Solidariedade e Expressão Jurídica

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OPINIÃO PÚBLICA, Campinas, vol. 18, nº 2, novembro, 2012, p. 309-336 Solidariedade e expressão jurídica: valores políticos de vereadores sobre direitos sociais Samira Kauchakje Samira Kauchakje Samira Kauchakje Samira Kauchakje Curso de Ciências Sociais e Programa de Pós-Graduação em Gestão Urbana Pontifícia Universidade Católica do Paraná Resumo Resumo Resumo Resumo: : : : O artigo discute cultura política sobre direitos sociais e solidariedade, com base na pesquisa sobre valores políticos de parlamentares municipais de Curitiba. Considerou-se os direitos à saúde, educação, assistência social, trabalho, previdência social, segurança alimentar e nutricional, habitação e transferência de renda. A estratégia metodológica para identificar e interpretar valores foi: entrevista, sistematização e discussão focada em frequência e testes estatísticos e, também, análise a partir dos parâmetros da Constituição Federal de 1988 e de tipos ideais de solidariedade. Para o campo dos direitos sociais, foram elaborados os seguintes tipos de solidariedade: civil-pública; cívica-protetiva; pessoalista, benevolente; internacional e cosmopolita. Os resultados indicam que o legislativo municipal caracteriza-se por um perfil ideológico liberal e conservador e que os valores dos vereadores sofrem variação a depender da área de cada um dos direitos sociais. De forma geral, quanto se trata de transferência de renda e, em menor medida, de assistência social, os valores dos vereadores são compatíveis com a solidariedade cívica-protetiva ou beneficente; para a educação e saúde, os valores são congruentes com a solidariedade civil- pública, isto é, com maior adesão aos atuais preceitos constitucionais e de cidadania. Palavras Palavras Palavras Palavras-chave: chave: chave: chave: valores políticos; direitos sociais; política social; solidariedade; legislativo municipal Abstract Abstract Abstract Abstract: : : : This article discusses values of city councilors of Curitiba–Brazil on social rights, such as: health, education, welfare, labor, social security, food security and nutrition, housing and income transfers. The methodological procedures include interviews, statistical tests and analysis from the parameters of the Constitution of 1988 and from types of solidarity. The types were divided in two groups: political solidarity and gift solidarity. The results indicate that for the case of the rights to the direct monetary transfer and social assistance, the values of city councilors are compatible to the characteristics of the gift solidarity. In the cases of education and health, the values are compatible to the constitutional principles and the political solidarity. Keywords: Keywords: Keywords: Keywords: political culture; social rights; social policy; solidarity; city councilors

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    Solidariedade e expresso jurdica: valores polticos de vereadores sobre direitos sociais

    Samira KauchakjeSamira KauchakjeSamira KauchakjeSamira Kauchakje

    Curso de Cincias Sociais e

    Programa de Ps-Graduao em Gesto Urbana

    Pontifcia Universidade Catlica do Paran

    ResumoResumoResumoResumo: : : : O artigo discute cultura poltica sobre direitos sociais e solidariedade, com base na pesquisa sobre valores polticos de

    parlamentares municipais de Curitiba. Considerou-se os direitos sade, educao, assistncia social, trabalho, previdncia

    social, segurana alimentar e nutricional, habitao e transferncia de renda. A estratgia metodolgica para identificar e

    interpretar valores foi: entrevista, sistematizao e discusso focada em frequncia e testes estatsticos e, tambm, anlise a

    partir dos parmetros da Constituio Federal de 1988 e de tipos ideais de solidariedade. Para o campo dos direitos sociais,

    foram elaborados os seguintes tipos de solidariedade: civil-pblica; cvica-protetiva; pessoalista, benevolente; internacional e

    cosmopolita. Os resultados indicam que o legislativo municipal caracteriza-se por um perfil ideolgico liberal e conservador e que

    os valores dos vereadores sofrem variao a depender da rea de cada um dos direitos sociais. De forma geral, quanto se trata

    de transferncia de renda e, em menor medida, de assistncia social, os valores dos vereadores so compatveis com a

    solidariedade cvica-protetiva ou beneficente; para a educao e sade, os valores so congruentes com a solidariedade civil-

    pblica, isto , com maior adeso aos atuais preceitos constitucionais e de cidadania.

    PalavrasPalavrasPalavrasPalavras----chave:chave:chave:chave: valores polticos; direitos sociais; poltica social; solidariedade; legislativo municipal

    AbstractAbstractAbstractAbstract: : : : This article discusses values of city councilors of CuritibaBrazil on social rights, such as: health, education, welfare,

    labor, social security, food security and nutrition, housing and income transfers. The methodological procedures include

    interviews, statistical tests and analysis from the parameters of the Constitution of 1988 and from types of solidarity. The types

    were divided in two groups: political solidarity and gift solidarity. The results indicate that for the case of the rights to the direct

    monetary transfer and social assistance, the values of city councilors are compatible to the characteristics of the gift solidarity. In

    the cases of education and health, the values are compatible to the constitutional principles and the political solidarity.

    Keywords:Keywords:Keywords:Keywords: political culture; social rights; social policy; solidarity; city councilors

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    IntroduoIntroduoIntroduoIntroduo1

    Os direitos sociais (tais como assistncia social, sade, educao, segurana alimentar e

    nutricional, moradia, previdncia social e trabalho) esto entre os direitos fundamentais na Constituio

    brasileira de 1988 (CF88), junto a outros anteriormente consagrados e aceitos culturalmente, como o

    caso do direto vida e liberdade. Desta forma, tm a condio de clusula ptrea e carter inadivel

    para efetivao, abrindo-se assim a discusso sobre a judiciailizao dos direitos sociais (PIOVESAN,

    VIEIRA, 2006). A efetivao dos direitos sociais, entretanto, no se esgota nas instituies, passando, tambm,

    por seu reconhecimento e por uma cultura democrtica. Autores como Sales (1994), Telles (2000), Reis

    (2000), Chau (1994), Carvalho (2001) e Moiss (2005), por exemplo, indicam que no este o trao da

    cultura poltica brasileira, a qual seria saturada pela noo da ddiva e de outorga pelos poderosos e

    pelo Estado. Esta disparidade entre instituies e cultura poltica parece modelar a concretizao de

    mudanas institucionais e tambm as alteraes dos valores, lembrando a discusso de Putnam para o

    caso da Itlia (2000). Especialmente no mbito municipal, parece que a elite poltica brasileira logrou

    articular o constrangimento da ordem legal e institucional cultura da benesse e do favor (LOPEZ, 2004).

    Na esfera municipal, os parlamentares agem por meio de moes, requerimentos e projetos de

    leis2 pautados pela legislao que rege as competncias reduzidas do municpio no mbito das polticas

    e direitos sociais e, no raro, realizam alguma espcie de atendimento social. Sua conduta expressa nas

    proposies legislativas ou na relao direta com setores da populao orientada por valores que, se

    partilhados e coerentes com aquela cultura poltica, podem reforar o sentido de benesse no lugar de

    direitos.

    Os municpios tm competncias residuais para legislar sobre matria social, mas, a despeito

    disso, so importantes no campo dos direitos sociais, seja porque esto presentes em atividades

    prprias ou concorrentes com outros entes federados3 (SOUZA, 2004) (Quadro 1), seja porque alguns

    parlamentares municipais utilizam requerimentos/indicaes e atendimento social direito populao

    para ampliar seu raio de ao na rea dos direitos sociais, articulando direitos e benesses; funo

    pblica e conexo eleitoral4.

    1 Agradeo s sugestes do parecerista annimo que permitiram o aperfeioamento do artigo. 2 As proposies legislativas podem ser agrupadas em: 1. Projetos de Lei e Emendas. 2. Indicaes, Requerimentos e Solicitaes. 3. Homenagens e Moes. Alm dessas atividades, a maioria dos vereadores realiza atendimento social aos eleitores. Este visa satisfazer demandas que so, na grande maioria das vezes, de carter pessoal ou particularista. Indicaes so os meios pelos quais os vereadores fazem o encaminhamento formal de suas solicitaes ao Executivo, justificadas como medidas de interesse pblico que, no raro, est ligado demanda de pessoas de sua efetiva ou potencial base eleitoral. Moo uma proposio encaminhada ao plenrio com o objetivo de exaltar as realizaes e qualidades de determinada pessoa ou instituio, ou mesmo uma data comemorativa (LOPEZ, 2004, p. 156, 158 e 164). 3 A maior parte das reas da poltica social, como educao, sade, assistncia social, est orientada por um sistema nico de desenho nacional descentralizado (ARRETCHE, 2000; DRAIBE, 1997; SOUZA, 2004). 4 Conexo eleitoral se refere tradio que nasce com Downs (1957), que d extrema importncia nos processos eleitorais para as aes dos polticos, transformando-as em fator modulador das aes parlamentares (...). Assim, a atuao dos polticos no poder Legislativo uma consequncia funcional da necessidade de obter votos em futuras eleies. (CERVI, 2009, p. 159). Esta argumentao contestada pelo modelo partidrio, que entende que o comportamento dos parlamentares seria determinado pelos aspectos de organizao interna, sistema de regras e importncia dos lderes dos partidos. (CODATO, 2009, p. 1)

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    Quadro 1Quadro 1Quadro 1Quadro 1 Competncias concorrentes e competncias municipaisCompetncias concorrentes e competncias municipaisCompetncias concorrentes e competncias municipaisCompetncias concorrentes e competncias municipais

    Esfera de governoEsfera de governoEsfera de governoEsfera de governo Servios / Atividades (exemplos)Servios / Atividades (exemplos)Servios / Atividades (exemplos)Servios / Atividades (exemplos)

    Federal- estadual local (competncias partilhadas) Sade, educao e assistncia social pblica Habitao, saneamento e segurana no trnsito Cultura e cincia Preservao do patrimnio histrico, artstico e cultural Agricultura e abastecimento familiar (segurana alimentar e nutricional) Combate pobreza Turismo e lazer Poltica para pequenas empresas Proteo do meio ambiente e dos recursos naturais Preservao da floresta, da fauna e flora Explorao das atividades hdricas e minerais

    Predominantemente local Pr-escola e educao fundamental Sade (unidades bsicas e municipais) Preservao histrica e cultural

    Apenas local Transporte coletivo Uso do solo

    Fonte: adaptado de Souza (2004).

    Este artigo apresenta resultados da pesquisa que trata da compatibilidade dos valores dos

    vereadores de Curitiba sobre direitos sociais com as concepes da CF88 e de solidariedade5. Como

    parmetro para a anlise, foi elaborada uma tipologia de solidariedade baseada em elementos da

    cidadania no Brasil (CARVALHO, 2001), cuja histria evidencia uma espcie de disputa entre, por um lado,

    a cultura da ddiva e, por outro, a expresso jurdica dos direitos sociais de acordo com a CF886.

    Aspectos histricos e da legislao so objeto da prxima seo do artigo; item do artigo, em

    seguida, h uma sntese sobre os procedimentos metodolgicos e dos tipos de solidariedade e, por fim,

    so discutidos os primeiros achados quanto aos valores polticos dos vereadores sobre direitos sociais

    em relao s noes de solidariedade e princpios constitucionais7.

