SOFRIMENTO NO TRABALHO E ESTRATÉGIAS DE MEDIAÇÃO DOS PROFISSIONAIS DA CONSTRUÇÃO CIVIL Suzana

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Psico-USF, v. 8, n. 1, p. 63-70, Jan./Jun. 2003 Revista PSICO-USF, v.6, n.2, p. 55-64, Jul./Dez. 2001 Sofrimento psíquico no trabalho e estratégias defensivas dos operários terceirizados da construção civil Paloma Castro da Rocha Barros1 Ana Magnólia Bezerra Mendes2 . Introdução O presente artigo apresenta os resultados de uma pesquisa que visa à investigação das estratégias defensivas para enfrentar o sofrimento utilizadas pelos trabalhadores terceirizados de uma construtora do Distrito Federal, por meio do aporte teóricometodológico da Psicodinâmica do Trabalho. A relevância dessa temática incide sobre a dimensão social, na medida em que corrobora para uma reflexão a respeito das implicações que o modelo de trabalho por produção pode causar à saúde do trabalhador, potencializando o predomínio das vivências de sofrimento, bem como fornece subsídios para se repensar este modelo. As questões norteadoras deste estudo foram: Como se configura o contexto de produção de bens e serviços no qual se inserem estes trabalhadores? Como se caracteriza seu sofrimento? e Quais as estratégias de mediação para se lidar com esse sofrimento? O processo de globalização, a inserção de novas tecnologias e a reestruturação produtiva têm provocado mudanças significativas no mundo do trabalho como, por exemplo, o surgimento de um novo modelo de produção baseado na acumulação flexível de capital, denominado terceirização. Mattoso (1999) ressalta que a globalização fez desaparecer cerca de 322 mil empregos formais, instalando assim a busca por empregos informais e por esse estilo de produção. As empresas exigem um profissional competente e competitivo, polivalente e criativo, mas nem sempre fornece um suporte organizacional promotor da saúde no trabalho. Diante dessa situação, é visível a distância entre o que a organização espera e prescreve (tarefa) e o que o trabalhador realiza (atividade). Nessa perspectiva, ele é obrigado a utilizar estratégias de mediação a fim de atender às demandas da empresa e manter sua empregabilidade e integridade física e psíquica. A mediação dessa discrepância entre a tarefa e a atividade implica um custo humano que abarca as dimensões física, psíquica e cognitiva. A incidência dos casos de doenças ocupacionais, tais como DORT, depressão, estresse e Burnout, representa a expressão do sofrimento psíquico vivenciado pelo trabalhador no contexto de produção de bens e serviço, resultado dessa divergência. Com o intuito de estudar a saúde psíquica no

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Psico-USF, v

Psico-USF, v. 8, n. 1, p. 63-70, Jan./Jun. 2003

Revista PSICO-USF, v.6, n.2, p. 55-64, Jul./Dez. 2001

Sofrimento psquico no trabalho e estratgias defensivas dos operrios terceirizados da

construo civil

Paloma Castro da Rocha Barros1

Ana Magnlia Bezerra Mendes2

.

