural, resumido num projeto sui ge- neris: a um só tempo modernizador e restaurador de pilares da nacionalidade. Tudo em nome do bem comum e da construção da nação. Dessa forma foi bem aceito por setores da intelectuali- dade", observa o pesquisador. O ovo da serpente fora aberto de vez. Nacional e popular ganham novos sentidos. •

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I HUMANIDADES

HOMENAGEM

Fantasia desfeita Morte de Celso Furtado, aos 84 anos, traz de volta a questão dos problemas do subdesenvolvimento nacional

A morte tem o poder de erradicar todos os /% defeitos do falecido e não foi diferente com Zjk Celso Furtado (1920-2004). Personalida- i m des se derreteram em elogios, relem-

JL. .A^ brando o economista paraibano. Mas, em meio à mesmice das declarações, é possível perce- ber que a força real de Furtado aparece nas entreli- nhas. "Ele enriqueceu o Brasil e não a si próprio", dis- se José Serra. "Foi um exemplo notável de como se dedicar ao estudo da economia para apresentar trans- formações sociais", observou Eduardo Suplicy. "Era um grande pensador do desenvolvimento do país e, sem ele, o Brasil perde um pouco de sua vontade de crescer", declarou Delfim Netto. "Mais do que um eco- nomista, Furtado era um brasileiro que nos enchia de orgulho por seu compromisso com o Brasil, com a América Latina e com todos os países em desenvolvi- mento", notou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Curiosamente, essas frases trazem o verdadeiro Celso Furtado, um intelectual que, nos moldes de Gil- berto Freyre ou Sérgio Buarque de Holanda, via-se com a missão de entender o Brasil para fazer dele uma nação. Mesmo em constante mutação: do oti- mista pré-golpe de 64, que acreditava na eficácia da participação política e tinha esperança no desenvolvi- mento nacional, até o pessimista dos anos 1990, no os- tracismo e presenciando a vitória do que mais temia: o neoliberalismo e a globalização. Entre os dois, foi um amargurado com sonhos de mudança que, nos anos 1970 e 1980, sofreu ao ver os militares dourarem a pílula do subdesenvolvimento ao implementar, na marra, a modernização que beneficiou apenas a elite.

É sintomático que tenha batizado um de seus mu- itos livros de A fantasia desfeita. Economistas não tra- balham com fantasias nem sonham com nações. A economia de Furtado não é a mesma dos tecnocratas; antes, ancorava-se numa crença no poder da política para controlar as forças econômicas e preconizava a necessidade da distribuição da renda para humanizar

a sociedade. O economista, em verdade, escondia o pensador político e social. A era em que ele produziu suas obras mais importantes, os anos 1950 e 1960, foi de grande efervescência intelectual na América Lati- na. Revisitava-se o ideal pós-1930 da inevitabilidade de uma nova Revolução Industrial, desta vez conduzi- da pelos Estados, para fazer frente ao aumento da de- manda (crescimento demográfico) e do estrangula- mento da oferta, já que a maioria dos países estava em descompasso com a modernidade do empresaria- do do Primeiro Mundo.

Por que alguns países cresciam e prosperavam e outros, como o Brasil, viviam à margem das vanta- gens do capitalismo? Desde o início a pergunta acom- panhou o pensamento de Furtado, que fez da questão do desenvolvimento, ou do subdesenvolvimento nacio- nal, e da inserção periférica do país no sistema capita- lista internacional parte de sua missão. Pensadores como Freyre e Buarque de Holanda se debruçaram sobre esse dilema, mas Furtado foi o pioneiro em usar a economia política, em vez de interpretações bioló- gicas, climáticas ou raciais.

Para ele, faltavam racionalidade no sistema eco- nômico e um grupo de intelectuais e políticos que se colocassem acima dos interesses de classe, pondo-se, em suas palavras, "a serviço dos interesses da nação". Para Furtado, país subdesenvolvido, mera fonte de matéria-prima para outros, sempre à mercê de deci- sões externas, não se podia considerar uma nação. Nisso foi fundamental a passagem, entre 1949 e 1953, pela Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (Cepal), no Chile, e o contato com seu secre- tário-executivo, Raul Prebisch. As teses cepalinas re- pensavam o papel do intelectual, agora convertido em força ativa, e criticavam o ideário liberal, que livrava o mercado da intervenção do Estado.

Antes da Cepal, acreditava-se numa divisão inter- nacional do trabalho com países destinados natural- mente à produção agrícola e outros, à produção in-

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dustrial, tudo funcionando à perfeição, já que, no fim das contas, haveria um equilíbrio global e todos sairiam ga- nhando. Logo, os países exportadores de matérias-primas não precisariam transformar suas estruturas produti- vas. Os cepalinos puseram o dedo na ferida: o progresso e o desenvolvimen- to do chamado "centro" (os países in- dustrializados) ocorriam em detrimento dos exportadores de primários, a "peri- feria". Furtado usou esse instrumental para dissecar o Brasil e revelar que o dualismo também vigorava internamen- te: no mesmo país conviviam setores atrasados, voltados para os primários, onde estavam as camadas populares, e outros, modernos, cujo padrão de vida e consumo eram semelhantes aos paí- ses do centro. O economista viu nisso a ponta do iceberg do subdsenvolvimen- to e deu a receita para a virada: indus- trialização e reforma agrária.

Mais: questionou como era possível fazer o país crescer usando modelos ex- ternos: o Brasil tinha abundância de mão-de-obra e terras, mas pouco pro- gresso técnico. O resultado era óbvio: desemprego, baixa produtividade e, logo, subdesenvolvimento, para ele, o grande obstáculo para a construção de uma integração nacional, de uma nação. Começou a sua missão pela história. Em Formação econômica do Brasil, de 1959, avaliou a singularidade do desenvolvi- mento capitalista do país que, nascido parte integrante do sistema capitalista mundial, logo se desviou para o subde- senvolvimento. "Esse é um processo his- tórico autônomo e não uma etapa pela qual tenham, necessariamente, passado as economias que já alcançaram grau superior de desenvolvimento", escreveu. Foi o primeiro embate com os liberais, que agrupavam de forma universal o desenvolvimento das economias. Ha- via exceções.

E elas eram provocadas por esco- lhas políticas, já que, para Furtado, tudo se resumia à maneira pela qual se dava a difusão do progresso técnico pela sociedade. Nos países do centro, a escolha de uma dada tecnologia obede- cia a critérios racionais, ou seja, se usa- ria uma ou outra técnica pari passu com a otimização do uso de terras e mão-de-obra. Ricos e pobres se benefi- ciavam do progresso técnico. No Brasil, era o avesso. As elites políticas esco-

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lhiam o caminho mais bené- fico para elas: o progresso es- tava a serviço de padrões de consumo sofisticados e que mimetizavam o centro do sis- tema econômico. Na maioria das vezes se optava por tecno- logias que poupavam traba- lhadores e terras, que o país ti- nha em abundância.

"Nas economias desenvol- vidas existe um paralelismo entre a acumulação das forças produtivas e diretamente os objetos de consumo. O cresci- mento de uma requer o avanço da outra. A raiz do subdesen- volvimento reside na articula- ção entre esses dois processos causada pela modernização", avisou. "O que caracteriza o desenvolvimento é o projeto social subjacente. O cresci- mento funda-se na preserva- ção dos privilégios das elites que satisfazem seu afã de mo- dernização. Quando o projeto social dá prioridade à efetiva melhoria das condições de vida da maio- ria da população, o crescimento se meta- morfoseia em desenvolvimento. Mas essa metamorfose não é espontânea. Ela é fruto da expressão de uma vontade po- lítica." O problema do Brasil não era falta de progresso técnico, mas a não- difusão dele por toda a sociedade.

A industrialização não era sinô- /% nimo de desenvolvimento

L^L puro e simples. Sem con- Ê M trole e planejamento, os

^Lm .^L> riscos eram grandes co- mo os do modelo arcaico. Em 1955 Furtado elabora o Esboço de um progra- ma de desenvolvimento para a economia brasileira, que serviu de base para o Pla- no de Metas de Juscelino Kubitschek. O sonho pareceu possível para o econo- mista. Mas, se naquele momento as es- truturas produtivas nacionais estavam se alterando, a estrutura agrária e a mentalidade das elites dominantes ain- da eram as mesmas de antes da Revolu- ção de 30. Ele não percebeu isso e, ba- seado na crença keynesiana do papel benéfico de intervenção estatal, ainda acreditava que eram possíveis escolhas políticas racionais para os rumos eco- nômicos: o Estado poderia fazer com

Furtado, ao lado de Goulart iao centro): o teórico vira ministro e tenta colocar idéias em prática

que o excedente econômico e os avan- ços técnicos fossem empregados em acordo com as condições sociais e eco- nômicas do Brasil, quebrando o ciclo do subdesenvolvimento. As fantasias ainda não estavam desfeitas. Bastava que a sociedade optasse pela industria- lização racional e modernizadora, que atingisse a todos.

Dessa maneira, afirmava, decisões políticas internas se refletiriam em mu- danças externas na forma como o país se integrava no sistema econômico in- ternacional. Era preciso se repensar in- ternamente (incluindo-se aí a reforma agrária, que pararia o sangramento do êxodo rural, que rebaixava os salários ur- banos e concentrava a renda) para rom- per de vez o sistema centro-periferia, que, acreditava, nada tinha de natural. Furtado colocou em prática esse ideá- rio ao dar subsídios para a criação, após longos estudos da Região Nordeste, da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), em 1959.

Três anos depois voltaria ao gover- no, nomeado por Goulart para ocupar o novo ministério, do Planejamento, onde editou um Plano Trienal de De- senvolvimento Econômico e Social. Teve tempo, ainda em 1962, para lançar dois

livros: Subdesenvolvimento e Estado de- mocrático e A pré-revolução, em que re- afirmava a chance que o país tinha de reformular sua política econômica em moldes adequados ao modelo brasileiro e, assim, crescer e distribuir a riqueza pela sociedade. Suas idéias colocaram seu nome no topo da lista de cassados do AI-1 e o levaram ao exílio, de início no Chile e, mais tarde, em Paris, onde ficou por 20 anos. O "milagre econômi- co" transformou suas crenças em ilusões perdidas. O regime forte dos militares introduziu a modernização do subde- senvolvimento, quando foram adota- das algumas práticas do capitalismo contemporâneo (urbanização, novos padrões de consumo, nascimento de novos segmentos produtivos etc), mas deixando inalterados os aspectos fun- damentais que efetivamente geravam o subdesenvolvimento. A fachada de de- senvolvimento iria agravar a realidade subdesenvolvida e até mesmo perpe- tuar o atraso brasileiro. Furtado virou pessimista e reviu suas crenças nas pos- sibilidades reais de reverter o quadro de retardo econômico.