    5 Pesquisa apoiada pelo CNPq. Verses preliminares deste artigo foram apresentadas no VII Encontro da ABCP Associao Brasileira de Cincia Poltica e no II Seminrio Nacional de Sociologia e Poltica, UFPR. 6 Comparato (2001, p. 10) entende que os direitos sociais so expresses do princpio fundamental da solidariedade, conforme o art. 3 sobre um dos objetivos fundamentais da Repblica Federativa do Brasil: construir uma sociedade livre, justa e solidria. 7 Foi encaminhada para outra publicao uma verso modificada do texto que apresenta discusso dos resultados com nfase no perfil ideolgico e partidrio e na dicotomia esquerda e direita.

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    Dimenso social dos direitos humanosDimenso social dos direitos humanosDimenso social dos direitos humanosDimenso social dos direitos humanos

    Desde pelo menos o sculo XVIII, na maioria das sociedades ocidentais capitalistas (e tambm,

    em outras comunidades polticas, seja por conta das relaes de poder, trocas culturais ou dinmicas

    endgenas), as dimenses civis, polticas e socioeconmicas dos direitos tm sido objeto de medidas

    legais e de polticas pblicas estatais e, tambm, de declaraes e pactos entre pases membros de

    organizaes internacionais.

    Marshall (1967) pontua que os direitos civis referem-se s liberdades individuais e econmicas;

    os polticos participao no exerccio do poder poltico; os sociais dizem respeito participao na

    riqueza de acordo com o patrimnio e padres culturais e materiais admitidos numa comunidade

    poltica. H, ainda, as ltimas geraes de direitos, relativos ao meio ambiente, diversidade cultural e

    identitrias (por exemplo Bobbio, 1992; Arretche, 1995).

    A cronologia marshalliana dos direitos criticada por trazer etapas sequenciais do alargamento

    da cidadania baseada na experincia inglesa, sugerindo um mesmo padro cumulativo em diferentes

    sociedades. Todavia, a especificao dos direitos empreendida pelo autor, articulada base histrica,

    elucida seu contedo e alcance.

    Em termos gerais, o marco histrico dos direitos civis o sculo XVIII, mais propriamente a

    revoluo poltica e econmica que configura a sociedade burguesa e consolida valores liberais. Tais

    direitos so de corte individual: a vida e as liberdades de propriedade, econmica, de expresso e

    pensamento, de associao, de ir e vir e de religio, especialmente. Os direitos polticos, consagrados a

    partir do sculo XIX, referem-se formao e associao em partidos e participao poltica.

    Os direitos sociais foram afirmados no final do sculo XIX e primeira metade do sculo XX a partir de

    movimentos e atores em coliso, tais como: as lutas de trabalhadores que viam os direitos

    socioeconmicos como conquista socialista e introduo de mecanismos de regulao no capitalismo;

    solidarista de inspirao humanitria; setores prximos ao liberalismo que os defendiam como medida

    de integrao social e incluso de trabalhadores no mercado de trabalho e no consumo; e crticos de

    esquerda que os entendiam como meios de socializao dos custos da reproduo social dos

    trabalhadores. De todo modo, as experincias do perodo entre as duas grandes guerras mundiais e o

    posterior crescimento econmico e de postos de emprego na primeira metade do sculo XX fomentaram

    a ampliao dos direitos sociais. O ncleo inicial dos direitos sociais, por sinal, girou em torno do mundo

    e condies do trabalho, ou seja: sade, assistncia e previdncia social, ampliado para habitao e

    educao (DRAIBE, 1989; BEHRING, BOSCHETTI, 2007). Atualmente, so considerados como direitos

    sociais: educao, sade, habitao, assistncia social, previdncia social, trabalho e segurana

    alimentar e nutricional. Algumas interpretaes e legislaes consideram, tambm, lazer, cultura,

    transporte e segurana pblica8.

    8 O processo de expanso de direitos e polticas sociais que edificou diferentes tipos de Estado de Bem Estar Social (ESPING-ANDERSEN, 1991) foi alterado pela onda neoliberalizante das ltimas dcadas do sculo XX. Nos dias de hoje, esta onda foi arrefecida. As explicaes tericas para isso ressaltam fatores como o aprofundamento da questo social; a mudana no padro institucional internacional sobre poltica social; ou a fora da trajetria das prprias instituies e polticas de bem estar social em cada Estado. Inclino-me para a terceira vertente explicativa e concordo que inovaes, correes e inflexes afetaram

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    Na segunda metade do sculo XX, movimentos sociais de apelo mais cultural do que classista

    (OFFE, 1993; SCHERE-WARREN, 2006) inseriram na agenda pblica os chamados direitos de ltimas

    geraes relacionados ao gnero, livre orientao sexual, diversidade cultural e tnica, ciclo de vida,

    ambiente, desenvolvimento, entre outras temticas.

    Este processo histrico, mesmo que no repetido linearmente em diversas sociedades, rebate

    em suas configuraes histricas particulares porque so processos que do conta da obra destrutiva

    da construo das sociedades modernas e que operaram sobre a runa e a desagregao social de

    formas arraigadas de pertena e filiao comunitria. Isto , o processo simultneo de ampliao do

    desarraigo, e de subordinao disciplinar da populao aos ditames do mercado de trabalho, veio

    acompanhado de novas vias de integrao e por mecanismos pblicos de produo de legitimidade

    os direitos de cidadania (LAVALLE, 2003, p. 74).

    Com esta base de construo da cidadania moderna, no h, todavia, uma linearidade de

    desenvolvimento ou evoluo previsvel e nem homogeneidade entre as comunidades polticas nacionais

    ou internacionais. Ademais, a histria mostra que h regresses em relao a direitos consolidados, bem

    como direitos que em uma sociedade so aceitos e garantidos como tais e, em outra so

    desconsiderados ou considerados em desacordo com sua formao social e identidade cultural. Cabe

    considerar que, onde ocorrem, os direitos so indivisveis ou ao menos interdependentes, como o caso

    dos direitos vida e liberdade de expresso, que ficam comprometidos ou inviveis sem os direitos

    renda, sade e educao, por exemplo. Sendo assim, prefervel tratar dos direitos como dimenses

    dos direitos humanos (dimenso civil, poltica, social, etc.). Mas, tal articulao est longe de significar

    que so compatveis teoricamente, ideologicamente ou no plano da legislao e implementao de

    polticas e das lutas sociais. Por exemplo, a sustentao de direitos liberais na escala da economia no

    necessariamente acompanhada pela garantia de direitos liberais no mbito dos costumes (livre

    orientao sexual ou diversidade tnico-cultural, por exemplo); a lgica dos direito civis conflita com a

    dos direitos sociais9.

    Setores de esquerda criticam reivindicaes por direitos sociais e servios pblicos

    concernentes (escola, habitao social, unidades de sade e assistncia social entre outros) por

    desviarem-se das lutas revolucionrias e pela emancipao humana (MOTTA, 2011; DOIMO, 1995). Como

    para Marx (1987) o alcance dos direitos pertinentes e procedentes da revoluo burguesa a

    emancipao poltica, a crtica de uma linhagem marxista aos direitos assenta-se no seu limite para

    superar a desigualdade fundamentada no modo de produo (LENHART, e OFFE, 1984).

    algumas dimenses das instituies e de organizao do sistema estatal de proteo social, porm, por um lado, mudanas ocorreram de acordo com o modelo de Estado de Bem Estar pr-existente e, por outro, traos de permanncia so identificveis (DRAIBE, 2003, p. 64). 9 O reconhecimento dos direitos sociais requer uma interveno ativa do Estado, que no requerida pela proteo dos direitos de liberdade, produzindo aquela organizao dos servios pblicos de onde nasceu at mesmo uma nova forma de Estado, o Estado social. Enquanto os direitos de liberdade nascem contra o superpoder do Estado portanto, com o objetivo de limitar o poder os direitos sociais exigem, para sua realizao prtica, ou seja, para a passagem da declarao puramente verbal sua proteo efetiva, precisamente o contrrio... (BOBBIO, 1992, p. 72).

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    De toda maneira, nas sociedades que vivenciaram os ecos da Marselhesa10, os direitos

    humanos so parte tanto dos iderios liberais como de justia social e econmica e esto inseridos nas

    instituies e cultura poltica de Estados e internacionalmente. Porm, entendo-os no como base para

    julgamentos fundamentados em supostas verdades universais, mas, sim para anlises histricas e

    comparativas entre sociedades e grupos sociais especficos.

    Aspectos metodolgicos Aspectos metodolgicos Aspectos metodolgicos Aspectos metodolgicos

    A pesquisa foi realizada em Curitiba, onde foram entrevistados 35 dos 38 vereadores da gesto

    2009-201211. O roteiro da entrevista semiestruturada foi organizado com blocos de questes sobre

    vinculao partidria e associativismo, conhecimento da legislao social e sobre valores polticos e a

    respeito dos direitos sociais, havendo ainda questes de controle ligadas ao perfil educacional, religio e

    renda.

    Neste artigo, so apresentados resultados sobre questes referentes a valores sobre direitos

    sociais. Foram realizados testes de independncia Q de Yule e de correlao Q de Yule, indicados para a

    anlise de dados categricos. Estes testes exigem o agrupamento de casos em tabelas qudruplas, o

    mais adequado para a pesquisa, j que as respostas das entrevistas apresentaram alto grau de disperso

    entre as alternativas, embora, tambm, exija concentrao dos dados e, com isso, h menor

    detalhamento.

    A discusso norteada pelos artigos constitucionais e pela tipologia de solidariedade elaborada

    para este fim. Esta elaborao levou em conta que, para Weber, tipos ideais so construes conceituais

    que retm traos tpicos de fenmenos ou processos sociais a partir da observao de casos histricos

    particulares e da lgica da comparao, em que se opera indutivamente o descarte do que particular

    ou singular a cada caso e retm-se o que passvel de generalizao.

    Portanto, como parmetro e medidor para comparaes e anlises sobre valores polticos e

    comportamento, elaborei os seguintes tipos de solidariedade no campo dos direitos sociais: civil-pblica;

    cvica-protetiva; pessoalista, benevolente; internacional e cosmopolita.

    Tipos de solidariedade no campo dos direitos sociais12:

    1. Solidariedade civil-pblica: identificada quando os valores dos agentes demonstram adeso

    prestao e proviso social pelo Estado ou sob a regulao estatal, direcionadas pela legislao social

    com o registro dos direitos e da impessoalidade de cidadania. Isto , regulao e sentido pblicos ainda

    10 Em aluso ao livro de Hobsbawm (1996) sobre a Revoluo Francesa e suas repercusses e espraiamento para parte do mundo. Dimenses sociais, civis e polticas dos direitos humanos estavam na Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado de 1789, posteriormente, na Declarao dos Direitos Humanos de 1948, e foram se consolidando de forma mais ou menos incremental em declaraes posteriores sobre direitos culturais, econmicos e ambientais. 11 Para a realizao das entrevistas agradeo as contribuies de Talita Nascimento, Paulo Roberto R. Hannesch, Simone de Cssia S. da Silva e Sabrina Lissa F. L. Leme, aluno (a)s do Curso de Sociologia da PUCPR, sendo os dois primeiros bolsistas PIBIC. As tabelas foram geradas por Talita Nascimento por meio do programa SPSS e formatadas por Pedro Boscardin (PIBICjr). 12 Essa, como qualquer classificao, organiza e reduz a diversidade emprica em conjuntos amplos por afinidade de elementos que so prprios ao fenmeno definido, elementos esses que o pesquisador elege como significativos, nesse caso, a distncia e a proximidade com a noo de direito social. Os nomes mais adequados ao contedo de cada tipo de solidariedade esto em fase de aprimoramento.

