Sociologia Do Negro Brasileiro_2

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8/14/2019 Sociologia Do Negro Brasileiro_2 http://slidepdf.com/reader/full/sociologia-do-negro-brasileiro2 1/57 142 O NEGRO COMO GRUPO ESPECÍFICO  OU  DIFERENCIADO  EM UMA  SOCIEDADE... Isto que ele nos  confidenciou  não  poderia  abalar  a  confiança e  a  f  é  dos seus frequentadores? E não estará aí um dos motivos da força  de Exu no movimento quimbandista não-institucionalizado e perseguido? 6. Um exemplo  O  nascimento, desenvolvimento  e  decadência de degradação  das  escolas  de  samba  cariocas devem  ser es- tudados vendo-as  como grupos específicos  de resistência negra,  que  foram, paulatinamente, através  de uma  inje- ção de  valores  brancos no seu  centro  (ao  pedirem  a  consciência  de sua especificidade) transformados, apenas,  em  grupos diferenciados. Os moradores dos morros, desde o fim da escravidão, criaram inúmeros grupos que se organizavam em vários  níveis,  objetivando  fins diversos. Dentro da situação social concreta em que se encontrava, que era o da  marginalidade,  o  negro  do  morro,  favelado,  tinha  de  organizar- se  para  que, dentro  da  situação  que lhe  impuseram, pudesse sobrevi- ver  e praticar uma série de atividades que o preservariam de um estado de anomia  total.  Desta forma,  a  música popular  do  morro,  o  samba, com vistas a uma  festa  do asfalto (o carnaval),  serviu  de elemento aglu- tinador para  que a  escola  de samba  se  organizasse. Tendo, inicialmen- te, a  função  de  lazer  37 ,  ela  criou pólos dinamizadores  em  diversos segmentos  de  moradores  do  morro, fazendo entrar em um processo de  participação  como  grupo específico.  Formou-se, assim,  um  grupo hierarquizado  e, ao  mesmo tempo, grupos  de  trabalho  a ele  subordi- nados  —  desenhistas, costureiras, decoradores  e  músicos  —  cujas  ati- vidades estavam centradas  na  escola  de  samba.  Do  ponto  de  vista  da hierarquia interna, surgiu  o mestre-sala, a porta-estandarte  etc.,  que adquiriram  status específico dentro  da  organização. Além disto, elas surgiam como ato de afirmação de uma contracultura que se opunha à das elites  e que  representava,  através  dos sambas-enredo, da  coreo- grafia,  das alegorias, de forma simbólica, os valores do morro que des- filavam durante  o  carnaval  na  cidade  branca. Todos  esses  elementos conjugados levaram a que se  criasse  um espírito  de  grupo competitivo entre  as  diversas escolas  e uma  conse- quente auto-afirmação negra nessa competição. Assim,  o  morro  se apresentava  no  asfalto.  Os  figurantes  d as  diversas escolas, durante o carnaval, ao  desfilarem,  realizavam  catarticamente  o seu  desejo  de participação social,  de  integrar-se  e  dominar  a  cidade branca. UM EXEMPLO  DE  DEGRADAÇÃO  43 Edison  Carneiro, analisando a sua  origem, escreve acertadamen- te  que: todas  essas escolas, durante  o  carnaval, costumavam  descer o  mor- ro a fim de  fazer  evoluções  na Praça Onze, cantando  sambas alusi- vo s  a  acontecimentos  nacionais  ou  locais,  no  domingo  e n a  terça-feira gorda. Os grupos  tinham,  naturalmente,  no  começo, uma unidade  pre- cária  — as  mulheres  preferiam fantasiar-se  de  baianas,  os  homens tra- javam pijamas  de  listras,  macacões  ou  camisas  de  malandros,  o  chapéu de palha caído sobre os olhos, sem ordem  nem lei. 3S Simbolicamente sem ordem nem lei. Eram , assim, os valores ne- gros  — do  negro marginalizado  — que saíam  das  áreas  de  marginali- zação  e  miséria  e se  integravam, durante  a  festa,  na  coletividade, voltavam ao centro do sistema, adquiriam, de modo simbólico, o  sta- tus  negado.  Como  vemos,  alegoricamente,  era a  dominação  da  cida- de  pelos habitantes  do  morro, através  da sua  organização  e da sua contracultura. Era o morro, a  marginalidade,  a miséria periférica  e não  vista pelo centro deliberante durante todo  o  ano,  que  vinha ocupar  a  área branca decisória  e a  dominava simbolicamente,  ocupava os  seus  es- paços e impunha  a sua  presença. Todos aqueles  que olhavam o  negro do  morro como desordeiro, viam-no organizado;  os que o  tinham  co- mo analfabeto e ignorante, ouviam e aceitavam os  seus  sambas- enredo. Finalmente, ele, através  da  organização  que lhe  custara  sa- crifício,  dinheiro, tempo  e  paciência, dominava  a metrópole.  Por ou- tro  lado,  as  instituições  ou órgãos  que o  oprimiam e/ou perseguiam no morro agora  estavam  ao seu serviço; a  mesma  polícia  que prendia abria alas para  que a  escola  desfilasse. O carnaval era, assim, sociologicamente, uma  festa  de integra- ção, mas, especialmente, de um ponto  de  vista mais analítico,  um ato de  auto-afirmação negra. Nesses dias,  o branco  e ra  repelido,  não  ele. Er a  ridicularizado porque  n ão  sabia sambar.  O  proibido (discrimina- do) de  desfilar  na escola  de  samba. Naqueles quatro dias, quando  as escolas de  samba estavam  no esplendor da sua autenticidade e  con- servavam, por isto, a sua especificidade, as situações  se  invertiam, e o  negro  do morro, o  favelado,  o  perseguido pela polícia, tinha,  em - bora apenas simbolicamente,  um  status completamente  diferente  den- tro da estrutura da escola, daquele que ele desempenhava fora. Quem fazia  a  seleção  era ele e não o  branco:  "Quando  branco entra  na es- cola estraga  tudo",  diziam.  Os  valores sociais  e  culturais  se invertiam e  o  negro  era o  dominador  e não o dominado, o  seletor  e não o  dis- criminado.  Tinha  o  poder simbólico  da  cidade durante quatro  dias.

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142 O  N E G R O  COMO GRUPO ESPECÍFICO  OU  D I F E R E N C I A D O  EM UMA  SOCIEDADE...

Isto que ele nos confidenciou  não  poderia abalar a  confiançae  a  f é  dos seus frequen tador es? E não estará aí um dos motivos daforça  de Exu no movim ento quimbandista não-institucionalizado eperseguido?

6. Um  exemplo  O nascimento, desenvolvimento e decadênciade  degradação  das escolas de samba cariocas devem ser es-

tudados vendo-as como grupos específicos  deresistência negra,  que  foram, paulatinamente, através  de uma  inje-ção de  valores  brancos  no seu centro  (ao pedirem  a  consciência d esua especificidade) transformados, apenas, e m grupos diferenciado s.

Os moradores dos morros, desde o fim da escravidão, criaraminúmeros grupos que se organizavam em vários níveis,  objetivando  finsdiversos. D entro da situação social concreta em que se encontrava, que

era o da   marginalidade, o negro do morro,  favelado,  tinha d e organizar-se para  que, dentro  da  situação  que lhe impuseram, pudesse sobrevi-ver  e praticar uma série de atividades que o preservariam de um estadode anomia total. Desta form a, a música popular d o morro,  o samba,com vistas a uma  festa do asfalto (o carnaval),  serviu de elemento aglu-tinador para que a escola de samba se organizasse. Tendo, inicialmen-te, a  função  de  lazer  37,  ela  criou pólos dinamizadores  em diversossegmentos  de moradores  do  morro, fazendo entrar  em um  processode participação como  grupo  específico.  Formou-se, assim,  um  grupohierarquizado   e, ao mesmo tempo, grupos  de trabalho  a ele subordi-nados  — desenhistas, costureiras, decoradores  e músicos — cujas  ati-vidades estavam centradas  na escola  de samba.  Do ponto  de vista d ahierarquia interna, surgiu o mestre-sala, a porta-estandarte  etc., queadquiriram status específico dentro da  organização. Além disto, elassurgiam como ato de afirmação de uma contracultura que se opunhaà das elites e que representava, através dos sambas-enredo, da  coreo-grafia,  das alegorias, de form a simbólica, os valores do morro que des-filavam  durante  o  carnaval  na  cidade branca.

Todos  esses  elementos conjugados levaram a que se criasse u mespírito de grupo competitivo entre a s div ersas escolas e uma conse-quente  auto-afirmação negra nessa competição. Assim,  o  morro s eapresentava  no  asfalto.  Os  figurantes d as  diversas escolas, duranteo carnaval, ao desfilarem,  realizavam catarticamente o seu desejo departicipação social,  de  integrar-se  e dominar  a  cidade branca.

UM EXEMPLO DE DEGRADAÇÃO  43

Edison Carneiro, analisando a sua origem, escreve acertadamen-te  que:

todas  essas escolas, durante o carnaval, costumavam  descer o mor-ro a fim de  fazer  evoluções na Praça Onze, cantando  sambas alusi-vo s a  acontec imentos  nacionais ou  locais, n o domingo e n a   terça-feiragorda. Os grupos tinham,  naturalmente,  no começo, uma unidade pre-cária — as  mulheres  preferiam fantasiar-se  de  baianas, os   homens tra-javam pijamas  de listras, macacões  ou camisas  de malandros, o  chapéude palha caído  sobre os olhos, sem ordem  nem lei.3S

Simbolicam ente sem ordem nem lei. Eram , assim, os valores ne-gros — do negro m arginalizado — que saíam das áreas d e  marginali-zação  e  miséria  e se  integravam, durante  a  festa,  na  coletividade,voltavam ao centro do sistema, adquiriam , de modo simbólico, o sta-tu s negado. Como  vemos, alegoricamente, era a dominação  da cida-de pelos habitantes do  morro, a través  da sua organização  e da suacontracultura.

Era o morro, a  marginalidade, a miséria periférica e não vista

pelo centro deliberante durante todo o ano,  qu e vinha ocupar  a áreabranca decisória  e a dominava simbolicamente,  ocupava os seus es-paços e impunha a sua presença. Todos aqueles que olhavam o negrodo m orro como desordeiro, viam-no organizado; os que o tinham co -mo analfabeto e ignorante, ouviam e aceitavam os  seus  sambas-enredo. Finalmente, ele, através da organização  que lhe custara  sa -crifício, dinheiro, tempo e paciência, dom inava a metrópole. Por ou-tro   lado,  as instituições ou órgãos que o  oprimiam e/ou perseguiamno morro agora estavam  ao seu serviço; a mesma polícia que prendiaabria alas para  que a  escola  desfilasse.

O carnaval era, assim, sociologicamente, uma   festa  de integra-ção, mas, especialmente, de um ponto d e vista mais analítico, um ato

de auto-afirmação negra. Nesses dias, o branco e ra repelido, n ão ele.

Er a ridicularizado porque n ão sabia sambar.  O proibido (discrimina-do) de desfilar na escola d e samba. Na queles quatro dias, quando  asescolas de samba estavam  no esplendor da sua autenticidade e  con-servavam, por  isto,  a sua especificidade, as  situações  se  invertiam,e o  negro do morro, o favelado,  o perseguido pela polícia, tinha, em -bora apenas simbolicamente, u m status completamente diferente den-tro da estrutura da escola, daquele que ele desempenhava fora. Quemfazia  a seleção era ele e não o branco:  "Quando branco entra na es-cola estraga tudo", diziam. O s valores sociais e culturais se invertiame o negro era o dominador  e não o dominado, o seletor  e não o dis-criminado. Tinha  o poder simbólico d a  cidade durante quatro  dias.

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144 O NEGRO COMO GRUPO ESPECÍFICO  OU DIFERENCIADO  EM UMA  SOCIEDADE...

Do p onto de vista organizacional, a escola de samba represen-tava a forma através da qual o  negro  e as populações não-brancasmarginalizadas  se defendiam  da sua situação  de  quem  vive ao  nívelquase extremo d e simples preservação biológica, sem nenhum a pos-

sibilidade de integração social.Do  ponto  de vista cultura l mais geral, a escola de samba surgiu

no m omento em que a sociedade brasileira fazia um a revisão dos seusvalores, proc urava rever posições culturais e políticas e m consequên-cia de uma série de conflitos estruturais já bastante estudados. A Se-mana  de  Arte Moderna, de São Paulo,  é de 1922 e realizou-se  noTeatro Municipal. As primeiras escolas de samba começam tambémna  década d e vinte, nos morros de favelados cariocas. Não é uma coin-cidência, é uma convergência e ao mesmo tempo um a dissidência. En-quanto a cultura dominante se auto-afirmava  no  modernismo,  pro-curando suprir o descompasso entre a realidade e a cultura das elites,a cultura popular, plebeia,  não-institucional, não-acadêmica ou sim-

plesmente  renovadora do próprio código libertário  tradicional,  pu-nha na rua as escolas de samba, num transbordamento do negro domorr o, pois ele já não se continha mais nos seus grupos específicosreligiosos costumeiros,  ou nos p equenos cordões  ou  ranchos carna-valescos. Vinha para o asfalto exibir a sua contracultura.

O negro,  desta  forma,  não via o carnaval como  um a simplesfesta,  como o branco o vê. Era ,  de certa maneira,  o mom ento maisimportante da sua vida, do ponto de vista de auto-afirmação  social,cultural  e étnica.

Estas são — segundo pensamos — as causas mais relevantes qu ederam uma vitalidade tão grande às escolas de samb a. Por outro la-do, a sociedade branca sentiu essa potencialidade organizacional e cul-tural do negro através  das escolas de samba,  e,  concomitantemente,a necessidade de transformá-las em complementos do carnaval ofi-cial,  tradicional, convencional, colocando-as como simples  objetosdessa dinâmica, em última instância: folclorizando-as.  Objetivandoisto, iniciou um processo d e corrupção através de forma s sutis de ins-titucionalização, fazendo-as, hoje  em dia, simples atração turísticapara estrangeiros e a grande burguesia nativa, pois até a pequena bur-guesia e a massa operária dos  subúrbios cariocas não têm mais con-dições  de vê-las desfilar.

Desaparecido   o conteúdo que lhes deu vitalidade, elas passarampor um processo de  branqueamento social e ideológico não apenasna sua apresentação que descambou no colossalismo quantitativo e

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industrializado, manipulado pelo circuito capitalista,  mas, também,nas próp rias norma s de conduta, nos objetivos dos seus organizado-res, de grande nú mer o dos seus participantes e na sua próp ria subi-deologia.

Assim,  aqueles motivos sociopsicológicos qu e  deram dinamis-mo interno e cap acidade organizacional às antigas escolas foram subs-tituídos por uma  burocracia profissional oportunista, ligada,  po rnecessidade de manter o colossalismo antipopular exigido pelos massmedia e instituições governamentais, às estruturas de poder ou grupos.

Retratando muito bem este processo de decadência e distancia-mento  do s  seus ob jetivos iniciais, assim falou  Candeia, compositorda Portela:

No  início esta  invasão   (branca) d e  cer ta forma  era  contro lada.  Ma s  lem-bro que a Mangueira só  permitia que o pessoal que não fosse da esco-la entrasse na quadra após a meia-noite, porque  an*«s era ensaiomesmo, visando  o  desfile. Depois, ficou in controláve l.

E  prossegue no seu  depoimento:Principalmente porque quem pagava o ensaio  se achava no direito departicipar e o ensaio da escola acabou virando baile de carnaval. Hojemestre-escola, porta-bandeira  já não  ensaiam, porque a quadra foi in-vadida por  gente que não tem nada que ver com o  samba,  não  sabesambar e na quadra já não se samba mais. Nem na Avenida.

Concluindo, Candeia afirm a:

As   alegorias atuais representam  uma fa lsa cul tura, são  fe i tas por gen-te de fora, profissionais. Acho que as  alegorias de uma  escola devemser representativas de uma cultura própria, obrigatória do afro e do in-dígena.   O  barroco sofisticado não tem  nada que ver com  escola d e  sam-ba e precisa ser eliminado. Me lembro do  tempo em que as alegoriasda Portela eram  feitas por Lino Maciel dos Santos, que é carpinteiro,

e por Joacir, que é pedreiro. Isso sim, é que é válido.  Bacana é o  cr iou-lo do  morro cr iar o seu pr imeiro desf i le , sua  própria arte. As  fantas iasprecisam ser menos luxuosas e mais autênticas, também feitas pelopessoal da escola.39

Mas, apesar dessa luta ideológica intragrupal  o processo de de-gradação  da s escolas d e samba segue um ritmo avassalador. 40 Esseprocesso  d e degradação  dos seus va lores iniciais veio transformá-lasem  grupos diferenciados  pela sociedade global. A luta interna entreelementos  conservadores — tão bem  retratada  po r  Candeia  — eaqueles que assimilaram a ideologia dos estratos deliberantes e quealiam  essa ideologia à obtenção e compensações materiais mostra

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146   O NEGRO COMO GRUPO ESPECÍFICO OU P1FERENCUDO  EM UMA  SOCIEDADE...

como esses grupos inferiorizados,  marcadosetnicamente, que chegama ser específicos se, em determinado momento,  não  assimilarem umaideologia dinâmico/radical totalizadora, teidem, mais cedo ou  maistarde, a  serem envolvidos pela sociedade capitalista abrangente queos coloca a serviço dos seus interesses. A trajetória histórico-socialda organização do negro nas escolas de samba vai desaparecendo porforça de uma manipulação, de fora para dentro, de elementos estra-nhos ao mundo  negro que as criou.

Além desses fatores básicos de degenerescência,  outros  surgi-ram em níveis menos relevantes, como, por exemplo, a sua utilizaçãopor  artistas de rádio e TV, empresários, donos de shows, políticos,contraventores, pregadores religiosos e outras pessoas ou grupos queprocuram tirar proveito artístico, comercial, publicitário, religioso oupolítico das escolas.

Escrevem, neste sentido, Francisco Vasconcelos e Mário Pedra:

E os donos da bola, outrora perseguidos eamesquinhados, incharam

de  vaidade, ao verem seus barracos, agora transformados em palácios,serem procurados com tanta insistência por aquelas figuras de proade rádio, tevê, show, teatro, até por misses  já no ostracismo, mas sem-pre misses, por pintores, arquitetos, escultores e  mesmo historiado-res de nomeada, que aparecem parecendo que vêm dar mais brilho eprojeção às agremiações, zelando até  pelo  seu património cultural,quando,  na verdade,  vêm em busca de  grossa  publicidade gratuita,muitas  vezes a té   remunerada, contrariando  todas  essas regras  do ne-gócio e, o que é pior, propositadamente ou não,  contribuindo  acelera-damente para  o  desvir tuamento  do  verdadeiro  samba.41

Outras razões que não têm nada a ver com as motivações socio-psicológicas e culturais que  fizeram  nascer as escolas de samba cario-cas estão  transformando-as, paulatinamente, em apêndices da  Rio-tur,  e os negros estão sendo transformados, novamente, em objetos

para divertimento do branco. Perdida aquela  função  inicial de auto-afirmação do negro do morro, foram as escolas de samba transfor-madas em simples segmentos diferenciados, subalternizados a todosos esquemas e imposições institucionais, simples componentes do  pro-grama  oficial  da cidade do Rio de Janeiro.

Notas e referências  bibliográficas

1 Sobre o que entendemos  p o r função  fazemos nossas as seguintes palavrasde  Radcliffe-Brown,  embora discordando completamente  da sua posição

NOTAS E REFERÊNCIAS B I B L I O G R Á F IC A S  147

de  antropólogo  que se destacou pelo esforço  de subordinar as conclusõesda antropologia aos interesses do Imp ério Britânico, tentando aplicar essaciência à adm inistração das populações nativas subordinadas ao colonia-lismo inglês: "Hesito em usar o teimo função  que nos últimos anos tem

sido tantas vezes usado numa  infinidade d e sentidos, muitos do s quais bas-tante vagos. Em lugar de ser usado para auxiliar a  fazer  distinções, comocabe aos termos científicos, é usado agora para   confundir  coisas que de-viam   ser  distinguidas. Porque ele tem sido empregado, muitas vezes, e mlugar de palavras bastante comuns como 'uso',  'finalidade'  e  'significa-ção'.  Parece ser mais sensato e conveniente, assim como mais  científico,falar do uso ou dos usos de um machado ou estaca de cavar; o significadode uma palavra ou símbolo; o fim de um ato de legislação, em lugar deusar a palavra função para estas coisas diversas. 'Função' é u m termo téc-nico bastante útil em filosofia e, por analogia , o seu uso nessa ciência seriaum meio muito conveniente de expressar um importante conceito em ciên-cia  social.  Segundo Durkheim  e outros,  eu  defino  a  função social comomodo d e agir socialmente padronizado, o u modo  de pensar  em sua rela-ção à estrutura social, para cuja existência  e continuidade contribui. Ana-logicamente,   num organismo vivo, a  função fisiológica  da batida  do cora-

ção ou da secreção dos sucos gástricos é a sua relação à estrutura orgânicacuja existência  e continuidade contribui.  É neste sentido que lido com coi-sas  tais como a função social d a punição  do crime ou a função social  do sritos funerais dos ilhéus de Andanan".  (RADCLIFFE-BROW N.  Sobre estru-tura social.  Sociologia, São Paulo, 4  (3): 229, 1942.)

2  SKIDMORE, Thomas E. O negro no Brasil e nos Estados Unidos.  Argumen-to, São Paulo, l  (1):  25 et  seq., 1974.

3 Sobre as instituições paralelas nos Estados Unidos ver Early  negro writing(1760-1837), selected and introd uced by Doro thy Porter,  Beacon Press,1971.  Através deste livro de textos podemos ver o nível de organização edinamismo dessas  instituições parale las negras nos Estados Unidos duran-te a  escravidão.

4  RAMOS, Arthur.  O espírito a ssociativo d o negro brasileiro.  Revista do Ar-quivo Municipal,  São Paulo,  47  (4): 105-22.

5

 Esse comité formou-se na  onda  da  chamada redemocratização  de  1945.O negro continuou se organizando, destacando-se entre essas  organizaçõesparalelas a Associação Cultural do Negro, em São Paulo. O golpe militarde 1964, por seu turno, traumatizou essas organizações, assim como todoo m ovimento democrático e popular do B rasil. Significativamente, o últi-mo jornal da imprensa negra regular encerra suas atividades no ano dogolpe. Depois d isto, os grupos negros tiveram dificuldades cada vez maio-res,  até quando, em 1978, deram uma virada radical e articularam um atocontra  a  discriminação racial  na s escadarias  do Teatro Municipal de SãoPaulo, qua ndo foi criado o Movimento Negro Unificado Contra a Discri-minação Racial. Mas, durante a ditadura , nenhum grupo específico negroteve acesso aos órgãos governamentais, especialmente para expor e pro-testar contra  a  violência policial, discriminação racial  e  perseguição purae simples d os órgãos de repressão pelo motivo único do cidadão  ser negro.

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148  O  NEORO COMO  GRUPO ESPECÍFICO OU  DIFERENCIADO EM UMA SOC1EDA.PE...

6  COSTA  PINTO,  L. A. O negro no Rio de  Janeiro .  São Paulo, Nacional,1953.  p. 33.

7 Cf.  LANDECKER,  Werner  S. Análise funcional  das relações  intergrupais.Sociologia, São Paulo, 4 (2): 121 et seq., 1942.

8 Em consequência disto, quando  afirmamos  que esses grupos negros são

específ icos  (religiosos ou com outros objetrvos centrais), não queremos di-zer — conforme já  ficou  claro — que são compostos somente de negrospuros, na sua acepção de antropologia física.mas, também, de pardos (mu-latos, curibocas, caboclos), os quais, em consequência do conjunto de si-tuações sociais em que estão imbricados, sã9 marcados como negros pelasociedade branca, e, ao mesmo tempo, reconhecem e aceitam uma ligaçãototal ou parcial com as suas matrizes africanas, ou assimilaram  os seus va-lores culturais mais relevantes. Desta maneira, em muitos centros de um-banda, poderá não existir esse reconhecimento em primeiro plano — nívelde consciência explícito — em consequência de um processo já muito adian-tado de branqueamento, embora ele exista de forma subjacente. Em ou-tros, todavia, esse reconhecimento consciente poderá existir. Ouvimos, porexemplo, no Centro Caboclo Viramundo, que estudamos durante dois anos,cantarem  o seguinte ponto:

—  Aqui é   rodade  negro sóse   branco vierleva cipó.

ou:

—  Negro somente   trabalhandobranco somente olhando.