Desilusão - O mito do desenvolvimen- to econômico, de 1974, expressa essa

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Page 84: Soluções para problemas concretos

Furtado no exílio, em Paris: o otimista foi dando lugar ao pessimista

desilusão. O problema do país, escreveu, era "gerar fontes de emprego para sua numerosa e crescente população, gran- de parte da qual vegeta em setores urba- nos marginalizados ou na agricultura de subsistência". Se algo se modernizou no Brasil, explicou, foi a demanda, não a oferta ou a estrutura produtiva. Ao contrário do que pensara, o que se viu no período entre 1930 e 1970 foi ape- nas uma mudança dos padrões de con- sumo, sem nenhuma elevação ou ganho de produtividade. O regime militar pio- rou a situação ao fazer reformas que apenas concentraram ainda mais a ren- da e favoreceram o consumismo mi- mético. O economista deixou, de vez, sua roupagem técnica e se assumiu co- mo pensador social. No novo livro, à Freyre, Furtado confessa o engano do entusiasmo anterior e questiona cultu- ralmente a elite nacional. "A reprodu- ção das formas sociais, que identifica- mos como subdesenvolvimento, está ligada às formas de comportamento condicionadas pela dependência."

Mais do que uma questão econômi- ca, tratava-se de uma herança ancestral colonial de que o país não abria mão. "Para a elite manter-se moderna, ela apenas imita o comportamento das eli-

tes cêntricas, o que obriga mudanças na estrutura produtiva que necessaria- mente devem adaptar-se a este novo estilo. Assim, o crescimento industrial não supera o subdesenvolvimento e a dependência. E toda economia subde- senvolvida é dependente, pois o subde- senvolvimento é uma criação da situa- ção de dependência." Não adiantava idealizar: nesse contexto, o desenvolvi- mento era um mito.

Igualmente não se podia pensar na construção de uma nação num país cujo desenvolvimento se dava aos solavancos, com o processo de industrialização a re-

boque da lógica da modernização dos padrões de consumo da elite. Apesar do desalento, em 1979, com a anistia, Fur- tado retornou ao Brasil. O pessimismo agora é confesso em O Brasil pós-mila- gre, de 1981, em que antecipa as conse- qüências terríveis da inflação, da dívida externa, da crise energética, do caráter anti-social do modelo econômico e o papel das empresas transnacionais. Em 1985 ensaiou retornar ao Estado, convi- dado por Tancredo Neves para elaborar o Plano de Ação do Governo. Terá ou- tro papel: ministro da Cultura de Sar-

ney, em 1986, participando de forma triste do triste episódio da censura do filme Je vous sa- lue, Marie, de Godard. Debai- xo de críticas, deixou o minis- tério em 1988.

Mas será a desilusão com o novo modelo econômico o golpe mais forte em Furtado, como demonstra o livro Bra- sil: a construção interrompida, de 1992, crítica do projeto neo- liberal dos anos 1990 que, se- gundo ele, abortou a constru- ção possível da integração nacional, ao subtrair do Esta- do a sua função reguladora e ao colocar a lógica da econo- mia voltada para o mercado externo, sem nenhuma preo- cupação com as desigualdades internas. "As transnacionais, o grande capital financeiro e o grupo dos países mais ricos atuam como forças desregula- doras do sistema nacional. E essas forças dão duas opções ao Brasil: ou adapta-se à nova

ordem internacional ou torna-se um anacronismo histórico."

Furtado não quis festejar, como tantos, a globalização emergente e pas- sou a ser visto, ele, como um anacronis- mo. Em 1997 teve uma pequena alegria: a eleição para a Academia Brasileira de Letras. Depois ficou por anos calado e só voltou a falar, e muito, sobre políti- ca e economia, com a eleição de Lula. Antes de morrer, atacou o atual modelo econômico. Curiosamente, morreu próximo à queda de um de seus gran- des discípulos: Carlos Lessa, ex-presi- dente do BNDES.

Furtado exagerou sua crença na au- tonomia do Estado burguês e no inte- resse deste na distribuição da riqueza pela sociedade. Demorou a perceber a dependência cultural das elites e foi oti- mista em demasia ao acreditar que a re- versão das estruturas tecnológicas e a incorporação dos salários nos ganhos de produtividade iriam tirar o país do subdesenvolvimento. Seja como for, o seu desencanto com a globalização não é mais privilégio da esquerda. Mas, com certeza, o que o deixaria mesmo feliz é ser lembrado por ser o brasileiro que nos enchia de orgulho por seu compromisso com o Brasil. •

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Page 85: Soluções para problemas concretos

RESENHA

A dinâmica da antropologia Coletânea de artigos revela a maioridade intelectual da disciplina

JúLIO ASSIS SIMõES

Eunice Ribeiro Du- rham é um refe- rencial no ensino e

na pesquisa em antropo- logia entre nós. Não só para as diversas gerações de estudantes e profissio- nais da área, que tiveram o privilégio de acompa- nhá-la em sua melhor for- ma, na sala de aula e no campo, ao longo de impressionante carreira que já conta cinco décadas. Todos os que se engajaram em investigações e debates a que ela se dedicou, sobre temas medulares nas ciências sociais brasileiras nas últimas cinco décadas - e a lista não é pequena: migração, urbanização, família, participação polí- tica, movimentos sociais, institucionalização da antropologia, ensino universitário -, podem teste- munhar o alcance e a influência de suas contribui- ções e polêmicas, que conservam muito de seu im- pacto e atualidade.

Por isso só se pode saudar a iniciativa dessa pu- blicação (que deve ser creditada a Ornar Ribeiro Thomaz) reunindo artigos de toda a trajetória da professora emérita da Universidade de São Paulo (USP). Como assinala Peter Fry no belo prefácio, a coletânea, além de perfazer uma autobiografia inte- lectual da autora, oferece ao leitor uma parte da his- tória da antropologia no Brasil, em que também se afirma a maioridade intelectual da disciplina. Da visão antropológica, enriquecida pelo diálogo com a sociologia, a ciência política, a história e (por que não?) a biologia, são enfrentadas grandes questões: a explosão da vida urbana e da sociedade civil orga- nizada, a resistência à ditadura militar e a transição para a nova democracia, a expansão e os desafios da educação básica e da universidade. Nada mau para uma disciplina tida como eterna outsider das ciên- cias sociais.

A coletânea permite identificar alguns traços persistentes no pensamento e na obra de Eunice Durham. Encontramos, inicialmente, trabalhos re- presentativos de sua formação na antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, na década de 1950, em sua preocupação com a "mudança cultu- ral". Destacamos a dupla marca dessa formação: a incorporação das técnicas e perspectivas da etno-

A dinâmica da cultura

Eunice Ribeiro Durham

Cosac Naify

480 páginas / R$ 59,50

grafia clássica - Malinowski é uma paixão permanente, mas não menos significativa lhe foi a tradição dos "estudos de comunidade" - e a orienta- ção teórica provida pela ca- deira de sociologia comanda- da por Florestan Fernandes. Provêm dessa aliança o inte- resse duradouro da autora em "entender como grupos ou

segmentos sociais empirica- mente delimitados vivem,

atuam e pensam" como também sua insistência em que estudos de base etnográfica sejam referidos ao contexto histórico mais amplo e à "importância crucial da dominação política e econômica".

Essa marca a afastou dos estudos de "acultura- ção", que davam a tônica da velha cadeira de antro- pologia da USP, e foi transposta para o programa de pesquisas com populações urbanas, com ênfase nas relações entre cultura e política, que ela desen- volveu nas décadas de 1970 e 1980, ao lado de Ruth Cardoso. Alocadas ambas na área de ciência políti- ca, formaram novas gerações de antropólogos num contexto institucional e político bem diferente: no país, sob a ditadura militar; nas ciências sociais us- pianas, sob a hegemonia do marxismo.

Nessa fase, apropriadamente chamada de "he- róica" pelo prefaciador, Eunice Durham escreveu talvez os seus melhores ensaios: "A dinâmica cultu- ral na sociedade moderna", "Cultura e ideologia", "Movimentos sociais: a construção da cidadania", entre outros. São diálogos fecundos da antropolo- gia com o marxismo, argutos na avaliação das for- mas então emergentes de participação cultural e política; e precisos na crítica tanto ao abuso dos macroconceitos estruturais como na confiança in- gênua nos recursos da pesquisa qualitativa. Junta- mente com a magistral introdução preparada para o volume ("Uma história muito pessoal de meio sé- culo de antropologia na USP"), merecem ser (re)li- dos com especial atenção, sobretudo pelos jovens pesquisadores.

JúLIO ASSIS SIMõES é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp e professor do Departamento de Antropolo- gia da USP, autor de O dilema da participação popu- lar (Marco Zero/Anpocs, 1992)

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Page 86: Soluções para problemas concretos

LIVROS

O rei ausente

Ana Paula Torres Megiani Editora Alameda / FAPESP 326 páginas / R$ 44,00

Festa já foi coisa muito séria, assunto mesmo de Estado. É isso que revela esse livro sobre a festa, a etiqueta e o poder no "tempo dos Filipes", período

histórico escolhido por Ana Megiani para discutir a importância das cerimônias no Antigo Regime, momentos em que se recriava, de forma alegórica, o status quo monárquico e a hierarquia, uma maneira de perpetuar a ordem estabelecida. O "tempo dos Filipes" foi o período em que Portugal esteve submetido à Espanha.

Alameda Casa Editorial (11) 3862-0850 www.alamedaeditorial.com.br

Luta história da tísica no Êtrasil

Uma história da Física no Brasil

José Leite Lopes Editora Livraria da Física 224 páginas / R$ 39,00

Um dos maiores nomes da física nacional, José Leite Lopes tem, finalmente, seus escritos mais

importantes reunidos em livro. São várias seções que falam da física brasileira e mundial. Leite Lopes faz um balanço de seus 55 anos de carreira, dá sua visão sobre cientistas ilustres, como Einstein, Newton, entre outros. Os blocos finais revelam a preocupação com o descaso pela pesquisa no Brasil e a responsabilidade da ciência.