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    quando as aes sociais so realizadas por agentes ou organizaes no governamentais. Valores que se

    opem benevolncia e motivao de caridade e filantropia desvinculadas da noo de direitos.

    2. Solidariedade cvica-protetiva: combina valores favorveis aos laos sociais de confiana, no sentido

    do capital social em Putnam (2000) e Bourdieu (1998); e ao ativismo poltico com confiana nas

    instituies e classe poltica, no sentido da cultura cvica aludida em Almond e Verba (1989). Neste tipo

    de solidariedade, prevalece a noo de que pessoas e comunidades intervencionadas so sujeitos de

    direitos e no sujeitados s prticas caritativas. Tais noes so opostas de um terceiro setor

    benevolente que busca os recursos do Estado numa espcie de negcio e, tambm, de refilantropizao

    da questo social13.

    3. Solidariedade pessoalista: orienta aes protetivas restritas aos laos e redes pessoalizadas e

    particularistas (territoriais ou no) e defensivas (de desconfiana dos que esto fora do crculo pessoal-

    particularizado). Solidariedade tpica do perodo pr-moderno, de sociedades tradicionais, mas, tambm,

    identificvel na atualidade em localidades e comunidades (no necessariamente delimitadas

    territorialmente) onde a ausncia ou insuficincia de polticas pblicas impele para a proteo social14

    por meio de laos de filiao, de lealdade e confiana mtua que no ultrapassam os crculos familiares,

    de vizinhana e de igrejas, conforme a noo de familismo amoral a que se referiam Banfield (1958) e

    Putnam (2000). O interesse pelas questes pblicas baixo e, quando h, o objetivo obter ganhos

    privados. Cabe ressaltar que quando a relao entre atores polticos e a populao (principalmente

    pessoas com baixa renda), este tipo de solidariedade aproxima-se do clientelismo. Lembrando com

    Carvalho (1997) e Lopez (2004) que, neste caso, o clientelismo baseia-se na distribuio de benefcio e

    favor que sedimentam dependncia poltica e retribuio na forma de fidelidade e apoio eleitoral.

    4. Solidariedade benevolente: concentra valores de caridade, filantropia e doao que, geralmente,

    concretizam-se em aes voltadas para pessoas empobrecidas, em situao de indigncia ou

    discriminao, entendidas como carentes e marginalizados ou outras figuras que os destituem da

    condio de cidados e expressam o no reconhecimento de relaes mediadas por garantias pblicas. A

    interao caracterizada pela suplicao vertical (PUTNAM, 2000) do beneficirio e manifestao de

    superioridade (de bens e, no raro, aceitos como de carter) do benvolo. Dito de outro modo, a relao

    mediada pela doao sem reciprocidade, que s permite, como nica volta, uma gratido sem limites

    (LAVILLE, 2008, p. 23) transforma a justia em caridade e os direitos em ajuda (TELLES, 2000). Aes

    motivadas pela solidariedade benevolente podem ser destinadas a pessoas, grupos, comunidades e

    sociedades locais ou estrangeiras e numa perspectiva global-humanitria.

    5. Solidariedade internacional: caracteriza valores estatalistas15 que, nas relaes internacionais, firmam

    o apego ao preceito da soberania dos Estados no que diz respeito dimenso social dos direitos

    humanos. Isto , no plano internacional, os direitos no tm carter de exigncia jurdica ou de

    13 Uma discusso sobre a refilantropizao da questo social e ONGs encontra-se, por exemplo, em Raichellis (2006). 14 Aquisio de bens materiais e imateriais ligados assistncia social, sade, cultura, entre outros. 15 Concordo com Koerner que prefere a expresso estatalismo a estatismo para evitar a conotao de interveno do Estado na economia ou sociedade [...]. a discusso remete s relaes Estado-ordem internacional e no Estado-economia/sociedade, (KOERNER. 2002, p. 96).

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    justificao para intervenes, cabendo to somente a colaborao e o incentivo para que os parmetros

    dos direitos humanos sejam incorporados na legislao e na implementao de polticas pblicas no

    interior de cada pas (KOERNER, 2002).

    6. Solidariedade cosmopolita: valores que expressam o compromisso com o direito internacional dos

    direitos humanos. So admitidas as normas, sanes e intervenes internacionais para o respeito e

    responsabilidade com as dimenses civil, poltica, social e ambiental dos direitos, o que, por um lado,

    coloca em questo a soberania do Estado e, por outro, coloca a questo do intervencionismo

    etnocentrado (parmetros ocidentais sobre direitos, especialmente). Isso significa que a comunidade

    poltica delimitada, ou a vinculao com um determinado Estado, no critrio para a excluso das

    garantias internacionais (VILLA, 2008). Ou, em outras palavras, os direitos humanos so considerados

    inerentes aos seres humanos, independentemente de vinculao a um determinado Estado (ABREU,

    2007, p. 5).

    As caractersticas de cada tipo permitem fusion-los em dois grandes tipos: solidariedade

    poltica e solidariedade da ddiva16. A solidariedade poltica tem o sentido da validao subjetiva da

    norma jurdica17 ou, mais amplamente, de adeso cognitiva e afetiva aos direitos e garantias de proteo

    social pblicas, baseada nos laos e reconhecimento de cidadania local ou planetria. A solidariedade da

    ddiva tem o sentido estrito de donativo18 no qual dar manifestar superioridade, ser mais, mais

    elevado, magister; aceitar sem retribuir, ou sem retribuir mais, subordinar-se, tornar-se cliente e

    servidor, ser pequeno, ficar mais abaixo (minister) (MAUSS, 2003, p. 305).

    Idealmente, fazem parte do conjunto da solidariedade poltica os tipos: civil-pblica, cvica-

    protetiva, internacional, cosmopolita; compe o conjunto da solidariedade da ddiva os tipos de

    solidariedade pessoalista e benevolente. Os valores que as caracterizam podem orientar condutas no

    campo dos direitos sociais.

    Perfil social, partidrio e ideolgico dos vereadores em CuritibaPerfil social, partidrio e ideolgico dos vereadores em CuritibaPerfil social, partidrio e ideolgico dos vereadores em CuritibaPerfil social, partidrio e ideolgico dos vereadores em Curitiba

    Mais da metade (62,9%) dos parlamentares entrevistados tm ensino superior completo ou

    ps-graduao, apenas um deles cursou o ensino mdio incompleto e o restante possui ensino mdio ou

    superior incompleto. Mais de 70% tm entre 30 e 64 anos e, desses, a maioria (48,6%) tem entre 40 e

    54 anos. O maior nmero de vereadores filiado ao PSDB (40,0%). Em seguida, o PT, PDT e DEM tm,

    cada um, 86% dos vereadores; o PMDB, 5,7% (Tabela 1):

    16 Estas nomenclaturas ou suas variaes, com sentidos similares, so encontradas em Souza (2002), Vasconcelos (2007) e, tambm, entre vrios autores citados na exposio das caractersticas de cada tipo. 17 Weber considera que a sociologia se pergunta sobre o que de fato ocorre em uma comunidade em razo de que exista a probabilidade de que os homens que participam da atividade comunitria, sobretudo aqueles que podem influenciar consideravelmente essa atividade, considerem subjetivamente vlida uma determinada ordem e orientem por ela a sua conduta prtica (WEBER, 1984, p. 251) 18 Esta tipologia no lida com as consequncias tericas e analticas do conceito de ddiva em Mauss ou em Bourdieu (2007), mas, apenas assume alguns de seus elementos para o campo dos direitos sociais.

  • KAUCHAKJE, S. Solidariedade e expresso jurdica: valores polticos de vereadores...

    317

    Tabela 1Tabela 1Tabela 1Tabela 1 Partidos polticos de vereadores de CuritibaPartidos polticos de vereadores de CuritibaPartidos polticos de vereadores de CuritibaPartidos polticos de vereadores de Curitiba

    GGGGesto 2009 esto 2009 esto 2009 esto 2009 2012201220122012

    PARTIDOS POLTICOS Frequncia Proporo Porcentagem

    DEM - Democratas 3 0,09 8,6

    PDT - Partido Democrtico Trabalhista 3 0,09 8,6

    PMDB - Partido do Movimento Democrtico Brasileiro 2 0,06 5,7

    PP - Partido Progressista 1 0,03 2,9

    PPS - Partido Popular Socialista 2 0,06 5,7

    PRP - Partido Republicano Progressista 1 0,03 2,9

    PSB - Partido Socialista Brasileiro 3 0,09 8,6

    PSC - Partido Social Cristo 1 0,03 2,9

    PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira 14 0,4 40,0

    PSL - Partido Social Liberal 1 0,03 2,9

    PT - Partido dos Trabalhadores 3 0,09 8,6

    PV - Partido Verde 1 0,03 2,9

    TOTAL 35 1,0 100,0

    Obs. Esto destacados em cinza os partidos agrupados como esquerda e centro-esquerda e sem destaque os partidos considerados de direita e centro-direita, conforme a literatura19.

    O perfil ideolgico dos parlamentares municipais de Curitiba fica evidenciado pelo agrupamento

    dos partidos considerados de direita e centro-direita - 21 (60%) e de esquerda e centro-esquerda - 14

    (40%)20 (Tabela 1). Um critrio substantivo da classificao de direita e esquerda a maior afinidade

    com liberdade ou com a igualdade, respectivamente (BOBBIO, 1995; SINGER, 2000). A partir deste critrio

    os parlamentares foram interrogados sobre hierarquias sociais (Tabela 2):

    19 Em Miguel e Machado (2007), partidos de esquerda: PT, PCB, PC do B, PCO, PDT, PHS, PMN, PPS, PSB, PSTU e PV; de centro: PMDB e PSDB; de direita: PFL, PL, PPB e PTB, alm de PAN, PGT, PRN, Prona, PRTB, PSC, PSD, PSDC, PSL, PSN, PST, PT do B e PTN. Em Carreiro (2006), direita: PP (PPB; PPR; PDS); PFL; PRN; PDC; PL; PTB; PSC; PSP; PRP; PSL; PSD e PRONA; centro: PMDB e PSDB; esquerda: PT; PDT; PPS; PCdoB; PSB; PV; PSTU; PCO e PMN. 20 O perfil ideolgico do PMDB diverso a depender do local e perodo de anlise (BRAGA, 2006). No Paran, o PMDB pode ser alinhado como centro junto aos partidos de esquerda, o que corroborado por Perissinotto e Braunert (2006) e Perissionotto, Codato, Fuks e Braga (2007). Portanto, para diferenciar os partidos de centro, o PMDB ser classificado como de centro-esquerda e o PSDB como de centro-direita.