O próprio chefe do centro — Geraldo — confessou-me que "era  de can-domblé". No entanto, esclareceu-me, infelizmente "no interior de São Pau-lo não dá para praticá-lo". Disse-me que era da linha "gegê (sic.) nagô"e que sentia muito ter de trabalhar somente com caboclos e o Preto Velho.Conversamos, e quando  eu disse que havia estado na África e que me ha-viam pedido informações sobre o funcionamento de casas de religiões deorigem africana no Brasil, mostrou-se cético dizendo-me que "os de lá nãoprecisam saber  de nada daqui, porque já  sabem tudo".

São esses grupos compostos por pessoas que aceitam, mesmo de formadiluída, as suas matrizes africanas  e criam uma subideologia grupai quedenominamos  específicos.

9 Em 1938, Edison Carneiro fez uma pesquisa com quarenta filhas-de-santodo  Engenho Velho, em Salvador,  objetivando  identificar a sua  situaçãosocial e económica fora do candomblé. Quanto às profissões obteve os se-guintes resultados: modistas 6; vendedoras ambulantes  16; domésticas  18.Escreve, concluindo, esse antropólogo: "Profissões humildes, como se vê.As  domésticas incluíam no seu número senhoras casadas ou amasiadas,que se ocupavam pessoalmente dos serviços caseiros, e empregadas pagas,

NOTAS  E REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS 149

para cozinhar, lavar e engomar, ao  ínf imo preço que então se pagava naBahia — de 20 a 30 cruzeiros por mês, se bem que com casa e comida. Asvendedoras ambulantes eram as mulheres de tabuleiro à cabeça que ven-diam acarajé, mungunzá, bananas etc., nas esquinas da cidade, e as pou-cas que se estabeleceram com barracas nos mercados públicos e aí vendiam

fato, as vísceras do boi. Não se deve tomar a profissão de modista — pros-segue Carneiro — como profissionalmente importante. Essas filhas, as ve-zes muito hábeis, tinham a sua freguesia entre a gente pobre e só raramen-te cosiam vestidos  de seda; não  trabalhavam  em ateliers, mas em casa,  ede encomenda. Dificilmente alcançavam uma renda mensal de cem cruzei-ros".  (CARNEIRO, Edison.  Candomblés da Bahia. Rio de Janeiro,  Con-quista, 1961.  p.  120.) Era esse pessoal de profissões chamadas humildesque  constituía  o total  das  filhas-de-santo do candomblé pes'quisado.  Noentanto, o seu status na hierarquia do candomblé era dos mais importan-tes. Na linha feminina, dentro do grupo religioso, elas se sentiam com umstatus de prestígio abaixo apenas das mães-de-santo e da mãe-pequena. Essadualidade de status e de papéis dos membros do grupo na sociedade globale no candomblé explica, num certo grau, a sua persistência no tempo ea sua  vitalidade.

10 A origem do Clube Flor de Maio, de São Carlos, interior de São Paulo,

como de quase todos do seu interior, foi a impossibilidade  da comunica-ção negra local  ingressar  em clubes ou em outras organizações brancas.

Em face disto, pois a barragem era (como é até hoje) acobertada pelos bran-cos que alegavam serem os negros cachaceiros, arruaceiros, desordeiros,maconheiros e as negras prostitutas. O Flor de Maio foi fundado, em 1927,com um regulamento quase ascético. O nome flor  queria dizer que somen-te aqueles negros que fossem flores poderiam nele ingressar. Somente po-dia ser sócio quem fosse casado, não se aceitando associados amigados.O clube realizou, por isto, uma série de casamentos, alguns em sua sede,de negros que queriam ser sócios mas viviam irregularmente dentro dospadrões jurídicos com as suas companheiras. Fundou, depois, uma escolaprimária e fez funcionar um grupo teatral, tendo representado várias pe-ças. Eles mesmos faziam os cenários. Conseguiram  a doação de um terre-no e construíram, em regime de mutirão, a sede própria do clube onde fun -cionam. Até hoje a sociedade local vê o clube através de uma série de ra-

cionalizações negativas, ideologizando-o como um antro de marginais eprostitutas, o que não é verdade. (Informações  prestadas ao autor pelo Sr.Benedito Guimarães,  em  1977, quando  ele era  presidente  do  clube.)

11 Neste sentido escreve Virgínia Leoni Bicudo: "O  objetivo  dos associados(refere-se a uma associação de negros) era,  em primeiro plano, a conquis-ta de melhores condições económicas. Porém, ainda que o programa  daAssociação focalizasse os aspectos económicos para a obtenção de melho-res condições materiais, não podemos concluir que tal tivesse sido o únicoobjetivo dos agremiados. É que os dirigentes do grupo viam na ascensãoeconómica o meio de alcançar  recursos materiais  para conseguir  a eleva-ção nos níveis intelectual e moral,  e, assim aparelhados,  se empenharemna luta pela conquista de reivindicações económicas e físicas, mas visavam

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150   O  NEGRO COMO GRUPO  ESPECÍFICO O U  DIFERENCIADO  EM UMA  SOCIEDADE...

também   a elevação do nível moral e intelectual do preto, cuidando da ins-trução,  da  educação e do  desenvolvimento da  consciência d e cor.

Segundo os dados colhidos,  a 'Associação do s Negros' teve como pro-pósito reunir os pretos a fim de prepará-los para lutar contra os obstácu-

los à ascensão social em consequência  d »  cor .  B I C U D O ,  Virgínia Leoni.Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo. Sociologia, São Paulo,9  (3): 209, 1947.)

12  R O D R I G U E S ,  Nina. O animismo fetichisla  do s  negros baianos. Rio de Ja-neiro, Civilização Brasileira, 1935. p. 187.

13 Idem,  ibidem,  p.  194.14 Cf. OTT, Carlos. A transform ação do culto da m orte da Igreja do Bon-

fim   em  santuário  de  fertilidade. Afro-Ãsia,  Salvador,  (8/9): 35 et seq.,jun./dez.,  1969.

15 Idem,  ibidem.16 C f.  OTT, Carlos. Loc. cit. Para  termos a ma visão d o aproveitamento  do

prestígio da festa do  Bonfim pela sociedade global e seus estratos delibe-rantes,  vamos transcrever trecho  de notícia  de jornal baiano,  noticiandocomo transcorreu a lavagem em um p eríodo crítico para a sociedade bra-

sileira no seu conjunto,  isto é, durante a participação do Brasil na Segun-da G uerra Mundia l. Havia, em todas as camadas e grupos sociais brasilei-ros — com   exceção daquela minoria que se b eneficiava economicamentecom o  conflito  — ,  um a  ansiedade profunda  que se m anifestava em umdesejo básico: a volta à paz. Pois bem: as comemorações dos festejos doBonfim e a lavagem da Ig reja, até pouco antes proibida p elas autoridadeseclesiásticas,  foram realizadas d irecionadas para a realização deste desejolatente ou manifesto de quase todos os brasileiros, especialmente baianos.Essas pessoas e grupos incorporaram   subjetivãmente a imagem e o ritualda lavagem, até então denunciado como pagão, ao imperante desejo depaz. Vejamos como o mais tradicional órgão de comunicação escrita baia-no noticiou o acontecimento: "Fez-se hoje a 'lavagem do  Bonfim',  um adas partes da maior festa religiosa da B ahia. Por muitos anos deixara elade se realizar, voltando por ém, ultimam ente, a efetuar-se com grande en-tusiasmo, embora sem os excessos que haviam determinad o a sua suspen-são (...) Anunciando a próxima partida d o cortejo para a lavagem do Bon-f i m ,  às 5 horas houve uma alvorada na Praça M unicipal, ouvindo-se umaestridente clarinada, seguida de uma salva de morteiros.

Desde pouco depois da 7 horas começou a afluência ao Largo da Con-ceição d a Praia, d os devotos  e curiosos  que concorreram, todos  os anos,para  a  tradicional lavagem.

Gente d e todas a s cores e  condições, movida pelo intuito  de  participarda romaria, que encheu pouco  a pouco  o  vasto espaço d a  praça. Foramchegando  alegorias singelas, sobre carroças e caminhões  enfeitados,  bur-ricos carregados  com  barris  de  água,  'baianas'  ricamente vestidas.

Às  nove horas  formou-se  o cortejo  que desfilou  do Largo  da  Concei-ção até a  Igreja  do  Bonf im. U 'a  multidão formada  po r  alguns milha-res de pessoas cercava  a comprida  fila d e  carroças, caminhões  e  animais

NOTAS  E REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS  151

enfeitados  que, a passo lento, movia-se alegre e ruidosamente rumo aoBonfim.

Abriam o préstito em que predominav am motivos regionais, sugeridospela tradição,  alguns caminhões cheios de populares e enfeitados de plan-

tas nativas. Em seguida, uma ba nda de música da Força Policial, execu-tando marchas e, após, em ordem, carroças  adornadas de verde e amareloe cavaleiros vin dos dos  subúrbios com animais vistosamente ajaezados, umgrupo d e queimadeiros,  ostentando palmas  de licuri  e formados  em colu-nas   por quatro filhas-de-santo do terreiro de Joãozinho da Goméia, le-vando  à cabeça potes e quartilhas  com flores. Finalmente, cerca  de dezcaminhões cheios de povo que sam bava, canta ndo mú sicas de carnaval ecorno advertência... a carrocinha da Secretaria da Segurança  Pública, al-guns ônibus e povo. (...) Em uma carroça, enfeitada de verde e amarelo,viam-se recortes d e  cartolina representando apetrechos  e peças do Exérci-to Nacional, glorificando, assim, num a manifestação espontânea da almapopular (...) Continuam  com esplendor e com a presença números de fiéiscada vez maior, enchendo o majestoso templo e com todas as tr ibunas ocu-padas, as novenas em louvor ao Senhor de Bonfim  que domina a cidadedo alto da sua colina. D o púlpito, vários oradores têm se estendido sobre

a  significação do culto, do s milagres e das graças alcançadas (...)  Po r tudonota-se que a alm a confia nte da Bahia não é ind iferente na com preensãoe na confiança ao amor de Deus para que nos dê a paz tão almejada nahora  presente".  (A Tarde,  Salvador, 20 dez. 1944.)

Como se vê, nos  momentos em que há  crise de confiança no  futuro  ede dúvida  no presente,  o baiano abandona  a pureza do catolicismo trad i-cional, ortodoxo, puro, apelando para  a festa  do Bonfim,  que nada maisé do que uma   manifestação pública  das  religiões oprimidas frente aos es-tratos deliberantes, estruturas de poder e órgãos de repressão com um con-teúdo  simbólico de protesto e poder.

17  B R A N D Ã O ,  Geraldo. Notas sobre a dança de São Gonçalo de Am arante.São Paulo,  1952. p. 41.

18 Cf.  LANTERNARI, Vittorio. As religiões dos oprimidos.  São Paulo, Pers-pectiva, 1974. p.  212.  Aliás, este excelente e penetrante trabalho de  Lan-ternari abre novas perspectivas para compreender-se a  função  social dos

cultos das populações oprimidas pelo colonialismo, recolocando o proble-ma desses movimentos proféticos e messiânicos do mundo colonial dentrode novos padrões de análise. Fugindo ao rebarbativo e esotérico da socio-logia académica, Lanternari coloca-nos  frente  a  frente  com os mecanis-mos opressores e as formas ideológicas encontradas pelas populações opri-midas para enfrentar  a situação.

19 Era pelo menos como os tratava o Caboclo Caeti, todas as vezes que  des-cia no Centro Caboclo Viramundo, em São Paulo, quando a eles se  refe-ria:  "Isso é coisa que burro da terra pode curar".

20 Cf.  REGO JR., José Pires et alii. Atendimento médico de um subúrbio deBelém. Revista da  Universidade  Federal do Pará, l  (1): 461,  série II, 2?semestre de  1971.

21  Loc.  cit., p.  476.

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152  O NEGRO COMO GRUPO ESPECÍFICO O U  DIFERENCIADO  EM UMA SOCIEDADE...

22 Loc. cit.,  p.  476.23 Jornal  da  Tarde,  São Paulo, 29 nov. 1974.24  "Embora não seja exatam ente um orixá, Exu pode m anifestar-se como

um  orixá. N este caso, porém, não se diz que a pessoa é filha de Exu, mastem  um carrego de Exu, uma obrigação para com ele por toda a vida. Esse

carrego s e entrega a Ogunjá, um Ogum q ue mora  com Oxosse e Exu e sealimenta de comida crua, para que não  tomeconta da p essoa. S e, apesardisto,  se manifestar, Exu pode dançar  no  candomblé,  mas não em meioao s demais orixás. Isto aconteceu, certa vez, no candomblé do Tumba Ju -çara (Ciriáco), no Bêiru: a filha dançava jogan do-se no chão, com os ca-belos d espenteados  e os vestidos sujos. A manifestação tem, parece, cará-ter de provação. Este caso do candom blé de Ciriáco é o único de que te-nho notícia acerca do aparecimento de Exu nos candomblés da  Bahia."(CARNEIRO,  Edison.  Candomblés da Bahia. Rio de  Janeiro, Conquista,1961. p.  83.)

Como vemos pelo depoimento de Ca rneiro, o caso é raríssimo e o seuexcepcionalismo  serve para corroborar  o que estamos afirmand o.

O  esclarecimento é necessário porque não são apenas adeptos dos can-domblés, mas m esmo antropólogos que chegam a confundir Exu com umorixá.  É, por  exemplo, o caso  do  próprio Arthur R amos, incontestavel-

mente um dos maiores pesquisadores sobre o problema da etnog rafia reli-giosa d o negro brasileiro.  Di z ele:  "Exu  é outro  orixá. É o representantedas   potências contrárias  ao homem. O s  afro-brasileiros assimilaram-no aodemónio d os católicos; mas, o que é interessante, temem -no, respeitam-no (ambivalência), fazendo dele objeto de culto".  (RAMOS, Arthur . O ne-gro   brasileiro. 2.  ed. São  Paulo, Nacional, 1940.  p.  45.)

Roger Bastide, por seu turno, informa que, em  alguns lugares, Exu éidentificado com São B artolomeu (Recife), atrib uindo isto ao fato do san-to ser mensageiro. (BASTIDE,  Roger.  O candomblé da Bahia. Sã o Paulo,Nacional, 1961. p. 222.) Pa rece-nos superficial esta analogia. D evemos con-siderar que, para  o nordestino especialmente, Sã o Bartolomeu é o repre-sentante das forças aziagas e maléficas, sendo o seu dia considerado o maisdesfavorável  d o ano. O seu dia, que é comemorado a 24 de agosto, exigeuma série de proteções, pois "o diab o está solto". Sobre o  assunto, aliás,existe um vasto repositório d e lendas, registradas em  estarias e mesmo na

literatura   de cordel. D o  poeta popular Leandro Gomes dos Santos são es-tes versos:  A 24 de agosto/Data esta receosa/Por ser em que o diabo p o-de/  Soltar-se e dar uma prosa/Se deu o  famoso parto/Da vaca m isterio-sa . (Apud  CASCUDO,  Luiz da Câmara.  Dicionário do  folclore  brasilei-ro. 2. ed. Rio de  Janeiro, Edições d e  Ouro, 1969.  p.  181.) C f.  tambémo folheto de cordel "Poder de São Bartolomeu", Caruaru,  Dila, s.d. Se -ria  relevante um  trabalho  que analisasse  até que  ponto  Sã o  Bartolomeupenetrou nos xangôs do  Recife,  num p rocesso sincrético com Exu, segun-do a  constatação  de Bastide.

25  C A R N E I R O ,  Edison. Op.  cit., p. 81.26 O processo d e diferenciação de Exu acompanha a sua evolução de  prestí-

gio. Deixa de ser um só, perde a sua unidade como divindade inicial para

NOTAS E REFERENCIAS BI

ser  representado  de diversas formas. Em consequência, temos, de um la-do, o Exu  pagão  e os Exus  balizados  que se comportam  de forma maisconvencional  nas  giras e, de  outro,  a sua diversificação mais acentuada.Surge, tam bém, a Pombagira, que configura, por seu turno, um símbolode libertação sexual e social da   mulher  reprimida. Assim como nas reli-

giões mais difundid as do  Ocidente, especialmente o cristianismo, à medi-da que uma das suas divindades adquire maior prestígio no panteãodiferencia-se,   diversifica-se. Na umb anda e especialmente na quimb andao mesmo processo se verifica. Jesus Cristo diferenciou-se no catolicismoem  diversas personalidades  — Coração  de Jesus, B om Jesus da  Lapa, Se -nhor do Bonf im, Bo m Jesus dos Navegantes e inúmeros outros — e Mariapassou pelo m esmo processo, ad quirindo vários nomes: Nossa Senhora dasDores, Nossa Senhora da Boa Morte, Nossa Senhora do Perpétuo Socor-ro,  Nossa Senhora Aparecida  e muitas outras, todas com os seus devotosespeciais. Na quimb anda , o mesmo fenóm eno se verificou. Exu passou ater diversas designações: Exu Sete Cam inhos, Exu Balará, Exu Buzanini,Ex u  Tranca Mata,  Ex u  Tranca Rua, E xu  Caveira etc. Além disto, h á oZé  Pilinlra que é um Exu já com forma de brasileiro: é reproduzido, nãopor um feliche, mas de lerno  branco, gravata vermelha, chapéu tambémbranco e um livro nos pés. Esse processo de diferenciação e, ao mesmo

tempo, d e ampliação da s áreas e níveis do poder d e Exu, está continuan-do, fazendo com que em muitas tendas de umbanda o poder da quimban-da  esleja forçando o Exu a peneirar  no recinto já branqueado e inslilucio-nalizado da  primeira.

Um  exemplo exlremo  desle  processo d e  diferenciação  e ampliação  daforça  de Exu nos é dad o por Yvonne Maggie Alves Velho nas pesquisasque fez no Rio de Janeiro. Regislrou a exislência do Exu de Duas Cabe-ças, representado por um  homem com a cabeça inclinada para um doslados. Usa uma capa vermelha e um tridente. A cabeça inclinada e a s mãosem   forma d e garra é do E xu que leni uma cabeça  de Jesus e a  outra  deSalanás".  (VELHO,  Yvonne Maggie Alves.  Guerra de  orixá. Rio de Janei-ro,  Zahar, 1975. p. 162.) Ainda essa autora registrou o seguinleponto can-tado no mesmo lerreiro: Exu  que lem dua s cabeças/Ah ele olha su a ban-da com fé/Uma é de Salanás no Inferno/Oulra é de Jesus de Nazaré/Umaé de   Salanás  no  Inferno/Oulra  é de Jesus d e Nazaré".  (Op.  cit., p .  93.)

27  Declaração feita ao  autor.28  Idem.29 A  ligação enlre o Diabo e a ulopia  é feita  da seguinte forma a partir  da s

posições católicas por Papini: "O  Diabo, para combaler o crislianismo,que promele a felicidade elerna só depois da morte, linha pois de recorrer,enlre oulros ardis, ao de fazer acreditar aos h omens que se pode p repararou obter, no f uluro, um a espécie de paraíso na terra, um reino de felicida-de terrena.

Da í resulta, claro eslá, qu e Iodos os que imaginam e prom elem um con-vívio perfeilo  e feliz nesla  vida, seja embora  num fuluro remoto,  islo é ,os ulopislas, os visionários, os m essiânicos materialistas, os sonhadoresde um Éden social, Iodos os que em suma anuncia m ou sonham , no lugar

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154 O  NEGRO COMO GRUPO  ESPECÍFICO O U  DIFERENCIADO  EM UMA SOCIEDADE...

do Reino dos Céus, um reino humano terreno,  são inspirados, que o sai-bam ou não, pelo Demónio. O qual  escogito»  fantasmagorias para queos homens nã o cuidem no seu verdadeiro destino  supraterreno  e sejam con-duzidos, portanto, a abandonar o cristianismo .  (PAPINI, Giovani.  O Dia-bo .  Lisboa, Livros do Brasil, s. d. p. 142.)

30 LAPASSADE,  Georges & Luz, Marco Aurélio. O segredo da macumba.  Riode   Janeiro, 1972.  p.  25-6.

31

 ENGELS,  F.  Ludwig  Feuerbach y  elfm  de   Ia  filosofia  clássica  alemana.Moscou, Línguas Estrangeiras, 1946.  p. 12.

32  CARNEIRO, Edison.  Op .  cit.,  p.  131.33  Idem, ibidem.34 Octávio  da Costa  Eduardo, estudando  um a  comunidade negra  no  Brasil,

visualizou,  indiretamente, a necessidade de um estudo qu e abarcasse  os doisaspectos  do problema, propondo  a junção d o ponto  de  vista comparativocom um ponto de vista que ele chama funcionaM a.  Nesse trabalho — aliásexcelente — ele afirma:  O  primeiro inclui um  estudo  das  origens tribaisdesses contos (refere-se a contos de origem afri cana coligidos na com unida-de estudada), das razões por que se conservaram, das modificações que so-freram aqui no Brasil e a comparação desse material com o folclore negroem  outras partes do Brasil e do continente americano. O segundo compreendeum estudo do papel que esses contos desempenharam na vida do grupo e

das   suas relações  com outros aspectos de sua cultura".  (COSTA EDUARDO,Octávio da. Aspectos do folclore de uma comunidade rural.  Revista do Ar-quivo Nacional, 144 (8): 14-5, nov./ dez. 1951.)

35  COSTA LIMA, Vivaldo da.  O concei to d e nação n os candomblés d a Bahia.Dakar, 1974. Mimeografado.

36  No terreiro d a  mãe-de-santo Elizabeth,  no bairro de São Miguel (São P au-lo),  tivemos oportunidade de ver o alvará de funcionamento em olduradoe colocado ao lado esquerdo do altar, em uma moldura d e tamanho e fei-tio idênticos à do Bom Jesus da  Lapa, que ficava ao seu lado direito e namesma altura. Parece-nos  de importância  o fato, pois o altar  do candom-blé  é para a s divindades ap enas.  N o particular, este a que estamos  nos re-ferindo  já se encontrava  em  adiantado processo  de sincretismo com a um-banda. O fato q ue registramos n ão seria um a  forma inconsciente d e escra-vizar as forças institucionalizadas que lhe davam proteção? Parece um ca-

so de transferência de papéis do plano p rofano  para o sagrado. Neste casoespecífico, de um terreiro de candomblé já em fr anco e adiantado proces-so de sincretismo, o fato poderá ser atribuído exatamente a esses momen-tos de transição sincrética e reflexo da desintegração dos valores mágicosanteriores  e sua substituição  po r  outras forças protetoras  da s  instituiçõesda sociedade profana.

37  Edison Carneiro assim define escola d e samba: "Chama-se escola de sam-ba , atualmente,  um a associação  popular  que tem por  objetivo principala sua  apresentação, como conjunto,  no  carnaval  carioca.  Outrora  era oponto  de  subúrbio  do  morro  —  como Terreiro Grande  do  Salgueiro  —

NOTAS E REFERENCIAS BIBLIOGRÁ FICA

onde os  habitantes  se reuniam para suavizar,  com a  música,  as durezasda   vida.

O nome  escola decorre não somente da popularidade de comando dostiros-de-guerra, como  da  circunstância de se aprender  a  cantar  e dançaro  samba. Esta última palavra, corruptela d e semba,  a umbigada com quese transmite a voz de  dançar  no samba  de roda ,  — o batuque  angolenseconhecido  em Pernambuco,  em São Paulo  e  especialmente  na  Bahia —

passou a  designar  a m úsica urbana herdeira do  lundu e da modinha, im-pregnada  de ritmos fundamentais africanos. C om efeito, durante muitosanos, as canções d as escolas com punham-se apenas de estribilho ou refrão,sobre o qual se improvisava   (versava),  enquanto o solista, exercitando asua iniciativa, sapateava, deslizava ou rodopiava sambando. O grupoconstituía-se, deste modo, numa  escola de samba. Com a experiência decerca de 30 anos, as escolas começaram a a pelidar os seus componentesde   académicos  ou norm alistas d o  samba".  (CARNEIRO, Edison.  A  sabe-doria  popular.  Rio de  Janeiro,  INL, 1957.  p.  113-4.)