Editora Livraria da Física (11) 3816-7599 www.livrariadafisica.com.br

A irrecusável busca de sentido

Scarlett Marton Ateliê Editorial 288 páginas / R$ 36,00

Conhecida por seus estudos sobre Nietszche, a professora da Universidade de São Paulo Scarlett Marton, quase

nos moldes do mestre alemão, resolveu fazer da experiência de seu concurso para professora titular de filosofia na Universidade de São Paulo o tema de um livro autobiográfico. Mas, mais do que revelar o seu percurso intelectual, Scarlett quer discutir a condição humana e o papel assumido hoje pelo mundo acadêmico.

Ateliê Editorial (11) 4612-9666 www.atelie.com.br

Para uma nova história

Textos de Sérgio Buarque de Holanda Marcos Costa (organizador) Editora Fundação Perseu Abramo 174 páginas / R$ 30,00

Perdidos no tempo e no espaço de velhos jornais, os artigos de Sérgio Buarque de Holanda foram

recuperados pelo historiador Marcos Costa e trazem novas luzes sobre o pensamento do autor de Raízes do Brasil. São escritos que perpassam toda a vida do pensador, dos anos 1920 até os anos 1970, obras curtas, enxutas que, ainda assim, tratam de temas como capitalismo, democracia, filosofia e escravidão. O resultado é um perfil menos acadêmico e mais político.

Editora Fundação Perseu Abramo (11) 5571-4299 www.fpabramo.org.br

Trincheira, palco e letras

Antônio Arnoni Prado Cosac Naify 350 páginas / R$ 49,50

Um dos mais respeitados estudiosos da literatura brasileira lança uma coleção de artigos sobre as letras nacionais no século 19 que consegue formar um

panorama do desenvolvimento da nossa escrita. São cinco blocos: "Boêmios, letrados e insubmissos", sobre os escritores da Belle Époque; "Cena libertária", sobre os escritores libertários; "Interregno", sobre Augusto dos Anjos e Euclides da Cunha; "Variações sobre um narrador sitiado", sobre Lima Barreto; e um ensaio sobre Sérgio Buarque, entre outros.

Cosac Naify (11) 3218-1444 www.cosacnaify.com.br

0 "it verde e amarelo" de Carmen Miranda [1930-1946]

Tânia da Costa Garcia Annablume/FAPESP 252 páginas / R$ 35,00

Como desvendar a vida real e a verdadeira importância de uma diva como Carmen Miranda? Foi a isso

que se propôs a pesquisadora nesse estudo que pretende descobrir o que a cantora e atriz portuguesa, símbolo do Brasil até hoje, significou. Tânia disseca todo o mistério que envolve a utilização da artista como ponte entre Brasil e Estados Unidos.

Annablume Editora (11) 3812-6764 www.annablume.com.br

PESQUISA FAPESP 106 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ 91

Page 87: Soluções para problemas concretos

Travessia

BRUNO ZENI

A rotina clínica, para o paciente, é ao mesmo tempo um estorvo e um conforto. A mãe tomou um ZA susto ao medir a pressão - altíssima - num exame rotineiro. De súbito, tudo o que nos parecia

-L JL hábito e cuidado passou a significar descaso. Para os que são próximos, como eu - ainda que morando a distância -, vive-se com mais intensidade o costume da recorrência: as consultas constan- tes asseguram certa confiança, que os médicos dosam com sabedoria. A ocorrência inesperada, porém, nos devolve, paciente e familiares, ao plano da incerteza e da intranqüilidade.

A pitose no olho direito não regredia, um dos braços - do mesmo lado direito do corpo - conti- nuava inchado, e o cansaço que ela sentia - ela que sempre fora uma mulher disposta - não era habi- tual, fato que nos deixava apreensivos, mas não preocupados o suficiente para que nos decidíssemos a consultar outros nomes. Eu, a distância, acompanhava o caso pelas palavras do pai. Havia água no pul- mão, como informariam depois os exames. E também os ossos talvez tivessem sido atingidos, o que os levou, os novos médicos, a pedir uma cintilografia óssea. Agora, durante a visita de emergência que faço aos meus pais, ouço da própria mãe o relato dos acontecimentos recentes. O geriatra não levou em conta a pressão fora do normal e o oftalmologista supôs que a queda da pálpebra pudesse decor- rer de alguma alergia.

A mãe, porém, nunca fora alérgica a nada. A pressão, aliás, sempre tendeu à queda mais do que à alta. Ambos, geriatra e oftalmo, desconsideraram o histórico clínico - nada desprezível - da paciente. "Vocês ligaram para o mastologista?" eu quis saber. Era o médico que a havia operado e que, de certa forma, tinha responsabilidade pelo quadro clínico geral da mãe. Ignoro se é a conduta recomendada para o caso, mas o mastologista era, digamos, o titular. E, afinal, me parece que quem decide pela con- duta mais acertada são os próprios médicos, não o paciente. Não é para isso que eles servem? "Vocês ligaram para o seu médico?", eu quis saber, enquanto ainda retinha a mãe junto ao meu corpo, num abraço de filho crescido.

Para acompanhar todo o procedimento de longe é preciso administrar a angústia. Tive, pela pri- meira vez, a sensação forte de que a mãe pode morrer. "A mãe pode morrer" - essa frase tornava-se re- corrente dentro de minha cabeça, ecoando materialmente em torno de meus pensamentos cotidianos. "E talvez não demore." Talvez a morte tenha reservado um ritmo galopante para nossas vidas de com- passo regular. O horizonte da vida, assim, começava a parecer muito próximo, tomando concretude. Eu podia entrevê-lo numa medida de tempo alarmante. Um ano, meses, semanas?

Nossas vidas organizavam-se em torno dela, percebi pela primeira vez com toda nitidez. A mãe nos unia em torno de sua personalidade. Marido e três filhos homens, todos com trajetórias particulares e muito pessoais, com as quais ela sabia se relacionar com especial atenção a cada um. Sua falta seria um rombo em nossas existências seguras e encaminhadas. Uma mudança de rota? Uma troca de mapa? Um novo espírito? As metáforas me soavam desprovidas de significado. Pareciam, também elas - co- mo todos nós -, quase mortas.

Reencontrar a mãe depois de meses foi, assim, reconfortante e ao mesmo tempo assustador. A es- trada, deixada para trás, era um caminho de retorno a uma situação com a qual eu nunca havia depa- rado. Eu voltava a casa de meus pais, mas já não como filho que busca aconchego e segurança, mas como um homem que vai de encontro à possibilidade da morte súbita. Vim ao encontro da falta da mãe, sabendo que ainda a encontraria presente. O caminho era novo e eu precisava me certificar de que poderia atravessá-lo.

92 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 106

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Me senti desestabilizado como há muito não sentia. Sem nada comentar diretamente, comparti- lhamos a experiência. Acho que a recorrência da moléstia também a atingiu, e o sentimento de aban- dono gerado pela postura dos médicos - geriatra e oftalmologista - assolou-a mais do que a idéia de que a doença não estava de todo debelada.

"Depois que mediram a pressão, não me deixaram mais sair da clínica", ela contava agora, de novo apartada dos meus braços de filho adulto. "A equipe toda é muito atenciosa", a mãe continuou. "Não sei o que teria acontecido se eles não tivessem tomado conta de mim."

Estava emocionada com a dedicação com que a nova equipe a tinha tratado. Vi a mãe chorar. Algo raro, muito raro, em todos esses anos.

"Não precisa muito. Basta um pouco de atenção. O paciente sente quando alguém se preocupa com ele, e essa é a tarefa do médico, ele tem de desconfiar e cercar todas as possibilidades", o pai ain- da disse, como forma de comemorar o encontro com a equipe nova, enquanto a mãe enxugava as lágrimas.

Minha mãe continua bonita, pensei. Continua bonita a minha mãe e talvez até mais atraente, ago- ra que sua luta, explícita, a torna mais forte, mais viva, mais mulher.

"Vai deixar de ser uma doença fatal para ser uma doença crônica", disse o médico, ao final de mais uma bateria de exames. Em outras palavras, teremos de nos habituar com a rotina conforta- dora e exasperante do tratamento e de suas seqüelas. O cabelo enfraquecido, enjôos e falta de pala- dar, queda de imunidade, ressecamento das mucosas, inchaço do rosto. Hoje, quando penso na fra- se do médico, oscilo entre o alívio e o pesar. Talvez a morte seja mesmo um evento que exija mudanças de rotas, trocas de mapas e renovação do espírito. Só ela, e não a percepção de sua ocorrência, é ca- paz de promover essa ruptura e essa cicatriz. Mas encarar sua possibilidade exige o convívio entre a permanência do antigo mundo e a ferida que ainda não veio mas virá. Eu pensava em tudo isso en- quanto minha mãe terminava de narrar sua peregrinação, da clínica para o hospital, de médico ge- riatra para um novo oncologista, da periodicidade dos exames para a constância dos procedimen- tos terapêuticos.

Certo, precisamos nos acostumar com a idéia de que, em algum momento, envelhecemos todos, mas a doença nos empurra de peito aberto rumo à degeneração, sejamos jovens, adultos ou velhos. Enquanto a morte não chega, vivemos com seu gosto nos lábios, sentindo-o de quando em quando, de forma que os momentos vitais assumem significação luminosa, a ponto de não conseguirmos assi- milá-los, tão intensos e incisivos.

Eu pensava nessas coisas todas, enquanto meus pais e eu adentrávamos a casa, reconfortados por estarmos mais uma vez juntos, os três vivos, os dois ainda casados, amando um ao outro, eu adulto e sozinho, numa situação improvável e fugaz.

"Ser é lembrar. É do ser humano ser um ser rememorativo. A morte apaga a essência do ser." Ago- ra eu colecionava frases quebradiças e recorrentes, que reverberavam - metálicas - pelo caminho.

BRUNO ZENI nasceu em 1975, em Curitiba (PR). É formado em jornalismo e mestre em Teoria Literária pela USP. É autor de O fluxo silencioso das máquinas (Ateliê Editorial) e coordenador editorial de Sobre- vivente André du Rap (do Massacre do Carandiru) (Labortexto Editorial).

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ARTIGO

Aula de física

m ■ esquisa FAPESP quebra um tabu nas páginas a seguir. m ^Ê Pela primeira vez publica um longo artigo de um pes- m quisador sobre um tema importante para a ciência.