  • OPINIO PBLICA, Campinas, vol. 18, n 2, novembro, 2012, p. 309-336

    318

    Tabela 2Tabela 2Tabela 2Tabela 2

    Valores dos vereadores Curitiba por filiao partidria, sobre hierarquia socialValores dos vereadores Curitiba por filiao partidria, sobre hierarquia socialValores dos vereadores Curitiba por filiao partidria, sobre hierarquia socialValores dos vereadores Curitiba por filiao partidria, sobre hierarquia social

    GGGGesto 2009esto 2009esto 2009esto 2009----2012201220122012

    Partidos Sem hierarquias sociais bem definidas nenhuma ordem se sustenta

    Discorda Totalmente ou

    em parte

    Concorda Totalmente ou

    em parte

    No sabe ou

    no respondeu

    TOTAL

    N % N % N % N %

    DEM 0 0 3 100,0 0 0 3 100,0

    PDT 0 0 3 100,0 0 0 3 100,0

    PMDB 1 50,0 1 50,0 0 0 2 100,0

    PP 0 0 1 100,0 0 0 1 100,0

    PPS 0 0 2 100,0 0 0 2 100,0

    PRP 0 0 1 100,0 0 0 1 100,0

    PSB 0 0 2 66,6 1 33,0 3 100,0

    PSC 1 100,0 0 0 0 0 1 100,0

    PSDB 5 35,7 9 64,3 0 0 14 100,0

    PSL 0 0 1 100,0 0 0 1 100,0

    PT 3 100,0 0 0 0 0 3 100,0

    PV 0 0 0 0 1 100,0 1 100,0

    TOTAL 10 28,6 23 65,7 2 5,7 35 100,0

    A maioria dos vereadores (65,7%) concorda com a afirmao de que sem hierarquias bem

    definidas nenhuma ordem social se sustenta e 28,6% discordam. A porcentagem de vereadores que

    manifesta valores com baixa congruncia em relao ao critrio da igualdade ultrapassa a daqueles

    filiados aos partidos de direita e centro - direita21 (Tabela 3):

    21 Este agrupamento permite a realizao de testes de independncia e de correlao Q de Yule que requerem tabelas qudruplas e frequncias em cada casela da tabela de distribuio iguais ou superiores a cinco. Os testes foram realizados a despeito de uma das casas da tabela qudrupla ter valor menor que 5, pois, embora no recomendvel, considero que os resultados fornecem indicativos teis para a discusso.

  • KAUCHAKJE, S. Solidariedade e expresso jurdica: valores polticos de vereadores...

    319

    Tabela 3Tabela 3Tabela 3Tabela 3 Valores dos vereadores de Curitiba de partidos de direita/centroValores dos vereadores de Curitiba de partidos de direita/centroValores dos vereadores de Curitiba de partidos de direita/centroValores dos vereadores de Curitiba de partidos de direita/centro----direita ou esquerda/centrodireita ou esquerda/centrodireita ou esquerda/centrodireita ou esquerda/centro----esquerda esquerda esquerda esquerda

    sobre hierarquias social, econmica e polticasobre hierarquias social, econmica e polticasobre hierarquias social, econmica e polticasobre hierarquias social, econmica e poltica GGGGestoestoestoesto 2009200920092009----2012201220122012

    Sem hierarquias sociais bem definidas nenhuma ordem se sustenta

    Partido

    Direita e centro-direita

    Esquerda e centro-esquerda

    Total

    Frequncia % Frequncia % Frequncia %

    Concorda Totalmente ou em parte 15 71,4 8 57,1 23 65,7

    Discorda Totalmente ou em parte 6 28,6 4 28,6 10 28,6

    No sabe ou no respondeu 0 0 2 14,3 2 5,7

    Total 21 100,0 14 100,0 35 100,0

    Obs. Colunas em destaque para a realizao dos testes de independncia Q de Yule e de correlao Q de Yule.

    Os testes demonstraram que h dependncia estatstica entre as variveis no seguinte sentido:

    vereadores dos partidos de direita/centro-direita tendem a concordar com as hierarquias (teste de

    independncia Q de Yule: delta 0,012) e h um menor nmero (do que o esperado, caso as variveis

    fossem independentes) de vereadores dos partidos de esquerda/centro-esquerda que concordam (Tabela

    4). Todavia, este resultado e o teste de correlao Q de Yule (0,11) indicam uma baixa correlao22 entre

    as variveis, ou seja, h 11,0% de chance a mais de encontrar vereadores de direita e centro-direita que

    concordam com a importncia das hierarquias sociais23.

    Tabela 4Tabela 4Tabela 4Tabela 4

    Teste de independncia Q de Yule para valTeste de independncia Q de Yule para valTeste de independncia Q de Yule para valTeste de independncia Q de Yule para valores de vereadores de Curitibaores de vereadores de Curitibaores de vereadores de Curitibaores de vereadores de Curitiba (agrup(agrup(agrup(agrupados em perfil partidrio) sobre hierarquia socialados em perfil partidrio) sobre hierarquia socialados em perfil partidrio) sobre hierarquia socialados em perfil partidrio) sobre hierarquia social

    GGGGestoestoestoesto 2009200920092009----2012201220122012

    Importncia de hierarquia PARTIDO POLTICO

    Esquerda e centro-esquerda

    Direita e centro-direita

    Concorda

    ---- ++++

    Discorda ++++ ----

    Obs. A rea sombreada servir como referncia para testes efetuados com outras variveis cujos resultados apresentam o mesmo posicionamento dos sinais negativos e positivos.

    22 A estimativa da fora da correlao segue Meireles (2001). A despeito da correlao baixa, o resultado dos pares consistentes (0,110) (par formado pelos vereadores de partidos de direita/centro-direita que concordam com as hierarquias e pelos vereadores de partidos de esquerda/centro-esquerda que discordam) mais forte que o resultado dos pares inconsistentes (0,088) (isto , vereadores de partido de esquerda/centro-esquerda que concordam e vereadores de partidos de direita/centro-direita que discordam). 23 A despeito da correlao baixa, o resultado dos pares consistentes (0,110) (par formado pelos vereadores de partidos de direita/centro-direita que concordam com as hierarquias e pelos vereadores de partidos de esquerda/centro-esquerda que discordam) mais forte que o resultado dos pares inconsistentes (0,088) (isto , vereadores de partido de esquerda/centro-esquerda que concordam e vereadores de partidos de direita/centro-direita que discordam).O teste demonstrou proximidade tambm entre o resultado para os pares consistentes (0,12) (par formado pelos vereadores de partidos de direita/centro-direita que preferem a opo manter a ordem ou liberdade como principais responsabilidades do Estado e pelos parlamentares de partidos de esquerda/centro-esquerda que escolhem a alternativa garantir bem estar) e o resultado para os pares inconsistentes (0,10) (vereadores de partidos de esquerda/centro-esquerda que preferem ordem ou liberdade e de partidos de direita/centro-direita que escolhem bem estar social).

  • OPINIO PBLICA, Campinas, vol. 18, n 2, novembro, 2012, p. 309-336

    320

    Outro modo de aferir o perfil ideolgico dos parlamentares municipais pela concepo sobre

    responsabilidade principal do Estado, a qual manifesta tendncias mais conservadoras, liberais ou

    socializantes da democracia social e socialismo. As frequncias seguem o mesmo padro anterior.

    Porm, para este caso, acentuaram-se as ambiguidades entre valores constatados nas entrevistas e o

    perfil partidrio-ideolgico, cujo critrio de classificao de direita o maior apreo pela liberdade e o de

    esquerda a preocupao com a igualdade (BOBBIO, 1995; SINGER, 2000). Alguns partidos situados

    esquerda/centro-esquerda priorizam a manuteno da ordem ou as liberdades individuais e alguns

    direita/centro-direita escolhem o bem estar social como responsabilidade estatal prioritria (Tabela 5):

    Tabela 5Tabela 5Tabela 5Tabela 5

    Escolha dos vereadores de Curitiba por filiao partidria, Escolha dos vereadores de Curitiba por filiao partidria, Escolha dos vereadores de Curitiba por filiao partidria, Escolha dos vereadores de Curitiba por filiao partidria,

    sobre responsabilidade principal do Estadosobre responsabilidade principal do Estadosobre responsabilidade principal do Estadosobre responsabilidade principal do Estado

    GGGGestoestoestoesto 2009200920092009----2012201220122012

    Partidos Responsabilidade principal do Estado

    Manter a ordem Respeitar liberdades individuais

    Garantir bem estar social

    TOTAL

    N % N % N % N %

    DEM 3 100,0 0 0 0 0 3 100,0

    PDT 2 66,7 1 33,3 0 0 3 100,0

    PMDB 0 0 0 0 2 100,0 2 100,0

    PP 0 0 0 0 1 100,0 1 100,0

    PPS 1 50,0 1 50,0 0 0 2 100,0

    PRP 0 0 0 0 1 100,0 1 100,0

    PSB 2 66,7 0 0 0 0 3* 100,0

    PSC 0 0 1 100,0 0 0 1 100,0

    PSDB 4 28,6 5 35,7 4 28,6 14* 100,0

    PSL 0 0 0 0 1 100,0 1 100,0

    PT 0 0 0 0 3 100,0 3 100,0

    PV 0 0 1 100,0 0 0 1 100,0

    TOTAL 12 34,3 09 25,7 12 34,3 35* 100,0

    *Resposta anulada: PSB-01; PSDB-01

    Para tratar este ponto, as alternativas manter a ordem e respeitar liberdades individuais

    foram conjugadas, porque, por um lado, a maior parte das posies dos vereadores, por partidos, divide-

    se entre estas alternativas (exceto para o caso do PSDB), e por outro, para isolar a opo garantir bem

    estar social, afeita aos direitos sociais. Com isso, verifica-se que 60% escolheram manter a ordem ou

    respeitar a liberdade individual e 34,3% garantir bem estar social (Tabelas 5 e 6).

  • KAUCHAKJE, S. Solidariedade e expresso jurdica: valores polticos de vereadores...

    321

    Tabela 6Tabela 6Tabela 6Tabela 6

    Valores dos vereadores de Curitiba de partidos de direita/centroValores dos vereadores de Curitiba de partidos de direita/centroValores dos vereadores de Curitiba de partidos de direita/centroValores dos vereadores de Curitiba de partidos de direita/centro----direita ou esquerda/centrodireita ou esquerda/centrodireita ou esquerda/centrodireita ou esquerda/centro----esquerda, esquerda, esquerda, esquerda,

    sobre principal responsabilidade do Estadosobre principal responsabilidade do Estadosobre principal responsabilidade do Estadosobre principal responsabilidade do Estado

    GGGGesto esto esto esto 2009200920092009----2012201220122012

    Principal responsabilidade do Estado

    Partido

    Direita e centro-direita

    Esquerda e centro-esquerda

    Total

    FrequnciaFrequnciaFrequnciaFrequncia %%%% FrequnciaFrequnciaFrequnciaFrequncia %%%% FrequnciaFrequnciaFrequnciaFrequncia %%%%

    Manter a ordem ou respeitar Manter a ordem ou respeitar Manter a ordem ou respeitar Manter a ordem ou respeitar liberdades individuaisliberdades individuaisliberdades individuaisliberdades individuais

    13131313 61,961,961,961,9 8888 57,157,157,157,1 21212121 60,060,060,060,0

    Garantir bem estar socialGarantir bem estar socialGarantir bem estar socialGarantir bem estar social 7777 33,333,333,333,3 5555 35,735,735,735,7 12121212 34,334,334,334,3

    No sabe ou no respondeuNo sabe ou no respondeuNo sabe ou no respondeuNo sabe ou no respondeu 1111 4,84,84,84,8 1111 4,84,84,84,8 2222 5,75,75,75,7

    TotalTotalTotalTotal 21212121 100,0100,0100,0100,0 14141414 100,0100,0100,0100,0 35353535 100,0100,0100,0100,0

    Obs. Colunas em destaque para a realizao dos testes de independncia Q de Yule e de correlao Q de Yule

    Os testes indicaram que as variveis partido e responsabilidade do Estado podem ser

    consideradas independentes (delta 0,009). No entanto, admitindo-se a desprezvel dependncia

    estatstica, o seu sentido de que os vereadores dos partidos de direita/centro-direita tendem a escolher

    as alternativas manter a ordem ou respeitar a liberdade individual. Este resultado confirmado pela

    correlao baixssima (0,074), demonstrando que h 7,4% de chance a mais de encontrar vereadores de

    direita/centro-direita com preferncia pela alternativa manter a ordem ou respeitar a liberdade

    individual24.