38  CARNEIRO,  Edison. Op. cit., p. 117.39 Entrevista concedida  ao  Jornal  Crítica, Rio de  Janeiro,  /  (29), 1975.40 Uma prova de que as escolas de samba perderam o ethos que as transfor-

mava em grupos  específicos  são as declarações d e Martinho d a Vila sobreo assunto:  "Olha,  esse negócio  de escola voltar  à  origem j á  era, porquenão se vai mais conseguir mesmo.  Você quer u m  exemplo? Compositor,antes, fazia o samba para a escola cantar, para ver todo mundo levar seusamba para a avenida. Hoje, compositor faz samba pequeno, diferente,comercial, por que sabe que só assim v ai gravar.  Ele quer faturar. Não im-porta que o samba-enredo esteja sendo  deturpado".

Di z ainda Martinho que "escola de samba virou m eio de promoção so-cial. Durante o carnaval, qualquer diretor  de samba t em acesso a o gover-nador,  ao  palácio  e h á  muito interesse em  jogo para permitir que as esco-las voltem ao que elas já foram um dia. Até sambistas já não têm mais'camisa'.  É de quem paga mais. Hoje quem paga melhor leva o melhormestre-sala e a melhor porta-ba ndeira. Tem até preço de passe. (...) Podeacontecer até m esmo de escola de samb a virar veículo de propaganda, pa-trocinada por em presas. Na hor a em que uma escola dessas estiver no su-foco  e abrir as pernas,  não vai ter quem segure. Pode ser que as grandesnão cedam por enquanto. Mas, quem garante isto a longo prazo?" (Vida

e morte da s escolas de samba. (Entrevista a Sérgio Macedo.)  Crítica, R iode  Janeiro,  l  (29), 1975.)41 VASCONCELOS, Francisco & PEDRA, Mário.  No  mundo  do samba (D a con-

servação das escolas de samba no futuro). Petrópolis, 1969. p. 9.

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2? Parte

A  dinâmica negra

e o

  racismo brancoA sociedade brasileira largou  o  negroao  se próprio destino, deitando sobreseus   ombros   a  responsabilidade   dereeducar-se  e de   transformar-se paracorresponder   ao s  novos padrões   eideais de homem, criado pelo adven-to do traba lho livre, do regime republi-cano  e do  capitalismo.

F L O R E S T A M F E R N A N D E S

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ISociologia da Repúblicade  Palmares

1. Preferiram  Conseguir-se uma  aproximação sa-  a  liberdade entre as  tisfatória  com o  tema sobre o  qualferas  que a sujeição  vamos nos  ocupar neste capítulo éentre  OS homens mais difícil e essas dificuldades têm

origem   em  várias causas, umas  daprópria situação  da ciência histórica no que diz respeito  ao s estudospalmarinos, outras de natureza ideológica e política que decorrem  daprópr ia essência polémica  da República de Palmares em relação à his-toriografia dominante e académica. Como vem os, temos barreiras deordem metodológica e ideológica que se cristalizam em cima de umamemória e consciência histórica  e  sociológica desfiguradas e/ou rei-ficadas pela maior parte dos cientistas sociais que, até hoje,  se ocu-param  do  assunto.

Isso  é  compreensível s e levarmos  em consideração q ue toda adocumentação que se conhece sobre Palmares  é aquela fornecida pe -lo  dominador, pelo colonizador, isto  é, não  temos outro código  deinformação a não ser aquele que os seus destruidores nos oferecem.Desta for ma , o cientista social tem de se postar em uma posição mu i-to cautelosa, a fim de reinterpretar criticamente esses documentos  einformações,  decodificá-los, sabendo discernir heuristicamente até on-de vai a  fantasia ocasional,  o interesse o u a  ideologia repressiva na

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160 SOCIOLOGIA DA  REPÚBLICA DE  PALMARES

elaboração do seu texto e onde se situa a  veracidade do  fato narradoe/ou interpretado. Porque foi sempre um desafio  aos historiadorese sociólogos, pois representa o pique das lutas sociais e raciais queforam   travadas no Brasil, até as revoltas dos negros urbanos  de Sal-vador na primeira parte do século XIX. Essa historiografia procurou

minimizar a sua significação histórico/sociológica, apresentando-o co-mo um  valhacouto  de bandidos,  de bárbaros,  fetichistas  e crimino-sos. A própria biografia de Zumbi somente agora emerge em conse-quência de trabalhos de historiadores que resgatam a sua  figura e pro-va m  a sua existência. Antes era lenda,  era apenas um título  que setransferia. Zumbi não existia como personagem histórico. 1

Achamos, por isto, que ainda não podemos, a não ser com muitacautela, elaborar uma interpretação sistemática da realidade social dePalmares, a sua estrutura interna, o seu dinamismo e o ritmo dessedinamismo, sistema de propriedade, organização familiar, estruturade  poder etc., a não ser de forma aproximada.

Outros obstáculos não menos difíceis se somam a estes. Um de-

les foi a destruição quase total da população primitiva de Palmaresou o seu envio para outras áreas depois da sua derrota, o que propor-cionou a criação de um vácuo de memória histórica e social, fato queimpede o pesquisador recolher na região, através de trabalho de cam-po, informações orais, tradições, lendas e mitos capazes de dar umarepresentação simbólica do que os atuais ocupantes das terras na re-gião possuem do fato histórico através de transmissão oral dos   seusantigos habitantes e descendentes. Finalmente, por ser Palmares umarepública que seguiu a tradição africana, tinha uma estrutura de trans-missão de pensamento, comunicação grupai fundamentalmente oral.

Na África a tradição oral é praticamente responsável pela trans-missão da memória coletiva. Vários géneros de comunicação nestesentido existem para  que isto possa  ser realizado. Temos:  a) a poe-

sia,  forma de expressão mais frequente. Refere-se quase sempre aopassado da África, às civilizações que se sucederam e às culturas quelhes  deram suportes; b) o conto, que são grupos de fábulas, lendas,mitos intercalados com fatos reais, terminando o narrador ilustrando-ocom um preceito moral; c) os provérbios, máximas populares que ex-primem, através de imagens, uma regra de conduta ou conselho demoral social; d) o ditado que difere do provérbio pelo fato de ser umasentença que expressa o ideal de uma conduta  ética.

Outras formas de literatura ou comunicação oral africana são:os poemas cantados (aios); as adivinhações;  os cantos e coros religio-sos; as canções de invocações místicas e cenas da vida cotidiana.

PREFERIRAM

Os depositários dessas tradições e formas de comunicação oraisnas sociedades africanas poderão ser enumerados da seguinte maneira:

1.°)os  detentores da autoridade política;2.° os  nobres;

3.°   os chefes de cultos;4.°  os   velhos contadores.2

É evidente que não se pode  verificar empiricamente até ondePalmares reproduziu, integral ou parcialmente, essa estrutura decomunicação oral africana, hierarquizada, no seu território, mas se-rá interessante ao se estudar a sua  realidade social, levar em contaque, ao que tudo indica, esse código se conservou pelo menos par-cialmente. De outra forma teriam sido apreendidos documentos tan-to durante a fase das diversas expedições punitivas, como após a suaderrota final.

Quebrada, em Palmares, a continuidade das organizações, seg-mentos, grupos ou pessoas que funcionavam com a tarefa de passa-

rem a experiência comunitária de geração a geração, extinguiu-se pra-ticamente a memória e a consciência coletiva, sem deixar vestígios sig-nificativos  no presente.

De tudo isto surge a dificuldade de se conseguir aquilo que po-deríamos chamar de uma visão exata ou aproximativa da estruturae o ritmo da dinâmica interna  da  República de Palmares. Isto  queaf i rmamos sobre Palmares estende-se também aos outros quilombosmais importantes. Finalmente, como coroamento dessa série de difi-culdades há todo um passado de historiografia tradicional, conserva-dora,  ideologicamente comprometida com o colonizador  e que pro-cura esconder, escamotear ou deformar o verdadeiro significado e aimportância sociológica, histórica, política e humana que foi Palma-

res, apresentando tão importante fato como sendo apenas "um va-lhacouto  de bandidos  e marginais".

Para fazermos uma análise sociológica sistemática da estruturada República de Palmares, teríamos de aceitar um desafio que nãocabe ser enfrentado senão particularmente no  atual estágio em queestão os estudos palmarinos.

Se   objetivássemos fazer um trabalho sistemático e exaustivoabordando a dinâmica da República decorrente da sua estrutura, te-ríamos de estudar as suas técnicas e outros tipos de produção; o queproduzia e especialmente como se realizava essa produção;  a intera-ção do núcleo dirigente com camadas e/ou grupos de poder da socie-dade colonial; a interação dos palmarinos com os escravos e negros

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162   SOCIOLOGIA  DA  REPUBLICA  DE  PALMARES

dos  engenhos e fazendas;  a dinâmica interna da República n os  seusdiversos níveis; língua falada;  estrutura organizacional do núcleo di-rigente; forma fundam ental de propriedade; organização familiar; sis-temas  de pa rentesco;  religião  predominante; estratificação social i n-

terna; formas de dominação e subordinação  fundamentais;  estruturado grupo religioso; existência (ou não) do feiticeiro ou casta sacerdo-tal com monopólio do sagrado; organização militar e sua hierarqui-zação intern a; ritua is iniciáticos; nível de poder político do núcleo mi-litar; sistema de distribuição da p rodução; sistema de distribuição deexcedentes etc.

Como  se pode ver, por esta simples enumeração sumária  e evi-dentemente incompleta, a tarefa seria impossível de ser realizada, pe-lo menos por uma só pessoa. Haveria, também, necessidade de in-vestimento  em pesquisas históricas e na região, especialmente iniciar-se a pesquisa arqueológica, para a possível reconstrução de sua cul-tura material, coisa que até o momento não foi feita. Com isto, tal-

vez   se conseguisse novas dimensões interpretativas para os estudospalmarinos.   3

2. Uma  economia  Uma tentativa de descrição inicial da eco-de  abundância  nomia  de  Palmares deverá começar, se-

gundo pensamos, por um inventário dasterras, suas qualidades  e limitações para a prática  da agricultura, r e-cursos hidrográficos, vegetação, fauna regional e grau de pluviosida-de, entre outras. Evidentemente que isto seria uma p reliminar neces-sária para se ter uma ideia da base física da República, em bora, con-forme  posteriormente procuraremos analisar,  não é isto  o determi-nante  na organização  e desenvolvimento da  República, pois outroselementos de ordem social, económica, cultural e militar irão dar con-teúdo  à  dinâmica dessa cultura.

Segundo a maioria daqueles que escreveram sobre Palm ares,  aRepública estava situada em uma das  regiões mais férteis d a  Capita-nia  d e P ernambuco,  na região atualmente pertencente  ao Estado  deAlagoas.  Para Edison Carneiro:

a região era montanh osa e difíci l — cômoro s, colinas, montes, monta-nhas, rochedos a  pique s e  estendiam  a  perder  de  vista... Vinha desdeo planalto de Garanh uns, no sertão de Pernambuco, atravessan do vá-rias ramificações dos sistemas orográficos central e oriental até as ser-

ras dos Dois  Irmãos  e d o Bananal,  no  mun icípio de Viçosa  (Alagoas),compreendendo, entre outras, as  serras do  Cafuchi, da Jussara, da  Pes-queira, do   Comonat i  e d o  Barriga — o  oiteiro da  Barriga"  — onde setravou a maior parte dos combates pela destruição final de Palm ares. 4

Décio Freitas, mais abrangente,  descreve toda a região como:

Uma faixa litorânea com 23 0 quilómetros de extensão, um planalto depouca altitude ladeando a nesga do litoral e uma área mais ou menosconsiderável de terras altas. A costa baixa, sem acidentes e batida porvagas oceânicas não é  convidativa à  navegação, sendo a  ponta d e Já-raguá o único ancoradouro seguro em  todo o trecho de  Recife para  baixoaté a Bahia.  Os  rios q ue  vazam  para o mar são represados pelos alí-sios atlânticos, o que explicaria a formação de inúmeras lagoas  carac-terísticas da região (...) Ao se refugiarem nos Palmares, os escravos ti-ravam   partido do tipo de região que em todos os tempos constituiu oponto  forte das classes subalternas quando sublevam — a montanhainóspita, precisamente porque ali não chega o braço do E stado, ou pe-lo   menos s ó  chega  c om   grande dificuldade.5

Ainda sobre a região,  um autor desconhecido, em documentoexistente na Torre do Tombo, depois de descrever o cenário de Pal-mares,  afirma que:

estende-se  pela parte superior do Rio São Francisco um a corda de ma-ta   brava, que  vem a  fazer termo sobre o sertão do  Cabo de  Santo  Agos-tinho, correndo quase norte a sul, do mesmo modo que corre a costado mar. São as árvores principais palmeiras ag restes que deram ao ter-reno o nome de Palmares; são estas tão fecunda s para todos os usosda vida humana, que delas se fazem vinho, azeite, sal,  roupas, as fo-lhas servem  às classes de cobertura; os ramos de esteio, o fruto de sus-tento, e da contextura com que as pencas se cobrem no tronco, se fa-zem  corda para todo o  género, ligaduras  e amarras; nã o correm tão  uni-formem ente esses Palmares que os não separam outras m atas de di-

versas   com que na distância  de sessenta léguas se acham distintosPalmares.6

Suma riamente descrita a região em que se localizava a Repúbli-ca  d e Palmares,  po r três autores, sendo que o últim o possivelmentetenha sido contemporâneo  do s acontecimentos, vejamos, agora, co-mo os seus  habitantes chegaram e se multiplicaram nessa área.

Rocha Pitta diz que foram qua se quarenta negros de G uiné dosengenhos  de Porto Calvo,  no  início, depois  em bandos  e de formaconstante, homiziando-se n as matas d e Palmares,  que iniciaram o pri-meiro quilombo.  Ele  descreve  a  origem  da  República  da  seguintemaneira:

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164   SOCIOLOGIA D A  REPÚBLICA  DE  PALMARES

Quando a  provfncía d e  Pernambuco  estava  tiranizada  e  possuída  dosholandeses, se  congregaram  e  uniram  quase quarenta  negros do  Gen-tio de Guiné, de  vários engenhos da Via do  Porto Calvo, dispondo  fu-girem  ao s senhores, de quem  eram escravos, não por  tiranias, que ne-les experimentassem, mas por  apetecerem   viver  isentos de qualquer

domínio. C om segredo (entre esta nação, e tanto número de pessoas,poucas vezes isto) dispuseram a fuga,  s a  exe cutaram, levando consi-go  algumas escravas, esposas  e concubinas, também c úmplices  do de-lito da  ausência, mu itas armas diferentes, umas que  adquiriram e ou-tras que   roubaram  a seus donos n a ocasião em que  fugiram. Foramrompendo o vastíssim o sertão daquelavila, que acharam desocupadodo gentio e só assistido dos brutos,  que   lhes serviam de alimento, acompanhia com a qual se ulgaram ditosos, estimando mais a iberda-de entre a feras, que a sujeição entre os homens.  7

O crescimento demográfico da Rep ública continua a p artir des-se núcleo básico inicial de forma ininterrup ta, diversificando-se, pos-teriormente, com a incorporação  de segmentos de marginais, índios,mam elucos e membros de outros grup os étnicos. Diversas situações

surgiram paralelamente, permitindo o aumento de  fugas  que iriamfazer  engrossar a sua população. Uma delas foi a ocupação  holan-desa em Pernambuco que desarticulou as estruturas de domina-ção portuguesas e nativas, criando condições para que os escravos,aproveitando essa situação de desarticulação dos mecanismos de con-trole social e repressão,  fugissem  para as matas, especialmente paraPalmares.

Além da  fuga desses escravos dos engenhos, continuava afluin-do aos mocam bos cada vez mais índios salteadores, fugitivos da jus-tiça de um modo geral e elementos de todas as demais etnias que sesentiam oprimidas pelo sistema escravista. Certamente chegaram tam-bé m  brancos  e brancas, pois d e outra forma  não se explicaria  a exis-tência, em 1644, entre os aprisionados por R odolfo Baro de  "alguns

mulatos de menor  idade". 8Nos assaltos que eram feitos às populações locais, c ertamente

os negros palmarmos ra ptavam negras, ma s brancas também . Fala-seque  Zumbi tinha,  entre suas mulheres, uma que era branca. Deve-mos notar, a respeito, que o problema do equilíbrio entre os sexosem  Palmares deve ter sido muito sério, pois, na seleção que o sistemade importação de negros realizava para o  suprimento de escravos noBrasil a proporção  de mulheres era bem menor que a de homens,calculando-se, segundo estimativas,  de três homens para cada mulher.Desta form a, para que se estabelecesse um equilíbrio sexual relativa-mente estável, a necessidade de se conseguirem mulheres fora da

^ j-imrt  103

reprodução natural  era  imperativa. Como  os palma rinos resolverameste problema muito sério e estabeleceram tipos  de famílias que acu-diram  a  essas necessidades veremos oportunamente.

O certo, porém,  é que através do crescimento vegetativo e dorapto de mulheres, da adesão de escravos  e escravas  dos engenhos e

do aprisionamento de escravos passivos, a população  de Palmares che-gou a ter 20 a 30 mil  habitantes, população  que atingiu um nível de

i densidade demográfica,  na época, desafiador. Transformou-se Pal-í  mares no mais sério obstáculo ao desenvolvimento  da economia es-

cravista da região. Como a região, na época, era a mais  importantepara a prosperidade  desse tipo de economia, podemos aquilatar a preo-

cupação que Palmares representava para as autoridades da Metrópole.Tanto isto é verdade que em 1671 o governador Fernão de Sou-

za Coutinho dirigia-se à Metrópole denunciando o perigo. Dizia ele:

Há  alguns anos que os negros de Angola fugidos do rigor do cativeiroe

 fábricas   do s  engenhos desta Capitania  se  formaram povoações  nu -merosas pela terra dentro entre os Palmares e matos, cujas asperezase  faltas de  caminhos os tem mais fortificados  por  natureza, do que pu-dera ser por Arte, e crescendo cada dia em número se adiantam tantono  atrevimento que com contínuos roubos e assaltos fazem despejarmuita pa rte dos moradores desta Capitania mais vizinhos aos seus mo-cambos, cujo exemplo e conservação vai convidando cada dia aos maisque  foge, por se  livrar  do   rigoroso cativeiro   que  padecem e se  veremcom  a liberdade lograda no  fértil das terras e segurança de suas habi-tações podendo-se temer que com estas conveniências cresç am empoder de maneira que sendo tanto maior o número, pretendam  atrever-se a tão poucos como são os moradores desta Capitania a respeito dosseus cativos; para evitar este dano determino passar ao  Porto Calvona   entrada deste verão, lugar mais proporcionado para se fazer estaguerra e dali, com contínuos troços de gente que se renda uma a  ou-

tra, mandar abrir caminhos para o s ditos Palmares p or  onde possamser   Investidos e arrasadas as suas povoações continuamente até detodo se extinguirem e ficar livre esta C apitania des te dano que tantoa  ameaça.9

Este temor e providências das autoridades não impediram quePalmares  continuasse crescendo. Montado neste binómio (territórioe população) é que a sociedade civil de Palmares se estrutura e se di-namiza. Organiza-se criando  um  espaço humano  e social dentro d oespaço físico.  Po r  diversas circunstâncias  os  quilombos,  ou  cidadesda   República, começam  a se formar,  de acordo com o processo d edesenvolvimento e diferenciação da divisão do trabalho interno. Sur-gem, em consequência da diversificação d e funções e papéis d e várias

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166  SOCIOLOGIA DA REPÚBLICA DE PALMARES

camadas  e estratos no sistema produtivo,  quilombos q ue tinham ati-vidades sociais e económicas específicas. Assim, segundo documentoaproveitado por Edison Carneiro e que já usamos mtes, era a seguintea distribuição territorial dos principais quilombos que constituíam  aRepública: a 5 léguas d e Porto Calvo  ficava  o  quilombo de  Zumbi;a 5 léguas mais ao norte o mocambo de Acotirene; a leste destes, dois

mocambos chamados das Tabocas; a 14 éguas a noroeste destes m o-cambos o de Dambrabanga; a 8 léguas mais ao aorte a "cerca" deSubupira;  a 6 léguas mais ao norte a "cerca Real do Macaco;  a 5léguas a oeste o mocambo d e Osenga, a 9 léguas de Serinharém, paranordeste; a "cerca" de Amaro a 25 léguas das Akgoas, para noroes-te; o "palmar" d e Andalaquituche, irmão  de Zumbi, a 25 léguas dePorto Calvo  e o mocambo  de Aqualtuna,  mãe do  rei, afora outrosmenores,  espalhados  no seu território. Sabendo-se qu e  légua é umavelha  medida portuguesa q ue corresponde  a  aproximadamente seisquilómetros, podemos calcular a extensão geográfica da República.Edison Carneiro avalia em 27 mil quilómetros quadrados a superfí-cie de Palmares. Numa articulação permanente esses quilombos (o u

cidades) produziam uma economia de abundância, apesar das contí-nuas expedições enviadas contra eles e que tinham, como sistemáti-ca,  destruir  sua  agricultura e matar  os seus homens e mulheres.

3. Como os palmarinosse comunicavam?

Como  se articulava,  do ponto  devista linguístico, a população  daRepública  de  Palmares? Qual  o

sistema de comunicação, o seu código de linguagem através do qualsocializavam  o seu pensamento?  A primeira hipótese surgida entreaqueles que estudaram Palmares  foi a de que, como escreveu DécioFreitas, a língua era "basicamente o português, misturado com  for-mas africanas d e linguagem", pensamento idêntico ao de Edison Car-neiro. Com o aprofundamento dos estudos palmarinos esta primeirahipótese está sendo revista, como veremos adiante. De fato, emborahaja  referências ao envio de línguas (intérpretes) para entender-se comos palmarinos, poderíamos relacionar isto ao quase desconhecimen-to também por parte dos bandeirantes do português, isto é, a misturada linguagem palmarina com termos africanos e a incorporação  determos indígenas à fala dos bandeirantes sugeria a  necessidade de umintérprete  que os  auxiliasse no  diálogo. Mas, apesar disto, dessa

COMO OS  PALMARINOS SE COM

possível diversificação dialetal  por  parte  do s  palmarinos, todos  oselementos indicam  que o  português  foi a estrutura linguística  qu eabsorveu  o vocabulário de origem africana usado pelos negros ha-bitantes da República de Palmares para se comunicarem. Por  outrolado,  tem-se como quase certo  que as palavras africanas incorpo-radas ao corpo léxico dos palmarinos eram de origem banto. Isto por-

que  tem-se comprovado  que a maioria esmagadora  do s  negros ha -bitantes  da  República provinha  de  populações  que  falavam  essesdialetos.

A professora Yeda Pessoa  de Castro,  em trabalho especializa-do  de etnolingiiística, mostra a precedência da importação banto emrelação aos negros de outras partes da África, particularmente na re-gião de Palmares. Para ela, na época da sua formação, a importaçãode negros para a  lavoura escravista era basicamente das regiões daÁfrica   que falam o s seus diversos dialetos. O  gráfico  seguinte indicaa  realidade deste argumento:

Atividade principal

Agropecuár iaMineraçãoAgriculturaServiços urbanos

Séculos de importação maciça

XVI

B

B

XVII

B/J

B/J

XVIII

B/JB/J

B/J/N

XIX

N/HN/J/H/B

Grupos: B =  Banto; J =  Jeje/Mina; N =  Nagô/lorubá; H =  Hauçá.Fonte: CASTRO, Yeda Pessoa de.  A presença cultural  negro-africana noBrasi l ;  mito  e realidade. Salvador, CEAO, 1981.