M Como se sabe, esta revista edita reportagens sobre pro- M. jetos de pesquisa de ciência e tecnologia e, apenas

eventualmente, curtos artigos de pesquisadores. O físico e professor Roberto Salmeron, radicado há muitos anos na França, oferece aos leitores um relato único sobre os 50 anos do Centro Europeu de Pes- quisas Nucleares (CERN), um dos grandes feitos científicos do século passado. E aproveita para dar uma panorâmica bastante didática sobre as pesquisas de física de partículas. Este artigo se justifica não só pela importância do assunto, mas também pela excelência do autor. Físico, diretor de pesquisa emérito aposentado da Escola Politécnica da Fran- ça, Roberto Salmeron foi um dos primeiros pesquisadores do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, no Rio de Janeiro, e do CERN, em Ge- nebra, Suíça, professor da Universidade de São Paulo e da Universi- dade de Brasília. É autor do livro A universidade interrompida: Brasí- lia, 1964-1965 (Editora UnB, 1999, esgotado) e é um dos pesquisadores entrevistados no livro Prazer em conhecer (FAPESP/Instituto Uniemp, 2004). Com este artigo, Pesquisa FAPESP crê contribuir para a histó- ria da física nesse período.

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CERN Uma experiência científica, social e humana

ROBERTO A. SALMERON

O laboratório Organização Européia para a Pesquisa Nuclear, conhecido pela sigla CERN, situado em Genebra, na Suíça, fundado em 29 de setembro de 1954, comemora 50 anos. Esse prestigioso la-

boratório é uma das maiores aventuras científicas do século 20. Sua importância é considerável não somen- te pelos sucessos científicos e tecnológicos, mas tam- bém porque inventou a colaboração internacional em ciências, criando uma nova relação em pesquisa entre os países e entre laboratórios de diferentes países, uma nova sociologia na ciência, que resultou numa experiên- cia humana pioneira na história da civilização.

O CERN é o maior laboratório do mundo em pes- quisa fundamental, incluindo todas as ciências. Ape- sar de ser europeu, sua importância vai além da Eu- ropa, influenciando a física mundial. É a instituição internacional de maior sucesso, por ter atingido ple- namente os objetivos para os quais foi criado. Sua his- tória é exemplo de idealismo, de relações humanas, de colaboração entre países, de planificação científica e tecnológica, de formação de jovens pesquisadores, de relações da ciência básica com a indústria.

Previsto inicialmente para que nele trabalhassem 400 pessoas dos 12 países que o criaram, é hoje fre- qüentado por 6.500 pesquisadores de 80 países.

Uma das mais antigas curiosidades do homem é saber de que são feitas as coisas, como é feito o Univer- so, como compreender o que há na Terra e no céu. As tentativas de explicação começaram há mais de 5 mil anos com a mitologia e continuaram sem base objeti- va durante séculos, sem o método experimental intro- duzido por Galileu no século 17. Os primeiros passos científicos se deram em meados do século 19 e gran- des progressos foram feitos no século 20. Nos últimos 50 anos, desde o início do CERN, com trabalhos rea- lizados em muitos lugares, não somente no CERN, aprendemos mais sobre a estrutura da matéria do que em toda a história anterior da humanidade.

O objetivo do CERN é o estudo da estrutura ínti- ma da matéria, isto é, das partículas elementares que

constituem a parte mais profunda da matéria, e das leis que regem as forças exercidas pelas partículas en- tre elas. Aprendemos que essas partículas constituem todos os corpos existentes na Terra e no Universo. Co- nhecendo as leis que as regem, estaremos conhecendo leis fundamentais do Universo.

Tive o privilégio de trabalhar no CERN desde a sua fundação, quando terminei meu trabalho de tese na Universidade de Manchester, na Inglaterra, tendo sido um dos dez primeiros físicos experimentais con- tratados pelo laboratório. Fui membro do quadro permanente de físicos durante dez anos e continuei fazendo experiências lá durante mais 25 anos como físico da École Polytechnique da França, até me apo- sentar. Tive então a oportunidade excepcional de acompanhar a evolução do laboratório desde a sua origem.

Este artigo foi organizado levando-se em conside- ração que em sua grande maioria os eventuais leitores não conhecem a física de partículas elementares. Queremos mostrar a motivação para a fundação do CERN e o apoio constante que teve durante 50 anos, e continua tendo, de tantos países. Veremos como es- tudamos as partículas e o impressionante arsenal tec- nológico desenvolvido para esses estudos. Por isso mostraremos inicialmente o que são raios cósmicos e sua contribuição à física de partículas, o que são ace- leradores, a história da fundação do CERN, sua estru- tura e os objetivos fundamentais das experiências no CERN. Daremos também algumas noções sobre físi- ca de partículas e sua relação com a astronomia, os grandes desafios científicos nesses ramos da física e, finalmente, um resumo dos sucessos do CERN.

A primeira fotografia na página 6 mostra onde está instalado o CERN, na região fronteiriça entre o cantão de Genebra e a França. Os vários círculos cor- respondem aos lugares onde estão os aceleradores de partículas, em túneis subterrâneos. O círculo maior, de 27 quilômetros de comprimento, indica o Large Hádron Collider (LHC), cuja construção terminará em 2007.

II ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 106

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1 - A física na Europa no fim da Segunda Guerra Mundial

Para compreendermos a importância da fundação do CERN é necessário voltarmos à situação da Euro- pa no fim da Segunda Guerra Mundial, que durou de setembro de 1939 a maio de 1945. Antes da guerra a ciência européia era a vanguarda. Os trabalhos funda- mentais que assentaram as bases da física moderna foram feitos na Europa. Durante a guerra os labora- tórios europeus foram destruídos, fechados ou tive- ram sua atividade muito reduzida. De outro lado, os Estados Unidos, que também fizeram grande esforço de guerra, nunca tiveram batalhas em seu território, suas universidades e laboratórios ficaram intactos, a pesquisa continuou e um esforço enorme e apoio sem limites foram dados à física nuclear. Além disso, os Estados Unidos contaram com a colaboração de exce- lentes físicos europeus que para lá emigraram.

A Europa tinha, no entanto, trunfos de grande va- lor: nível científico elevado e tradição. Terminada a guerra, a pesquisa foi retomada gradualmente, com poucos recursos disponíveis. Um dos campos da físi- ca ao qual alguns laboratórios se dedicaram foi o de raios cósmicos; em alguns casos construindo equipa- mentos de porte reduzido para experiências em que a imaginação era mais importante do que o material, em outros, retomando e completando o equipamen- to construído para experiências antes da guerra, in- terrompidas durante cinco anos.

Raios cósmicos são relacionados com as pesquisas feitas no CERN com aceleradores de partículas. Veja- mos inicialmente o que são raios cósmicos e algo so- bre aceleradores.

2 - Raios cósmicos

A física de partículas elementares, que se faz no CERN, começou com estudos de partículas em raios cósmicos.

Existem fenômenos atômicos em todos os astros, e nesses fenômenos são produzidas partículas atô- micas, como prótons, nêutrons, elétrons, fótons, que percorrem o Universo em todas as direções; muitas chegam até a Terra. Essas partículas atômicas que che- gam do Universo à Terra são chamadas raios cósmicos, nome dado antes de sabermos o que eram. Quando chegam à atmosfera, colidem com as moléculas de ar e produzem mais partículas atômicas, que têm ener- gia menor do que as partículas iniciais. As partículas emitidas pelos astros produzem assim cascatas ou chuveiros de partículas na atmosfera. Raios cósmicos constituem, portanto, uma fonte de partículas atômi- cas. Em experiências que detectavam raios cósmicos várias partículas foram descobertas e suas proprieda- des mais características foram medidas.

Dois anos depois de terminada a guerra foram fei- tas na Inglaterra duas descobertas fundamentais em raios cósmicos, em 1947, com dois meses de interva-

lo. Na Universidade de Bristol, Cecil Powell tinha de- senvolvido e posto em prática a técnica de emulsões nucleares espessas, de milímetros e centímetros de es- pessura, para detectar partículas, depois de vários anos de trabalho em colaboração com a fábrica de fil- mes Ilford (tinha iniciado o trabalho antes da guer- ra). Por essa técnica de grande importância Powell re- cebeu o Prêmio Nobel. Utilizando essas emulsões, Cecil Powell, César Lattes e Giuseppe Occhialini des- cobriram uma nova partícula atômica, que chama- ram méson pi (letra grega jt). Na Universidade de Manchester, Clifford Butler e George Rochester tra- balhavam com a técnica de câmara de Wilson, na qual a trajetória da partícula deixa um rastro que pode ser fotografado. Com essa técnica descobriram um novo tipo de partículas, que chamaram partículas V, atual- mente chamadas partículas estranhas. As duas desco- bertas causaram sensação e uma revolução na física. A descoberta do méson pi não causou surpresa, porque teoricamente se esperava que um tipo de partículas com suas propriedades poderia existir, para explicar as forças existentes entre os prótons e os nêutrons dentro do núcleo atômico. Mas a descoberta das par- tículas estranhas foi grande surpresa, ninguém as es- perava, não havia nenhuma evidência, nem experi- mental nem teórica, de que tais partículas pudessem existir. O grande físico inglês Patrick Blackett, diretor do Departamento de Física da Universidade de Man- chester, dizia: "O que estão fazendo na natureza essas partículas? A natureza está nos enviando uma mensa- gem que nós ainda não compreendemos".

A descoberta dessas partículas, especialmente das partículas estranhas, estimulou grande curiosidade. Formaram-se grupos de raios cósmicos em vários países europeus e nos Estados Unidos para estudar as novas partículas. Havia nesses grupos uma expectati- va rara em ciência. Fazíamos experiências com a con- vicção de que novos domínios da natureza estavam se abrindo para nós, que a probabilidade de encontrar- mos algo de novo era grande, mas não tínhamos a mí- nima idéia do que poderíamos encontrar.

Não podemos deixar de assinalar que um grupo de físicos da Universidade de São Paulo (USP) teve papel importante nessa evolução. Quando a USP foi fundada, em 1934, assumiu a direção do Departa- mento de Física da recém-criada Faculdade de Filoso- fia, Ciências e Letras o professor italiano Gleb Watag- hin, excelente físico teórico e experimental. Wataghin ensinou a nós, brasileiros, a física moderna do século 20 e como fazer pesquisa nessa física. Organizou um grupo para pesquisas em raios cósmicos que em pou- cos anos adquiriu reputação internacional. Gleb Wa- taghin e dois jovens, Paulus Aulus Pompéia e Marcel- lo Damy de Souza Santos, descobriram em São Paulo, em 1940, um novo fenômeno físico: uma partícula colidindo com outra pode produzir na colisão outras partículas que penetram muitos centímetros na ma- téria, por exemplo ferro ou chumbo. Esse processo nunca tinha sido observado. Chamaram as partículas

PESQUISA FAPESP 106 ■ DEZEMBRO DE 2004 • m

Page 92: Soluções para problemas concretos

assim produzidas de chuveiros penetrantes, atualmen- te chamados chuveiros hadrônicos. Nos aceleradores como os do CERN, eles são produzidos milhões de vezes por segundo.