Introduo

O presente artigo apresenta os resultados de uma pesquisa que visa investigao das estratgias defensivas para enfrentar o sofrimento utilizadas pelos trabalhadores terceirizados de uma construtora do Distrito Federal, por meio do aporte tericometodolgico da Psicodinmica do Trabalho. A relevncia dessa temtica incide sobre a dimenso social, na medida em que corrobora para uma reflexo a respeito das implicaes que o modelo de trabalho por produo pode causar sade do trabalhador, potencializando o predomnio das vivncias de sofrimento, bem como fornece subsdios para se repensar este modelo. As questes norteadoras deste estudo foram: Como se configura o contexto de produo de bens e servios no qual se inserem estes trabalhadores? Como se caracteriza seu sofrimento? e Quais as estratgias de mediao para se lidar com esse sofrimento? O processo de globalizao, a insero de novas tecnologias e a reestruturao produtiva tm provocado mudanas significativas no mundo do trabalho como, por exemplo, o surgimento de um novo modelo de produo baseado na acumulao flexvel de capital, denominado terceirizao. Mattoso (1999) ressalta que a globalizao fez desaparecer cerca de 322 mil empregos formais, instalando assim a busca por empregos informais e por esse estilo de produo. As empresas exigem um profissional competente e competitivo, polivalente e criativo, mas nem sempre fornece um suporte organizacional promotor da sade no trabalho. Diante dessa situao, visvel a distncia entre o que a organizao espera e prescreve (tarefa) e o que o trabalhador realiza (atividade). Nessa perspectiva, ele obrigado a utilizar estratgias de mediao a fim de atender s demandas da empresa e manter sua empregabilidade e integridade fsica e psquica. A mediao dessa discrepncia entre a tarefa e a atividade implica um custo humano que abarca as dimenses fsica, psquica e cognitiva. A incidncia dos casos de doenas ocupacionais, tais como DORT, depresso, estresse e Burnout, representa a expresso do sofrimento psquico vivenciado pelo trabalhador no contexto de produo de bens e servio, resultado dessa divergncia. Com o intuito de estudar a sade psquica no trabalho, a Psicodinmica do Trabalho privilegia a interrelao entre o sofrimento psquico, oriundo dos conflitos entre o sujeito e a realidade de trabalho, e as estratgias de mediao empregadas pelos trabalhadores para lidar com o sofrimento e transformar o trabalho em fonte de prazer (Ferreira & Mendes, no prelo). Este aporte terico busca analisar as estratgias individuais e coletivas de mediao utilizadas pelos trabalhadores para evitarem o adoecimento e se manterem sadios. Os trs pressupostos que fundamentam esta teoria referem-se ao sujeito como detentor de uma histria de vida e participante ativo no processo de construo da subjetividade no trabalho, o que implica uma relao na qual o sujeito, ao mesmo tempo, transforma e transformado pelo trabalho; ao carter interdisciplinar que a subsidia teoricamente tendo sua base epistemolgica no Existencialismo, na Psicanlise e na Psicossociologia; e a sua origem na Europa do sculo XIX que contribuiu para o enfoque dos cientistas no movimento operrio, a fim de atender s demandas sindicais provenientes das relaes entre os trabalhadores, os empregadores e o Estado, bem como busca de respostas para melhores condies de trabalho e de sade dos trabalhadores. Com base nesses pressupostos, realiza-se a pesquisa com os operrios da construo civil. Desde a ltima dcada, o setor da construo civil vem passando por um processo de significativas mudanas e reestruturao produtiva em alguns segmentos, o que impacta diretamente na sade do trabalhador.

Essas mudanas contriburam para o aumento da precarizao desse setor, explicitada pela super explorao, por condies de trabalho adversas e insalubres, aumento da jornada de trabalho, desemprego em massa, aumento dos acidentes de trabalho, entre outros fatores. Nesse setor, a distncia entre a tarefa e a atividade torna-se fatal. A primeira se refere s prescries impostas pela organizao ao trabalhador para a operacionalizao dos servios e a segunda est relacionada ao que de fato o trabalhador executa. O fato de o trabalhador no poder errar, pois isso colocaria em

risco a sua vida e a de outras pessoas; ter que fazer o servio com qualidade, sob o risco de ser despedido ou ser obrigado a refaz-lo e ter que se submeter s precrias condies de trabalho acarreta certa insegurana e vulnerabilidade nesses trabalhadores. Nesse sentido, a utilizao de estratgias de mediao passa a ser uma questo de sobrevivncia. Esse ramo caracteriza-se principalmente pela elevada rotatividade e baixo nvel de escolaridade dos trabalhadores. Atualmente, pauta-se pela descentralizao das atividades e pela descontinuidade do processo produtivo, medida que os servios so terceirizados e que o trabalhador no participa de todo o processo de construo da obra (Sousa, 1999). A empresa reduz custos com os encargos sociais, utilizando um sistema de subcontratao de empresas (vinculadas cooperativa ou empreiteiras)