    As correlaes entre perfil ideolgico-partidrio com a varivel hierarquia social e com a varivel

    responsabilidade do Estado foram frgeis. Isto, por um lado, coloca a questo se o continuum

    esquerda-direita como referencial para a anlise est perdendo importncia para a compreenso do

    comportamento dos partidos e seus membros (CARREIRO, 2006, p. 159) e, por outro, pode ser mais

    um indicador da perda de centralidade dos partidos do ponto de vista da reconfigurao da

    representao25 (LAVALLE, HOUTZAGER, CASTELLO, 2006, p. 68).

    24 O teste demonstrou proximidade tambm entre o resultado para os pares consistentes (0,12) (par formado pelos vereadores de partidos de direita/centro-direita que preferem a opo manter a ordem ou liberdade como principais responsabilidades do Estado e pelos parlamentares de partidos de esquerda/centro-esquerda que escolhem a alternativa garantir bem estar) e o resultado para os pares inconsistentes (0,10) (vereadores de partidos de esquerda/centro-esquerda que preferem ordem ou liberdade e de partidos de direita/centro-direita que escolhem bem estar social).Para Lavalle (2006, p. 84) a perda de centralidade dos partidos polticos faz parte da reconfigurao da representao em curso decorrente dos seguintes fatores: as novas instncias de mediao entre representantes e representados: a mdia, claro, mas no s, tambm constelaes de atores intermedirios no mais ordenveis pelas grandes clivagens ideolgicas e socioeconmicas das democracias de partidos de massas e; a multiplicao de instncias de participao cidad e de representao coletiva incumbidas da definio de prioridades pblicas e do desenho e superviso de polticas. 25 Para Lavalle, Houtzager e Castello, a perda de centralidade dos partidos polticos faz parte da reconfigurao da representao em curso decorrente dos seguintes fatores: as novas instncias de mediao entre representantes e representados: a mdia, claro, mas no s, tambm constelaes de atores intermedirios no mais ordenveis pelas grandes clivagens ideolgicas e socioeconmicas das democracias de partidos de massas e; a multiplicao de instncias de participao cidad e de representao coletiva incumbidas da definio de prioridades pblicas e do desenho e superviso de polticas (LAVALLE, HOUTZAGER e CASTELLO, 2006, p. 84).

  • OPINIO PBLICA, Campinas, vol. 18, n 2, novembro, 2012, p. 309-336

    322

    De modo geral, a composio partidria da Cmara dos Vereadores de Curitiba da gesto em

    foco, os valores sobre hierarquia social e responsabilidade principal do Estado, assim como a correlao

    entre estas variveis apontam para um perfil ideolgico liberal e conservador. Esta concepo, por sua

    vez, contribui para entender os valores dos vereadores sobre direitos sociais.

    Valores sobre direitos sociais e concepes de Valores sobre direitos sociais e concepes de Valores sobre direitos sociais e concepes de Valores sobre direitos sociais e concepes de solidariedadesolidariedadesolidariedadesolidariedade

    Os vereadores de Curitiba foram estimulados a escolher quais entre os seguintes itens

    considerariam como direitos sociais: sade, previdncia social, educao, assistncia social, segurana

    alimentar e nutricional, trabalho, transferncia de renda e habitao.

    Tais reas constam, principalmente, no Ttulo II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais) e no

    Ttulo VIII da Ordem social da CF88 Federal e nas leis referentes26. Quando se trata dos direitos sociais

    em conjunto, as respostas dos parlamentares sugerem valores no inteiramente condizentes com a

    solidariedade poltica, mas, quando observados separadamente, verifica-se maior congruncia com este

    tipo de solidariedade para os casos da sade, educao e previdncia social e menor compatibilidade

    para segurana alimentar e nutricional, assistncia social e transferncia de renda (Tabela 7):

    Tabela 7Tabela 7Tabela 7Tabela 7

    reas reconhecidas como direitos sociais reas reconhecidas como direitos sociais reas reconhecidas como direitos sociais reas reconhecidas como direitos sociais pelos vereadores de Curitibapelos vereadores de Curitibapelos vereadores de Curitibapelos vereadores de Curitiba GGGGesto 2009esto 2009esto 2009esto 2009----2012201220122012

    Direitos Sim No NR RN Total

    N % N % N % N % N %

    Sade 33 94,3 0 0 0 0 2 5,7 35 100,0

    Educao 32 91,4 1 2,9 0 0 2 5,7 35 100,0

    Previdncia social 32 91,4 1 2,9 0 0 2 5,7 35 100,0

    Trabalho 31 88,8 2 5,7 0 0 2 5,7 35 100,0

    Habitao 30 85,7 3 8,6 0 0 2 5,7 35 100,0

    Segurana alimentar 28 80,0 5 14,3 0 0 2 5,7 35 100,0

    Assistncia social 27 77,1 6 17,1 0 0 2 5,7 35 100,0

    Transferncia de renda 16 45,7 17 48,6 0 0 2 5,7 35 100,0

    NR No respondeu RN Resposta nula

    Os valores dos vereadores so pertinentes prpria histria dos direitos sociais. No final do

    sculo XIX e primeira metade do sculo XX, o ncleo da legislao social era sade, previdncia social,

    educao, trabalho (mais especificamente: leis trabalhistas regulando salrios, relaes e condies de

    26 Por exemplo, Lei Orgnica da Sade (Lei n 8.080/1990); Lei Orgnica da Assistncia Social (Lei n 8.742/1993); Renda de Cidadania (Lei n 10.835/2004); Programa Bolsa Famlia (Lei n 10.836/2004); Lei de Diretrizes e Bases da Educao (Lei n 9.394/96); Lei sobre habitao de interesse social (Lei n 11.124/2005); Lei do Sistema Nacional de Segurana Alimentar e Nutricional (Lei n 11.346/2006).

  • KAUCHAKJE, S. Solidariedade e expresso jurdica: valores polticos de vereadores...

    323

    trabalho) e assistncia (neste perodo, aceita menos como direito e mais como ajuda aos empobrecidos e

    incapacitados para o trabalho).

    Durante o sculo XX e incio do XXI, o rol dos direitos sociais foi ampliado com os direitos ao

    lazer, transferncia de renda (nas variaes renda de cidadania com sentido da universalidade e renda

    mnima garantida focalizada nas pessoas de baixa renda27), assistncia social, trabalho como um bem

    social e segurana alimentar e nutricional, por exemplo (DRAIBE, 1989, CASTRO et al, 2009).

    A insero e ampliao destas temticas na legislao e na poltica social28 significaram uma

    inflexo no padro institucional do Estado de Bem Estar Social brasileiro, o qual, at meados de 1980,

    era concernente ao modelo meritocrtico-particulatista ou conservador29. Atualmente, esta legislao e

    poltica social apontam numa direo mais universalista (DRAIBE, 1993a, FIORI, 1997), o que pode vir a

    contribuir para modelar a cultura poltica brasileira tambm neste sentido30.

    Todavia, como j mencionado, os valores de parte dos vereadores demonstram que esta

    influncia no acentuada no caso de valores sobre direitos mais recentes, pois, quase metade (48,6%)

    no considera que transferncia de renda seja um direito social; 17,1% excluem do conjunto desses

    direitos a assistncia social e 14,3% no reconhecem como um direito s seguranas alimentar e

    nutricional (Tabela 7).

    Valores sobre programa de traValores sobre programa de traValores sobre programa de traValores sobre programa de transferncia de renda e perfil ideolgiconsferncia de renda e perfil ideolgiconsferncia de renda e perfil ideolgiconsferncia de renda e perfil ideolgico

    Transferncia de renda apresentou menor validao subjetiva como um direito, por isso, seu

    detalhamento pode fornecer sugestes para a discusso sobre os demais direitos sociais. Esta rea dos

    direitos tem, tambm, a maior rejeio ao longo da histria da cidadania social desde suas protoformas

    no sculo XVI e da poltica social no XIX, cujas medidas assistenciais destinadas s camadas

    empobrecidas primavam pelo carter provisrio e reduzido, a fim de no competir com a aceitao de

    trabalho, mesmo aqueles com condies salariais, de jornada e salubridade consideradas deplorveis j

    entre autores do sculo XIX (MARX, 1980; HUGO, 2002; CASTEL, 2001; CARVALHO, 2001).

    Interessante notar que outros dados das entrevistas reforam esta compatibilidade dos valores

    com a histria dos direitos sociais, mesmo quando os dados indicam uma aparente contradio. Chama

    27 Atualmente, no Brasil, os principais programas de transferncia de renda so o Benefcio de Prestao Continuada (BPC) e o Programa Bolsa Famlia (PBF), os quais podem ser classificados como programas de renda mnima com foco nos grupos populacionais de baixa renda. Uma das crticas a estes programas a focalizao agravada pelo corte de renda muito baixo (pessoas em situao de miserabilidade), outras, contrariamente, apontam o incentivo desdia como efeito perverso de programas aos moldes do BF (FIGUEIREDO, 2006). 28 Prefiro utilizar o termo poltica social, no singular, que enfatiza tratar de uma poltica pblica que abarca diferentes setores (polticas sociais especficas), tais como, educao, assistncia social, sade, etc. (DRAIBE, 1993a). 29 Vale lembrar que entre os modelos de Bem Estar Social, tratados especialmente por Esping-Andersen (1991), o modelo conservador repousa na premissa de que as pessoas devem estar em condies de resolver suas prprias necessidades, com base em seu trabalho, em seu mrito, no desempenho profissional, na sua produtividade. A poltica social intervm apenas parcialmente, completando e corrigindo as aes alocativas do mercado e as instituies econmicas. Esping-Andersen chama a ateno para as caractersticas histrico-constitutivas desse padro, que vincula ao emprego o acesso aos benefcios. Antes de tudo, esse um sistema corporativo e estratificado, no qual tendem a coexistir distintos sistemas previsionais criados pelo Estado para diferentes categorias ocupacionais, os trabalhadores, os empregados "white collor", os funcionrios pblicos, os militares, dentre outros (DRAIBE, 1993b, p. 7). 30 O alcance e impacto dessa inflexo na tessitura social, em particular nos aspectos econmicos e da cultura poltica, so discutidos por autores como Oliveira (2003), Neri (2007, 2011), Medeiros et al (2007) e Castro et al (2009).