A experiência de São Paulo foi feita com contado- res Geiger-Muller, que são os mais simples detectores de partículas que existem. Lembremos que em 1940 a Europa estava em guerra. Quando ela terminou, Pa- trick Blackett propôs a George Rochester e Clifford Butler que repetissem na Universidade de Manchester a experiência de São Paulo com uma técnica diferen- te, a câmara de Wilson. Assim Rochester e Butler des- cobriram as partículas estranhas. O grupo de São Paulo contribuiu, portanto, para essa descoberta. O professor Wataghin disse-me uma vez que queria fa- zer a experiência com câmara de Wilson, mas não teve condições para fazê-la.

Durante a guerra os norte-americanos construí- ram aceleradores de prótons, chamados ciclotrons, importantes para a física nuclear, alguns construídos em laboratórios nacionais que tinham trabalhado para as pesquisas de guerra. Depois da descoberta dessas partículas, os norte-americanos, com seus la- boratórios intactos e com a hábito de financiar proje- tos importantes adquirido durante a guerra, começa- ram a construir aceleradores para o estudo do méson pi e das partículas estranhas, porque com acelerado- res podemos estudá-los muito melhor do que com raios cósmicos. Na Europa havia somente dois ciclo- trons pequenos, incapazes de produzir as novas partí- culas; um em Paris, no Collège de France, construído por Frederic Joliot antes da guerra, outro na Univer- sidade de Liverpool, na Inglaterra, levado a termo pe- lo grupo de James Chadwik. A conseqüência foi que o estudo dessas partículas podia ser feito somente nos Estados Unidos, era uma ciência americana.

3 - Aceleradores de partículas

Um acelerador, como o nome indica, é uma má- quina que acelera partículas, isto é, aumenta a sua ve- locidade. Somente partículas que têm carga elétrica podem ser aceleradas; o próton e o elétron podem ser acelerados porque têm cargas elétricas, o nêutron não pode ser acelerado porque não tem carga elétrica. Isso porque a partícula é acelerada por um campo elétri- co que exerce uma força sobre a carga elétrica e "em- purra" a partícula. Quando uma partícula é acelera- da, sua energia aumenta, como acontece com qualquer corpo acelerado.

As unidades de energia utilizadas são chamadas milhão de elétron-volts, indicado por MeV, e giga elé- tron-volts, indicado por GeV. Um MeV é igual à ener- gia que adquire uma partícula quando passa entre dois pontos que têm diferença de potencial de 1 mi- lhão de volts. O GeV é mil vezes maior: é igual à ener- gia que a partícula adquire quando passa entre dois pontos que têm diferença de potencial de 1 bilhão de volts.

Essas energias são grandes para partículas, porque elas adquirem grandes velocidades, muito próximas à velocidade da luz no vácuo, que é a maior velocida- de que existe na natureza. Com 1 GeV, em um segun- do podem percorrer sete vezes o equador terrestre. Mas são energias muito pequenas em comparação com as energias que utilizamos todos os dias. Por exemplo, um grão de areia de volume igual a 2 milí- metros cúbicos, com velocidade de apenas 1 centíme- tro por segundo, tem energia igual a 1 GeV.

No acelerador, a partícula tem de passar por uma região onde há um campo elétrico. Não é possível obtermos tensões tão altas, como milhões e bilhões de volts, para produzirmos esse campo elétrico. Usamos então uma astúcia. Fazemos a partícula percorrer uma trajetória circular, e nessa trajetória são coloca- dos campos elétricos em várias regiões; cada vez que a partícula passa por esses campos ela é acelerada, e passando muitas vezes é muito acelerada. Por exem- plo, a partícula pode passar por 10 mil volts cada vez que percorre a circunferência; percorrendo 1 milhão de vezes terá passado por 1 milhão x 10 mil volts, ou 10 bilhões de volts, isto é, 10 GeV. É por isso que mui- tos aceleradores são circulares.

Todos os aceleradores de partículas têm fontes de diferença de potencial. Os aceleradores circulares têm eletroímãs que curvam a trajetória das partículas e as fazem descrever circunferências. Os eletroímãs não aceleram, não dão energia às partículas, somente fa- zem as partículas descrever circunferências. As partí- culas ficam dentro de um tubo metálico no qual se faz alto vácuo, superior ao vácuo interestelar no Universo.

A segunda fotografia na página 6 mostra parte do acelerador de prótons de 400 GeV instalado num túnel subterrâneo, como todos os aceleradores do CERN. Aparecem alguns eletroímãs e o tubo metálico com alto vácuo, no interior do qual circulam os prótons. O comprimento do acelerador é de 6 quilômetros.

As vantagens de estudarmos partículas com acele- radores em relação a raios cósmicos são imensas:

a) com um acelerador de prótons, por exemplo, sa- bemos que são os prótons, de energia conhecida, que vão entrar em colisão, na qual serão produzidas as partículas que queremos estudar; em raios cósmicos, não conhecemos a natureza da partícula que colidiu nem a sua energia;

b) o fluxo de raios cósmicos é pequeno; nas expe- riências para estudar as partículas estranhas em raios cósmicos era detectada uma colisão de cinco em cin- co minutos, aproximadamente, e era detectada uma partícula por dia ou cada dois dias; com os acelerado- res, são produzidos milhões de colisões por segundo e dezenas das partículas estranhas por segundo. Com o acelerador que o CERN está construindo, o LHC, ha- verá 1 bilhão de colisões por segundo.

A terceira fotografia na página 6 mostra um detec- tor de partículas. Esse aparelho complexo foi constru- ído por uma colaboração de grupos de mais de 20 países, cada grupo tendo feito uma parte do detector

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no seu país. As partes foram transportadas e o con- junto montado no CERN. Vemos que os detectores atuais são projetos industriais. O detector dessa foto- grafia é da penúltima geração; os que estão sendo construídos para o LHC são muito maiores.

A quarta fotografia na página 6 mostra trajetórias de partículas com carga elétrica num detector coloca- do dentro de um eletroímã. O campo magnético faz com que as trajetórias sejam circulares.

4 - A idéia de Louis de Broglie e a fundação do CERN

As conseqüências da guerra para a Europa foram dramáticas, como é sabido. Em alguns países, mesmo entre aqueles com melhores situações econômicas, como a Grã-Bretanha e a França, ainda havia racio- namento de certos alimentos e de carvão para aqueci- mento das residências dez anos depois de terminada a guerra. O dinheiro para a ciência era limitado, ne- nhum país tinha condições para construir um labora- tório de pesquisa de grande porte.

Em 1949, numa conferência cultural européia rea- lizada em Lausanne, na Suíça, o físico francês Louis de Broglie propôs que, para restaurar grandes atividades de pesquisa, a Europa criasse laboratórios europeus de ciências. De Broglie gozava de imenso prestígio, tinha recebido o Prêmio Nobel pelo trabalho de sua tese de doutorado, que estabeleceu as bases da mecâ- nica quântica, o mais importante ramo da física mo- derna, que revolucionou a física. No ano seguinte, em 1950, o físico de origem alemã naturalizado norte- americano Isidore Rabi, que também tinha recebido o Prêmio Nobel, na 5a Conferência-Geral da Unesco, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, em Florença, na Itália, retomou a idéia de De Broglie e propôs uma resolução, adotada unanimemente, autorizando a Unesco "a auxiliar e encorajar a formação e organização de centros regio- nais e laboratórios a fim de aumentar e tornar mais útil a colaboração internacional de cientistas". Mas havia uma grande diferença entre os dois homens e entre suas intenções. De Broglie era um puro, queria restaurar o nível e manter a tradição da ciência euro- péia. Rabi, apesar de ser professor na Universidade de Columbia, em Nova York, era conselheiro do Depar- tamento do Estado (Ministério das Relações Exterio- res) dos Estados Unidos e era uma espécie de inspetor da física internacional para o governo norte-america- no. Sua idéia era de que a Europa, com sua tradição científica, poderia ter centros regionais de várias ciên- cias, não somente de física, e obter resultados em pes- quisa básica que poderiam ser úteis para os Estados Unidos, que assim poderiam concentrar 25% de seus pesquisadores em trabalhos para a guerra.

Essas propostas eram gerais para as ciências. Mas, para que fosse criado um laboratório europeu especí- fico para a física de partículas, para que o CERN vies- se a existir, as pessoas mais importantes foram o físi-

co italiano Edoardo Amaldi, principalmente, e o físi- co francês Pierre Auger. Amaldi, que tinha uma rara visão global da ciência e do seu impacto na sociedade, foi o homem que sugeriu a filosofia de comporta- mento do CERN, seguida desde a origem: um labora- tório aberto a todos os países, com trabalhos científi- cos amplamente divulgados, sem nenhuma atividade secreta e nenhuma influência militar. Em outras pala- vras, um laboratório de paz. Ele colocou o Departa- mento de Física da Universidade de Roma à disposi- ção para secretariar os grupos de discussão.

A idéia de fazer um laboratório internacional foi logo apoiada por eminentes físicos europeus, entre eles: Enrico Fermi, grande amigo de Amaldi, que tra- balhava da Universidade de Chicago, Niels Bohr, da Di- namarca, Patrick Blackett, da Inglaterra, Werner Hei- senberg, da Alemanha, H. Casimir, da Holanda, Louis Leprince-Ringuet, da França.

5 - Etapas importantes na fundação do CERN

Os físicos interessados na idéia de um laboratório europeu procuraram apoio dos respectivos governos, porque um empreendimento científico de importân- cia, seja internacional ou nacional, somente pode ser feito com vontade política.

Em 1952, numa outra Conferência-Geral da Unesco, 11 governos europeus concordaram em criar provisoriamente um Conselho Europeu para Pesqui- sas Nucleares (Conseil Européen pour Ia Recherche Nucléaire, donde vem a sigla CERN), para organizar reuniões e discussões. Numa reunião ulterior desse conselho em Amsterdã, na Holanda, foi escolhido o cantão de Genebra, na Suíça, como lugar de instala- ção do CERN. Um cantão na Suíça é equivalente a um estado no Brasil. Foi escolhida Genebra por já ter grande experiência em acolher organizações interna- cionais, dispondo de um aparelhamento jurídico para o funcionamento dessas instituições.