A mesma autora escreve que:

no  que concerne à influência dos povos de língua banto, ela foi  maisextensa e penetrante po r também mais antiga n o Brasil. Isto s e revelapelo número de empréstimos léxicos de  base banto que são correntes

no  português do  Brasil — uma média de 71 % — e  pelo número de deri-vados portugueses formados de uma mesma raiz banto, inclusive  osde  conotação especificamente religiosa, sem que o  falante brasileirotenha consciência de que essas palavras s ão  d e origem banto.  Exem-plos: cacunda/corcunda, caçula, fubá, angu, jiló, bunda, quiabo,  den-dê, dengo etc.10

Isto acontece n ão apenas no s falares populares mas na elabora-ção de linguagem literária.11

Em  outro trabalho,  O s  alares  africanos  na interação social d oBrasil Colónia Yeda Pessoa  de Castro escreve que:

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16»  SOCIOLOGIA  DA REPÚBLICA DE PALMARES

os  empréstimos éxicos afr icanos no português d o Brasil, associadosao regime da escravatura, são em  geral  étimos bantos (quilombo, sen-zala, mucama, por exemplo); depois Zumbi, Ganga Zumba, nomes doslíderes  d e Palmares, sã o títulos tradicionalmente atribuídos a chefeslocais  n o domínio banto. Sobre outro plano, os folguedos radicionaisbrasileiros que portam   nomes  denunciando influência banto, tais co -mo  quilombos, congos moçambiques são atestados em diferentes zo-nas  rurais do  Brasil.12

Finalmente, para concluir nossa  argumentação, vamos transcre-ve r  trecho da documentação que Yeda Pessoa de Castro apresentouao II Encontro Nacional de Linguística:

Nessas (as senzalas), onde se misturavam africanos de diferentes pro-cedências étnicas a um  contingente  de indígenas, a fim de  evitar rebe-liões q ue  pusessem seriamente em   perigo  a vida do s  seus  proprietá-rios, numericamente nferiorizados e  estabelecidos  e m  áreas nterio-ranas isoladas, a necessidade de comunicação entre povos lingúisti-camente diferentes deve te r provocado a  emergência de uma espéciede  língua franca, que  chamaremos de dialetodas  senzalas.

13

A argumentação acima mostra como há evidência ponderável(histórica, sociológica  e etnolinguística) de que os bantos influencia-ram decisoriamente na língua falada em Palmares, criando aquilo quepoderíamos chamar, pelas mesmas razões etnolingúísticas e socioló-gicas  apontadas  pela professora Yeda Pessoa de Castro, de dialeto

dos quilombos,  como sendo o código de linguagem através do qualeles se comunicavam. Ou então, por que não poderíamos chamar es-sa linguagem de dialeto de Palmares Esta hipótese nós levantamosno Simpósio sobre a República de Palmares, organizado pela Uni-versidade Federal de Alagoas, em 1981.14 A sugestão que colocáva-mos ali como questão aberta, veio, ao que tudo indica, ser confirma-da pelas pesquisas posteriores sobre este aspecto importantíssimo emrelação  a Palmares.

O historiador Décio Freitas, baseado em pesquisas pessoais pro-curando esclarecer o  assunto, escreve:

Antes de mais, n ão  podiam adotar, sem  desastroso sacrifício da uni-dade, uma das línguas nativas da África. Necessitavam de uma  l ingua-ge m comum. Assim foi como se  elaborou a linguagem palmarina: umsincretismo linguístico, em que os elementos africanos tiveram um as-cendente decisivo, mas que incorporava, por igual, elementos do  por-tuguês e d o tupi. Falam  um a língua toda sua, às  vezes parecendo d aGuiné  ou de Angola, outras parecendo nenhuma dessas e sim  outralíngua nova reparou o governador Francisco d e Brito Freire.

y.    nwurwjMiA  fALMARINA   169

Os  brancos não entendiam essa linguagem sem  auxílio de  ntérpretes.Todos os  emissários enviados pelas autoridades coloniais a Palmarespara consertar trégua ou pazes faziam-se nvariavelmente  acompanharde   línguas . A s  conversações entre o governador de  Pernambuco  eum a embaixada palmarina, no ano de  1678, no  Recife,  realizou-se  atra-vés   de  línguas .

Desgraçadamente,  não restaram vestígios significativos da  inguagempalmarina.15

Assim, aquela hipótese que aventamos em 1981 veio a ser cor-roborada posteriormente. Podemos dizer, em face destas razões, queexistiu um dialeto de Palmares como código de linguagem através doqual seus habitantes se comunicavam.

4.  Evolução daeconomia palmarina Vejamos agora como se estruturava e

articulava  a  economia  de  Palmares.Devemos  dizer  que  vamos sumariar

aqui, em primeiro lugar, o que se produzia; em segundo lugar, como

se produzia na República. Achamos que no sistema produtivo de Pal-

mares há, inicialmente, uma  fase  basicamente recoletora,  fase que,aliás, não  desaparecerá perdendo a sua importância,  mas permane-cendo como forma subsidiária durante toda a evolução da sua eco-nomia. Caça e pesca, fundamentalmente. São conseguidas pelos pal-marinos, além de frutas, vegetais medicinais, óleo de palmeira, fibrasde vários tipos, frutos como jaca, manga,  laranja,  fruta-pão,coco, abacate, laranja-cravo, cajá e outras, nativas, que serviam pa-ra sua alimentação. Além disto, a caça era facilitada pela abundân-cia de animais na região: diversos géneros  de onças,  antas,  raposas,veados, pacas, cutias, caetetus, coelhos, preás, tatus, tamanduás, qua-tis e inúmeras outras espécies que davam base a uma alimentação atra-vé s da caça, capaz de suprir a população da República, pelo menosno seu início.

Além desse setor recoletor, desenvolve-se o artesanal, no qualeram produzidos cestos, pilões, tecidos, potes de argila e vasilhas deum modo geral. Esse setor artesanal era o que produzia grande partedo material bélico usado: facas, flechas e outros instrumentos vena-tórios e de guerra. Havia ainda a produção de instrumentos musicais,cachimbos de barro (para fumarem maconha), além de objetos de usocotidiano. Um dos setores mais desenvolvidos era a metalurgia, poisos africanos já eram exímios metalúrgicos na sua terra natal e aquidesenvolveram as suas aptidões e técnicas.

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170   SOCIOLOGIA DA REPÚBLICA DE PALMARES

N o pa r t icu lar ,  Edison Carneiro informa:

A exp edição holandesa de  1645 encontrou quatro  for jas nos  Palmarese o  governador Fernão Coutinho, em  1671, dizia que os negros ebela-dos já possuíam "tendas   de  erreiros, e outras of icinas, com que pode-rão  fazer armas, pois usam  de a lgum fogo  que de cá  levam; e  e ste ser-tão é tão  fér t i l d e  metais, e  salitre, qu e  tudo Ires  oferece  para  a suadefesa,  se   lhes n ão   faltar a  indústria   que  também  s e pode temer d os

muitos   qu e  fogem, já  práticos e m   todas  as  mecânicas".16

Co m  o  aumento progressivo da população, a sua diversificaçãosocial  e  estratificação maior  e mais complexa no s diversos segmentosocupacionais,  políticos, militares e produtores que a  compunham, essaeconomia simples foi, paulatinamente, substituída pela agricultura in-tensiva, porém diversificada, ficando apenas como atividade comple-mentar, subsidiária, o  setor recoletor e artesanal. Usando técnicas deregadio trazidas da África e uma longa experiência agrícola, os pal-marinos transformaram -se em agricultores. Posteriormente veremoscomo essa m udança no sistema de produção  irá alterar os outros ní-veis organizacionais e estruturais da República. Palmares passa a teruma economia fundamentalmente agrícola, criando excedentes eco-

nómicos para redistribuição interna   e  externa.A base desse trabalho era a policultura, p roduzida intensivamen-te, porém de forma com unitária. Plantavam p rincipalmente o milho,que era colhido duas vezes por ano. Depois da colheita descansavamduas semanas.  Plantavam ainda feijão, mandioca, batata-doce, ba-nana (pacova) e cana-de-açúcar. Isto constituía a produção básica daagricultura palmarina, sendo o  excedente distribuído entre os mem-bros da comunidade para as épocas de festas religiosas ou de lazer,ou estocado para os tempos  de guerra. O que  sobrava era  trocadocom vizinhos, pequenos sitiantes e pequenos produtores,  por artigosde  que a  República necessitava.

A maneira  como  se produzia,  podemos dizer que era,  na suaessência,  um  sistema de trabalho  que se chocava com o latifundiário

escravista  tipo plantation que existia na Colónia, com níveis de pro-dutividade muito m ais dinâmicos e de distribuição com unitária queera a própria  antítese  da apropriação  monopolista  dos  senhores deengenho  e da  indigência  total dos  escravos produtores.

Comentando esta forma com unitária  de produção existente emPalmares,  Duvitiliano Ramos assim  se expressa:

Distinguindo muitas "roças ou  plantações" onde abundavam bananei-ras  e canaviais, o cronista Blaer, implicitamente, destacou com o  curió-

_  ... » , »jiT rtIWi f\  1/1

sidade  específica  dos   quilombolas, em  oposição  com o  sistema  de  ses-maria que   imperava  nos  engenhos  sob  exploração   holandesa, um a for-ma  diferente  de   cultura, denunciadora  de   trabalho individual  e não detrabalho por turmas, como  se  fazia  na  terra  dos  engenhos. Não  somenteisso: a plantação variada  de  diferentes espécies, onde abundavam ba -naneiras   (pacovais) e  canaviais; e na  lavoura  do rei  "uma roça muitoabundante"  q ue  tanto pode  se r compreendida  na  variedade  de  planta-

ção  (abundante), com o  na  extensão  da área plantada, em bora  a expres-são  seja  limitada: uma roça, como pode exprimir a ignorância do cro-nista quanto ao nome da plantação   muito abundante". O fato real, con-tudo, é que a  lavoura  do rei era  diferente  na forma  do trabalho  da  terra,da s lavouras  do s habitantes, que  constituíam muitos roçados, com  va-riados   produtos,  e ao rei resultava "uma roça muito abundante", pro-metedora  de   farta colheita   em  várias espécies  e  produtos.Esta   forma  de  cultura   —  continua  o  m esmo autor — ,  introduzida  n osquilombos, ganha consistência definitiva  e  a f i rma-se como  caracterís-tica  social e m  confronto  com a  relação geral anotada  po r Blaer. Arrua-mento, duas fileiras   de  casas, cisternas,  um   largo para exercícios, acasa-grande do Conselho, as  portas  do  mocambo, paliçadas   e  fortifi-cações. E isto porque entre os seus habitantes havia  toda sorte deartífices".  Um  aldeamento progressista.17

Concluindo, afirma:

Disso se  deduz  que os  quílomboías, ao   repudiar o  sistema latifundiá-rio dos sesmeiros, adotam a form a do uso útil de pequenos tratos, ro-çados, base económica da fam ília livre; que o exce dente da produçãoera  dado  ao   Estado, como contribuição para  a riqueza social e  defesado  sistema; que a  solidariedade  e a  cooperação eram praticadas des-de  o início dos quilombos, que deve remontar aos princípios do séculoXVII; que a sociedade livre era dirigida po r leis consagradas pelos usose costumes; que não  existiam vadios n em  exploradores  no s   quilombos,mas, sim, uma ativa fiscalização com o sói acontece r nas sociedadesque se  formam  no  meio  d e lutas, contra form as ultrapassadas d e rela-ções d e produção; que, em  1697, já existiam nascidos  e  crescidos, h a-bituados àquele sistema, nos quilombos, três gerações de brasileirosnatos,  somando provavelmente  a população   de  dezess eis aldeamen-tos

 para mais de vinte mil  indivíduos.18

Esta forma de  organização dava, como consequência, uma  eco-nomia de abundância. É outro estudioso, Décio Freitas, quem dá con-tinuidade e conclusão à exposição de Duvitiliano Ramos, afirmando:

Faziam   largo consumo  de  banana pacova, abundante   na  região. Cria-vam  galinhas, s uínos, pescavam  e caçavam. Mas, fat o singular,  não  cria-vam  gado  a  despeito  das  excelentes pastagens  de certas áreas  da re-gião por eles diretamente  controladas.19

E aduz em seguida:

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172  SOCIOLOGIA  DA REPÚBLICA DE PALMARES

É  que nas  comunidades negras  reinava a farturaque oferecia  vivo con-traste com a perene m iséria al imentar da  população do  litoral. A  abun-dância  da  mâo-de-obra, o  trabalho cooperativo  ea   solidariedade socialhaviam aumentado extraordinariamente a produção. O superprodutosocial se tornav a abundante. Depois de alimentada a população, aten-didos os gastos coletivos e guardadas em  celeiros  as quantidades des-

tinadas às épo cas de más colheitas, gue rras e festividades, ainda so-brava algo para trocar p or produtos essen ciais das populações luso-brasileiras. O caráter nitidame nte antieconômico  d o sistema escravis-ta é ilustrado  po r esse contraste entre o rendimento do  trabalho do ne-gro  quando livre  e  quando cativo. Era por ser  escravo e não por ser ne-gro  que ele produzia pouco e mal nas plantações e nos engenhos. Otrabalho cooperativo de Palmares tinha um ritmode produtividade muitomaior do que aquele que se desenvolvia nos latifúndios escravistas;a superioridade da agricultura palmarina em relação ao trabalho escravoer a  faci lmente verificável.20

Analisemos, agora, quais eram as relações de produção que ca-racterizavam Palmares. Décio Freitas mais uma vez tem de ser cita-

do. Diz ele que não

há  elementos seguros sobre  o  regime de propriedade da  terra entre ospalmarinos. Cabe conjeturar que as  terras pertenciam à povoação co-mo um todo. A plausibilidade da hipótese provém , em primeiro lugar,do fato de que os negros traziam da Áfr ica uma tradição de proprieda-de coletiva da terra. Em segundo lugar, uma vez que o esgotamentodo  solo e  razões de  segurança determinavam periodicamente a mudançade  toda   a   povoação para outro sítio, n ão  teria sentido   a   propriedadeprivada da terra com todos os seus atributos, como compra e venda,sucessão etc.21

A dupla verificação de que Palmares se transformou em umasociedade agrícola  que produzia para  toda  a comunidade, leva-nosa  outro nível  de reflexão.

Quais as m odificações estruturais significativas no interior daRepública, a o passar de simples a juntamento seminôm ade, de um pu-nhado de escravos, para um a república com território fixado pela ne-cessidade de produção a grícola e permanente pa ra alimentar a comu-nidade e de organização de normas reguladoras capazes de dar orde-namento  a essa sociedade? Além d a necessidade da formação d e umEstado e de um governo, como veremos depois, f oi, também , neces-sária a criação de uma força militar  que resguardasse dos ataques d efora  a produção coletiva,  a vida e a segurança  do s  seus habitantes.

Para acudir à segurança de um número tão  considerável de pes-soas e um território tão grande e sempre ameaçado, necessitavam de-senvolver uma técnica m ilitar, estabelecer um sistema defensivo eficaz,

EVOLUÇÃO DA ECONOMIA PALMARINA 173

capaz  de assegurar  o  sossego d os m oradores.  Para  tal,  a sociedadepalma rina teve de admitir a constituição de um segmento militar quese organizou como instituição, embora na s épocas  de guerra todo opovo  fosse mobilizado para lutar. E sse exército aumentou considera-velmente. Iniciaram-se as construções de fortificações, paliçadas, pla-

taformas, fossos, estrepes, tudo visando a sua defesa. Por outro la-do, o setor artesanal e m etalúrgico deve ter desviado grande pa rte dassuas atividades para a fabricação de ma terial bélico indispensável pa -ra que esse  exército estivesse em condições operacionais satisfatóriastodas  as vezes  que a República fosse atacada.

Esse exército era comandad o pelo Ganga M uiça e bem arm ado,embora, na última fase da resistência, o seu comando tenha passadoinquestionavelmente para as ordens de Zumbi, que  ficou como umaespécie  de  comandante-chefe. Suas armas eram arcos, flechas, lan-ças,  facas  produzidas pelo setor artesanal da República e armas defogo tomadas das expedições primitivas, dos moradores vizinhos, com-prada s daqueles com os quais os palmarinos ma ntinham relações pa-cíficas e provavelmente também fabricadas na p rópria R epública. Co-mo vemos, Palmares,  para defender-se dos ataques inimigos, teve dedirigir grande parte da sua economia para   fins bélicos e ma nter, tam-bém, uma grande parte da sua população p rodutiva em armas.

Evolui o segmento militar, por isto mesmo, adquirindo uma fun-ção  importante na área de domínio e  prestígio político. Daí o apare-cimento de uma espécie de casta militar. A guerra de movimento, omovimento de guerrilhas, sustentado por outros quilombos menorese que deram frutos tão positivos na tática militar da quilombagemnão  pode se r continuada em Palmares.  As guerrilhas foram transfor-ma das em operações de envergadura e, depois de realizadas, tinhamum local  fixo para voltar. O nomadismo militar inicial dos palmari-nos, possível numa sociedade recoletora, foi substituído pelo seden-

tarismo e pela luta de posições. À m edida que as atividades agrícolasse desenvolviam, iam sendo, ao mesmo tempo, transformadas as tá-ticas e técnicas militares p ara a defesa do patrim ónio coletivo. É, poroutro lado, essa fração ou segmento militar, adestrado para  defen-de r o patrimó nio coletivo, que irá revoltar-se contra a capitulação d eGanga Zumba. Porque o exército de Palmares tinha esta característi-ca: não foi montado para defender nenhum tipo de propriedade pri-vada,  m as  para defender o património de toda  a  comunidade.  Daíter-se insurgido, através de Zumbi e outros comp onentes do segmen-to militar, contra a capitulação de Ga nga Zum ba que significava, em

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174   SOCIOLOGIA  DA  R E P ÚB L I C A DE  P A L M A R E S

última  instância, a destruição de toda essa estrutura, com unitária. Nesteparticular, o general Zumbi, ao se insurgir contra  a açãocap itulacio-nista  de Ganga Zumba e os seus  seguidores, estaca representando osinteresses e o consenso de toda a comunidade da República  ameaça-da de ser dominada e os seus habitantes voltarem ao statusde escravos.

Este tipo d e economia levará, também, a que não se corporifi-que um  direito d e propriedade definido e regulamentado e m código.

Os  crimes que eram punidos severamente através de um tipo de direi-to  consuetudinário (costume) eram o adultério, o homicídio e o rou-bo individual, pois ele era considerado uma  lesão  ao patrimóniocomum.

5.  Organização familiar:  O  casamento  era  feito  sem ne -poligamia  e  poliandria  nhum ritual significativo, ou so-

lenidade ma ior. Pelo menos até omomento não se encontram informações que evidenciem o contrá-rio. Por outro lado, Palmares reproduzia, dentro das suas frontei-

ras,  a

  desproporção  de

  sexos existente  na

  população escrava, istoporque os senhores preferiam comp rar, para os trabalhos do eito,  ho-mens jovens e mulheres as quais eram destinadas à escravidão domé s-tica, cujo número era insignificante em relação à grande massa deescravos trabalhadores na agroindústria açucareira. Por este motivoos traficantes selecionavam essa mercadoria huma na de acordo comas preferências do mercado e a vontade dos fa zendeiros. Calcula-seque para cada mulher havia três ou mais  homens, com va riações re-gionais. Este fato irá  refletir  na  composição,  por sexos, da popula-ção  palmarina com desequilíbrios evidentes na  organização familiar.

Por isto, se os palmarinos m antivessem, nas suas fronteiras, ocasamento monogâmico que os senhores impunham nas suas   fazen-das, ou a promiscuidade também ali permitida, haveria um desequi-

líbrio n a vida familiar e sexual tão agudos que a  desarticulação socialseria inevitável, com repercussão de desajuste em todos os níveis daestrutura social. Para resolver esse impasse de importância fundamen-tal,  os  palmarinos foram obrigados  a instituir dois tipos fundam en-tais  de organização familiar. Um seria a família polígama e outro afamília  poliândrica.

Essa dupla organização fam iliar, surgida de causas que já apon-tamos, isto é, o desequilíbrio da população palmarina segundo o sexo,

veio equilibra r o comp ortam ento d os dois sexos e ordenar socialmenteessa instituição.

No primeiro caso,  a poligamia seria praticada pelos membrosprincipais da estrutura de poder. Isto é, a capa dominante, o rei, mem-bros  do Conselho e possivelmente os  chefes  dos mocambos teriamdireito a várias mulheres,  cujo  número não temos elementos paraprecisar.

Um  documento d a  época dizia que o  apetite é a regra da suaeleição", o que não é verdade. S e isto acontecesse ha veria conflitosinternos muito grandes e níveis de desorganização fam iliar q ue dese-quilibrariam   a  normalidade  da República.

O rei Ganga Z umb a tinha três mulheres, duas negras e uma mu-lata e Zumb i teve mais de uma , havendo a hipótese de que uma delasera  branca. A instituição  da poligamia nesta capa dominante é incon-testável. Quanto à possibilidade de Zumbi ter uma mulher branca,a hipótese não é absurda, pois muitas brancas pobres e mesmo pros-titutas conseguiram   fugir pa ra Palm ares, como form a de se livraremda discriminação a que estavam sujeitas na sociedade escravista. Alémdisto muitas "mulheres e filhas donzelas"  foram raptadas pelos ne-

gros  de Palmares,  como registra documento  da  época.Mas,  em contrapartida, havia a família poliândrica. Era a que

funcionava  de forma majoritária no conjunto da comunidade, na-quelas camadas que não tinham poder decisório n os assuntos impor-tantes, ma s participavam em pé de igualdade com todos os mem brosda comunidade n a  produção  e n o  consumo. A poligamia  em todosos povos onde ela existiu sempre foi um privilégio, isto é, mesm o sendoum  direito para todos, somente aqueles que possuem condições m a-teriais, sociais  ou económicas  para  usá-lo,  o exercem.

Em  Palmares,  no entanto, tanto  um tipo de organização fami-liar como outro, surgiram em consequência das circunstâncias espe-ciais que os seus habitantes não podiam controlar em   face de serem

de causas externas: a desprop orção g ritante entre os sexos, consequên-cia da imposição dos com pradores de escravos no mercado negreiro.Daí a poliandria ter sido estabelecida na República . Com esses

dois tipos fundam entais de organização familiar criaram-se m ecanis-mos de equilíbrio para a sua funcionalidad e, sem antagonismos a gu-dos e conflitos, do grupo família. Os estratos políticos e militares quemantinham  a direção d a  sociedade, especialmente o rei, tinham um afamília polígama,  ao contrário  do s  outros segmentos e grupos ondea  poliandria  era a  norma permanente.

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176 SOCIOLOGIA DA REPÚBLICA DE PALMARES

Décio Freitas, ao abordar  o  problema, escreve que:

para preservar a coesão social,  instituiu-se o casamento poliândrico.As  referências a esse tipo d e  casamento  são inúmeras, mas as  maisminuciosas são as de um documento de 1677.

Sucede que um  certo Manuel Inojosa   — o patronímico aparece am-bém  grafado como Jojosa  — ,  laureado exterminador de índios e de ne-gros,  grande proprietário   de   terras   e de   escravos,  aspirava   apaixo-nadamente a glória de destruir  Palmares. Nesse intuito, apresentou àCoroa  vários planos. Para colher  informações,  infiltrou   um dos  seusescravos em Palmares em troca de promessa de alforria. O negro vi-veu  entre  os  palmarinos pelo esp aço  de seis meses, para, afinal, fugire transmitir ao amo o quanto vira em Palmares.22

O espião prestou plenas inform ações ao seu amo e o mesm o dirigiu-se ao rei de Portugal com um relato dos costumes da República. N ãose conhece a íntegra do documento enviado mas um resumo feito domesmo aborda  o assunto que nos interessa, ou seja,  a poliandria d ePalmares.  Diz ele:

... que cada negro  que  chega  ao  mocambo fugido  de  seus senhores  lo-go  é  ouvido pelo conselho  de  just iça  que tem que saber de  suas ten-ções   porque  são  grandemente desconfiados,  ne m  se  fiam   só no  fatode  ser  negro  que se apresente; qu e  tanto  se certificam das  boas inten-ções do   negro  que  chega  lhe dão  mulher a  qual possuem untos   co moutros   negros, dois, três, quatro  e  cinco negros, pois sendo poucas  asmulheres adotam esse estilo para evitar contendas; qu e  todos   os ma-ridos   da  mesm a mulher habitam  com ela o  mesmo mocambo, todosem  paz e  harmonia, e m  arremedo  de  família, ma s  próprio  do s bárbarossem  a s luzes do  entendimento  e a  vergonha  que a  religião impõe; qu etodos ess es maridos  s e reconhecem obedientes  à  mulher q ue  tudo  or-dena na vida como  no  trabalho; q ue  cada  um a dessas chamadas  famí-lias  o s m aiorais, em  conselho, dão uma  data  de  terra para  que a  cultiveme  isso  o  fazem  a  mulher e os  seus maridos... que à  guerra acodem  to-dos nos momentos  de  maior precisão, sem  exceção  da s mulheres  quenessas ocasiões mais parecem feras  qu e   pessoas do seu  sexo.