  • OPINIO PBLICA, Campinas, vol. 18, n 2, novembro, 2012, p. 309-336

    324

    a ateno que 88,5% dos vereadores concordaram com a afirmao que os programas de transferncia

    de renda so necessrios para atender carncias ou ativar a economia, mesmo que possam provocar a

    ineficincia do Estado (Tabela 8):

    Tabela 8Tabela 8Tabela 8Tabela 8

    Opinies de vereadores de Curitiba sobre polticas e programas de transferncia de rendaOpinies de vereadores de Curitiba sobre polticas e programas de transferncia de rendaOpinies de vereadores de Curitiba sobre polticas e programas de transferncia de rendaOpinies de vereadores de Curitiba sobre polticas e programas de transferncia de renda GGGGestoestoestoesto 2009200920092009----2012201220122012

    Polticas e programas de transferncia de renda Frequncia Proporo Porcentagem

    Em geral provocam a ineficincia econmica do Estado e devem ser evitadas

    4 0,11 11,4

    So necessrias para atender carncias sociais, mesmo que provoquem ineficincia econmica do Estado

    25 0,7 71,4

    So necessrias porque ativam a economia local, mesmo que provoquem a ineficincia econmica do Estado

    6 0,17 17,1

    TOTAL 35 1,0 100,0

    Entretanto, 65,8% discordaram totalmente ou em parte que programas de transferncia de

    renda sejam incorporados na legislao social, o que compatvel com os resultados de no

    reconhecimento da rea como um direito e indica a tendncia em aceitar tais aes desde que sejam

    como doao e no como direito de cidadania. A aceitao por 71,4% dos vereadores da necessidade de

    atender carncias sociais corrobora esta tendncia (Tabelas 8 e 9). Tais dados vo ao encontro dos

    argumentos de Reis (1995) sobre a cultura de responsabilidade benevolente das elites brasileiras e,

    portanto, sugerem valores condizentes com a solidariedade benevolente.

    Tabela 9Tabela 9Tabela 9Tabela 9

    OpiniesOpiniesOpiniesOpinies de vereadores de Curitiba de vereadores de Curitiba de vereadores de Curitiba de vereadores de Curitiba sobre sobre sobre sobre a natureza dos a natureza dos a natureza dos a natureza dos programas de programas de programas de programas de

    transferncia de renda e legislaotransferncia de renda e legislaotransferncia de renda e legislaotransferncia de renda e legislao

    GGGGestoestoestoesto 2009200920092009----2012201220122012

    Inscrio de programas de transferncia de renda na Inscrio de programas de transferncia de renda na Inscrio de programas de transferncia de renda na Inscrio de programas de transferncia de renda na legislao como direito de legislao como direito de legislao como direito de legislao como direito de cidadaniacidadaniacidadaniacidadania

    FrequnciaFrequnciaFrequnciaFrequncia ProporoProporoProporoProporo PorcentagemPorcentagemPorcentagemPorcentagem

    Discorda totalmente 15 0,42 42,9

    Discorda em parte 8 0,22 22,9

    Concorda em parte 5 0,14 14,3

    Concorda totalmente 7 0,2 20,0

    TOTAL 35 1,0 100,0

    Uma justificativa para esta opinio relaciona-se ao fato de que de 65,7% dos parlamentares

    consideram que programas sociais podem levar ao desestmulo para o trabalho (Tabela 10):

  • KAUCHAKJE, S. Solidariedade e expresso jurdica: valores polticos de vereadores...

    325

    Tabela 10Tabela 10Tabela 10Tabela 10

    Valores de vereadores de Curitiba por filiao partidria, sobre programas soValores de vereadores de Curitiba por filiao partidria, sobre programas soValores de vereadores de Curitiba por filiao partidria, sobre programas soValores de vereadores de Curitiba por filiao partidria, sobre programas sociais e trabalhociais e trabalhociais e trabalhociais e trabalho GGGGestoestoestoesto 2009200920092009----2012201220122012

    Partidos Beneficirios de programas sociais tendem a no querer trabalhar (encostam no

    Estado) Discorda

    Totalmente ou em parte

    Concorda Totalmente ou

    em parte

    No sabe ou

    no respondeu

    TOTAL

    N % N % N % N % DEM 1 33,3 2 67,7 0 0 3 100,0 PDT 1 33,3 2 66,7 0 0 3 100,0

    PMDB 2 100,0 0 0 0 0 2 100,0 PP 0 0 1 100,0 0 0 1 100,0

    PPS 0 0 2 100,0 0 0 2 100,0 PRP 0 0 1 100,0 0 0 1 100,0 PSB 1 33,3 2 66,7 0 0 3 100,0 PSC 0 0 1 100,0 0 0 1 100,0

    PSDB 4 28,6 10 71,4 0 0 14 100,0 PSL 0 0 1 100,0 0 0 1 100,0 PT 2 66,7 1 33,3 0 0 3 100,0 PV 0 0 0 0 1 100,0 1 100,0

    TOTAL 11 31,43 23 65,7 1 2,9 35 100,0

    Talvez estes dados reflitam uma concepo sobre polticas pblicas que se afasta de

    abordagens que frisam a clivagem de classe e seus efeitos na segregao e na desigualdade social.

    Abordagens como a de Lojkine (1981), por exemplo, que articulam desigualdade social e polticas

    pblicas que, no geral, beneficiam camadas de alta renda e, tambm, estudos como de Marques e Bichir

    (2001; 2002) sobre polticas pblicas e configurao espacial que sustentam a relao entre ausncia ou

    insuficincia de polticas pblicas nos espaos e para a populao de baixa renda e a dimenso da

    precariedade social em que vivem.

    Para uma aproximao sobre quais seriam os valores dos vereadores de acordo com o perfil

    ideolgico-partidrio, trabalhou-se com as variveis independentes partidos polticos e responsabilidade

    do Estado e a varivel dependente programas sociais e desestmulo para o trabalho.

    Relao entre valores polticos sobre programas sociaisRelao entre valores polticos sobre programas sociaisRelao entre valores polticos sobre programas sociaisRelao entre valores polticos sobre programas sociais e perfil ideolgicoe perfil ideolgicoe perfil ideolgicoe perfil ideolgico----partidriopartidriopartidriopartidrio

    Metade dos vereadores dos partidos de esquerda/centro-esquerda e 76,1% dos de

    direita/centro direita concordam que beneficirios de programas sociais tendem a no querer trabalhar;

    o maior nmero destes ltimos coerente com o perfil ideolgico esperado em relao sua filiao

    partidria (Tabela 11):

  • OPINIO PBLICA, Campinas, vol. 18, n 2, novembro, 2012, p. 309-336

    326

    Tabela 11Tabela 11Tabela 11Tabela 11 Valores dos vereadores Valores dos vereadores Valores dos vereadores Valores dos vereadores de de de de de partidos de direita/centrode partidos de direita/centrode partidos de direita/centrode partidos de direita/centro----direita ou esquerda/centrodireita ou esquerda/centrodireita ou esquerda/centrodireita ou esquerda/centro----esquerda sobreesquerda sobreesquerda sobreesquerda sobre

    programas sociais e trabalhoprogramas sociais e trabalhoprogramas sociais e trabalhoprogramas sociais e trabalho GGGGestoestoestoesto 2009200920092009----2012201220122012

    Beneficirios de programas sociais tendem a no querer trabalhar (encostam no Estado)

    Partido

    Direita e centro-direita

    Esquerda e centro-esquerda

    Total

    Frequncia % Frequncia % Frequncia %

    Concorda Totalmente ou em parte 16 76,1 7 50,0 23 65,7

    Discorda Totalmente ou em parte 5 23,8 6 42,9 11 31,4

    No sabe ou no respondeu 0 0 1 7,1 1 2,9

    Total 21 100,0 14 100,0 35 100,0

    Obs. Colunas em destaque para a realizao dos testes de independncia Q de Yule e de correlao Q de Yule.

    A dependncia estatstica entre as variveis aponta que os vereadores dos partidos de

    direita/centro-direita tendem a concordar com a afirmao que beneficirios de programas sociais

    tendem a no querer trabalhar (delta 0,053). O teste indica uma correlao moderada (0,466). Quer

    dizer, h 46,6% de chance a mais de encontrar vereadores de direita e centro-direita que concordam

    com esta afirmao31.

    A fora da correlao maior quando a varivel independente no o perfil ideolgico-

    partidrio dos vereadores, mas a noo sobre responsabilidade do Estado. Metade dos vereadores que

    optam pela alternativa garantir o bem estar social e, tambm, 76,2% que escolhem manter a ordem e

    respeitar as liberdades individuais concordam que programas sociais podem desestimular os

    beneficirios a trabalhar (Tabela 12). De novo, menor a ambiguidade entre os vereadores mais

    conservadores e liberais.

    Tabela 12Tabela 12Tabela 12Tabela 12

    Concepes de vereadores de Curitiba sobre responsabilidade do Estado e sobre programas sociaisConcepes de vereadores de Curitiba sobre responsabilidade do Estado e sobre programas sociaisConcepes de vereadores de Curitiba sobre responsabilidade do Estado e sobre programas sociaisConcepes de vereadores de Curitiba sobre responsabilidade do Estado e sobre programas sociais GGGGestoestoestoesto 2009200920092009----2012201220122012

    Beneficirios de programas sociais tendem a no querer trabalhar

    (encostam no Estado)

    Principal responsabilidade do Estado

    Garantir bem estar social

    Manter a ordem ou respeitar as liberdades

    Total

    N % N % N %

    Concorda Totalmente ou em parte 6 50,0 16 76,2 22 62,97

    Discorda Totalmente ou em parte 6 50,0 4 19,0 10 28,6

    No sabe ou no respondeu 0 0 1 4,8 1 2,7

    Total 12 100,0 21 100,0 35* 100,0

    *Respostas anuladas: 2 Obs. Colunas em destaque para a realizao dos testes de independncia Q de Yule e de correlao Q de Yule32.

    31 O resultado dos pares consistentes (0,083) (vereadores de partidos de direita/centro-direita que concordam que programas sociais desestimulam para o trabalho e de partidos de esquerda/centro-esquerda que discordam) mais forte que o resultado dos pares inconsistentes (0,060) (vereadores de partidos de esquerda/centro-esquerda que concordam e de direita/centro-direita que discordam. 32 Na Tabela 12, h uma casa com valor menor que 5, no entanto, mantive os testes por entender que os resultados fornecem sugestes interessantes para a anlise.

  • KAUCHAKJE, S. Solidariedade e expresso jurdica: valores polticos de vereadores...

    327

    H dependncia estatstica entre as variveis. Os vereadores que consideram que a principal

    responsabilidade do Estado manter a ordem ou respeitar as liberdades individuais tendem a concordar

    que beneficirios de programas sociais tendem a no querer trabalhar (delta 0,07) e h um nmero

    menor (do que o esperado, caso as variveis fossem independentes) de vereadores que escolhem a

    alternativa garantir bem estar e, tambm, concordam com aquela afirmao sobre programas sociais

    (ver rea sombreada da Tabela 4). A correlao substancial, sendo que o teste de correlao Q de Yule

    indica que h 62% de chance a mais de encontrar vereadores que preferem as alternativas manter a

    ordem ou respeitar as liberdades individuais e que concordam que programas sociais podem representar

    um desestmulo para o trabalho33.