especializadas em etapas diferentes da obra (fundao, estrutura, alvenaria, entre outras). Essa especializao de servios reflete o antigo e ainda atual modelo de produo taylorista, baseado na racionalizao do trabalho e na ciso entre concepo e execuo. Nesse sistema, contratam-se empreiteiros (intermedirios entre a empresa e os operrios) que se responsabilizaro pelos terceirizados (profissionais autnomos que so contratados temporariamente para a prestao de servio). A literatura aponta diversas definies para a terceirizao, tais como contrato de trabalho por prazo determinado (Reimann & Francisco, 1998), forma flexvel de contratao (Pinto, 1998), flexibilizao das partes contratantes (Silva, 1998), trabalho por produo (Singer, 1998), entre outras. Essa forma de produo tem transformado negativamente as relaes trabalhistas, deteriorando os direitos dos trabalhadores. A terceirizao dos servios, pautada no trabalho por produo e amplamente difundida no ramo da construo civil, tem-se constitudo em uma das formas de remunerao geradoras de sofrimento, na medida em que coloca sobre o trabalhador toda a responsabilidade da produo e de sua remunerao. Desse modo, quanto mais produzir, mais ele ganha dinheiro. Essa situao impe um ritmo acelerado ao trabalhador, fazendo com que ele ultrapasse os prprios limites, o que pode levar ao comprometimento da sua sade. Esse modelo de produo, caracterizado pela iseno de vnculo empregatcio, negligencia direitos como aposentadoria, INSS, FGTS, plano de sade, entre outros, submetendo o trabalhador excluso social. Por essa razo, Reimann e Francisco (1998) apontam a terceirizao como causadora de insegurana nas relaes trabalhistas, destruidora da identidade coletiva e desmanteladora da cidadania medida que o trabalhador no consegue construir um modo de vida equilibrado nem fixar-se em uma posio ou classe social como um sujeito permanente. No obstante as desvantagens, a questo salarial tem impulsionado os trabalhadores a preferirem este modelo de produo como uma resposta e alternativa ante o desemprego causado pela reestruturao produtiva. Diante disso, os sindicatos tornam-se ineficazes, na medida em que os prprios trabalhadores no tm tempo para lutar e exigir seus direitos, pois nesse contexto tempo dinheiro. Alguns autores (Sousa, 1999; Singer, 1998), ao analisar o processo de trabalho na indstria da construo civil, apontam o trabalho por produo como uma modalidade de explorao do trabalho de forma intensiva, que conduz a um esgotamento fsico e mental dos trabalhadores. Nessa perspectiva, Dejours (1999b) ressalta que a presso socioeconmica de ameaa perda do posto de trabalho ou dos direitos e garantias trabalhistas tem gerado um sentimento de medo, preponderante nos operrios da construo civil, instalando-se assim o sofrimento psquico. Ferreira e Mendes (no prelo) definem o sofrimento como uma vivncia intensa e duradoura, na maioria das vezes inconsciente, de experincias dolorosas como angstia, medo e insegurana, oriundas do conflito entre necessidades de gratificao do indivduo e restrio no ambiente de trabalho. Para esses autores, as vivncias de sofrimento se originam nas situaes adversas provenientes das dimenses da organizao, condies e relaes de trabalho que estruturam o contexto de produo de bens e servios. Elas constituem indicadores de mal-estar no trabalho e manifestam-se por meio de sintomas de ansiedade, insatisfao, indignidade, inutilidade, desvalorizao e desgaste. As dimenses do contexto de produo so determinadas por fatores como tarefa, ritmo, tempo e controle do trabalho, ambiente fsico, equipamentos e material oferecido pela instituio, bem como as informaes disponibilizadas para realizao das tarefas, comunicao e sociabilidade entre os pares e a hierarquia. O conjunto desses elementos, ao atuar de forma negativa ou restritiva, responsvel pelo desencadeamento ou no do sofrimento.

Nessa perspectiva, pode-se pressupor que no caso especfico da terceirizao, dadas as caractersticas dessas dimenses, o sofrimento pode ser inevitvel por causa da ausncia de apoio institucional, pois os trabalhadores tm de se virar mediante s situaes adversas encontradas no trabalho. No obstante o sofrimento ressaltado, percebe-se que os trabalhadores conseguem se manter produtivos. Em face da precariedade das condies de trabalho e ausncia de seguridade trabalhista e social, observa-se que a luta pela sobrevivncia impulsiona e mobiliza esses trabalhadores a enfrentar o sofrimento por meio da utilizao de estratgias de mediao.