Visto como funcionava a família poliândrica em Palmares, ca -be uma indagação complementar. Teria havido um  matriarcado emPalmares? Os mais importantes estudiosos do assunto acham que não.Ma s Joaquim Ribeiro, exagerando, ampliando o u mesmo deforman-do os traços possivelmente  de um matriarcado  existente entre os ne-gros brasileiros, refere-se a um  matriarcado africano  em Palmares,partindo d a afirmação de que o quilombo não era uma expressão deluta contra  a  escravidão. Para ele:

o  quilombo  (e  esta  é a sua  verdadeira significação histórica) é uma  rea-çã o  contra  a cultura  d os  brancos, contra  o s seus usos  e  costumes; é

RELIGIÃO SEM CASTA SACERDOTAL  177

a restauração da velha tribo afro-negra nas plagas americanas; é a res-surreição do organismo político tribal; é o retorno, sobretudo, ao seufetichismo bárbaro.23

Daí, para ele,  a poliandria de Palmares  e os seus vestígios  no

Nordeste  serem feitos dessa  regressão cultural . Afi rma p or  isto:A poliandria  d a es crava negra  é uma  sobrevivência  do matriarcado ori-ginário. E foi  esse resíduo  matriarcalista que favoreceu, através dasrelações  sexuais en tre brancos e  negras, a  atenuação  d a  luta entre  osenhor e o escravo.24

Não há dúvida de que essa interpretação fantasiosa, que remetepara um possível res íduo atávico os sistemas organizacionais do mo-mento, especialmente  das comunidades  e grupos oprimidos, basea-dos na cultur história como Joaquim Ribeiro determina o seu método,poderá provar tudo porque não prova nada cientificamente. As ori-gens tanto da  poligamia como da poliandria em Palmares  surgiramda dinâmica social interna da comunidade, da sua composição por

sexo desequilibrada e das soluções estruturais que os hab itantes en-contraram para conseguir o seu equilíbrio sexual e social. O que nãose pode aceitar é reduzir a dinâmica social a simples regressão cultu-ral, o que não faz sentido nem tem nenhuma possibilidade de expli-car a dinâmica d a sociedade que se formou a o nível d e  contestaçãosocial como Palmares.

6.  Religião sem  Para a maioria dos estudiosos  de Palmarescasta sacerdotal  a sua religião era formada por um sincretis-

mo no qual entra o catolicismo popular  ecrenças africanas, principalmente banto. Acrescentamos, agora, a in-

fluência das religiões indígenas que tão bem se fundiram às religiõesbanto em outros  lugares, como na Bahia, dando inclusive dessa  fu-são o chamado candomblé  de caboclo".25

Segundo Rocha Pitta eram "cristãos cismáticos" e explicava porque isto no seu entender era verdadeiro:

De  católicos não  conservavam  já outros sinais que o da Santíssima Cruz,e algumas orações  ma l  repetidas, e  mescladas  co m  outras palavras ecerimónias por eles inventadas,  ou  introduzidas das superstições  dasua  Nação; co m   que, se não eram idólatras, p or  conservarem  a som-bra  de cristãos, eram cismáticos, porque a falta de Sacramentei • daMinistros da Igreja, que eles não buscavam, pela sua rebíllâo, • i

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178 SOCIOLOGIA DA REPÚBLICA DE PALMARES

liberdade do s costumes, em que viviam, repugnantes ao s  precei tos danossa Religião Católica, os   excluía d o   consórcio, grémio  e  número defiéis.26

Edison Carneiro, n o primeiro trabalho fundamental  de revisãohistórica da República de Palmares, afirma que:

os negros (de Palmares) tinham uma religião mais ou menos semelhanteà católica,  o que se  explica pela  pobreza  mítica d os   povos bantos aque pertenciam e pelo trabalho de aculturação no novo habitat  ameri-cano. No mocambo do  Macaco, possuíam uma capela, onde os  portu-gueses  encontraram  três  imagens, uma do  Menino  Jesus,  muitoperfeita , outra da Senhora da Conceição, outra de São B raz (...) Os pal-marinos escolhiam um dos seus  mais ladinos para lhes servir de sa-cerdote, especialmente para as cerimónias do batismo e do  casamento,ma s   provavelmente  também para pedir o   favor celeste para as suas ar -mas (...) Não era permitida a existência de feiticeiros no quilombo.27

Carneiro  refere-se, ainda, a uma dança que, segundo Barléus,era praticada em conjunto e que se prolongava até a meia-noite,batendo-se com os pés no chão com  tanto estrépito que se podiaouvir  de muito longe".28

Parece-nos que esta "dança" devia ser alguma cerimó nia deri-vada das religiões africanas e indígenas, pois tudo leva a crer que erauma manifestação coletiva do mundo religioso da comunidade queenglobava, além  de negros que eram hegemónicos, também m embrosde  outras etnias que compunham a República, como índios, mame-lucos, pardos e brancos. Parece-nos que Edison C arneiro subestimouum  pouco este elemento na análise que fez das práticas religiosas dePalma res. Essa ma nifestação coletiva de contato com o sobrenaturaldevia manifestar-se periodicamente, com datas ou tempo determina-dos, e deveria ter um significado de expiação ou de invocação p ropi-ciatória  à colheita e/ou à  guerra.

Até hoje, segundo informações que conseguimos em Maceió,em  1983, a população de União dos Palm ares a credita ouvir, de vezem   quando, esses batuques de negros no cimo da Serra da Barriga.

Achamos, por tudo isto, que a execução do sagrado era prati-camente comunitária. Não havia uma carreira de sacerdote com ri-tuais iniciáticos, com diversos níveis hierárquicos que gara ntissem aoiniciado o monopólio d o sagrado. Pelo contrário. O s feiticeiros eramproibidos de agir em  Palmares.  Assim, a prática religiosa, quandoisto era necessário, era executada por pessoas escolhidas ocasional-mente,  os "ladinos mais expertos", que não se identificavam com osagrado através d e ritos d e iniciação.  O eventual prestígio adquirid o

ADMINISTRAÇÃO E ESTRATIFICAÇÃO NA REPÚBLICA 179

durante a prática do culto desaparecia depois da sua realização. Oque se pode  deduzir,  da s informações que se tem,  é que os atos reli-giosos em Palmares eram uma comunhão coletiva com o sobrenatural.

7.  Administração  Na parte da  administração pública po-e  estratificação  demos ver no cimo da pirâmide o rei quena  República  exercia poder es quase absolutos. Em se-

guida o Conselho, com os representan-tes  dos  chefes dos diversos quilombos (cidades), os quais decidiamde forma autónoma, nos seus respectivos redutos isoladamente, masem  conjunto quando o assunto envolvia problema de relevância paraos  destinos da República, como a guerra e a paz. A escolha do reiera  eletiva. E mb ora exercendo poderes quase absolutos (apenas con-trolados pelo Conselho nos casos mais importantes), em situações ex-tremas como traição havia a pena de morte   para  ele, como, porexemplo, no caso de Ganga Zumba.

Quanto ao sistema m onetário não se tem notícias de uma m oe-da  cunhada e em circulação na República de Palmares. O comérciopessoal e as trocas deveriam ser realizadas através do sistema de es-cambo, pois assim como não se pode conceber uma sociedade semtroca, não se pode tam bém a firm ar que deveria haver moeda metáli-ca  para  realizar essa operação. O que isto vem demonstrar é o rela-cionamento comunitário e pré-m onetário entre os seus membros. Atroca em espécies deveria ser, ao que acreditam os, o costume de co-mercialização (se é que assim poderíamos ch amar tal operação) sema existência do lucro. Daí, talvez , não haver necessidade de uma moedaque  circulasse como equivalente geral a o  valor  de cada m ercadoria.

O p roblem a da estratificação social devia ser complexo e o seudinamism o através da m obilidade social horizontal e vertical poderiamedir-se pela passagem de um membro ou grupo de um estrato paraoutro ou, horizontalmente, de um mocam bo para outro ou da Repú-blica para outro local, através da  fuga.  Do ponto de vista de mobili-dade vertical podemos citar, em primeiro lugar, o membro daRepública que era eleito rei, e, no outro p ólo, o exemplo dos escra-vos   da República que podiam ascender ao nível de membros livresde Palmares se trouxessem um ou mais negros cativos para o núcleo.Da mesma forma, parece-nos, as mulheres ascendiam socialmentequando  se casavam  com  algum  chefe  de quilombo  ou  comandante

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180  SOCIOLOGIA DA  REPÚBLICA DE  PALMARES

militar. Q uanto aos jovens, não temos nenhuma  informação de qual-quer ritual de passagem (quer para homens quer para mulheres) ououtra cerimónia iniciática para incorporá-los à comunidade, emboranão descartemos a possibilidade de sua existência, pois elas funcio-navam sistematicamente  nos grupos étnicos  banto.

O certo é que toda a dinâmica de estratificação e integração so-cial era feita no nível de segurança e estabilidade dos seus membrose segmentos  em relação  à  situação do conjunto d a comunidade,  fu-

gindo, por isto, de qualquer semelhança com os tipos de mobilidadeexistentes em uma sociedade competitiva.Quanto ao nível, tipo e intensidade de inteiação da comuni-

dade com moradores da região e com a estrutura de poder colonial,podemos dividi-los basicamente em três: a)  interação c onflitiva; b) in-teração competitiva; c) interação pacífica.

O conflito deve ter  sido  o mais frequente  e significativo  espe-cialmente em nível do enfrentamento militar com as tropas holan-desas, portuguesas e de mercenários b andeirantes. O s choques mili-tares, as guerrilhas, as batalhas e escaramuças defensivas,  as sortidaspara o roubo d e víveres essenciais e não-produzid os em Palm ares, ra p-to de negros ou m ulheres, tudo isto foi uma constante neste nível de

interação.O competitivo seria caracterizado pelas relações com morado-res locais. H avia, certam ente, um pacto  não-formal (e possivelmentenão em  nível d e consciência)  que neutralizava aparentemente o con-teúdo das mesm as, através da troca de interesses e o estabelecimentode um escambo muitas vezes voluntário, outras vezes compulsório paraaqueles que não podiam defender-se da força militar de Palmares.Aquilo que Rocha Pitta chamava  "trocar o cabedal pela honra" daparte d os proprietários locais, talvez exemp lifique este tipo de intera-ção,  ou seja,  um a relação competitiva acobertada  por um pacto  deinteresses.  Em outros casos, contudo, haveria  um tipo  de  interaçãopacífica entre pequenos proprietários, camponeses pobres com os pal-marinos.

Quanto  à  interação pacífica  com as estruturas  de  poder colo-nial, parece-nos que foi excepcional e não caracteriza o relacionamentodos palmarmos  com a sociedade abrangente,  isto é, as estruturas depoder  coloniais.  Podemos  dar  como exemplo disto apenas  o enviode um a embaixada  em 1678 que foi ao Recife parlamentar  com o go-vernador  da Capitania,  o  recém-nomeado Aires  de  Souza  e Castro.Na ocasião  foi  acordada  a paz  entre  as  autoridades coloniais  e a

República de Palmares, através dos  seus representantes, tendo a suaembaixada sido recebida a nível d e representatividade plenipotenciá-ria. O governador mandou que  fosse  tomado por termo

as  deliberações e  encarregou um sargento-mor do  Terço de  HenriqueDias, que sabia ler e escrever, se seguir para Palmares, em compa nhiados negros , para comunicá-las ao  rei  Ganga Zumba e aos seus au xil ia-res. O ilho mais velho do rei, que não podia viajar, ficou no Rec ife, sobcuidados médicos. 2 g

8.  Palmares:  Queremos colocar, no final deste capítulo, emuma  nação  nível de simples reflexão preliminar uma inter-em  formação?  rogação: teria sido Palmares  uma nação em

formação?  Se não tivesse sido destruída, ousitiada permanentemente, a comunidade palmarina teria dinamismointerno capaz de estruturar-se em nacionalidade?

Antes d e colocarmos alguns elementos teóricos para  da r  conti-nuidade à nossa  proposta, ou hipótese, queremos dizer preliminar-mente que mesmo aqueles autores que abordaram o assunto no

passado, jamais viram Palmares como uma unidade política com di-nâmica própria, mas sempre viram Palmares como um movimentodivergente  em relação à nação brasileira ainda em form ação. Jamaisfizeram   um a análise d e duas unidad es paralelas  que podiam, deseja-vam e tinham possibilidades de desenvolver-se autonomam ente. Que-remos dizer com isto que ninguém procurou analisar Pa lmares a partirdas leis internas (económicas, sociais e políticas) que lhe davam esta-bilidade, continuidade e dinamismo, mas semp re como um territóriode negros e ex-escravos qu e haviam fugido  às leis económ icas, sociaise políticas  da Colónia, estas, sim, aceitas como capazes de dar conti-nuidade e desenvolvim ento àquilo que se convencionou cham ar a so-ciedade brasileira. Em razão disto, Euclides da Cunha via em Palmares

um a "grosseira odisseia", o mesmo fazendo Nina Rodrigues quandoafirma que foi um relevante serviço prestado pelos bandeirantes a suadestruição, elogiando a  ação desses mercenários  ao nível d e arautosda  nossa unidade nacional . Isto é, o referencial de  normalidade er aa unida de do Brasil colonial. O patológico, a frag menta ção dessaunidade.

Mas, de um pa râmetro científico, esta perspectiva chovinista es-tereotipada teria  razão Parece-nos, pelo contrário, que Palmares

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182   SOCIOLOGIA  DA  REPÚBLICA  DE  P A L M A R E S

teve todas  ou  pelo menos a s principais condições de ser um a  nação,possivelmente independente,  ou  componente  do  país  que se forma-va, se esses chamados civilizados (os  colonizadores)  não tivessemmobilizado contra ela todo o seu arsenal repressor e deixassem a Re-pública palmarina desenvolver as suas instituições internas, as  suasforças  p rodutivas e aprimorar a sua dinâmica económica e socialpacificamente. Mas a história não se faz sem contradições. Pelo con-

trário. A contradição  fa z parte imanente da s leis sociológicas que de-terminam a dinâmica ou retrocesso dos grupos,  classes, comunidadese  nações. Por isto Palmares foi destruída. Não por ser uma ameaçaà civilização, como quer Nina Rodrigues, mas,  pelo  contrário, porter sido uma ameaça à sociedade escravista que a rodeava, pelo seuexemplo de eficiência  organizacional. Um viajante que aqui esteve em1871,  Oscar Constatt, observou muito  bem o problema e escreveu:

A prosperidade da república dos negros  preocupou no mais alto  grauo  governo.  Os   portugueses resolveram   po r  isso pôr- lhe fim,   e não   tar-daram a  enviar tropas,  num total de 7 mil  homens contra  os  temíveispalmarenses. Como se tinha o inimigo em muita  pouca conta, não foijulgado  necessário armar  a  força  co m  canhões, e  a  completa  der rota

desta depressa mostrou aos  portugueses  que não  lhes seria fácil al-cançar   o desígnio visado.  Só  depois de   levarem canhões  e  abrirem bre-chas nos muros de Palmares, formados de grossos troncos sobrepostos,foi que a  resistência desesperada,  que os  palmarenses  tinham o fere-cido até então,  cedeu  um pouco, e permitiu que por fim os  portugue-se s  se  assenhoreassem  da cidadela.30

O que deve ser destacado aqui é que o autor assinalou a p rospe-ridade  da República como a causa de sua destruição através de umaoperação militar. De fato, não eram as escaramuças dos negros pal-marinos, rapto de escravos ou mulheres, que preocupavam o gover-no, pois esse tipo de bandoleirismo era muito comum naquela época.O que determinou, segundo pensamos,  a empresa de destruir Palma-res foi, exatam ente, o seu exemplo de uma economia alternativa, com

ritmo d e produtividade maior do que a  Colónia, desafiando, c om is-to, a outra economia (escravista) em confronto com a  economia c o-munitária   praticada na República.

Poderíamos, por isto, considerar Palmares como uma nação emformação?  O que é uma nação na sua definição clássica? É uma co-munidade estável, historicamente formada, que tem sua origem nacomunidade de língua,  de território,  de vida económica e conforma-ção psíquica  que se manifesta  em uma  cultura comum.

Neste nível  de  raciocínio teórico o que pensamos  da Repúblicade Palmares? Um m ovimento separatista que queria afastar-se da na-çã o   brasileira por motivos fortuitos e que deveria ser reincorporadaà unidade nacional da qual fazia parte e, por isto, justificava-se o usoda   força armada para esmagá-la  e reparar  os nossos brios patrióticos?

Neste particular de nação dominada até hoje temos um exem-plo clássico: a Irlanda d o Norte está dom inada política  e economica-mente pela Grã-B retanha, mas isto não lhe tira a condição de ser umanação nem o direito  de separar-se  da  Inglaterra. Evidentemente qu edo ponto de vista  histórico e sociológico as diferenças são imensas.Não queremos equiparar  os dois exemplos,  m as  apenas mostrar co-mo através  do conceito  de unidade nacional muitas vezes os direitosdas   nacionalidades são esmagados.

Depois dessas considerações va mos apresentar algumas razõesque,  supomos, podem iniciar a análise do ponto de vista que sugeri-mos. No nível de  análise teórica, Palmares correspondia  ao s requisi-tos   sociológicos,  políticos  e  económicos  suficientes  para  ser  consi-derada  uma nação em formação?

Porque  —  destaquemos este detalhe  — o Brasil, naquele tem-

po, não era um  país independente,  tendo, como nação, mais contra-dições regionais e políticas do que Palmares.  Há  mesmo sociólogose historiadores que consideram, até hoje, o B rasil uma nação incon-clusa.  O que levou a República de Palmares a ser condenada e ex-tinta foi, como já dissemos, a sua estrutura social e económica co-munitária que se chocava com o sistema baseado nas relações escra-vistas. Aqui, parece-nos,  é que está a chave do problema: Palmaresera uma negação, pelo seu exemplo económico, político e social daestrutura escravista-colonialista. O seu exemplo era um  desafio  per-manente e um incentivo às lutas contra  o sistema colonial no seu con-junto.  Daí Palmares  ter  sido considerada, sempre, pela crónica his-tórica tradicional,  um valhacouto d e bandidos e não uma nação em

formação, que estava desenvolvendo uma trajetória altamente dinâ-mica e desafiadora a todas as técnicas produtivas e estruturas de rela-cionamento social d o escravismo. A sua d estruição,  po r isto mesmo,foi  festejada com as pompas  e homenagens de uma guerra vitoriosa.O  governador Melo  de  Castro comunicava ao  reino  o  notável  feitodizendo que:

A notícia da gloriosa  restauração  dos Palmares, cuja feliz vitória se nãoavalia  por  menos que a expulsão dos holandeses e, assim,  festejada

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1*4  SOCIOLOGIA  DA REPÚBLICA  DE  PALMARES

por todos estes povos com 6 dias de luminárias, sem que  nada distose   lhes ordenasse.31

Como vem os, pela im portância que se deu à destruição de Pal-mares temos a evidência de que, no bojo da estrutu ra colonial e es-cravista que existiu na época, a existência da República de Palmares,a sua vitalidade e desenvolvimento, o seu exemplo dedinam ismo eco-nómico,  e o seu exemplo  de  relação comunitária  e  liarmonia social

determinaram a sua extinção. Isto porque,  segundo  pensamos, eraum a  alternativa surpreendentemente progressista para a  economia eos sistemas de ordenação social da  época. Um embriio de nação quefoi  destruído para que o seu exemplo não determinasse uma econo-mia que transcendesse os padrões económicos e políticos do sistemaescravista.

Notas e referências bibliográficas

1 N o  processo historiográfico  de m itificação  de Zumbi é significativo  este

trecho de M. M. de Freitas no particular:  "O  Zumbi que enriquece a len-da  palmarina e que se atirou do alto do rochedo com os seus trezentos ecinquenta vassalos,  conforme consta da fé de ofício de vários oficiais doTerço Paulista, não é o mesmo Zumb i morto valorosamente no dia 20 denovembro de 1695 por uma partida do mesmo terço sob o comando deAndré Furtado de Mendonça. Mesmo que seja um a lenda na legítima ex-pressão  do termo  não  deve ser destruída, q uanto mais tratando-se de umfato histórico já cristalizado por quase três séculos de existência "  (FREI-TAS,  M. M. de.  Reino negro de Palmares. Rio de  Janeiro, Biblioteca  doExército, 1954. v. 2, p.  770.) Esse processo está sendo acompanhado  poroutro, no sentido inverso, de desmitificar Zu mbi e colocá-lo como perso-nagem  histórico. Neste particular  os trabalhos  de Décio Freitas for am im -portantes  para  se conseguir estabelecer uma  biografia  de Zumbi. Ohistoriador  Joel Rufino d os  Santos f oi quem publicou, e m forma de livro,pela p rimeira vez, a sua biografia.  (SANTOS,  Joel  Rufino  dos. Zumbi. São

Paulo,  Moderna, 1986.)2  UNESCO: La tradition orale africaine.  Dossier Documentaire, s.d. p. 13-4.3 Ao que estamos informados infelizmente não se fez nenhuma tentativa de

pesquisa arqueológica na região de Palmares. Parece-nos que o empregode técnicas arqueológicas poderia abrir novas perspectivas e possivelmen-te esclarecer muitos aspectos da sua realidade ainda obscuros.  No particu-lar, os professores Carlos Magno Guimarães e Ana Lúcia Duarte Lanna,da  Universidade Federal  de Minas Gerais, executaram  um  trabalho pio-neiro  de  prospecção aplicando técnicas  da  arqueologia para estabelecer

uma série de rasgos da cultura m aterial e não-material dos quilombos mi-neiros.  Embora seja uma pesquisa piloto,  veio  demonstrar como muitose lucraria  com a  aplicação desse método  na Serra d a Barriga.  Os pesqui-sadores  acima conseguiram uma série interessante de informações sobreo Quilombo do Ambrósio, Quilombo do Cabeça e da Lapa do Q uilombo,ou  Quilombo da  Serra Luanda,  inclusive  localizando desenhos rupestrescomo exemplares de uma arte quilombola. (Cf. GUIMARÃES, Carlos Mag-no &  LANNA, Ana  Lúcia Duarte. Arqueologia d e quilombos  em Minas Ge -

rais. Pesquisas — Estudos de Arqueologia e Pré-História Brasileira, SãoLeopoldo,  Instituto Anchietano  de  Pesquisas, (31), 1980.)4  CARNEIRO,  Edison.  O qui lombo dos Palmares.  Sã o  Paulo, Brasiliense,

1947.  p. 28.5  FREITAS,  Décio. Palmares; a guerra dos escravos. Porto Alegre, Movimen-

to, 1973. p. 40.6  Documento  de autor  desconhecido existente na Torre  do  Tombo, Portu-

gal, transcrito por Alfredo Brandão e m ' Documentos antigos sobre a guerrado s negros palmarínos",  comunicação apresentada ao 2? Congresso  Afro-brasileiro, realizado em Salvador, 1937, e reproduzido no volume O negrono   Brasil. Rio de Janeiro,  Civilização Brasileira, 1940. p. 277.

7  ROCHA PITTA, Sebastião  da .  História da América Portuguesa. 3. ed. Sal-vador,  Progresso, 1950.  p.  294.

8 CARNEIRO,  Edison.  Op.  cit.,  p. 75.9

 Carta do Governador Fernão de Souza Coutinho de l? de junho de 1671sobre  O  aumento dos mocambos do s negros levantad os qu e assistem Pal-mares", apud  ENNES, Ernesto.  As  guerras do s Palmares. Sã o Paulo, N a-cional, 1938.  p.  133.