    Em sntese, a maioria dos vereadores desconsiderou transferncia de renda como um direito

    universal, discordou de sua insero como direito na legislao, mas consentiu que programas de

    transferncia de renda so necessrios para atender carncias sociais. A maioria tambm concordou que

    beneficirios de programas sociais tendem a no querer trabalhar. H uma relao de dependncia

    estatstica entre estes valores e a filiao partidria e, tambm, entre as concepes sobre o Estado. O

    sentido da correlao que vereadores de direita/centro-direita e que manifestam concepes

    conservadora e liberal sobre o Estado tendem a associar programas sociais com desestmulo ao

    trabalho, no obstante tais valores estejam presentes, tambm, entre os demais parlamentares.

    Para compreender valores sobre programas sociais, a correlao com a varivel concepes

    sobre responsabilidade do Estado mais forte quando comparada com correlao com a varivel filiao

    partidria. Como mencionado anteriormente, estes dados que lidam com o perfil ideolgico-partidrio

    dos vereadores fornecem elementos para discusso que, sob outro enfoque, esto presentes em autores

    como Lavalle, Houtzager e Castello (2006) e Power e Zucco (2009), isto , em que medida partidos

    polticos so centrais na atualidade, especialmente, neste caso, para o ordenamento e modelao de

    valores de seus membros, bem como, se esquerda e direita ainda so referenciais com potencial

    preditivo.

    Os resultados tambm sugerem que, para reas recentemente incorporadas na legislao

    social, os valores da maioria dos parlamentares municipais de Curitiba so compatveis com o tipo de

    solidariedade benevolente que admite ajuda e doao antes que direitos sociais.

    Valores sobValores sobValores sobValores sobre direitos sociais e expresso jurdicare direitos sociais e expresso jurdicare direitos sociais e expresso jurdicare direitos sociais e expresso jurdica

    Os direitos sociais garantidos na CF88 so tidos como expresses do princpio fundamental da

    solidariedade (COMPARATO, 2001, p. 10). Em consonncia com a tipologia de solidariedade elaborada,

    considero que a validao subjetiva desta norma expressa a solidariedade poltica.

    33 O resultado dos pares consistentes (0,188) (o par formado por: a) vereadores que optam pelas alternativas manter a ordem ou respeitar as liberdades individuais e que concordam com a afirmao segundo a qual beneficirios de programas sociais tendem a no querer trabalhar e; b) vereadores que escolhem garantir bem estar social e que discordam) mais forte do que o resultado dos pares inconsistentes (0,047) (o par formado por: c) vereadores que optam pela alternativa garantir bem estar social e que concordam e; d) vereadores que escolhem manter a ordem e liberdades que discordam da afirmao sobre programas sociais).

  • OPINIO PBLICA, Campinas, vol. 18, n 2, novembro, 2012, p. 309-336

    328

    Na legislao social, os direitos sade, previdncia e assistncia social compem o direito

    seguridade social cujo artigo constitucional fixa a universalidade da cobertura e do atendimento e,

    tambm, a seletividade e distributividade na prestao dos benefcios e servios, com carter no

    contributivo para o caso da sade e da assistncia social e contributivo para a previdncia social. A

    universalidade e o carter no contributivo tambm caracterizam os direitos educao.

    Direitos e polticas universais agregam a priorizao social, como o caso da assistncia

    social, da educao e da segurana alimentar e nutricional que, embora destinados a todos, preveem

    servios e benefcios especficos para pessoas com deficincia, idosos e com baixa renda, por exemplo. A

    habitao social, por sua vez, destinada a pessoas de baixa renda e prioriza famlias chefiadas por

    mulheres, com idosos e pessoas com deficincia. A legislao sobre o trabalho regula a jornada,

    condies de trabalho, remunerao e seguro-desemprego, entre outros aspectos das relaes de

    trabalho. Os artigos constitucionais sobre estes direitos sociais tambm explicitam o dever do Estado e a

    participao complementar do setor privado34.

    Em meados dos anos 1990, no interior da chamada reforma do Estado e da regulamentao

    dos artigos constitucionais (FAGNANI, 2005), os princpios da universalizao dos direitos sociais e a

    prestao estatal dos servios sociais foram contrapostos orientao para polticas sociais focalizadas

    e para a oferta e prestaes sociais em parceria com organizaes da sociedade civil. Esta orientao

    tem rebatimentos atuais na implementao da poltica social e no debate sobre universalidade ou

    focalizao.

    Por um lado, Boito (2007) argumenta que programas sociais focalizados na populao de baixa

    renda, ao invs das polticas sociais universais, acabam por incidir sobre a capacidade e qualidade de

    atendimento dos servios previdencirios, de sade e educao, por exemplo. Situao que impulsiona

    parte da classe mdia baixa e as classes com rendimento superiores a buscarem tais bens no mercado,

    fortalecendo, assim, um mercado de servios sociais, s vezes, articulado com o setor financeiro

    nacional e internacional, como o caso da previdncia privada alojada nos bancos. Particularmente, a

    nfase em polticas focalizadas de transferncia renda est alinhada com o discurso ideolgico

    neoliberal que estigmatiza os direitos sociais como privilgios (BOITO, 2005, p. 54).

    Por outro lado, Neri (2007, 2011) verifica que nos anos 2000, polticas de transferncia de

    renda e de educao provocaram a diminuio da desigualdade de renda, especialmente pelo aumento

    de renda nos estratos inferiores da pirmide de renda.

    Para Draibe (2003), em sociedades profundamente desiguais, a focalizao (com distribuio

    de benefcios na proporo inversa das carncias) pode reduzir as chances da reproduo da

    desigualdade sob o manto de programas universais (DRAIBE, 2003, p. 11). A mescla virtuosa entre

    programas universais, programas focalizados e, tambm, arranjos de priorizao social no interior de

    polticas universais (recursos e servios destas polticas destinados a grupos vulnerveis pela idade,

    34 Lembro que as ONGs so entidades de direito privado, sem fins lucrativos, que realizam atividades de interesse pblico (SIMES, 2007). Portanto, mesmo consideradas um terceiro setor, so rigorosamente, includas no mbito privado.

  • KAUCHAKJE, S. Solidariedade e expresso jurdica: valores polticos de vereadores...

    329

    deficincia, pobreza e discriminao pelo gnero ou cor da pele, por exemplo) podem ter impacto

    redistributivo mais efetivo do que a eleio de uma das alternativas (DRAIBE, 2002, p. 8).

    Dito de outro modo, um arranjo de poltica social que combina princpios de universalidade,

    priorizao social e focalizao parece ter potencial para diminuir desigualdades de renda e para o

    reconhecimento de diferenas e identidades, ou seja, pode cumprir o objetivo de modificar o padro

    histrico que define cidadania como privilgio de classe.

    A compatibilidade entre a legislao social nos tpicos sobre universalidade e dever do Estado -

    e os valores dos parlamentares municipais foi verificada a partir de questes sobre pblico-alvo e

    responsabilidade na implemantao de polticas sociais.

    Em conformidade com a legislao social esto 97,1% dos vereadores que consideram a

    educao como poltica universal; 85,7% a sade; 68,6% a segurana alimentar e nutricional e 51,4% a

    assistncia social. Pouco mais da metade (57,1%) dos parlamentares municipais entendem a

    transferncia de renda como medida destinada aos setores de baixa renda, em consonncia com a

    legislao brasileira sobre a renda mnima nas variaes BPC e Bolsa Famlia; 40,0%, deles, entretanto,

    esto alinhados ao carter universal da transferncia de renda em concordncia com a lei 10.835/04

    sobre renda de cidadania (Tabela 13):

    Tabela 13Tabela 13Tabela 13Tabela 13

    PblicoPblicoPblicoPblico----alvo das polticas sociais segundo os vereadores de Curitibaalvo das polticas sociais segundo os vereadores de Curitibaalvo das polticas sociais segundo os vereadores de Curitibaalvo das polticas sociais segundo os vereadores de Curitiba GGGGestoestoestoesto 2009200920092009----12121212

    Pblico Pblico Pblico Pblico alvo e setores da poltica socialalvo e setores da poltica socialalvo e setores da poltica socialalvo e setores da poltica social Toda pop.Toda pop.Toda pop.Toda pop. Grupos sociais Grupos sociais Grupos sociais Grupos sociais

    especficosespecficosespecficosespecficos TotalTotalTotalTotal

    NNNN %%%% NNNN %%%% NNNN %%%%

    Sade 30 85,7 5 14,3 35 100,0

    Educao 34 97,1 1 2,9 35 100,0

    Assistncia social 18 51,4 17 48,6 35 100,0

    Previdncia social 27 77,1 8 22,9 35 100,0

    Habitao 24 68,6 11 31,4 35 100,0

    Trabalho 30 85,7 5 14,3 35 100,0

    Segurana alim. e nut. 24 68,6 11 31,4 35 100,0

    Transferncia de renda 14 40,0 20 57,1 34* 97,1

    *NS

    A CF88 e a legislao social estabelecem a competncia do Estado, proviso pblica e

    complementaridade do setor privado na implementao de polticas sociais. Para todas as reas dos

    diretos sociais, mais da metade dos vereadores foi coerente com as garantias legais e considerou que a

    responsabilidade em implementar polticas e programas sociais do Estado, ou principalmente do

    Estado (Tabela 14).

  • OPINIO PBLICA, Campinas, vol. 18, n 2, novembro, 2012, p. 309-336

    330

    Chama a ateno que, a despeito de 17 vereadores no identificarem transferncia de renda

    como direito social e 23 deles no aceitarem sua inscrio na legislao, apenas 5 tinham considerado

    que a sociedade civil teria responsabilidade exclusiva por programas nesta rea (Tabelas 7, 9 e 14). Isto

    denota a tendncia dos vereadores em validarem a implementao de polticas governamentais nesta

    rea com carter de ajuda e no de garantia legal.

    Tabela 14Tabela 14Tabela 14Tabela 14

    Responsabilidade em implementar polticas e programas sociais segundo os vereadores de Curitiba Responsabilidade em implementar polticas e programas sociais segundo os vereadores de Curitiba Responsabilidade em implementar polticas e programas sociais segundo os vereadores de Curitiba Responsabilidade em implementar polticas e programas sociais segundo os vereadores de Curitiba ----

    GGGGestoestoestoesto 2009200920092009----12121212

    reasreasreasreas

    Responsabilidade em implementar polticas e programas sociaisResponsabilidade em implementar polticas e programas sociaisResponsabilidade em implementar polticas e programas sociaisResponsabilidade em implementar polticas e programas sociais

    S EstadoS EstadoS EstadoS Estado S socS socS socS soc.... civilcivilcivilcivil

    AmbosAmbosAmbosAmbos PrincPrincPrincPrinc.... EstadoEstadoEstadoEstado

    AmbosAmbosAmbosAmbos PrincPrincPrincPrinc....