Diversos autores como Dejours (1987, 1999a, 1999b, 2000), Dejours, Abdoucheli e Jayet (1994), Mendes (1994, 1995, 1996, 1999), Mendes e Linhares (1996), Mendes e Abraho (1996), Morrone (2001), Ferreira e Mendes (2001, no prelo), Mendes e Tamayo (2001), Mendes, Borges e Ferreira (2002) e Pereira (2003) desenvolveram pesquisas sobre as vivncias de prazersofrimento decorrentes do ambiente de trabalho e as formas de enfrentamento do sofrimento.

Dejours (1987) salienta que, para os trabalhadores darem conta do prescrito, corresponderem s expectativas da organizao e no adoecerem, eles utilizam estratgias de enfrentamento contra o sofrimento, tais como conformismo, individualismo, negao de perigo, agressividade, passividade, entre outras. De acordo com o autor, a utilizao dessas estratgias de defesa propicia proteo do sofrimento e a manuteno do equilbrio psquico por possibilitar o enfrentamento e a eufemizao das situaes causadoras do sofrimento. Dejours, Abdoucheli e Jayet (1994) consideram as estratgias defensivas, na sua maioria, coletivas. Esses autores definem as estratgias como mecanismos pelos quais o trabalhador busca modificar, transformar e minimizar a percepo da realidade que o faz sofrer. Os autores apontam que a diferena entre um mecanismo de defesa individual e um coletivo est no fato de que o primeiro permanece sem a presena fsica do objeto, que se encontra interiorizado. Ao passo que o segundo depende da presena de condies externas e se sustenta no consenso de um grupo especfico de trabalhadores.

Ao estudar tambm as defesas e com base nos resultados de diversas pesquisas, Jayet (1994) estabelece categorias de signos indicadores da utilizao de estratgias defensivas nas situaes de trabalho, os quais devem ser pesquisados na intensidade com que emergem no contexto que envolve o sofrimento, a organizao, condies e relaes do trabalho. Esses signos isoladamente podem no parecer uma defesa, sendo por isso necessria a contextualizao do seu surgimento. Dentre os principais signos apontados pela autora, destacam-se o investimento desproporcional no espao privado sobre a famlia e atividades extraprofissionais; a permanente necessidade de se tranqilizar, evitar conflitos e se reconfortar; a negao da realidade; o ativismo, havendo engajamento em situaes mltiplas, evitando-se tomar conscincia de determinada situao desagradvel; o presentesmo, caracterizado pela presena excessiva no local de trabalho fora do horrio regular; a forte coeso das equipes, transformando o agir em uma ideologia; o individualismo, quando realiza tarefas autnomas no prprio grupo, ocorrendo tambm rupturas no grupo e disperso das formas de convivncia, bem como competio excessiva.

Em suas pesquisas, Mendes (1996) confirma alguns desses indicadores, destacando como antecedentes das defesas as adversidades do modelo de organizao do trabalho, que geram um sentimento de impotncia dos trabalhadores diante do poder ideolgico, econmico, tecnolgico e poltico. Isto paralisa os trabalhadores ante as possibilidades de mudana, restando-lhes a utilizao de estratgias defensivas, tais como a racionalizao, a passividade e o individualismo. Segundo a autora, a racionalizao utilizada diante da frustrao para explicar de forma lgica os motivos que causam o sofrimento, tais como separao entre planejamento e execuo e pela desestruturao das relaes psicoafetivas com colegas; o individualismo uma estratgia utilizada diante do sentimento de impotncia e por meio dela os trabalhadores naturalizam o contexto histrico dos fatos que produzem o sofrimento. A passividade uma estratgia contra o tdio, em funo de situaes de ameaa de perder o emprego e de manuteno do status quo pela empresa.