10  CASTRO, Yeda Pessoa  de. A presença cultural negro-africana:  mito  e rea-l idade.  Salvador, Centro de Estudos Afro-orientais,  1981.  p. 4.

11 Sobre a influência  da s línguas banto n o por tuguês literário  do  Brasil, verPINTO BULL,  Benjamim. Lês  apports  Hnguistiques  du kimbundu  au bra-si l ien.  Dakar, Comunicação Apresentada ao Colóquio Negritude e Amé-rica Latina, 1974. Mimeografado.

12  CASTRO, Y eda Pessoa  de.  Os  alares  africanos  na interação social do  BrasilColónia.  Salvador, UFBa, 1980.  p. 15.

13  Idem,  Os  alares  africanos  na interação social dos primeiros séculos. M i-meografado.

14

 Esta tese foi por nós exposta n o I Simpósio Nacional d os Quilombos d osPalmares, realizado p ela Universidade Federal de Alagoas em novembrode 1981, quando apresentamos a com unicação "Esboço  de uma sociolo-gia da República de Palmares". A hip ótese está atualmente sendo  confir-mada no fundamental .

15 FREITAS, Décio.  Palmares — A gue rra dos escravos. 5. ed. (Reescrita, re-vista e ampliada.)  Porto  Alegre, Mercado Aberto, 1984. p. 41-2.

16  CARNEIRO,  Edison. Op.  cit.,  p. 48.17  RAMOS, Duvitiliano.  A posse útil d a  terra entre os quilombolas.  Estudos

Sociais,  Rio de Janeiro,  (3/4):  396-8, dez. 1958.

186   SOCIOLOGIA D A  REPÚBLICA  DE  PALMARES

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18  Idem, ibidem.19  Interessante se fazer um comentário sobre a inexistênciada pecuária entre

os palmarm os, já que, em quilombos de outra s regiões elaexistia. Um exem-plo é o do Quilombo do Ambrósio. Mais intrigante torna-se o fato ao saber-se que na região d a República de Palmares a pecuária era largamente pra-ticada.

20 FREITAS,  Dedo.  Op .  cit.,  p. 44.21  Idem, ibidem, p. 38.22  Idem, ibidem, p. 38.23

  RIBEIRO,  Joaquim.  Capítulos inéditos  da História  do  Srasil.  Rio de Ja-neiro, Organização Simões, 1954. p. 126-7.24  Idem, ibidem,  p. 102.25  Esta influência poderá  ser constatada e m  CARNEIRO, Edison. Ne gros ban-

tos. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1937, especialmente a parte qu etrata dos candomblés de caboclos. Mais modern amente, Carmen Ribeiropublicou um trab alho muito interessante sobre o atual estado desse movi-mento d e interação: Religiosidade do índio brasileiro no candomblé da Ba-hia: influências africanas  e europeias. Afro-Ãsia,  Salva dor, (14): 60-80,dez. 1983.

26  ROCHA  PITTA,  Sebastião da. Op. cit., p. 296-7.27   CARNEIRO, Edison.  Op . cit.,  p.  42-3.28  Idem, ibidem.29  Idem, ibidem.30 CONSTATT,  Oscar. Brasil terra e gente (1871). Rio de  Janeiro, Conquista,1975.  p. 164.31 Apud  ENNES,  Ernesto,  As  guerras n os Palmares.  Sã o  Paulo, Nacional,

1938.  p. 106.

 O negro visto contra o espelho

de  dois analistas

1. Um   fluxo permanente  Um vasto e profundo  fluxo d e li -de  estudos sobre  O negro  teratura  sobre o negro brasilei-

ro,  de todas as tendências e grausde importância,  vem atestando, de  maneira inequívoca,  a relevânciaque  assume, n a nossa sociedade competitiva  e preconceituosa,  o pro-blema  das  relações interétnicas. Esse  fluxo  bibliográfico  e  essa dis-cussão permanente,  em  vários níveis,  que  procuram suprir  deelementos interpretativos e/ou fatua is aqueles que se interessam peloassunto é bem uma evidência de que a nossa   intelligentsia está sensi-bilizada diante d o  fato/problema  e, de uma forma ou de outra, pro-cura  oferecer elementos  capazes de  a judar  a  manipulação  de umapráxis capaz d e resolvê-lo.  Po r  outro lado,  o interesse de segmentose grupos e m relação  ao assunto mostra como  ele saiu d o nível de dis-cussão meramente universitária  e académica  para  compor  uma das

preocupações relevantes da sociedade brasileira.  O assunto Negro che-gou, mesmo,  a estar e m moda  em determinada  época. Estudiosos d etodas  as tendências procuravam ,  à sua  maneira, abordar  o  assuntoe oferecer, m uitas vezes, soluções de acordo com as suas preferênciaspessoais  ou  grupais.

Atualmente, essa curiosidade transformou-se em grande parteem interesse académico, especialmente n o plano de teses para  a ob-

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188 O NEGR O  VISTO  CONTRA O ESPELHO DE DOIS ANALISTAS

tenção  de títulos  de professores o u a conquista de cátedras. Deixoude ser visto por muitos como problem a social e passou a ser encaradocomo tem a universitário. Ficou, assim, desvinculado daquelas razõesiniciais  que  imprimiram  ao s  primeiros trabalhos  sobre  o  negro umethos  interessado, operacional e participante.

Muitos desses estudiosos, pela s ua situação na estrutura da so-ciedade competitiva brasileira, especialmente ao nível de concordân-cia  ideológica com os seus padrões norm ativos, procuram dar-lhe uma

solução (qua ndo a procuram) paternalista e filantrópica,  fato que le-vou, por outro lado, a que se descurassem de maneira quase total dosproblema s teóricos e metodológicos capazes de desmitificar o assun-to, dando-lhe, assim, as premissas para q ue  seja possível uma inter-ferência  prática e dinâmica no plano de  resolvê-lo  através de pa-râmetros operacionais científicos.

Esse abandono (parcial ou total) dos problemas enunciados aci-ma tem, também, sua explicação na própria realidade étnica que es-ses  estudiosos procuram interpretar. É que o problema do negro seentronca em outro: o problema do   escravo.

A criação dessa imagem dicotômica (negro/esciavo) no bojo dasociedade competitiva que substituiu a escravidão e dos blocos inte-

lectuais, surgiu, portanto, como resposta alienada de uma sociedadealtamente conflitante a um problema polémico, pois o negro, trazidodo continente africano, era integrado, ou melhor, era coercivamenteintegrado em uma sociedade escravista. A imagem do escravo do pas-sado  ficou  automaticamente incorporada ao negro do presente. Oscientistas sociais ou estudiosos de um m odo geral que partiram paraanalisar essa realidade tinham, obrigatoriamente, de sofrer  a influênciadessa  situação.

Esse condicionamento do  sujeito  ao objeto veio  dificultar  du-rante muito tempo o seu esclarecimento. Isto porque a o abordar-seo problema do negro tinha-se, de forma subjacente, mas com impli-cações variáveis no nível de interpretação, a imagem do  escravo, ohomem/coisa,  qu e atuava  de permeio, deformando  e disfocando aimagem   concreta do negro que se desejava retratar e conhecer.

Superando essa visão alienada está surgindo uma pr odução queparece mar car um novo nível na perspectiva de se conhecer a contri-buição do negro na formação do Brasil, contribuição que em partesurge das universidades e, de maneira  significativa,  dos grupos e en-tidades negras que se articulam dinam icam ente em várias regiões dopaís.

Na área universitária podemos citar  os trabalhos  de  NapoleãoFigueiredo   1, no Pará,  trabalhos  de vários cientistas sociais da Uni-versidade Federal da B ahia   2 e, especialmente, a atividade neste sen-tido desenvolvida pela  Universidade de São  Paulo. Borges Pereira,ao  expor  o programa  do D epartamento  de Ciências Sociais, salientaque o interesse pelos estudos sobre o negro varia de área e que essestrabalhos estão praticam ente centrados na área de antropologia e epi-sodicamente na de sociologia. Afirm a ainda  que na de ciência polí-t ica nenhum trabalho se propõe a explorar o tema". 3 Como vemoshá ainda uma  falta de sintonia desses trabalhos com um interesse po-lítico  em  relação  ao problema  do  negro.  4

Po r outr o lado, várias entidades negras têm dado contribuiçõese dinamizado  esses estudos de form a não-acadêmica, traz endo a pro-blemática para um espaço mais próximo e polémico. Entidades co-mo o Movimento Negro Unificado, o Centro de Cultura Negra doMara nhão, o Centro de Estudos do Negro no Pará (este fundado em1890,  sediado  em Belém), o Grupo  de Trabalho André R ebouças, oInstituto  de  Pesquisas  da s  Culturas Negras (IPCN),  a  Sociedade deEstudos da Cultur a Negra no Brasil (Secneb) e o Instituto B rasileiro

de Estudos Africanistas, entre outros, têm participado ativam ente nosentido de tirar a discussão do problem a do negro do nível de meraconstatação universitária, para  dinamizá-lo rumo  à sua  solução.

Como vemos há toda uma reform ulação epistemológica em re-lação a o assunto  que saiu  do circuito fechado  da s  áreas académicaspara se incorporar ao cotidiano crítico  de grandes camadas da popu-lação brasileira que são  atingidas pelo se u núcleo de conflito. Recen-temente, refletindo essa preocupação crescente pelo assunto, apa-receram dois livros que analisam o escravismo no Brasil e na Af ro-América. Eles serão motivo  de reflexão n o  presente capítulo.

O primeiro,  de K át ia de Queiroz Matoso  5 é, antes d e tudo, umlivro apaixonado pelo tema  e pelos problem as p aralelos  que são le-

vantados.  Isto não o desmerece, pelo contrário.  Não foi outro senãoMarx quem escreveu que o  homem como s er objeto sensível é, poristo mesmo, um ser que padece , e por ser um ser que sente paixão,um  ser apaixonado.  A paixão é a  força essencial d o homem q ue ten-de  energeticamente para o seu objeto".  6 A autora interroga-se ini-cialmente se não será audácia da sua parte pretender ir ao encontrodos escravos brasileiros e enumera as razões do seu temor, colocan-do,  em primeiro lugar, tratar-se de uma  "multidão obscura que ja-mais teve voz própria,  cujas  sabedorias não são as nossas"  e, em

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190 O  NEGRO  VISTO CONTRA O ESPELHO DE DOIS ANALISTAS

segundo, o fato d e querer "abordar u m tema tão  amplo, de ura paístão   vasto,  nu m período  tão extenso".

Por isto mesmo escreve que meu ensaio mim a-se desse duploesforço. Seu título, na voz passiva, não é uma figura d e estilo: imp licao desejo de adotar o próprio ponto de vista do escravo. Aponta a von-tade de acompanhar cada passo de sua   vida individual e coletiva".

Como vemos, a autora assume conscienteraente a postura de le-var o seu discurso no mesmo nível do negro escravo e não sobre ele,

acima dele.A pa rtir desta posição sensível, a autora traça um painel histó-

rico/interpretativo daquilo que foi o regime escravista entre nós. Pro-cura, ao mesmo tempo, unir o problema do escravismo à herançacultural africana, mostrando como o primeiro fenómeno  não conse-guiu sufocar as manifestações culturais daquela população que, m es-mo submetida ao mais odioso sistema de exploração, procurava drenose fissuras na estrutura através dos quais conseguia manter, mesmorema nipulando ou cam uflando , os seus padrões culturais funda men -tais. Dava-lhes uma função de resistência cultural.

A autora inicia o seu livro com um p ainel interessante e profun -do do mercado negreiro na África, mostrando de maneira convin-

cente as diversas formas através das quais o império português or-ganizava esse comércio:  o tráfico como empreendimento privado,  otráfico  exercido em comum com outras atividades e o tráfico submis-so às normas do asiento. Acha a autora qu e houve um excepcionalis-mo no caso brasileiro, pois  acredita ter ele escapad o ao clássico tráficotriangular, de acordo com a teoria de Eric W illems. Acreditamos, noentanto, que embora não tendo o mesmo comportamento do tráficotriangular d as Antilhas, não há como explicar a existência e prosperi-dade desse tipo de comércio no B rasil e a acum ulação de capitais nasmetrópoles sem os mecanismos da triangulação.

É verdade que ele não se manifesta de fo rm a tão clara e trans-parente como nas Antilhas. Mas, nas diversas  fases  do tráfico, nãopodemos explicar o crescente númer o de negros importados e, ao mes-mo tempo, a descapitalização permanente da Colónia, sem se con-cordar com o fato de que a  nossa produção foi exportada em partesignificativa  em troca do braço escravo. Se assim não fosse teríamosconseguido a acum ulação de capitais suficiente para que o ciclo capi-talista se completasse no Brasil no seu sentido clássico e não teríamosdesembocado no capitalismo dependente. Nos Estados Unidos, co-mo o tráf ico é extinto em 1808 e as proporções dele são bem menores

do que no Br asil, além de outros fatores, como o fato de ele ser colo-nizado pela nação capitalista mais desenvolvida da época, o tráficotriangular não teve proporções capazes de descapitalizar a quela na-ção. Sobre o tráfico triangular voltarei a insistir neste  capítulo.

Kátia de Queiroz Matoso não  fica, porém, apenas no nível deexplicação economicista. Pelo contrário. Procura , c om penetrante ar -gúcia, destacar certos aspectos sociopsicológicos q ue acompanharam

o processo. Faz, por isto, distinção entre o cativo africano  e o  escra-vo brasileiro.

Evidentemente qu e esta abordagem sutil (e nos parece inédita)não   destrói o u dilui a visão sociológica  da divisão d a sociedade brasi-leira da ép oca em duas classes fundam entais, a dos senhores e a dosescravos, mas abre perspectivas para entender-se o negro, ao ser cap-turado  na África, como um ser embutido em uma cultura, e o s meca-nismos de defesa  ao ser incorporado a uma sociedade estranha na qualos seus padrões cultura is são inteiramente negados e ele é engastadocomo coisa. Destacando a sobrevivência, no escravo, da sua interio-ridade como ser, a autora demonstra como o escravo pode atuar tam -bém como agente ativo do processo de dinâmica social, pois nãoperdeu a sua interioridade humana.

K átia de Queiroz Matoso, dentro deste esquema interpretativo,ao destacar as relações de produção e, ao mesm o tempo, os elemen-tos sociopsicológicos que permanecem no escravo, aborda outros pa-râmetros  do  escravismo brasileiro, alguns j á  bastante estudados edebatidos como a taxa de mortalidade no tráfico, média de vida doescravo e, especialmente, taxa de mortalidade durante a viagem docativo africano no navio negreiro da África aos portos de desembar-que  no Brasil. Narra a viagem de um navio negreiro e conclui:

Nessas condições a taxa de mortal idade a bordo é elevada. A v i d a édura no  n a v i o para  todos o s homens, os da  tripulação e os escravos.Para estes calculou-se uma taxa  média de mortal idade de 15 a 20%.N a  verdade, os  estudos  quantitativos s ão  quase inteir amente inexis-

tentes e estamos m al  i n fo r m a d o s .  No entanto, é possível estabelecercertas ordens de grandeza para os séculos X V I e  X V I I , com o apoio decasos isolados, e para os séculos  X V I I I e  X I X , com a ajuda de estudosexemplares m as  l i m i t a d o s a  alguns anos. E m 1569, F r e i Tomé de Ma-cedo cita o caso de uma nave qu e  transportava 500 cativos. Somenten u m a  noite morreram  1 2 0 ,  ou seja, um quarto do carregamento (24%).E m   1 6 2 5 ,  o governador de A n g o l a , João Correia de Souza,  e n v i a ao  B r a s i lcinco navios,  cada  um deles  com sua respectiva  carga:

195 cativos dos  quais 8 5 morrem (44,4%)220 cativos  dos quais 126 morrem  ( 5 7 )

192 O  NEGRO VISTO CONTRA O ESPELHO DE DOIS

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35 7  cat ivos dos quais  157 morrem (43,9%)14 2  cat ivos  dos quais 51 morrem (35,2%)297 cativos  dos quais 163 morrem  (54,8%)

De  uma carga total de 1 211 cativos somente 628 sobreviveram à tra-vessia  (49,2%).  E outros 68  morrem imediatamente após   o  desem-barque. 7

Temos dúvidas e reservas a fazer quanto à   técnica de cálculoestabelecida pela autora , o que pode ser visto nas páginas seguintes

do seu livro. Queremos ressaltar,

 no entanto,  aquilo

  que nos parece

mais relevante e transparente, ou seja, muitas  vezes  a autora, parajustificar uma posição maternalista em relação ao  escravismo  brasi-leiro, aproveita-se de situações atípicas, exceções do sistema, pa ra  fazerinterrogações  que revelam a sua  perplexidade. Outias  vezes afi rmacoisas desconcertantes como qua ndo diz que o  escravo ao vender osseus serviços no merca do de traba lho é explorado e explorador ao mes-mo tempo.

Ora,  o escravo, exatamente po r  sê-lo, n ão pode, pela  sua con-dição estrutural e jurídica a lienada, alugar os  seus serviços para, comisto, conseguir uma taxa de lucro pessoal. Q uem o faz é o seu senhor,através de normas p or ele estabelecidas e que são transmitida s ao ca-tivo para serem cum pridas. O senhor sub-roga ou transfere ao escra-

vo   um  direito que lhe é  inalienável.  Po r  isto mesmo o escravo  nãopode alugar autonomamente os seus serviços. Quem os aluga, embo-ra sem participa r direta ou pessoalmente da transação, é o seu senhor,apesar de na transação ele não se encontrar presente. Tanto assim queas normas de serviço sã o estabelecidas pelo senhor e não por nenhu-m a organização  de escravos e aquilo que o escravo recebe pelo traba-lho  executado  é, na sua totalidade,  do seu senhor,  o  qual transferevoluntariamente ao escravo, em retribuição, uma parte do m esmo parasua subsistência pessoal pela qual, aliás,  o senhor é responsável pa ramanter a máquina d e trabalho e m perfeitas condições operacionais.Se o e scravo de ganho transfere uma parte do que recebe da alimen-tação para poupança pessoal, isto n ão modifica, n o  fundamental, a

essência   da s  relações  da  total subordinação  ao seu  senhor.

2.  Quando  O detalhe  A autora a profunda o seu painelquer superar O conjunto  de dúvidas e reflexões interroga-tivas,  perguntando se o escravo que é também possuidor de escra-

vos  será  escravo ou senhor. Devem os, inicialmente, dizer que quan-do isto acontece em uma forma ção social escravista representa umasituação de exceção e é por isto  incara cterística.

Ninguém  caracteriza uma formação econômico-social pelas ex-ceções como seria o caso acima. E quando a autora destaca este deta-lhe  que  surgiu,  muito esporadicamente, nas brechas do sistema es-cravista (tanto no antigo como no moderno) está assum indo uma po-sição m etodológica (e teórica) de um relativismo absoluto e equivo-cado, pois  se  fôssemos  analisar  um  tipo  de  formação social  semdistinguir aquilo que lhe é  fundamental  do que é acidental, irrelevan-te  e tópico,  não  haveria possibilidades de uma  ciência social.

No caso o que se deve analisar não é o nível de exploração doescravo, a situação m elhor ou pior no nível de tratam ento senhorialno processo  da extração do sobretrabalho do escravo. O que se devedestacar é que o escravo  é um ser estruturalmente al ienado, isto é,ele pode inclusive possuir bens pessoais e até pequenas propriedades,ma s o que ele não possui e não pode possuir enquanto escravo é oseu próprio ser, que é propriedade de um terceiro. Esta condição d ealienação total  da pessoa  do escravo,  ou seja,  a imp ossibilidade d eele possuir o seu próprio  corpo, que funciona  como mercadoria de

um  proprietário estranho, é que configura a essência do sistema es-cravista e não possíveis diferenças no nível de estratificação da pes-soa do escravo dentro desse sistema.

Outro aspecto que queremos destacar no livro é exatamente es-ta posição  um tanto tímida,  e ao mesmo tempo dúbia, sobre a essên-cia das relações de trabalho que se estabeleceram no Brasil durantea  vigência da  escravidão. Diz a  autora que:

as  relações d e produção  não  bastam, pois, para  d e f i n i r  a  escravidão,elas  l i m i t a m  abusivam ente tudo a q u i l o que perm ite situar essa massade   i n d i v í d u o s nã o  obrigatoriamente participante de um modo  d e f i n i d ode produção, m as que, ao contrário, sã o  adstritos a tarefas  e funçõesdas quais depende a própria existência da classe dominante, n u m a in-versão do relacionamento habitual  entre exploradores e explorados.8

Aqui  desejamos tecer alguns comentários de ordem teórica.Acreditamos que a autora, como aliás acontece am iúde entre os nos-sos cientistas sociais, ao procurar situar certas particularidades de co-

. mo o  escravismo moderno manifestou-se no  Brasil, cai no  erro desubstituir o conjunto pelo detalhe. O que é fundamental pelo que ésecundário. N o entanto,  o sistema escravista, como modo d e produ-ção,  é caracterizado, no fundam ental, pelas suas relações de pro du-

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194 O NEGRO VISTO CONTRA  O ESPELHO  DE DOIS ANALISTAS

cão. O caso concreto do Brasil não foge à regra, mas, pdo contrário,a confirma. Sobre a situação de estrutural alienição do escravo  dizMarx:

O trabalho nem  sempre foi  trabalho assalariado, isto é,  trabalho  livre.O  escravo   não vende a sua força d e trabalho  a»  possuidor  de  escra-

vos, assim como o boi não vende o produto do seu trabalho a o campo-nês. O escravo é  vendido, com sua força de  trabalho, de uma  v ez parasempre  a seu proprietário.  É uma mercadoria que  pode passar das  mãosde um  proprietário para as de outro.  Ele  mesmo éuma mercadoria, masa  sua  força de  trabalho não é sua   mercadoria.'

Desta forma, as tarefas e funções que a autora vê como modifi-cadoras do conceito fundamental  de escravo como coisa surge da pers-pectiva de que a simples diversificação da divisão do trabalho dentroda  estrutura escravista, divisão  que se verifica apenas internamenteno espaço social da classe escrava, possa  modificar, no fundamental,a essência da s relações entre senhor e escravo. O fato  de que, dentrodesta estrutura alienada e alienadora, o escravo ainda conserve os ele-mentos humanos  do seu  ser, embora social  e  economicamente seja

tido como coisa, não nega o que dissemos acima. Pelo contrário, con-cordamos com os termos em que a autora desenvolve em seguida oassunto, mostrando as vertentes psicológicas  dessa preservação. Istocomprova que, mesmo socialmente alienado,  o escravo ainda tinhacondições de reencontrar a sua humanidade existencial como ser, semo que ele deixaria de participar do processo  de mudança social,  detomar consciência da sua situação e contra el a lutar. E a história, den-tro da estrutura escravista, não teria mais dinâmica, sem sua partici-pação. O que não se pode negar  (ao concordar  com isto) é que, defato, as relações de produção determinam, no fundamental, as rela-ções  de trabalho  e propriedade,  as relações sociais básicas entre asclasses, grupos e indivíduos, isto é, no caso em questão, as relaçõesentre senhores  e escravos.

Neste sentido, no sistema capitalista há, também, no seio da clas-se operária, de forma mais complexa e diferenciada, essa divisão dotrabalho entre os seus membros. Não é, porém, essa diversificaçãoque caracteriza o sistema capitalista,  o modo de produção capitalis-ta, mas aquilo que lhe é fundamental, isto é, o trabalhador como do-no de uma  mercadoria  (a sua  força  de trabalho)  que  é vendida  aocapitalista, detentor dos meios de produção e do capital. A mobilida-de social do escravo (com as exceções óbvias de quando ele compra-va alforria ou ela lhe era concedida pelo senhor) somente funcionava

DA DIVISÃO  APAIXONAQA À RIGIDEZ CIENTIFICISTA  195

dentro do espaço social escravo. A sociedade escravista,  uma socie-dade de classes fechadas, não permitia que houvesse a  possibilidadede que essa mobilidade fosse além da  fronteira estabelecida pela rigi-dez do sistema.