Depois da ratificação inicial de um convênio pe- los Estados-membros, foi criada a Organização Eu- ropéia para Pesquisas Nucleares em 29 de setembro de 1954 por 12 países. O conselho provisório foi dis- solvido e um novo conselho foi criado de acordo com os estatutos.

Os 12 países fundadores do CERN são: Alemanha, Bélgica, Dinamarca, França, Grã-Bretanha, Grécia, Ho- landa, Itália, Iugoslávia, Noruega, Suécia e Suíça. A Iu- goslávia retirou-se em 1961.

Em fevereiro de 1955 houve a primeira reunião do novo conselho do CERN num edifício público de Ge- nebra. Foi escolhido como diretor-geral o físico suíço Felix Bloch, Prêmio Nobel de Física. Bloch presidiu a cerimônia de depósito da pedra fundamental num ter- reno próximo à cidade de Meyrin, oferecido pelo can- tão de Genebra, em junho de 1955. Bloch, físico teóri- co, não quis continuar na direção do laboratório, que entrava num período de construção de aceleradores e desenvolvimento tecnológico, e pediu para ser substi-

PESQUISA FAPESP 106 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ V

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Localização do CERN. Os círculos correspondem aos

lugares onde estão os aceleradores

Parte do acelerador de prótons de 400 GeV,

com 6 quilômetros de comprimento

Detector de partículas de penúltima geração, construído por grupos de mais de 20 países

Trajetórias de partículas com carga elétrica em detector dentro de um eletroímã

VI ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 106

Page 95: Soluções para problemas concretos

tuído. Corneis Jan Bakker, diretor do Zeeman Labora- tory de Amsterdã, o substituiu em setembro de 1955.

Foi nesse início das atividades que ingressei no CERN, em agosto de 1955. O CERN não tinha ainda nenhum edifício; trabalhávamos em barracas de ma- deira no aeroporto de Genebra.

Outros países aderiram aos 12 iniciais. A Áustria ingressou em 1959, a Espanha em 1961, retirou-se em 1969 e reintegrou-se em 1983. Portugal ingressou em 1985, a Finlândia e a Polônia em 1991, a Hungria em 1992, a República Tcheca e a República Eslovaca em 1993, a Bulgária em 1999. O CERN tem atual- mente 20 Estados-membros.

Em 1965 houve um acordo entre a Suíça e a Fran- ça para que o CERN se estendesse para o território francês. Os aceleradores construídos desde então pas- sam pelos dois países.

6 - A estrutura do CERN

A autoridade máxima do CERN é o conselho, res- ponsável por todas as decisões importantes; controla as atividades científicas, tecnológicas e administrati- vas. O conselho tem dois comitês: o Comitê de Polí- tica Científica, cujos membros são escolhidos pela sua competência científica, decide sobre os grandes projetos; e o Comitê de Finanças, ambos com repre- sentantes de todos os Estados-membros. O conselho reúne-se oficialmente duas vezes por ano, mas os con- selheiros podem também se reunir, todos ou em pe- quenos grupos, para discutir assuntos urgentes. São os países que escolhem seus representantes no conselho. O conselho escolhe o diretor-geral, que não é membro do conselho.

Há um diretório, composto pelo diretor-geral, vi- ce-diretor-geral e diretor de Finanças. Há uma secre- taria-geral, uma administração de projetos e sete de- partamentos.

Um ponto extremamente importante no funcio- namento do CERN, desde as suas origens, é a abertu- ra para transferência de tecnologia. O CERN não tira patente das inovações que faz, elas podem ser utiliza- das por qualquer país. Além dessa facilidade, há uma secretaria de Educação e Transferência de Tecnologia e um Departamento de Informação Tecnológica, abertos para todos os países, não somente para os Es- tados-membros. O Brasil, por exemplo, pode apro- veitar a transferência de tecnologia ofertada pelo CERN.

Vemos o interesse do CERN em ensino e transfe- rência de tecnologia para qualquer país. Este é um ponto extremamente importante que deveria ser co- nhecido no Brasil pelas autoridades responsáveis pelo fomento à pesquisa e pela comunidade de físicos.

7 - Financiamento

A verba anual do CERN é de € 630 milhões. A contribuição de cada país é proporcional ao seu Pro-

duto Interno Bruto (PIB). A Alemanha é o país com o maior PIB na Europa e faz a maior contribuição, se- guida pela França, Grã-Bretanha e Itália. Esses quatro países financiam cerca de 75% e os outros 16 países, 25%.

A cooperação internacional começa desde o momento em que um país adere ao CERN. Um novo membro é sempre um país que não tem laboratórios bem equipados para a física de partículas. Uma vez decidida, em comum acordo entre o conselho e as au- toridades do país, qual será a sua contribuição anual, no primeiro ano o país paga ao CERN somente 10% da sua cota e usa 90% para melhorar a infra-estrutu- ra de seus laboratórios. No segundo ano, paga 20% da sua cota ao CERN e usa 80% para infra-estrutura no país, e assim por diante, de modo que somente de- pois de dez anos passa a pagar ao CERN a integrali- dade da sua cota. Com esse sistema de financiamento, Portugal, por exemplo, tem laboratórios bem instala- dos para física de partículas em duas universidades, de Lisboa e de Coimbra. Além disso, nos anos iniciais a indústria portuguesa ganhava em contratos com o CERN mais do que Portugal pagava.

A colaboração internacional existe também no fi- nanciamento das experiências. Há uma idéia errada a respeito de financiamento que precisa ser corrigida. Muitos pensam que os países que não são membros do CERN precisam contribuir para a verba anual de € 630 milhões para que seus físicos participem das experiências. Isso não é verdade. Somente os 20 paí- ses-membros contribuem para essa verba. Os países que não são membros devem contribuir somente pa- ra o financiamento da experiência que os físicos dese- jam fazer. A colaboração internacional é feita com grupos de muitos países, cada grupo se responsabili- zando por uma parte do equipamento.

Se um grupo de físicos do Brasil, por exemplo, de- sejar participar de uma experiência, deverá contribuir, dentro de suas possibilidades, para o detector de partí- culas. A despesa anual desse grupo, com equipamento feito no Brasil para as experiências realizadas no CERN, será da mesma ordem de grandeza que a despesa anual dos grupos brasileiros que se dedicam a outros ramos da física.

8 - As primeiras grandes decisões científicas

As primeiras grandes decisões científicas foram as escolhas de dois aceleradores de prótons a serem cons- truídos. Um de 600 MeV e outro maior de aproxima- damente 12 GeV.

O acelerador maior tem uma história interessan- te. Sua construção foi confiada a um norueguês de in- teligência excepcional, Odd Dahl, ao mesmo tempo ótimo físico e engenheiro, autodidata sem nenhum diploma universitário. Sua formação era de aviador civil. Os Estados Unidos têm no Estado de Nova York, em Long Island, um laboratório importante, o Broo- khaven National Laboratory (BLN), dedicado a vários

PESaUISA FAPESP 106 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ VII

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aspectos da física nuclear. O BNL tinha construído um acelerador de prótons de 3 GeV, que começou a funcionar na época em que o CERN foi fundado. A idéia do CERN era construir um acelerador de apro- ximadamente 12 GeV. Odd Dahl e colaboradores pensaram que em vez de iniciar os planos para esse acelerador a partir de zero, seria mais interessante so- licitar ao BNL os planos do acelerador de 3 GeV e modificá-los para 12 GeV. Os colegas norte-america- nos concordaram.

Quando os planos para o acelerador de 12 GeV ficaram prontos, Dahl e colaboradores os levaram ao BNL para submetê-los aos comentários dos colegas norte-americanos. Quando chegaram ao BNL, soube- ram que um artigo teórico de Courant, Livingstone e Snyder havia sido enviado para publicação no Phy- sical Review, no qual propunham um novo tipo de acelerador de prótons, que poderia ter energia duas a três vezes superior à do acelerador clássico por apro- ximadamente o mesmo preço. Era evidente que se esse trabalho estivesse correto teria importância enorme para aceleradores futuros. Dahl discutiu com os auto- res do artigo e se convenceu de que suas idéias e seus cálculos estavam certos. Voltando a Genebra, propôs ao conselho do CERN que construísse o acelerador grande baseado no novo esquema proposto pelos três teóricos. Vemos nessa decisão a segurança desse homem. A proposta foi aceita. Os planos baseados no acelerador do BNL foram abandonados, e um proje- to inteiramente novo foi iniciado, a partir do zero. Mudança radical, porque o acelerador baseado nos novos princípios tinha de ser calculado em todos os detalhes, exigindo uma reestruturação das equipes e contratação de especialistas em várias áreas novas. O acelerador foi construído segundo o novo modelo, com 28 GeV, circular com 630 metros de comprimen- to. Foi concluído em novembro de 1959, segundo os planos, com sucesso; na primeira vez que o acelerador foi ligado foi produzido o feixe de prótons.

O CERN começou então com um sucesso, com muita coragem e determinação para enfrentar novas tecnologias, cultivadas durante toda a sua história. A partir desse, todos os aceleradores de prótons de al- tas energias, no CERN e em outros laboratórios, fo- ram construídos segundo esse processo. Os sucessos tecnológicos do CERN com aceleradores continuam até hoje.

9 - A escolha do pessoal

O internacionalismo do CERN não existe somen- te na estrutura, é característica permanente da sua vida. Lá trabalham pessoas de muitos países, seja no quadro permanente científico, técnico ou administra- tivo, seja nos grupos que fazem experiências e perma- necem somente algum tempo.

Foram contratadas para dirigir a construção dos dois primeiros aceleradores pessoas com experiência em grandes projetos industriais: alemães que traba-

lhavam nas indústrias Siemens; franceses que tinham trabalhado na construção do acelerador de prótons de Saclay ou na construção de laboratórios de ener- gia atômica; holandeses que trabalhavam na Philips; ingleses que tinham desenvolvido o radar, inventado por eles durante a guerra, e outros que tinham parti- cipado da construção do laboratório de energia atô- mica de Harwell. Como assessores, havia italianos da indústria pesada Ansaldo e suíços da indústria Brown Boveri. Para dirigir a administração foi con- vidado um francês que havia trabalhado na reorga- nização de serviços públicos da França com o gene- ral De Gaulle.

Quando o laboratório tem necessidade de contra- tar alguém, seja engenheiro, técnico ou para adminis- tração, a vaga é anunciada em todos os países-mem- bros, e qualquer pessoa tem o direito de se candidatar. Os interessados são convidados para uma entrevis- ta em Genebra e a escolha é feita independentemen- te da nacionalidade. Trabalham no CERN pessoas de todos os países-membros, é uma espécie de socieda- de de nações.