Todas essas pesquisas sobre as estratgias defensivas relacionadas ao sofrimento psquico no trabalho levam a concluir que tais defesas so necessrias para a sade do trabalhador, embora a condio necessria ao equilbrio psquico ser o trabalho um lugar de prazer, de possibilidade do trabalhador firmar-se enquanto sujeito por meio do reforamento da sua identidade pessoal e profissional, bem como lugar de reconhecimento, liberdade e valorizao do trabalhador. H sofrimento e defesa como um signo da falibilidade das mediaes desenvolvidas para lidar com as contradies do contexto de produo no qual o trabalho realizado.

Em estudos atuais, Ferreira e Mendes (no prelo) contribuem com a sistematizao conceitual das estratgias de mediao do sofrimento psquico no trabalho, que fundamentam mais especificamente a realizao dessa pesquisa. Segundo os autores, para lidar com as vivncias de sofrimento oriundas do contexto de produo de bens e servios, os trabalhadores constroem estratgias de mediao, individuais ou coletivas, contra as situaes adversas ao meio, geradoras de sofrimento. Essas estratgias podem ser de mobilizao coletiva ou de defesa. A primeira caracteriza-se pelo modo de agir coletivo dos trabalhadores e tem o objetivo de transformar o contexto de produo e reduzir o custo humano. A mobilizao coletiva busca promover o predomnio de vivncias de prazer por meio da criao de um espao pblico de discusso, construdo baseado na cooperao e na confiana mtuas dos trabalhadores no ambiente de trabalho. As estratgias de defesa visam reduzir o custo humano e o sofrimento psquico no trabalho por meio da utilizao de mecanismos de negao e de controle excessivo, que protegem o ego mas podem conduzir alienao quando utilizados excessivamente.

Nessa perspectiva, os autores afirmam que predomnio da utilizao das estratgias de defesa conduz minimizao do sofrimento, mas no ressignificao e transformao dos aspectos nocivos presentes no contexto de produo, ao passo que a aplicao das estratgias de mobilizao coletiva implica reduo ou eliminao do sofrimento e mudana da situao de trabalho. Dessa forma, o contexto influencia as estratgias a ser adotadas e que vo prevalecer entre os trabalhadores.

Isso posto, pode-se afirmar que as estratgias de defesa so positivas medida que protegem o sujeito contra o sofrimento causado pelas situaes de trabalho geradoras de conflito, mantendo assim o equilbrio psquico e evitando o adoecimento. Em contrapartida, essas defesas tornam-se negativas quando alienam o indivduo, imobilizando-o. com base nesse referencial terico que a pesquisa emprica realizada, utilizando-se de uma metodologia qualitativa, descrita a seguir.

Resultados e Discusso

Os resultados obtidos na anlise das entrevistas coletivas caracterizam o contexto de produo de bens e servios por meio das categorias organizao, condies e relaes sociais de trabalho no setor da construo civil. As categorias descritas apontam para uma organizao do trabalho de filiao Taylor-fordista, com fragmentao e padronizao das tarefas, controle do ritmo e tempo de trabalho, presses e sobrecarga, o que possivelmente um dos elementos potencializadores do sofrimento no trabalho.

As condies de trabalho so precrias e no colaboram com as regras rgidas determinadas pela organizao do trabalho (produtividade acelerada), o que implica riscos de acidentes e de aumento do sofrimento pela vivncia de sentimentos como ansiedade, medo e insafisfao. As relaes sociais de trabalho demonstram que existe um suporte social dado pelos colegas e gestores, o que possivelmente favorece a neutralizao do sofrimento advindo da organizao e da precariedade das condies de trabalho.

Apresentadas essas categorias antecedentes do sofrimento e das estratgias de mediao, pode-se identificar as categorias referentes aos sentimentos relacionados ao trabalho e s estratgias para suportar essas adversidades. Foram encontradas trs categorias, que sintetizam os resultados da anlise do conjunto das entrevistas coletivas, sendo elas desgaste fsico e mental, falta de reconhecimento e estratgias de mediao para enfrentar o sofrimento.