É  exatamente por não  compreender a essência sociológica des-

sa  dicotomia rígida que a autora  afirma  que:Os problemas  e tensões se apresentam no interior do mundo dos es-cravos pelo menos com a mesma intensidade que  entre os senhores.10

Não sabemos em quais fontes a autora se apoiou para fazer talafirmação. A nós,  no entanto,  nos parece uma afirmativa temeráriae sem nenhum apoio, pelo menos do nosso conhecimento, na pesqui-sa empírica.  Tal afirmativa nivela, teoricamente, todos  os níveis decontradições  do sistema escravista, equiparando aquela que era fun-damental (existente entre senhores e escravos) às possíveis divergên-cias ocasionais existentes entre os diversos estratos dos negros escravosou aquelas q ue poderiam surgir entre os diversos segmentos d a classesenhorial.

3. Da visão apaixonada  Se o primeiro livro que comenta-à rigidez CÍentif icista  mós pode ser considerado obra de

paixão e ciência, o de Ciro Flama-rion Cardoso  é aquilo  que se pode chamar u m  trabalho elaboradode acordo  com uma objetividade  científica  quase perfeita. Segueaquela postura neopositivista,  a qual coloca  o  cientista social equi-distante,  frio e teoricamente neutro em face d o fato, problema ou pro-cesso  observado. Armado de  vasto fichário bibliográfico, sabendomanipulá-lo c om maestria, realiza um trabalho erudito dentro daquiloque  se poderia chamar de erudição académica. Neste particular a suaobra é perfeita. Ele poderia colocar como epígrafe a mesma frase deMax Weber segundo a qual "a ciência é, atualmente, uma 'vocação'alicerçada na  especialização e posta a serviço de uma tomada de cons-ciência  de nós mesmos e do conhecimento d as relações  objetivas".

O  autor procura estudar em detalhes, embora  o livro  seja  desíntese, a escravidão na  área denominada  Afro-América,  ou seja, aregião do Caribe, boa parte do Brasil, porções relativamente reduzi-das da América espanhola (costa do Peru, partes do que são hoje Ve-nezuela e Colômbia)  e sul dos Estados Unidos. Vê-se, portanto, q ue

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196 O  NEGRO VISTO CONTRA O ESPELHO  DE POIS  ANALISTA

há  u m a abrangência muito grande na temática paraque  ele a desen-volva em apenas  l J O páginas  de texto, o que  somente foi possível pe-lo grande domínio que possui do assunto e , a o mesmo  ternpo,  um adidática respeitável.

Logo  no início  o autor, procurando resguardar a  sua  posiçãorigorosamente científica e objetiva, cria   dúvidas quanto ao critériode alguns trabalhos surgidos recentemente sobre a escravidão.  Para

ele, esses traba lhos são  excessivamente ma rcados por ideologias con-flitantes:  'etnonacionalismo', marxismo de diversa coloração, negri-tude,  black power".

Antes disso, convém notar, o autor cham a a atenção para aque-les interpretadores convencionais  da  escravidão que

consciente  ou  inconscientemente, assumiam  o  ponto d e  vista  dos   ad-ministradores   e dos   senhores  d e escravos. Ainda  em  1968, um   histo-riador   da   colonização francesa afirmava   que o  governador  MauriceCointet "teve dificuldade   e  muito mérito em  voltar a  prender à  terra,em  1794, os  ex-escravos  da  Guiana Francesa, libertados   pela Conven-ção em  1794, submeteu-os  de  novo  aos  seus  senhores, qu e  receberamde  volta "o direito de infligir-lhes torme ntos fí sicos (Devèse, p. 68-9.)

Invocando, em seguida, o apelo de R. Hofstadlter para que aescravidão  fosse escrita, em grande pa rte do ponto de vista do escra-vo, reporta-se ao perigo de distorção e exagero da queles que se colo-cam nesta posição e afirma:

L.  Manigat (p.  420-38) mostrou, po r exemplo, que  quase todas  as  análi-se s disponíveis sobre a revolução do  Haiti estão  excessivamente mar-cadas por ideologias conflitantes: "etnonacionalismo", marxismo dediversa coloração, negritude, b lack power . N o  Brasil  nã o  es tarão cer-tos   autores incorrendo  em  alguns exces sos interpretativos ufanistassemelhantes  aos do já clássico escritor d e  T rinidad   e Tobago  C. L. R.James (The Black Jacobins), em   livros sobre  o s  quilombos  e a s   revol-tas   negras?  12

É evidente que, ao se fazer  uma revisão da história social daescravidão onde se encontram fortes barreiras ideológicas conserva-doras, é possível que se pratiquem alguns excessos que surgem exa ta-mente da impossibilidade de o cientista social conseguir dados  fatuaissuficientes  que o supram de informações compactas capazes de de-monstrar   o  sentido geral e progressivo do  processo e a sua essênciasociológica. Esses excessos são, por ém , sup ridos à medida que as áreasde  informação sobre a escravidão  ficam  franqueadas. Isto é, aquiloque  poderia ser classificado de excesso ufanista nada mais é do que

a certeza do sentido geral do p rocesso e da falta de detalhes secundá-rios. Neste contexto eu chamaria a isto mais  imaginação sociológicacomo quer W . Mills e não ufanismo. Não há, ao nosso ver, um mo-vimento pendular entre a prim eira tendência tradicional  e a segundarevisionista   mas uma  espiral  rumo  ao  conhecimento  em  favor  dasegunda.

Esta posição excessivamente cautelosa do autor, p or isto, paranós, nada mais é do que um reflexo em diagonal da influência da bi-bliografia tradicional sobre o assunto e que visa negar, basicamente,a importância das lutas dos escravos (no Brasil e alhures) no proces-so de transformação do escravismo. Porque o que está acontecendoé exatam ente o contrário. À m edida que os historiadores e os cientis-tas sociais e pesquisado res militantes aprofund am -se em pesquisas ori-ginais constatam a participação, em nível cada vez maior,  do escravonegro nesse processo dinâmico. Parece-nos que o desconhecimentoou à negação dessas lutas está sendo destruído, gradativam ente, porum a reavaliação q ue substitui a antiga ideologia d o escravo dócil po rum a  realidade oposta.  É a realidade objetiva destruindo  a  mitifica-

ção ideológica das classes dominantes.As  pesquisas de um Décio Freitas sobre Palmares,  de JosemirCamilo de Melo, em Pernambuco (século XIX), de Vicente Salles,no Amazonas,  de Pedro  Tomás Pedreira,  na Bahia,  de AriosvaldoFigueiredo, em Sergipe, de W alter Piazza, em Santa Catarina, de Wal-demar de Alm eida Barbosa, em Minas Gerais e de Mário Maestri Fi-lho, no Rio Grande do Sul, vêm comprovando que, ao invés de umaposição ufa nista desses historiadores, a ntropólogos  e sociólogos,  oque  está havend o é uma inversão total do processo interpretativo dahistória social d o Brasil, apagado por uma geração de estudiosos, elessim  ufanistas, que desejavam apresentar (contra os fatos) a nossa es-cravidão como imune às contradições  e à violência, naturais ao siste-ma escravista.

Para simplificar, na esteira do nosso raciocínio, queremos lem-brar q ue outro aspecto, também colocado  sob reserva pelo a utor d olivro, está també m sendo reestudado de um ângulo qu e esclarece um asérie de  faces  do prisma. Referimo-nos à repercussão da revoluçãodo Haiti entre os escravos negros.  13

Quem  compulsa documentos de arquivo no Brasil vê sempre,como um referencial permanente, quer da parte das autoridades daColónia, quer d a Metrópole,  o perigo  que representou essa revolu-ção, os cuidados necessários para que ela não fosse divulgada, medi-

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198 O NEGRO   VISTO CONTRA O ESPELHO  DE  DOIS ANALISTAS

das tomadas diante do perigo e recomendações sobre estratégias ideo-lógicas  e repressivas para bloquear essa ressonância. Ma s além dessadocumentação  de arquivo  (no  folclore nordestino h á também remi-niscências dessa memória),  recentes  pesquisas  do professor  Luiz  R.B. Mott demonstram como a revolução haitiana  teve repercussão mui-to mais relevante entre os escravos brasileiros do que supunha m atéagora o s  historiadores tradicionais. Mostra como,  era 1805  (um anoapenas,  portanto, após  a  proclamação  da independência do  Haiti),no Rio de  Janeiro

o Ouvidor do Crime mandara arrancar dos peitos de alguns cabras ecrioulos forros o  retraio   de  Dessalines Imperador dos Negros da Ilhade São Domingos. E o que é  mais notável era que  estes mesmos  ne -gros estavam empregados na s tropas da  Milícia do Rio de Janeiro, on-de   manobravam habilmente a arti lharia.

Ainda, segundo  o  mesmo autor,

Em  1808, na sua famosa "Análise sobre a justiça do com ércio do res-gate da costa da África", o bispo Azeredo  Coutinho apontava os "no-vos  fi lósofos" que se diziam defensores da humanidade oprimida, comoos culpados não só pela Revolução Francesa, mas também pela carni-f ic ina da Ilha de São Domingos.  Este temor das c lasses dominantes

fica explícito em docume nto secreto escrito por um agente francês aD.  João V I, redigido en tre 1823  e 1824, no  qual o seu autor af i rma qu e"deve-se demonstrar a s  desgraças a que certamente  se expõem  as  pes-soas brancas, principalmente brasileiros brancos, não se opondo à per-seguição  e aos massacres que sofrem os portugueses europeus, poisembora havendo aparentemente  n o Brasil s ó dois partidos (o  l iberal eo conservador), existe também um terceiro: o p artido dos negros e daspessoas de cor, que é o mais perigoso pois trata-se do maior numeri-camente falando. T al  partido v ê co m prazer e com  esperanças cr imino-sas as  dissenções existentes en tre os brancos, os quais, dia a dia, têmseu número reduzido.Todos os brasileiros, e sobretudo os brancos, não percebem, suficien-temente, que é tempo de se fechar a porta aos debates políticos, àsdiscussões constitucionais? Se se continua a falar dos direitos dos ho-mens, de igualdade, terminar-se-á por pronunciar a p alavra fatal: l iber-

dade, palavra terrível e que tem muito mais forç a num país de escravosdo que em qualquer outra parte. Então, toda a revolução acabará noBrasil com o levante dos escravos que, quebrando algumas algemas,incendiarão as cidades, os campos e as plantações, massacrando osbrancos e fazendo deste magnífico império do Brasil uma deplorávelréplica   da   bri lhante colónia   de São Domingos .14

Se este era o temor das classes dominantes escravistas e de suasautoridades, outro era o comp ortamento  do s negros e pardos  os quais,

DA VISÃO APAIXONADA À  RIGIDEZ  CIENTIFICISTA  199

sem  temerem represálias, organizavam-se para lutar contra a escravi-dão.  Na vila de Laranjeiras,  Sergipe, os negros colocaram em todaa cidade, pregados em muros, pasquins também nas portas e locaismais destacados, colados c om cera de abelha, com os seguintes dize-res:  "Vivam  mulatos  e  negros, morram  os  marotos  e caiados".

Ainda em Sergipe, documento enviado ao Governador  das Ar-ma s descreve:

Uma pequena faísca faz um grande ncê ndio. O incêndio já foi lavrado.No jantar que deram nas Laranjeiras os "Mata Caiados" se fizeram trêssaúdes: a  primeira à  extinção  de  tudo quanto é d o  Reino, a quem cha-mam de  marotos ; a segunda a tudo quanto é branco no Brasil, a quemchamam de   caiporas ; a terceira à igualdade de  sangue  e de  direitos(...) Um m enino R... irmão de outro bom menino, fez mu itos elogios aoRei do Haiti, e porque não o entend iam, falou ma is claro: São Domin-gos,  o   Grande Sã o Domingos.ls

Outro documento importante, também transcrito  po r  Luiz R .B. Mott,  refere-se ao temor das autoridades de urri possível contágiodireto da revolução haitiana no Brasil. Trata-se de um ofício do De-sembargador Encarregado da Polícia da Corte do Rio de Janeiro, Pe-dr o António Pereira B arreto, dirigido ao ministro da Justiça. Inform a

o policial que os negros de São D omingos desembarcaram no BrasilDiz  ele:

Relativo aos pretos da Ilha de São Domingos que aqui existem , infor-mo que ordenei ao  Comandante da Polícia a sua apreensão. Conseguiu-se prender Pedro  Valentim, que residia na Hospedaria das Três Ban-deiras. Tenho continuado  na  diligência  de  apreender o outro, que  constaque é clérigo, e fui informado que foi visto ontem na rua dos Tanoei-ros, em meio de muitos pretos, não sendo porém encontrado quandofo i  mandado  prender.16

Em  outro trecho do livro que estamos comentando, o autor, sur-preendentemente, generaliza  de forma peremptória  um problema du -vidoso em relação às suas conclusões enfáticas. É quand o a firma que

na  sociedade hispano-am ericana eram os  índios os  elementos que  ocu-pavam o setor mais explorado e humilhado da e strutura social: em com-paração com eles, os escravos e l ibertos de origem africana estavamem   situação melhor. Acontece, porém, que recentes pesquisas em torno do assunto

não confirma m de forma tão categórica e genérica esta afirm ativa doautor. 18 Pelo menos no Peru  as pesquisas de Emílio Ha rth-Terré pro-va m  exa tamente o contrário. Segundo essas pesquisas, índios perua -

200 O NE GR O  VISTO  C O NT R A O  E SPE L H O D E  DOIS ANALISTAS DA   VISÃO APAI X O NADA  A R I GI DE Z C I E NT I FI C I ST A

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nos dedicaram-se a trafic ar escravos negros e, mais ainda, a comprá-los  para trabalharem  em seus teares e em outros géneros d e ativida-de.   Suas pesquisas demonstram, por outro lado, q ue o tráfico de es-cravos negros pelos índios peruanos  (inclusive  po r comunidadesindígenas)  em três séculos de vice-reinado fica  fartamente evidencia-do. A extensão desse tráfico e dessa apropriação de negros por partede  índios  que se situavam,  ao  contrário do que  afirma  o autor,  emestratos superiores na sociedade do Peru colonial estásendo   verifica-

da. Essas pesquisas, ainda pouco divulgadas, marcam, no Peru, umaabertura nova e que segue de perto a posição de brasileiros que pro-curam reformular a história d o escravismo,  fugindo  às pré-noções deuma ideologia paternalista e sedutoramente consagrada.

Um a série de outras questões levantadas no livro nós gostaría-mos de debater m ais profundamente, o que fica p ara outro local. A l-gumas afirmações categóricas, como a insuficiência da s fontes em quese basearam Marx e W eber, a correção feita a essa insuficiência  pelacontribuição  que  estudiosos modernos deram no sentido de corri-gir ou complem entar esses autores deveriam ser explicitadas no tex-to, o que surpreendentemente não acontece.

Ainda questionaria o radicalismo crítico  em relação à obra d e

Eric  W il lems,  que me  pareceu exagerada  e ao  mesmo tempo não-sustentável no seu conjunto. D epois d e refutar  categoricamente os da-do s estatísticos ap resentados p or W illems no seu livro clássico,  afir-ma que os recursos estreitos apresentados por W illems para de-monstrar a s conexões entre capitalismo e abolição foram demolidossem  apelação". Volta-se, em seguida, para a obra de lanni, concor-dando com a sua tese de que "a  vinculação capitalismo/abolição  nãodeve  ser limitada ao  influxo  do capitalismo metropolitano: precisaigualmente levar em conta os elementos internos"'. Procura argumen-tar sobre a influência da revolução do Ha iti no Caribe, que ninguémpode negar, e mesm o no sul dos Estados U nidos, como sustenta Ge-novese,  afirmando que:

É  completamente  falso que a  ideologia dos  líderes daquela revoluçãotenha tido a in f luênc ia que lhe empresta Genovese. Sem esquecer queo tipo de situação que  instalaram  no Haiti  durante  os  seus governosrepresentava para os  negros algo quase equivalente  à própr ia escrav i-dão  ( longas horas de trabalho diário, vinculação forçosa a uma planta-

tion específica, castigos  físicos).  Não vemos  por que os  escravos doresto do continente,  mesmo  se  in formados  das ideias de Toussaint  eseus sucessores  (o que é duvidoso),  se sentiriam compelidos a  lutar

pelos planos, como os   daqueles líderes, e m  lugar  de o  fazer, p or  exem-plo, pela extensão da pequena economia cam ponesa

O que acho que devemos levar em conta na  reflexão de um pro-cesso  tão complexo como este é que os escravos negros,  ao  saberemda  revolução haitiana, nã o raciocinavam em termos de projetos políti-cos e/ou económicos concretos, mas a viam como uma  ideologia  delibertação o u utopia d e  libertação, isto é , mesmo não  tendo conheci-mento do seu cotidiano positivo ou negativo, incorporavam ao seu uni-

verso  essa revolução sem maior análise, dando-a como  o  detonadorda s suas forças para libertá-los da escravidão, sem compará-la a possí-veis  projetos económicos.  Ver essa influência através de uma raciona-lidade é não compreender o seu significado social. Seria desejar -se umaracionalização  weberiana  no raciocínio radical do escravo.

Por outro lado, parece-me que o fundamental na obra de EricW illems não é a análise da conexão capitalismo/abolição, mas o con-ceito d e tráfico triangular. Mesmo com as possíveis deficiências esta-tísticas o fato é inquestionáv el. Aliás, o autor, em outro local, escreveuco m justeza sobre o assunto, afirm ando:

A principal obra de E. Willems, Capitalisme et esclavage publicada em1943, constitui um trabalho  pioneiro e uma tentat iva  de  desmist i f ica-

ção.  O  autor procura explicar, mais do que o  func ionamento  do  siste-ma  escravista  nas colónias —  aspecto do problema que  também  nãodeixa de ser analisado  —,  o  nexo ex is tente entre   a  escravidão,  o  t ráf i -co  negreiro  e o conjunto da  economia  inglesa:  para  isto, estuda seupapel  na  formação  do capital que financiou a revolução  industrial eo papel que cumpr iu o capitalismo industrial constituído na  posteriordestruição  desse mesmo sistema  escravista.  No decorrer  dos  capítu-los, assistimos às  or igens  da  escravidão negra no  Caribe,  ao  desen-volv imento  do comérc io triangular, ao entre laçamento  dos  interessesantilhanos e britânicos ao  esplendor  de Bristol, de Liverpool,  de Glas-gow, baseado  no tráfico  negreiro, à acumulação primitiva do capital,premissa  da revolução  industrial e, tudo isto com uma  documentaçãoconsiderável,  bastante detalhada e precisa.  (...) Foi considerável  a im-portância  deste livro para a desm ist i f icação  da  historiografia  colonialtradicional,  na  medida em que destrói o s   velhos  mitos e  combate  es -

pecia lmente  a   deformação  qu e  cons is te  em  cons iderar  que a  escravi-dão  surgiu  do  racismo  ou de incapacidade do  homem branco paratrabalhar   sob o sol tropica l.20

Em   outro tr echo, C iro Flama rion C ardoso escreve conclusi-vamente:

Wil lems  foi acusado de postular  explicações economicistas . É pos-sível que se  tenha equivocado  em algumas expl icações,  mas não há

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202   O  NE G RO   VISTO  CONTRA O  ESPELHO DE DOIS ANALISTAS NOTAS E REFERÊNCIAS  B I B L I O G R Á F IC A S  203

grande dificuldade em  desculpá-lo se  levarmos em  conta o  caráter pio-neiro de sua obra.21

Com o que  estamos plenamente  de  acordo.

Notas e referências bibliográficas

1 Ver por  exemplo:  FIGUEIREDO, Napoleão.  Presença  africana  na  Amazó-nia.  Afro-Ásia,  (12): 145 et seq., 1976.

2 Devemos destacar em particular os trabalhos de Luiz Mott,  Yeda  Pessoade  Castro, W aldir Freitas d e Oliveira,  J. J.  Reis, Vivaldo  da Costa Lima,Pierre Verger  e da própria  Kátia de  Queiroz Matoso.

3 BORGES PEREIRA,  João Batista.  Estudos antropológicos  da s populaçõesnegras na Universidade de São Paulo. Separata da  Revista de Antropolo-gia,  São Paulo, (24): 63, 1981. Afirma Borges Pereira  no  seu texto: as-sim,  pode-se  afirmar que, atualmente, estes estudos estão sendo desen-volvidos sistematicamente na área da antropologia e episodicamente na desociologia, ao passo que na área de ciência política  nenhum  trabalho sepropõe a  explorar  o tema". Deste programa  da USP já  foram editadosaté agora (1986) os  seguintes volumes pela Faculdade de Filosofia, Letrase Ciências Humanas: Renato S. Queiroz:   Caipiras  negros no  vale  do Ri-

beira:  u m estudo d e antropologia económica,  1983; Carlos M. H. Serra-no :  Os   senhores  da   terra  e os  homens  do mar  e  Antropologia  po -lítica   de um  reino africano,  1983; Irene Maria F. Barbosa: Socializaçãoe re lações rac iais: um estudo de famí l ia   negra  em Campinas, 1983; Solan-ge M. Couceiro: O negro na televisão de São Paulo: um  estudo de relaçõesraciais,  1983; Yeda Marques Britto:  Samba na  cidade  de São Paulo(1900-1930):  um   exercício  de resistência cultural,  1986 e Ana  Lúcia  E. F.Valente:   Polí t ica e relações rac iais — os negros e as ele ições paulistas de1982.

4 Por outro lado, uma produção não-acadêmica vem questionando do pon-to de vista político a situação do negro, como os trabalhos de Abdias doNascimento,  Martiniano J. da Silva,  Jacob  Gorender  e Luiz Luna  paraexemplificar alguns.

5 MATOSO,  Kát ia d e Queiroz. Se r escravo no Brasi l . S ão Paulo, Brasilien-

se,  1982.6  MARX,  Karl .  Manuscri tos económicos  e  filosóficos.  São Paulo,  Abril,1978.  p. 41.

7  MATOSO,  K átia de Queiroz. Op. cit., p. 48.8 Idem, ibidem, p. 41.9 MARX, Karl. Trabalho assalariado  e capital. In: & Engels, F .  Obras

escolhidas.  São Paulo,  Alfa Õmega, s.d.  v. l, p. 63.10 MATOSO,  Kátia de Queiroz. Op. cit.

11  CARDOSO,  Ciro Flamarion  S.  A  Áfro-América:  a  escravidão n o  NovoMundo.  São Paulo,  Brasiliense,  1982.

12 Idem,  ibidem.13 Para se ter uma visão  da  conexão  da s lutas do s  escravos brasileiros com

as de outros países v er MOURA,  Clóvis. Q ui lombos: resistência ao  escra-vismo. São Paulo, Ática,  1987.

14 MOTT, Luiz R. B. A  revolução haitiana  e o Brasil. Mensário d o ArquivoNacional,  Rio de Janeiro,  13 (1).

15

 MOTT,  Luiz R. B. Loc. cit.16 Idem,  ibidem.17 CARDOSO,  Ciro Flamarion.  Op. cit.18 Estamos nos referindo ao trabalho de Emílio  Hardt-Terré,  especialmente

o seu livo Negros e índ ios —  un e stamento soc ial ignorado de i Peru colo-nial . Lima, Editorial Juan Mejía Baça, 1973. Suas pesquisas no particularcomeçaram bem antes, tendo-se notícia de uma intitulada "La Ciudadelade  Huadca", publicada  no jornal  El  Comercio,  datada  de  1960.  De ummodo geral, porém, evidencia-se hoje que a situação do escravo negro, pas-sada a fase genocídica da ocupação e conquista,  era inferior à do índio.Basta que se vejam as datas da abolição da escravidão indígena e negraem  toda a Am érica Latina.  A primeira precedeu sempre à segunda. Quan-to à América  do Norte, Eugene Genovese escreve:  os  contatos entre ne-gros e índios  incluíam  a posse de escravos,  por estes últimos,  bem  comoa m iscigenação. Dur ante as décadas de 1820 e 1830 os índios figurava m

entre  os m aiores senhores  de  escravos  da  Geórgia  e, subsequentemente,Greenwood Leflore,  o  chefe Choctaw mestiço  de branco,  notabilizou-secomo um dos m aiores fazendeiros do Mississipi, com quatrocentos escra-vos. John R oss, o famoso chefe C herokee, possuía cerca de cem escravosem 1860. Por volta dessa data os  escravos negros representavam  12,5%da população do território indígena, apesar da m aioria viver em pequenasfazendas. Alguns índios, sobretud o os Chicasaw, passavam por senhoresimpiedosos, mas a maior parte deles gozava entre brancos e negros de umareputação  de generosidade". (GENOVESE, Eugene.  Da  rebelião à revolu-ção.  São  Paulo, Global, 1983.)