O CERN tem três línguas oficiais: francês, inglês e alemão, nas quais são redigidos os documentos ofi- ciais, mas lá se ouvem dezenas de línguas.

Para que os trabalhos tenham continuidade, os engenheiros, técnicos e pessoal de administração têm contratos permanentes. Os físicos dos vários países preparam o equipamento para as experiências em seus laboratórios, depois o levam para Genebra. Fa- zem a experiência no CERN, mas são radicados em seus laboratórios de origem. Mas para que o sistema funcione é indispensável que haja um número míni- mo de físicos com contrato permanente no CERN.

10 - Os objetivos científicos do CERN - estudo das leis fundamentais obedecidas pelas partículas

É necessário que o CERN se dedique a assuntos muito importantes para que receba tanto apoio. Seu objetivo é o estudo das partículas que constituem a matéria e das leis que governam as forças existentes entre essas partículas, não somente na Terra, mas em todo o Universo. Para compreendermos o que isso significa, temos de saber o que são partículas elemen- tares e como as estudamos.

Sabemos há muito tempo que os corpos são for- mados de moléculas, que as moléculas são formadas de átomos, que os átomos são formados de prótons, nêutrons e elétrons; que os prótons, com carga elétrica positiva, e os nêutrons, que não têm carga elétrica, ocupam uma região do átomo chamada núcleo; que os elétrons, que têm carga elétrica negativa igual à dos prótons, giram em torno do núcleo; e, como o núme- ro de prótons é igual ao número de elétrons, suas car- gas elétricas se neutralizam.

Até 1947 eram conhecidas somente sete partícu- las: o próton, o nêutron, o elétron, o elétron positivo, cha-

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mado pósitron, o múon positivo e o negativo e o fóton. A grande revolução das partículas estranhas foi mos- trar que havia outras partículas na natureza além des- sas, mas não tínhamos a mínima idéia de quantas se- riam. Hoje conhecemos 327 partículas e há evidência de mais de uma centena, cuja existência não foi defi- nitivamente comprovada. Essas partículas não exis- tem na matéria estável; são produzidas em colisões de partículas. À medida que novas partículas iam sen- do descobertas, os físicos foram observando que elas poderiam ser agrupadas em famílias, nas quais todos os membros têm propriedades idênticas. Veremos que chegamos a uma simplificação, a princípios ge- rais que ao mesmo tempo nos permitem compreen- der as relações entre as partículas e nos dão poder de previsão de novos fenômenos, revelando uma harmo- nia na natureza.

Produção de partículas - Quando duas partículas colidem, pode haver produção de novas partículas, isto é, criação de partículas que não existiam antes da colisão. Exemplo: um próton, colidindo com outro próton, pode dar um próton, um nêutron e um mé- son pi positivo, o que indicaremos por:

próton + próton -» próton + nêutron + méson pi positivo (1)

O méson pi positivo foi criado, não existia antes da colisão. Pode haver reações mais complexas que essa, com produção de muitas partículas diferentes, até dezenas de partículas.

Qual o interesse do estudo dessas colisões? Estu- dando essas reações aprendemos as propriedades das interações entre partículas e propriedades das partí- culas que interagem.

Desintegração de partículas - A maioria das partí- culas produzidas vive pouco tempo e se desintegra em outras partículas. Por exemplo, o méson pi vive apro- ximadamente três centésimos de milionésimos de se- gundo e se desintegra em duas partículas chamadas múon e neutrino:

méson pi -» múon + neutrino (2)

O estudo da desintegração de uma partícula é fun- damental para conhecermos as suas propriedades.

Em resumo, fazemos dois tipos de experiência: produção de partículas e desintegração de partículas.

11 - Os quatro tipos de interação

Há quatro tipos de força, de interação entre as par- tículas: forte, fraca, eletromagnética e gravitacional.

Força forte, ou interação forte -A força que se exer- ce entre o próton e o nêutron dentro do núcleo atô- mico é a força mais forte que existe entre as partí- culas, chamada força forte. A interação entre as

partículas sujeitas a essa força chamamos interação forte. É a interação forte entre o próton e o nêutron no núcleo atômico que mantém a matéria estável.

A interação forte existe entre muitas partículas, não somente entre prótons e nêutrons, como veremos nas sessões 12 e 13.

A interação forte dura um tempo muitíssimo cur- to, da ordem de IO"24 segundo.

Força fraca, ou interação fraca, é igual a um milio- nésimo de bilionésimo da força forte, isto é, da força existente entre o próton e o nêutron dentro do nú- cleo. Duas partículas têm probabilidade muito pe- quena de entrar em colisão por interação fraca. Por exemplo, um próton ou um nêutron penetrando num bloco de ferro tem interação forte com prótons ou nêutrons do ferro em menos de 15 centímetros. A partícula chamada neutrino tem massa quase nula, não tem carga elétrica, e tem somente interação fraca; a probabilidade de interação fraca é tão pequena que ela pode percorrer a Terra inteira, de lado a lado, sem ter nenhuma colisão.

Força eletromagnética, ou interação eletromagnéti- ca, é aquela devida à carga elétrica. Somente as partícu- las que têm carga elétrica têm este tipo de interação.

Força gravitacional é a força que existe entre todos os corpos devido à atração universal. Essa força é proporcional às massas dos corpos. É a mesma força que existe, por exemplo, entre a Terra e a Lua, mas no caso de partículas ela é extremamente pequena, por- que as massas das partículas são extremamente pe- quenas.

Para termos idéia dos valores relativos dessas for- ças, se representarmos por 1 o valor da força forte, os valores das outras forças serão: eletromagnética, IO"2; fraca, IO"14; gravitacional, IO"38. Vemos que a força gra- vitacional é muito menor que as outras; por isso a desprezamos como força entre as partículas.

12 - Tipos de partículas

Classificamos as partículas de acordo com os tipos de interação que elas podem ter. Há dois grandes gru- pos de partículas, hádrons e léptons.

Chamamos hádrons as partículas que têm os qua- tro tipos de interação. Chamamos léptons as partí- culas que não têm interação forte, têm interação fra- ca e eletromagnética.

A cada partícula corresponde outra com a mesma massa e carga elétrica de sinal oposto, que chamamos a sua antipartícula. Por exemplo, o próton tem carga elétrica positiva; existe o antipróton, que tem a mesma massa que o próton mas carga elétrica negativa. O méson pi negativo é a antipartícula do méson pi po- sitivo. O átomo de hidrogênio tem um próton no núcleo e um elétron girando em torno do próton. O

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anti-hidrogêneo tem um antipróton no núcleo e um antielétron, chamado pósitron, girando em torno dele: é um átomo de antimatéria.

Léptons - Não têm interação forte. Há seis léptons, três com carga elétrica negativa, o elétron, o múon e o tau; e três sem carga elétrica, chamados neutrinos: um neutrino-elétron, que é sempre associado ao elé- tron, um neutrino-múon e um neutrino-tau, asso- ciados ao múon e ao tau respectivamente:

elétron e- neutrino-elétron vp

muon [r neutrino-múon v

taux- neutrino-tau vx

Há seis antiléptons, três com carga positiva, e+, \i+, T

+, e três antineutrinos sem carga, antineutrino-elé-

tron, antineutrino-múon e antineutrino-tau.

Hádrons e quarks - Os hádrons, as únicas partícu- las que podem ter interação forte, são constituídas de partículas menores chamadas quarks. O próton e o nêutron, por exemplo, são compostos de quarks.

Há seis quarks, chamados quark u (representado pela letra u), quark d (d), quark estranho (s), quark charme (c), quark beleza (b) e quark top (t). Os quarks foram detectados experimentalmente. Um grupo do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), do Rio de Janeiro, liderado por Alberto Santoro, deu contri- buição importante para a descoberta do top, o último quark descoberto. Suas cargas elétricas são surpreen- dentes. Sempre pensamos que a menor carga elétrica que existe na natureza fosse a carga do próton ou do elétron, que representamos pela letra e. Descobrimos que os quarks têm cargas elétricas menores, iguais a 1/3 ou a 2/3 do valor da carga do próton, isto é, e/3 ou 2e/3.

A cada quark corresponde um antiquark, de mes- ma massa e carga elétrica de sinal oposto.

Cargas elétricas dos quarks e dos antiquarks

u d s c b t

quark +2/3 -1/3 -1/3 +2/3 -1/3 +2/3

antiquark -2/3 +1/3 +1/3 -2/3 +1/3 -2/3

Há dois tipos de hádrons: bárions e mésons.

Bárion é uma partícula formada de três quarks. Por exemplo, o próton é um bárion formado de dois quarks u e um quark d. A carga do próton é a soma das cargas dos quarks, portanto +2/3 + 2/3 -1/3 = + 1, isto é, igual à carga e do próton. O nêutron é forma- do de dois quarks d e um quark u; sua carga é -1/3 -1/3 +2/3 = 0.

Méson é uma partícula formada de um quark e um antiquark. Exemplo, o méson pi positivo é formado

de um quark u e um antiquark d; sua carga é +2/3 + 1/3 = +1, isto é, igual à carga e do próton. O méson pi negativo é formado de um quark d e um antiquark u; sua carga é -1/3 -2/3 = -1, isto é, igual à carga -e.

Com todas as combinações possíveis de quarks e de antiquarks, podemos reconstituir centenas de bá- rions e de mésons. Estas combinações, que parecem um jogo de quebra-cabeça de criança, são no entanto verdadeiras, as partículas com essas combinações de quarks e de antiquarks existem realmente na nature- za, nós as detectamos nas experiências.

A conclusão de que há somente seis quarks e seis antiquarks, seis léptons e seis antiléptons, introduz uma grande e elegante simplificação. Há centenas de reações e centenas de partículas, mas podemos ter a certeza de que somente essas componentes podem participar, não há outra possibilidade.

As interações entre partículas ocorrem por meio de interações entre os quarks das partículas. Por exemplo, quando um próton tem uma interação for- te com outro próton, são os quarks de um que intera- gem com os quarks do outro.

13 - As partículas intermediárias nas interações

As interações entre duas partículas se dão com troca de uma terceira partícula entre as duas, que cha- mamos partícula intermediária na interação. As partí- culas intermediárias são diferentes para as diferentes interações.

Interações eletromagnéticas - A força entre duas cargas elétricas é exercida através de uma partícula chamada fóton. Uma carga elétrica emite um fóton que é captado pela outra. Podemos fazer analogia en- tre interação através de partículas intermediárias e duas pessoas jogando tênis. Uma pessoa joga a bola que é captada pela outra; a troca de bola mantém o interesse no jogo, assim como a troca de fótons man- tém a ação entre as duas cargas elétricas.