A categoria desgaste fsico e mental demonstra a vivncia de sofrimento relacionada ao corpo, que se articula com as exigncias cognitivas relativas preocupao com erros, retrabalho e ritmo, gerando o esgotamento mental. A categoria falta de reconhecimento, manifesta pela insatisfao e descontentamento dos operrios, tambm remete ao sofrimento psquico.

Identificou-se que diante desse sofrimento que os operrios utilizam, basicamente, as estratgias do tipo defensivas, de negao e controle da situao geradora de sofrimento. Percebe-se que o sofrimento pouco verbalizado, mesmo quando falam em cansao, falta de reconhecimento, tristeza e dor fsica e moral, pois os trabalhadores encontram formas de justificar tais sentimentos, utilizando o mecanismo de racionalizao, expresso em atitudes e comportamentos como explicaes lgicas, brincadeiras e necessidade de sobrevivncia. A literatura (Dejours, 1987) aponta que o trabalho pode ser estruturante da identidade do indivduo, quando a organizao valoriza e reconhece o sentido da atividade do trabalhador. Em contrapartida, ele pode ser fonte de sofrimento, quando a atividade no significativa para o sujeito, para a organizao nem para a sociedade. Parece ser essa a situao dos trabalhadores pesquisados, conforme demonstram as categorias dos resultados das entrevistas. Segundo Dejours (1987), as situaes de medo e tdio so responsveis pela emergncia do sofrimento, que se reflete em sintomas como a ansiedade e a insatisfao. O autor relaciona ainda esses sintomas incoerncia entre o contedo da tarefa e as aspiraes dos trabalhadores, a desestruturao das relaes psicoafetivas com os pares, a despersonalizao com o produto e sentimentos de frustrao e adormecimento intelectual.

Vrias pesquisas foram desenvolvidas para estudar a sade psquica e as estratgias de enfrentamento dos trabalhadores ante o sofrimento no contexto de trabalho. Estudos realizados por Mendes (1996) confirmam os achados desta pesquisa, especialmente em relao organizao do trabalho. Para essa autora, o contexto organizacional pode ser tambm um fator desestruturante e desestabilizador da sade psquica do indivduo, gerando vivncias de sofrimento, medida que restringe ou extingue a liberdade de expresso de sua individualidade e a tomada de deciso, com base no no reconhecimento ou valorizao do seu trabalho. Ao contrrio, quando a organizao do trabalho permite ao trabalhador a expresso da sua individualidade e subjetividade, propicia a elaborao e ressignificao do sentido do trabalho, por meio da transformao de situaes de desgaste e sofrimento em situaes de reconhecimento e prazer.

Por meio de um estudo com operrios de fbrica, Daniellou, Laville e Teiger (1989) identificam comportamentos particulares, individuais e/ou coletivos dos trabalhadores para se proteger e se prevenir contra acidentes. Tais comportamentos, como negao do risco, atitude de desafio e resistncia mudana, constituem-se em verdadeiras estratgias de defesa e permitem-lhes enfrentar sua prpria ansiedade e/ou a do grupo. Esse tipo de defesa identificado nos operrios pesquisados ao usar as relaes sociais para se proteger de acidentes e as brincadeiras como forma de aliviar a ansiedade. Outros comportamentos defensivos apontados por Jayet (1994) so observados nos operrios pesquisados, tais como investimento no espao privado sobre a famlia e atividades extraprofissionais; evitao de conflitos e necessidades permanentes de tranqilidade e reconforto; negao da realidade; engajamento em mltiplas atividades numa tentativa de evitao s situaes desagradveis; e forte coeso do grupo, transformando o agir em ideologia.

A utilizao de estratgias defensivas por parte desses operrios pode ser considerada positiva medida que minimiza o sofrimento causado pelas situaes de trabalho geradoras de conflito, favorecendo assim o equilbrio psquico. Porm, esta utilizao pode ser negativa quando provoca uma estabilidade psquica artificial, alienando o indivduo e no provocando mudanas no contexto de trabalho.