    SocSocSocSoc.... civilcivilcivilcivil

    NRNRNRNR TotalTotalTotalTotal

    nnnn %%%% NNNN %%%% nnnn %%%% nnnn %%%% NNNN %%%% nnnn %%%%

    Sade 10 28,6 0 0 23 65,7 1 2,9 1 2,9 35 100,0 Educao 8 22,9 0 0 22 62,9 4 11,4 1 2,9 35 100,0 Assist. social 7 20,0 0 0 22 62,9 4 11,4 2 5,7 35 100,0 Previd. social 12 34,3 0 0 20 57,1 2 5,7 1 2,9 35 100,0 Habitao 10 28,6 0 0 23 65,7 1 2,9 1 2,9 35 100,0 Trabalho 5 14,3 0 0 20 57,1 9 25,7 1 2,9 35 100,0 Segurana alim 11 31,4 0 0 19 54,3 4 11,4 1 2,9 35 100,0 Transf. de renda 11 31,4 1 2,9 17 48,6 4 11,4 2 5,7 35 100,0

    Observando todas as reas em conjunto, 80% dos entrevistados seguem a orientao

    constitucional sobre a responsabilidade do Estado (Tabela 15):

  • KAUCHAKJE, S. Solidariedade e expresso jurdica: valores polticos de vereadores...

    331

    Tabela 15Tabela 15Tabela 15Tabela 15

    Valores de vereadores de Curitiba por filiao partidria, sobre responsabilidade em Valores de vereadores de Curitiba por filiao partidria, sobre responsabilidade em Valores de vereadores de Curitiba por filiao partidria, sobre responsabilidade em Valores de vereadores de Curitiba por filiao partidria, sobre responsabilidade em implementar implementar implementar implementar

    polticas e programas sociaispolticas e programas sociaispolticas e programas sociaispolticas e programas sociais GGGGesto 2009esto 2009esto 2009esto 2009----2012201220122012

    Os dados da Tabela 15 mostram que a varivel partido (direita/centro-direita; esquerda/centro-

    esquerda) independente da varivel responsabilidade com polticas e programas sociais35.

    Os resultados compatibilidade entre valores dos vereadores e a normas legais demonstraram

    que: a maior ou menor compatibilidade sobre universalidade e focalizao depende da rea do direito

    social, sendo mais compatvel para educao e sade e menos para assistncia social e segurana

    alimentar e nutricional e; so compatveis com os artigos constitucionais os valores da maioria dos

    parlamentares sobre responsabilidade do Estado em cada uma das reas dos direitos sociais.

    Estes pontos de congruncia apontam para a solidariedade civil-pblica, mas, em reas

    especficas, como a transferncia de renda ou assistncia social, por exemplo, cabe a interpretao de

    que os valores tendem para as caractersticas da solidariedade benevolente.

    Os dados sobre associativismo e atendimento social podem auxiliar esta interpretao: a quase

    totalidade dos vereadores tem as duas formas de engajamento com significados diferentes: 88,6% deles

    realizam atendimento social que denota prestao de servios e ajuda e; 71,4% participam de alguma

    associao (ONG, movimento social, associao de bairro, por exemplo) que, supostamente, significaria

    forma de participao scio-poltica com adeso aos direitos (Tabela 16):

    35 Desnecessrio fazer o teste de independncia, pois h 80,0% dos casos em uma categoria.

    PartidosPartidosPartidosPartidos Responsabilidade em implementar polticas e programas Responsabilidade em implementar polticas e programas Responsabilidade em implementar polticas e programas Responsabilidade em implementar polticas e programas sociaissociaissociaissociais

    S Estado S Estado S Estado S Estado S Soc. CivilS Soc. CivilS Soc. CivilS Soc. Civil AmbosAmbosAmbosAmbos TOTALTOTALTOTALTOTAL

    NNNN

    %%%%

    NNNN

    %%%%

    Princ.Princ.Princ.Princ. EstadoEstadoEstadoEstado

    Princ. Princ. Princ. Princ. soc. civilsoc. civilsoc. civilsoc. civil

    NNNN

    %%%% N N N N %%%% NNNN %%%%

    DEM 0 0 0 0 3 100,0 0 0 3 100,0

    PDT 1 33,3

    0 0 2 66,7 0 3 100,0

    PMDB 0 0 0 0 2 100,0 0 2 100,0

    PP 0 0 0 0 1 100,0 0 1 100,0

    PPS 1 50,0

    0 0 1 50,0 0 2 100,0

    PRP 0 0 0 0 1 100,0 0 1 100,0

    PSB 0 0 0 0 3 100,0 0 3 100,0

    PSC 0 0 0 0 1 100,0 0 1 100,0

    PSDB 0 0 0 0 11 78,6 3 14 100,0

    PSL 1 100,0

    0 0 0 0 0 1 100,0

    PT 1 33,3

    0 0 2 66,7 0 3 100,0

    PV 0 0 0 0 1 100,0 0 1 100,0

    TOTAL 2 5,7 0 0 28 80,0 3 35 100,0

  • OPINIO PBLICA, Campinas, vol. 18, n 2, novembro, 2012, p. 309-336

    332

    Tabela 16Tabela 16Tabela 16Tabela 16

    Associativismo e atendimento social realizado por vereadores de CuritibaAssociativismo e atendimento social realizado por vereadores de CuritibaAssociativismo e atendimento social realizado por vereadores de CuritibaAssociativismo e atendimento social realizado por vereadores de Curitiba gesto 2009gesto 2009gesto 2009gesto 2009----2012201220122012

    No realiza No realiza No realiza No realiza

    atividade social ou atividade social ou atividade social ou atividade social ou presta presta presta presta servio servio servio servio

    socialsocialsocialsocial

    Realiza atividade Realiza atividade Realiza atividade Realiza atividade social ou presta social ou presta social ou presta social ou presta servio socialservio socialservio socialservio social

    TotalTotalTotalTotal

    nnnn %%%% nnnn %%%% nnnn %%%%

    Participa de associaes ou similares

    4 16,0 21 84,0 25 100,0

    No participa de associaes ou similares

    0 0 10 100,0 10 100,0

    Total 4 11,4 31 88,6 35 100,0

    Neste circuito de relaes nas instituies polticas, associaes da sociedade civil e com a

    populao diretamente, os parlamentares municipais, provavelmente, no antagonizam, mas, acomodam

    condutas e valores caracterizados nos tipos da solidariedade poltica e da solidariedade da ddiva.

    Consideraes finaisConsideraes finaisConsideraes finaisConsideraes finais

    Na Cmara Municipal de Curitiba, a maioria dos vereadores da gesto 2009-2012 tem perfil

    ideolgico liberal e conservador. Isto foi aferido pela filiao partidria, mas, principalmente, por conta

    dos valores sobre hierarquia social, responsabilidade do Estado, bem como sobre uma das reas dos

    direitos sociais destacada - a transferncia de renda.

    Ficou demonstrado que para compreender os valores dos vereadores sobre programas sociais,

    a varivel que trata da responsabilidade do Estado (manter a ordem, respeitar as liberdades individuais

    ou garantir bem estar) mais forte do que a varivel filiao partidria. Este dado traz elementos para

    discusso terica sobre a centralidade atual dos partidos polticos, especialmente para a modelao de

    valores e, tambm, se as supostas diferenas ideolgicas se traduzem coerentemente nas aes de seus

    membros (LAVALLE, HOUTZAGER, CASTELLO, 2006; CARREIRO, 2006; POWER & ZUCCO (2009).

    Verificou-se, tambm, que a compatibilidade entre os valores e a legislao sobre direitos

    sociais mais clara quando se trata das reas da sade e da educao, as quais a maioria dos

    vereadores considera serem direitos de cidadania universais e deveres do Estado com

    complementaridade do setor privado. Estes aspectos de coerncia com artigos constitucionais sobre

    direito sociais manifestam valores compatveis com a solidariedade civil-pblica. Os valores sobre

    programas sociais no geral e, individualmente, sobre transferncia de renda, so mais distantes de

    princpios de cidadania e prximos da solidariedade benevolente.

    Estes resultados esclareceram, principalmente, que os valores polticos dos vereadores sobre

    direitos sociais tm maior acento no direito ou na benesse a depender de cada rea especfica dos

    direitos, mas trouxeram tambm questionamentos para a continuidade de pesquisas sobre a possvel

  • KAUCHAKJE, S. Solidariedade e expresso jurdica: valores polticos de vereadores...

    333

    relao entre valores condizentes com a solidariedade benevolente e o estabelecimento de conexes

    eleitorais.

    Portanto, os valores dos vereadores de Curitiba sobre os direitos sociais, em conjunto, tm

    elementos dos tipos amplos de solidariedade poltica e de solidariedade da ddiva. Esta ambiguidade

    pode ser interpretada pela insero e socializao dos parlamentares municipais tanto nas organizaes

    polticas quanto da sociedade civil, partilhando da cultura poltica brasileira e da subcultura da classe

    poltica. Isto , valores caracterizados como solidariedade poltica, possivelmente, esto relacionados

    insero nas instituies polticas que proporciona a cognio sobre as regras do jogo e matrias sociais.

    Valores caracterizados como solidariedade da ddiva so coerentes com a cultura da ddiva no Brasil

    que, como a literatura atesta (LEAL, 1997; DINIZ, 1982; LOPEZ, 2004), tem um forte reforo nas relaes

    polticas locais, na qual os parlamentares municipais so um dos atores centrais.

    Referncias Referncias Referncias Referncias BibliogrficasBibliogrficasBibliogrficasBibliogrficas ABREU, N. M. C. Direitos fundamentais na Constituio Federal de 1988. Anais do Conselho Nacional de Pesquisa e Ps-Graduao em Direito, 2007. ALMOND, G.; VERBA, S. The civic culture: political attitudes and democracy in five nations. Califrnia: Sage Publications, 1989. ARRETCHE, M. Emergncia e desenvolvimento do Welfare State: teorias explicativas. BIB, n34, 1995. ____________. Estado federativo e polticas sociais: determinantes da descentralizao. So Paulo: Fapesp/Revan, 2000. BANFIELD, E. The Moral Basis of a Backward Society. Nova York: Free Press, 1958. BEHRING, E. R.; BOSCHETTI, I. Poltica social: fundamentos e histria. So Paulo: Cortez, 2007. BOBBIO, N. A Era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. ___________. Direita e esquerda. Razes e significados de uma distino poltica. So Paulo: UNESP, 1995. BOITO, A. A burguesia no Governo Lula. Crtica Marxista, Rio de Janeiro, Revan, n 21, p. 52-76, nov. 2005. ___________. Estado e burguesia no capitalismo neoliberal. Revista Sociologia e Poltica, 28, p. 57-74, jun. 2007. BOSCHI, R. R. e DINIZ, E. O corporativismo na construo do espao pblico. In: BOSCHI, R. R. (org.). Corporativismo e desigualdade: a construo do espao pblico. Rio de Janeiro: Rio Fundo, 1991. BOURDIEU, P. Escritos de Educao. Petrpolis: Vozes, 1998. BOURDIEU, P. Meditaes pascalinas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. BRAGA, M. S. S. O processo partidrio-eleitoral brasileiro, padres de competio poltica (1982-2002). So Paulo: Associao Editorial Humanitas/FAPESP, 2006. CARREIRO, Y. S. Ideologia e partidos polticos: um estudo sobre coligaes em Santa Catarina. Opinio Pblica, Campinas, vol. 12, n 1, maio 2006. CARVALHO, J. M. Mandonismo, Coronelismo, Clientelismo: Uma Discusso Conceitual. Dados, Rio de Janeiro, vol. 40, n2, 1997.

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