Interações fortes - A interação forte entre duas partículas se passa entre os quarks das duas partícu- las. A força forte entre os quarks é exercida através da troca de uma partícula chamada glúon. Glúon vem da palavra inglesa glue, que significa cola. Os glúons mantêm os quarks associados para formarem os hádrons. Quando dois prótons interagem, os quarks de um trocam glúons com os quarks do outro. Os glúons foram detectados experimentalmente.

Interações fracas - As interações fracas ocorrem com a troca de três partículas, chamadas W+, com carga positiva, W", com carga negativa, e Z, sem car- ga. As três partículas foram detectadas experimental- mente no CERN.

Interações gravitacionais - Por analogia com as outras interações, imaginamos que as interações gravi- tacionais também se exercem através da troca de uma partícula chamada gráviton. Contrariamente às outras partículas intermediárias, que foram detectadas expe- rimentalmente, o gráviton nunca foi detectado.

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14 - A física de partículas elementares, a astronomia e resumo dos fenômenos físicos no Universo

As interações entre partículas que ocorrem aqui na Terra também ocorrem em todo o Universo, nos astros e fora dos astros. O conhecimento atual dos ti- pos de partículas, tipos de interação e partículas in- termediárias nas interações, aplica-se a todo o Uni- verso. Chegamos a uma síntese dos fenômenos físicos do Universo, resumidos no quadro seguinte:

1- Partículas-léptons -6 léptons e 6 antiléptons hádrons-6 quarks e 6 antiquarks duas classes de hádrons: bárion- 3 quarks

méson-1 quark e 1 antiquark

2-Interações - forte, fraca, eletromagnética, gravitacional 3- Partículas intermediárias nas interações

interação partícula intemediária forte glúon fraca W+ W" Z eletromagnética fóton gravitacional gráviton

A física de partículas passou a ter uma influência enorme em astronomia nos últimos 20 anos. O estudo do Universo, que era realizado somente com detecção de ondas eletromagnéticas por telescópios, nos últimos anos passou a ser feito também com detecção de partí- culas emitidas pelos astros. Como já vimos, essas par- tículas são raios cósmicos. O estudo de raios cósmicos, que havia perdido o seu interesse para o estudo de par- tículas depois da construção dos aceleradores, retomou importância com sua aplicação em astronomia. No início estudávamos raios cósmicos para estudar par- tículas; hoje detectamos partículas de raios cósmicos para estudar astronomia. Passamos a utilizar em astro- nomia os mesmos tipos de detectores de partículas uti- lizados nas experiências no CERN. Criou-se um novo tipo de astronomia, chamado astropartículas.

O Universo é dinâmico. Devido às partículas que são criadas em colisões e às desintegrações de partícu- las, em cada segundo o Universo é diferente.

Tudo isso é evidentemente acompanhado de um formalismo matemático que ultrapassa os objetivos deste artigo.

Partindo de um grande número, centenas de partí- culas, e de muitos trilhões e trilhões de fenômenos que ocorrem no Universo por segundo, chegamos a uma síntese extremamente elegante, que com o formalismo matemático tem grande poder de previsão. Podemos prever processos que nunca haviam sido observados e que depois são confirmados pelas experiências.

Esse belo progresso começou na época em que o CERN foi fundado.

Podemos concluir que já compreendemos tudo? Longe disso. A ciência não pára. Cada vez que um

problema é resolvido, a solução desse problema cria outros problemas, e esse é o desafio eterno da ciên- cia. Muitos problemas de física de partículas estão sendo estudados experimentalmente e teoricamen- te em vários lugares. Para trabalhos com o próximo acelerador LHC estão sendo preparadas quatro gran- des experiências, cada uma com participação de mais de mil físicos, engenheiros e técnicos de dezenas de países.

Vejamos dois exemplos de problemas não resolvi- dos que são grandes desafios:

1) Não sabemos se os quatro tipos de interação podem ser apresentados como quatro casos de uma única teoria, que faria a unificação dos quatro; mui- tos físicos matemáticos estão trabalhando neste pro- blema;

2) Detectamos, nas colisões, a criação de partícu- las que têm massas e cargas elétricas. No entanto, não sabemos o mecanismo que produz a massa nem como é criada uma carga elétrica. As quatro grandes experiências que serão feitas junto ao LHC procura- rão detectar o processo responsável pela origem das massas.

15 - Resumo de sucessos do CERN

O CERN tem uma história de sucessos nas mais diversas atividades.

Física - Três experiências fundamentais que as- sentaram os conhecimentos sobre as interações fracas foram realizadas no CERN. A primeira, em 1957, com o acelerador de 600 MeV, o italiano Giuseppe Fideca- ro e o inglês Alex Merrison descobriram que o méson pi se desintegra também em elétron e neutrino, não somente em múon e neutrino (reação 2 acima). Esta descoberta foi fundamental para o avanço teórico. Na segunda, em 1973, uma colaboração coordenada por três franceses, André Lagarrigue, Paul Musset e André Rousset, descobriu um processo fundamental chama- do corrente neutra com a câmara de bolhas Gargamel- le. É opinião geral entre os físicos que Lagarrigue sem dúvida receberia o Prêmio Nobel, mas infelizmente ele faleceu. Na terceira, em 1983, descobriram as par- tículas intermediárias W+, W~ e Z, com o trabalho do italiano Cario Rubbia e do holandês Simon Van der Meer, que receberam o Prêmio Nobel. Esta experiên- cia é uma das mais importantes da história da física, pois contribuiu para os seus fundamentos. Com esta descoberta foi possível mostrar que as teorias das in- terações fracas e eletromagnéticas podem ser reuni- das numa única teoria, que interpreta os dois tipos de fenômenos, a teoria elétrofraca.

Além desses trabalhos que permanecerão na his- tória da física, foram publicados milhares de outros feitos no CERN.

Um dos detectores de partículas mais importan- tes, utilizado em todas as experiências, chamado câ- mara proporcional, foi inventado no CERN pelo fran-

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cês George Charpak, que recebeu o Prêmio Nobel por essa invenção.

Informática e a invenção de internet www - A fí- sica de partículas utiliza muita programação, exige colaboração de especialistas em informática. Foi no CERN que o inglês Tim Berners-Lee e o francês Ro- bert Cailliau em 1990 inventaram a internet sob a for- ma www {world wide web), que se espalhou por todo o mundo e revolucionou o modo de comunicação. A internet invadiu a sociedade, é indispensável na in- dústria, no comércio, na pesquisa, no jornalismo, nos contatos entre pessoas. É uma das mais importantes invenções dos últimos tempos.

O CERN desenvolveu um novo método de pro- gramação chamado GRID, que permitirá a qualquer laboratório ter todos os dados de uma experiência, desde o instante em que os prótons entram em coli- são no acelerador. No LHC, que entrará em funciona- mento em 2007, haverá 1 bilhão de interações pró- ton-próton por segundo! Os eventos terão de ser selecionados, as trajetórias das partículas reconstruí- das no espaço, as partículas identificadas, e depois co- meçarão a funcionar os programas para se estudar a física dos eventos. O GRID fará todas essas etapas da análise da experiência. Um grupo no Brasil com esse programa terá as mesmas condições de trabalho que um grupo no CERN ao lado do acelerador. Por outro lado, os laboratórios que não tiverem esse programa não terão condições de trabalhar nessas experiências.

A filosofia do GRID está se estendendo a outras ciências e outras aplicações, como medicina, geo- logia, cristalografia, meteorologia, ensino etc, e per- mitirá colaborações internacionais e nacionais entre as instituições.

Ainda em informática, o CERN foi uma das pri- meiras instituições a chamar a atenção para o perigo do Digital Divide. Esse nome indica a divisão entre países que terão informática de vanguarda e os que não terão. Os primeiros poderão desenvolver ou ter acesso a programas indispensáveis para trabalhos em domínios os mais diversos, como ensino em todos os níveis e em todas as áreas, medicina, biologia, meteo- rologia, tecnologia. Os países que não tiverem essa in- formática não poderão acompanhar o desenvolvi- mento dos outros. Em outras palavras, a informática tornou-se fator indispensável para o desenvolvi- mento e vai aumentar o fosso entre países desen- volvidos e subdesenvolvidos. O CERN é ativo no es- forço para diminuir o Digital Divide, tem organizado e estimulado reuniões internacionais para tratar

desse importante problema e colabora para o de- senvolvimento da informática em outros países.

Aceleradores - O CERN, com seu complexo de aceleradores e as inovações que introduziu, é uma re- ferência em todo o mundo. Construiu vários acelera- dores de prótons, de energias cada vez maiores: 600 MeV; 28 GeV; depois dois anéis com prótons de 28 GeV que faziam colisão frontal; um acelerador de 400 GeV; um acelerador de prótons e de antiprótons de 400 GeV girando em sentidos contrários que faziam colisão frontal; está construindo o LHC, anéis de co- lisão frontal de prótons de 7.000 GeV cada, a maior energia jamais obtida num acelerador. Além desses aceleradores de prótons, construiu um acelerador de elétrons e de pósitrons de 100 GeV que faziam colisão frontal.

O CERN está projetando pequenos aceleradores para aplicação em medicina e colocará o projeto à disposição de qualquer país.

Eletroímãs, vácuo e eletrônica - Para construção de aceleradores, o CERN tornou-se especialista em grandes eletroímãs supracondutores, cujas bobinas são mantidas a temperaturas próximas do zero abso- luto. Para o LHC, os eletroímãs têm o maior campo magnético jamais obtido com eletroímãs grandes, de 15 metros de comprimento.

Nos aceleradores, as partículas são mantidas num tubo onde se faz alto vácuo. No LHC o tubo tem 27 quilômetros de comprimento e o vácuo é superior ao vácuo interestelar no Universo.

O CERN desenvolve eletrônica rápida. Pode-se medir diretamente o tempo de um bilionésimo de se- gundo, tempo que a luz demora para percorrer 30 centímetros (lembremos que a velocidade da luz é de 300 mil quilômetros por segundo).

O impacto tecnológico do CERN pode ser avalia- do pelo fato de que aproximadamente a metade da verba anual de € 630 milhões é utilizada em contra- tos com a indústria.

Vemos por esta curta descrição que o CERN é realmente um laboratório de paz, tratando de ques- tões fundamentais da natureza em espírito de grande colaboração internacional.

Paris, outubro de 2004

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