A vivncia de sofrimento desses operrios caracterizada nas categorias desgaste fsico e mental, falta de reconhecimento e estratgias de enfrentamento, bem como as dimenses da organizao, condies e relaes sociais de trabalho tm fundamento nos estudos de Dejours (1999a, 1999b, 2000), que considera as atuais mudanas no mundo do trabalho como responsveis pela sobrecarga elevada, associada exigncia pelo aumento de produtividade, o que torna o sofrimento inevitvel. Segundo o autor, o sofrimento tem origem na mecanizao e robotizao das tarefas, nas presses e imposies da organizao do trabalho, refletindo no trabalhador um sentimento de incapacidade e incompetncia diante dessa realidade.

Identifica-se nos resultados das entrevistas dos trabalhadores pesquisados uma presso imposta pela empresa em ter que se produzir a todo custo, muitas vezes sem condies fsicas, ambientais e psicolgicas adequadas de trabalho, obrigando o trabalhador a desenvolver estratgias de mediao a fim de atender s demandas da empresa, o que causa a ele um sofrimento psquico. Nesse sentido, parece que a atual forma de organizao do trabalho tem gerado a incidncia de vivncias de sofrimento no contexto de produo de bens e servios em razo da rigidez e da falta de liberdade no trabalho.

Nessa perspectiva, os resultados desta pesquisa confirmam os estudos da Psicodinmica do Trabalho, que apontam a organizao do trabalho como o principal fator de desencadeamento do sofrimento, conforme pesquisas empricas de Ferreira e Mendes (2001); Mendes e Tamayo (2001); Mendes (1999); Mendes e Abraho (1996). Tais pesquisas constatam que as vivncias de sofrimento esto associadas diviso e padronizao de tarefas, com perda do potencial humano e da criatividade; rigidez hierrquica, com excesso de procedimentos burocrticos; ingerncias polticas; centralizao de informaes; falta de participao nas decises e no-reconhecimento, alm de pouca perspectiva de crescimento profissional.

Percebe-se que esses operrios esto submetidos a uma organizao do trabalho rgida, expressa por princpios tayloristas, a condies de trabalho precrias e ao sofrimento. Esse sofrimento est especificamente relacionado exigncia da empresa por qualidade, extrema preciso e perfeio das atividades, no admitindo qualquer erro dos trabalhadores, que so punidos com o retrabalho na ocorrncia de mnimas falhas, alm de arcar com o prejuzo de desmanchar e refazer sem ganhar por isso.

Diante disso, os trabalhadores so obrigados a reprimir o sofrimento decorrente do controle e das presses, no podendo reclamar desse sofrimento para no perder a vaga na empresa. Somam-se a esse sofrimento as condies precrias e subumanas nas quais esses trabalhadores desenvolvem suas atividades, evidenciadas na alimentao e alojamento inadequados, insuficientes e precrios.

Observa-se tambm a ausncia de amparo trabalhista e social, expressa pela negao de direitos bsicos como aposentadoria, plano de sade, entre outros. Alm disso, a falta de apoio institucional quanto ao fornecimento de ferramentas essenciais para o desenvolvimento do trabalho e de equipamentos de segurana (EPIs) caracteriza a desproteo dos trabalhadores terceirizados dessa categoria quanto ocorrncia de acidentes no trabalho.

As relaes sociais de trabalho parecem minimizar o sofrimento vivenciado pelos trabalhadores e fazem-nos continuar a produzir. A coeso do grupo e o relacionamento satisfatrio com a chefia demonstram ser os indicadores da manuteno do equilbrio psquico dos trabalhadores pesquisados. Para enfrentar as adversidades do contexto de produo e atender s demandas da empresa, esses trabalhadores recorrem ao emprstimo entre si de materiais, ferramentas e equipamentos de segurana, tendo em vista a precariedade do suporte organizacional. Diante desse sofrimento, constata-se que os trabalhadores utilizam estratgias defensivas de negao e controle a fim de enfrent-lo, demonstradas nos resultados das categorias desgaste fsico e mental e falta de reconhecimento. Identifica-se que para enfrentar a exausto fsica eles procuram descansar noite, a fim de se recuperar para o dia seguinte; quanto ao esgotamento mental, eles permanecem em estado de alerta para evitar erros, e assim no ter prejuzos. A produtividade durante o dia parece amenizar os efeitos desgastantes de um dia de trabalho, de forma que, quando conseguem produzir muito, eles terminam o dia alegres, esquecendo-se do cansao fsico e mental, ao passo que quando isso no ocorre, por causa da falta ou do atraso de material, eles finalizam o dia pensando que no valeu a pena todo o cansao.

A categoria falta de reconhecimento aponta que a maioria dos trabalhadores no se sente reconhecida no trabalho pela chefia imediata (encarregado) quando obrigada a desmanchar e refazer o trabalho, nem pela empresa quando o seu nome no aparece no final da construo. Os trabalhadores que se sentem reconhecidos percebem o reconhecimento quando o ex-encarregado os procura para voltarem a trabalhar juntos ou quando o encarregado no confere o servio por confiar no trabalho do operrio. Eles se sentem ainda reconhecidos quando, s vezes, a empresa d uma pequena festa ao trmino das obras.

Os trabalhadores da construo civil enfrentam o sofrimento por meio de brincadeiras, canes e conversas, que so compartilhadas entre o grupo. Quando esto sozinhos, eles pensam na famlia, mulher, filhos, dvidas e planos para o futuro como estratgia para amenizar o sofrimento, fazendo passar o tempo e o servio render mais. Identifica-se ainda que esses trabalhadores utilizam uma outra estratgia de defesa de negao quando no pensam em nada, nem no trabalho, nem em outros assuntos, executando o trabalho mecanicamente, como uma forma de alienao. Isso posto, as perguntas norteadoras do estudo so respondidas na direo de confirmar uma vivncia de sofrimento, com as caractersticas acima descritas, influenciada pelo contexto de produo ao qual esto submetidos esses trabalhadores e que reflete as problemticas da terceirizao. Esse sofrimento mediado pelo uso de defesa, que exerce papel de proteo contra os afetos dolorosos advindos das adversidades do trabalho, mas pode tambm funcionar como um sinal de alerta para a sade psquica desses operrios, considerando que a intensidade do uso de defesa pode levar a seu fracasso e, conseqentemente, ao adoecimento.

ConclusoCom base nos resultados do presente estudo, pode-se considerar que a terceirizao, baseada nas premissas do modelo de produo Taylor-fordista, potencializa as vivncias de sofrimento nos trabalhadores inseridos no contexto de produo de bens e servios. O sofrimento enfrentado por meio da utilizao de estratgias de mediao do tipo defensivas de negao e controle excessivo como medida de reduo do custo humano no trabalho e, conseqentemente, o sofrimento. Esta pesquisa contribui para a discusso das questes de sade no trabalho na medida em que d visibilidade ao sofrimento psquico dessa categoria, subsidiando, assim, uma reflexo sobre o modelo de produo terceirizado, a fim de se repensar o processo de trabalho como fonte e lcus de prazer, e no de sofrimento. Pode-se salientar tambm a contribuio para o questionamento e a otimizao das polticas gerenciais vigentes e a relevncia do suporte organizacional como minimizador do sofrimento psquico dos trabalhadores. Alm disso, este estudo colabora para o enriquecimento da literatura na perspectiva terico metodolgica da Psicodinmica do Trabalho.

No obstante as contribuies, algumas limitaes da pesquisa devem ser reconhecidas, tais como, foram estudados operrios terceirizados de apenas uma empresa; h necessidade de investigao mais aprofundada das caractersticas das estratgias de mediao; no se trata de um estudo comparativo entre operrios terceirizados e registrados na construo civil. Dessa forma, esta pesquisa abre novas perspectivas para futuras investigaes, sugerindo-se, ento, o desenvolvimento de outros estudos para investigar quantitativamente a intensidade do sofrimento desses profissionais, cotejar a incidncia de sofrimento dos operrios registrados e dos terceirizados, e ampliar a investigao das estratgias de mediao para outras categorias profissionais submetidas a diferentes contextos de produo, o que contribuiria assim para o avano e fortalecimento do conhecimento nas reas de sade mental e do trabalho na abordagem da Psicodinmica do Trabalho.

Referncias

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