19 CARDOSO,  Ciro Flamarion. Op. cit.20 Idem,  O  modo  de  produção colonial  na  América.  In:  SANTIAGO,  Té o

Araújo  (org.).  América colonial . Rio de Janeiro, Palias,  1975.  p.  98-9.21  CARDOSO,  Ciro Flamarion. Loc. cit.

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IIIA   imprensa negra

em   São Paulo

1. Razões da  A  chamada  imprensa negra  de Sãoexistência  de  Paulo, pouco conhecida e divulgada,uma  imprensa negra  sendo apenas relacionada em circuitos

universitários abarca um período q uevai   de 1915, quando surge O Menel ick , até 1963. Essa extensão deatividades  no tempo,  bem como o papel social  e ideológico que de-sempenhou  na com unidade negra da época em que existiu, vem colo-car em evidência e discussão a sua importância e, ao m esmo tempo,indagar por que em um país que se diz uma democracia racial há ne-cessidade de uma imprensa alternativa capaz de refletir  especificamenteos anseios e reivindicações, mas, acima de tudo, o ethos do universodessa comunidade não  apenas oprimida economicamente,  ma s dis-criminada pela sua marca de cor que os setores deliberantes da socie-

dade achavam   ser estigma  e  elemento inferiorizador  para  quem aportasse.Pouco conhecida e não incluída nos programas das escolas de

comunicação  como um ca pítulo a ser estudado e interpretado  1 a im-prensa negra ficou  na penumbra, como se fosse pouco significativa.A própria História da imprensa no Brasil , de Nelson W erneck Sodré,não a registra. 2 A sua importância foi subestimada e desgastada poruma  visão branca da imprensa,  que  marginalizou  os  jornais negros

RAZÕES DAEXISTÊNCIA DE UMA  IMPRENSA NEGRA  205

impressos  na época. Assim como o negro fo i  marginalizado social,económica e psicologicamente, também foi marginalizado cultural-mente, sendo, po r isso, toda a sua p rodução cultural considerada sub-produto de uma etnia inferior ou inferiorizada.

Um a imprensa que tem circulação restrita e penetração limita-da à comunidade a que se destina irá exercer um a função social, p olí-tica  e  catártica  durante  a sua  trajetória, mudando  de  conotaçãoideológica  com a  passagem  do  tempo,  conforme veremos oportu-namente.

Durante todo o tempo em que a imprensa negra circulou, atra-vés de  jornais  de  pequena tiragem e duração precária, as atividadesda com unidade negra de São Paulo ali se refletiam, dando-nos,  porisso, um painel ideológico e existencial do universo do negro. Nelase encontram estilos de comp ortamento, anseios, reivindicações e pro-testos, esperanças  e frustrações d os negros paulistas. É uma trajetó-ria  longa, dolorosa m uitas vezes, a desses jornais  que praticamentenão tinham recursos para se manterem p or m uito tempo, mas sem-pre exprimindo, de uma form a ou de outra, o universo da comunida-de. Lá estão as festas, aniversários, acontecimentos sociais; lá está

o intelectual negro faz endo poesias; lá estão os protestos contra o pre-conceito de cor e a marginalização do negro. Nessa trajetória  refletem-se as inquietações da com unidade e lá se encontram os conselhos pa-ra o negro ascender social  e culturalmente, procurando igualar-se a obranco.

A preocupação  com a educação é uma constante. O negro deveeducar-se pa ra "subir n a vida", conseguir demonstrar que ele tam-bém  pode chegar aos mesm os níveis do branco através do aprim ora-mento educacional. Para isso, deve deixar os vícios como o alcoolismo,a b oémia, deve abster-se de praticar arruaças em bailes, deve ser ummodelo d e cidadão. Em quase todas a s publicações é visível a preo-cupação com uma ética puritana capaz de retirar  o negro da sua si-tuação de m arginalização. Daí haver, em muitos deles, a condenação

aos excessos em festas de negros que eram tidas pelos brancos comocentro de corrupção e de desordens. O s jornais servem, portanto,  pa -ra indicar, a través de regras morais, o com portam ento que deveriamseguir os membros da comunidade negra.

Evidentemente que há variações de ideologia ou de posição emface d a sociedade global. Levando-se em conta que o primeiro jor-nal,  O Menel ick,  é de 1915 e o último,  Correio d'Ébano, é de 1963,não é para  ficarmos  surpreendidos com as diferenças do enfoque de

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206 A IMPRENSA NEGRA EM SÃO  PAULO

detalhes ou mesmo discordâncias  de posições ideológicas. Mas o nú-cleo básico d o pensamento é o mesmo: a posição d o negro diante  domundo d os brancos. Algumas vezes,  eles assumem un  caráter reivin-dicativo, outras vezes,  um conteúdo p edagógico e moral, ma s sem-pre procurando a integração do negro.

2. Uma  trajetória  Roger Bastide, que estudou a imprensa ne-de  heroísmo  gra em São Paulo,  fez a sua primeira pe-

riodização. Para ele,  a  fase  inicial vai de1915,  com O Me nel ick,  até  1930. A  segunda começa em  1930 e vaiaté   1937,  ano-limite da sua pesquisa. Para  ele,  o segundo períodocaracteriza-se pela passagem   "da  reivindicação jornalística à reivin-dicação  política". 3 N o final do segundo período, de fato, o jornalA Voz da Raça assume posição política tra nsparente, pois represen-tava o pensamento da F rente Negra Brasileira que reivindicou e con-seguiu  ser  registrada como partido.

Da p rimeira fase, o mais representativo foi O  Clarim da Alvo-

rada  (1924) que desempenhou  forte  e  expressiva influência  no  meionegro. Fundado por José Correia Leite e Jayme Aguiar,  ficou  sendoo mais representativo jornal negro até o a parecimento de A Voz daRaça. Sobre a sua  fundação assim se  expressou Jayme Aguiar,  quefaleceu  pouco tempo depois desta entrevista:

Os   negros tinham jornais das sociedades dançantes e esses jornaisdas sociedades dançantes só tratavam dos seus bailes, dos seus as-sociados, os dlsse-que-disse, as críticas  adequadas como faziam  osjornais dos brancos que existiam naquela época; jornal das costurei-ras, jornal das moças que trabalhavam n as fábricas etc. O negro fica-va de lado porque ele não tinha meios de comunicação. Então esse meiode  comunicação foi efetuado através dos jornais negros da época. Sãoesses jornais que nós conhecem os e tratavam do m ovimento associa-tivo das sociedades dançantes. O  Xauter O Bandeirante O Menel ickO Alfinete O  Tamoio  e outros mais. O  Menelick  foi um dos primeirosjornais associativos q ue  surgiram em São Paulo, criado pelo poeta ne-gro Deocleciano Nascimento, falecido mais ou menos há  oito  anosatrás*. Esse  O Menelick por causa da época da guerra da Abissíniacom a Itália, teve  repercussão mu ito grande dentro de São Paulo. To-do  negro fazia questão  de ler O  Menelick.  E  t inha também   O  Alfinete.Pelo título, os senhores á estão vendo: cutucava os ne grinhos e as ne-grinhas... Depois, então, é que surgiram os negros que queriam  coisade  mais elevação, de  cultura,  de   instrução e  compreensão para o ne-

* O depoimento f oi  gravado em 15 de junho  de 1975.

UMA  TRAJETÓRIA DE HEROÍSMO  207

gro. Então surgiram os primeiros jornais dos negros dentro de um es-pírito de atividade profund a. M odéstia à parte, eu e o Correia Leite, a6 de janeiro de   1924, fundamos  O  Clarim.

O Clarim em  primeiro lugar,  chamava-se  simplesmente  O Clar im. Ma sexistia,  como existe ainda hoje em Matão,  O Clarim o grande jornalespírita. A redação de  O Clarim era a minha casa, na rua Ruy Barbosa.Nós publicávamos o jornal com o  pseudónimo  de Jin de Araguary e Lei-te. Foi um aesp écie de hieróglifo que formamo s, para não aparecermoscomo jornalistas. Depois, este jornal foi tomando projeção. Eu devo —abrindo u m  parêntese — , de  minha  parte, um a grande influência  na   un -dação do jornal a um a migo já falecido e que na época era estudantede  Direito, José de Molina Quartin Filho, que tinha o pseudónimo deJoaquim  Três. E le   trabalhava  em  O Correio   Paulistano  e  fazia crónicacarnavalesca  na época,  juntamente  com Menotti dei  Picchia que, naépoca,  fazia  crónicas  com o pseudónimo de  Helius.Eu  e o Quartin  trabalhávamos juntos numa mesma repartição, entãoele me disse:  Jaime, os negros precisam ter um outro meio de viver".Eu  disse: "Compreendo".  "E por que você não faz um  jornal?"  E  foi as-sim que eu procurei o meu amigo José Correia Leite e nós  começamosa  fazer O Clarim da  A lvorada. (...) Havia também  A  Princesa  do   Norte.A Princesa do Norte  era um jornal feito com muito carinho, com mui-tas dificuldades, por um preto que era cozinheiro do antigo Instituto

Disciplinar, onde é o

 Pró-Menor. E

 esse cozinheiro ch amava-se Antó-

nio dos Santos e tinha um pseudónimo que os senhores vão rir: Tio Uru-tu. Era um preto gordo, cabelos grandes, um boné ao lado, morava namesma rua em que eu  morava. Rua Ruy Barbosa, un s dois quarteirõesapós  a  minha casa. Todas  a s  manhãs e le  passava com a sua  cesta,fazia as compras que ia levar para o Ins tituto D isciplinar. Um dia eleme  disse:  O senhor já leu o jornal? e me mostrou A Princesa do Nor-te.  E u gostei do  jornalzinho. V i aquelas críticas e vi uns  versos. E  comotodos nós brasileiros, não há quem não goste de música, não há quemnão goste de poesia, começa mos a publicar algum a coisa no jornal doTio Urutu. Depois, com o aparecime nto do nosso orna l, Tio Urutu con-tinuou com o seu  A   Princesa  d o  Nor te  e  depois  acabou   o seu bairroe  acabou o seu jornal; surgiu  O  Clarim  da  A lvorada  que, n o início, er aum  jornal de cultura, instru tivo etc., e apareceram os prim eiros l itera-to s  negros dentro   do   nosso meio.4

Como vemos por este longo e ilustrativo depoimento de Jaym eAguiar,  O Clarim d a Alvorada  surgiu  da  necessidade imperiosa  deos negros possuírem um órgão mais abrangente e que substituísse aque-les microjornais  que refletiam os interesses e opiniões dos pequenosgrupos sociais negros que se aglutinavam em  associações recreativasou esportivas.

Ainda segundo a periodização d e Roger Bastide, na segunda faseo jornal  que se destaca é A Voz da Raça, que já representa uma to-mada de posição ideológica do negro em nível de uma opção   poli-

208 A IMPRENSA NEGRA EM SÃO PAULOUM A TRAJETÓR1A DE HEROÍSMO

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tica, pois er a órgão d a Frente Negra B rasileira,  fundada  em 16 de se-tembro de 1931. A Frente já possuía um a estrutura organizacionalbastante complexa, muito mais do que a quase inexistente dos jor-nais  que a  precederam  e possibilitaram  o seu ap arecimento.

Er a  dirigida por um Grande Conselho, constituído de 20 mem-bros, selecionando-se, dentre eles, o Chefe e o S ecretário. Havia, ain-da, um C onselho auxiliar, for ma do pelos cabos distritais da Capital.Apesar de A Voz da Raça já reivindicar politicamente uma posiçãopara  o negro, ainda perduram , dentro do contexto do protesto, aquelespostulados anteriores de um código ético para o negro, via instruçãoe consciência d e que ele dever ia igualar-se, pela  educação, a o branco.

Nu m a periodização posterior  e mais abrangente, Míriam Nico-lau Ferrara estabelece novos níveis de evolução da   imprensa  negraem   Sã o  Paulo.  Ela  avança  até o ano de 1963. Diz:

Os  jornais d a imprensa  negra, considerados  a  partir de uma amostra,são  descritos  em 3 períodos: No primeiro período (1915/1923), há tenta-tiva d e  integração d o   negro  na  sociedade brasileira  e a   formação  deuma consciência que mais  tarde  irá  ganhar força.Com a fundação  do jornal O Clarim  da Alvorada em 1924, o  segundoperíodo atinge s eu  ápice em   1931  com a organização da   Frente NegraBrasi leira e em  1933 com o jornal . A   Vo z da Raça.  Este período terminacom o  Estado Novo.

O momento das  grandes reivindicações  políticas  marca o terceiro pe-ríodo  (1945/1963),  com e lementos  do grupo negro se filiando a partidospolíticos da época ou se candidatando a  cargos  eletivos.s

Em bora basicamente o núcleo desta periodização esteja embu-tido no de Bastide,  a  autora desdobra a té 1963 o universo estudado.

Miriam Nicolau faz uma revisão na periodização de Bastide por-que, segundo ela,  o  material de que dispomos é mais amplo", apre-sentando um quadro minucioso de praticamente toda a publicaçãodesses  jornais. Seguindo  a  autora citada poderemos apresentar  umpainel de publicações  diacronicamente ordenado desses jornais da se-guinte forma: 1915:  O Me ne l ick;  1916:  A Rua  e O  Xauter;  1918: OAlfinete   e O Bandeirante;  1919: A  Liberdade;  1920: A  Sentinela; 1922:

O  Kosmos;  1923:  O Getul ino;  1924:  O Clarim d a Alvorada  e El ite;1928: Auriverde,  O Patrocínio e Progresso; 1932: Chibata;  1933:  AEvolução  e A Voz da Raça;  1935:  O  Clarim,  O Estímulo,  A  Raçae  Tribuna Negra;  1936: A Alvorada; 1946: Senzala; 1950: Mundo No-vo ;  1954: O Novo Horizonte;  1957: Notícias de Ébano;  1958: O Mu-tirão;  1960:  Hífen  e  Níger;  1961:  Nosso Jornal  e  1963:  Corre iod'Ébano.

Míriam  Nicolau Ferrara  inclui,  ainda, na sua lista, os jornaisUnião, de Curitiba, Qui lombo e Redenção , do Rio de Janeiro,  A Al-vorada, d e Pelotas e  A Voz da Negritude, de Niterói. Evidentementeesta inclusão de jornais negros de outros Estados, p or  fugir  ao univer-so que estamos analisando, não será considerada na interpretação sub-sequente que faremos  do conteúdo e da funcionalidade dos seus textos.Acresce notar que no esquema de periodização de Bastide há a inclu-são  do  Princesa  do Oeste , informação que Miriam Nicolau omite.

Partind o desta listagem, Miriam prop õe o seguinte esquema deperiodização   da  imprensa negra:

1?   período  de   1915  a   1923,2?   período  de  1924   a   1937 e3.° período  de   1945  a 1963.6

Para a interpretação subsequente do material qu e iremos anali-sar, essa periodização servirá como um pólo de apoio metodológico,acrescentando-se, em seguida, que, se atentarmos mais detalhada eanaliticamente, veremos que ela reproduz determinadas etapas da evo-lução política da sociedade brasileira. A primeira   fase  termina em1923, quando a abolição da pequena burguesia radical e militar de-semboca na Coluna Prestes. A segunda abra nge o período que passapela revolução de 1930 até a implantação do Estado Novo, e,  final-mente, a última vai da redemocratização do país, após o fim da Se-gunda Guerra Mundial, às vésperas do golpe militar de 1964.

No entanto, há uma particularidade na imprensa negra: ela nãoreproduz,  na s suas páginas,  a dinâmica dessas etapas  da  sociedadeabrangente. Muito raram ente há referência a esses fatos. Ela é, fun-damentalmente, uma imprensa setorizada ou, como a caracterizaBastide, apoiado nos norte-americanos, uma imprensa adicional. Que-remos dizer,  co m isto,  que os leitores do s jornais  do s  negros, parase informarem d os  acontecimentos nacionais e/ou  internacionais, ti -nham de recorrer à imprensa  branca, ou seja, à denominada grandeimprensa. É um fenóm eno singular, especialmente em São Paulo. Sa-

bemos, por exemplo, que no movim ento de 1932 o povo paulista oupelo menos a  maioria esmagadora  da sua classe média empolgou-secom o cham ado m ovimento de reconstitucionalização do país. O s ne-gros de São Paulo organizaram inclusive uma Legião Negra,  chefia-da por Joaquim G uaraná, segundo informação de Francisco Lucrécio.O seu comandante procurou aliciar negros do interior, objetivandolevá-los a lutar pelo movimento armado  de  1932.  Há  informações,

A  IMPRENSA  NEGRA EM SÃO PAULO DO   NE G RO BE M -CO M P O RTADO  À  DESCOBERTA  DA  RAÇA 211

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embora  não  sendo d e todo confiáveis, de que os componentes dessalegião foram praticamente dizimados, pois  eram destacados para oslocais m ais perigosos dos com bates. Essa p articipaçío dos negros nomovimento de 1932 propiciou, inclusive, uma cisão na Frente NegraBrasileira, pois a  entidade colocou-se em posição de estrita neutrali-dade em relação ao fato.

No entanto, a imprensa negra da época não reproduz o fato,não o enfatiza, não o apoia e, o que é mais relevante, não o registra.É como se o acontecimento não tivesse existido. Esta  posição depequeno universo é uma  constante nesses jornais. A.  sua tónica  é aintegração  do  negro brasileiro (mais negro brasileiro do que  afro-brasileiro) na nossa sociedade como cidadão. E isso  deveria aconte-cer  através da cultura e da educação, das boas m aneiras, do bom com-portamento do negro. No número 2 de O   Alfinete,  podemos ler:

Quem  são os culpados  dessa negra mancha que macula eternamente

a nossa  f ronte?Nós, unicamente nós que v ivemos na mais  vergonhosa ignorância,  nomais  profundo absecamento  (sic) moral, que não  compreendemos  fi-nalmente a angustiosa situação em que  v ivemos.Cultivemos,  extirpemos  o  nosso  analfabetismo e  veremos s e podemos

ou não  imitar os norte-americanos.7

3. Do negro bem-comportado  Em o da a trajetória des-à  descoberta  da  raça sã imprensa há um a cons-

tante,' conforme j á  assi-nalamos: a ascensão do negro deverá realizar-se através do seu apri-moramento   cultural e do seu bom  comportamento social. Para q ueisto aconteça há , sem pre, a recomenda ção de que a família deve edu-car os filhos, especialmente as moças, par a que assim consigam o re-conhecimento social dos brancos. Por outro lado, a educação éconsiderada como uma missão da família. A educação é uma ques-tão privada e somente uma vez, ao que apuramos, há uma referênciaexplícita ao recurso do ensino público como veículo capaz de solu-cionar  o problema d o negro. É um artigo de Evaristo d e Morais. Nomais, todas as referências ao problema educacional vinculam-no a umaobrigação familiar, ligando-o  a um nível d e moral  puritano. Comovemos, o problema d a mobilidade social depende d a educação e estada família, dos pais, da sua autoridade perante os filhos.  Os negros

devem destacar-se pela cultura, e os exemplos de Luiz Gama, Josédo Patrocínio e Cr uz e Souza são sempre invocados como símbolose  espelhos  da possibilidade deste caminho para  o  êxito. Há uma re-construção quase que mítica dessas biografias,  como,  aliás, Bastidesalientou no seu trabalho. É por aí que o negro conseguirá a reden-ção da "raça".

E aqui cabe um a consideração maior e mais detalhada sobre es-te conceito d e "raça" que em determinado momento passa a circular

entre  os negros.• A imprensa negra reflete como os negros articulam este concei-

to em relação a si mesmos. Oprimidos socialmente e discriminadosetnicamente, estigmatizados pela sua marca étnica, os negro s concen-tram nesta marca o potencial de sua revalorização simbólica, do reen-contro com a sua personalidade.  Daí porque se referem  à "raça",à "nossa raça" sempre em nível de exaltação,  pois tudo aquilo quepara a sociedade discriminad ora é negativo passa a ser positivo p arao negro, e este fenómeno se reflete na sua imprensa. Não é por acasoque o seu ma is significativo e polémico jornal tem como título  A Vozda  Raça. A "raça" é ,  portanto, exaltada  e quando  o negro refere-sea  outro, fala  que ele é da  raça".  Isto está explícito nos textos do s

jornais negros. Eles chegam a extremos de comparaç ão analógica co-mo, por exemplo, a posição de Hitler que defende a raça ariana eos negros brasileiros: Hitler defendend o a sua raça, e os negros brasi-leiros, por seu turno, defendendo, também, a sua. Daí chegarem aextremos de acreditar na necessidade do aparecimento d e um "Moi-sés  de Ébano".

Essa atitude  dos  negros, que se reflete  em sua  imprensa, deveser considerada m ais detalhadamente. O conceito de raça e de purezaracial deveria ser aquele que os negros descartariam sistematicamen-te por ser fruto de uma antropologia  que visava colocá-los como in -feriores,  a fim de que as nações colonizadoras pudessem justificar aaventura colonial. Mas tal não  acontece. É que o negro,  no caso es-pecífico o negro brasileiro, dele se aproveita, para , n uma reviravoltaideológica, auto-afirmar-se psicologicamente. E isto é que a impren-sa negra de São Paulo consegue refletir  nas suas páginas. O conceitode "raça" é sempre usado p or isso como m otivo d e exaltação da ne-gritude dos produtores dessa imprensa. Daí, também não se interes-sarem  pelos movimentos políticos da sociedade brasileira, nãotomarem posições ideológicas, quer de direita, quer de esquerda, nessesjornais. Sobre esse assunto, José Correia Leite depõe:

212 A  IMPRENSA NEGRA EM SÃO PAULO DO   ISOLAMENTO fiTNICO A PARTICIPAÇÃO POLÍTICA  213

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A  comunidade negra  em São  Paulo  vivia  —  como minoria  que era —com as suas  entidades  e seus clubes. Po r  isso, tinhanecessidade deter   um veículo de informação dos acontecimentos sociais qu e tinhamna  comunidade, porque o negro t inha a sua comunidade: uma série decomunidades recreativas e sociedades culturais. Coma é natural, a im-prensa branca não ia cuidar de dar informações sobe as atividadesque essa comunidade tinha. Daí surgiu a imprensa  negra. Havia tam-bé m  nossos literatos, nossos poetas qu e queriam publicar o s seus  t ra-balhos,  e  essa imprensa cumpria  tal   função:  de   servir  de   meio   de .comunicação.  Sã o Paulo er a pequena e as   comunicações   muito maisfáceis. Então, na nossa imprensa, fazíamos notícias de aniversários,de casamentos, de falecimentos. Tudo isto era feito  pela nossa impren-sa. As festas também eram feitas pela nossa imprensa.  Ainda não ti-nh a  surgido  um   movimento ideológico,  um   movimento d e  luta  declasses. 8

Correia Leite refere-se, embora  de forma  sumária,  ao proble-ma de lutas de classes. Mas, o que predominava ou passou a predo-minar depois de certa época foi a exaltação à "raça". Olema do jornaloficial  da Frente Negra Brasileira tinha como slogan: Deus, Pátria,Raça e Famíl ia, diferenciando-se do slogan do m ovimento Integralis-ta   apenas pela inclusão  da palavra  "Raça". No seu primeiro núme-ro, Arlindo Veiga dos Santos escrevia na sua primeira página:

Neste gravíssimo momento histórico da  NACIONALIDADE BRASILEI-RA , dois grandes deveres incumbem   os   negros briosos e  esforçadosunidos num só bloco n a  FRENTE NEGRA  BRASILEIRA: a defesa da  gen-te negra e a defesa da Pátria, porque uma e outra coisa mudam junta s,para todos aqueles que não querem trair a Pátria por forma alguma deinternacionalismo.  (...) E a Nação somos nós com todos os ou tros nos-so s patrícios qu e conosco, em  quatrocentos anos, criaram  o Brasil. Nãopodemos, pois, permitir que impunemente uma geração   atual, que éum simples momento na vida eterna da Nação, traia a Pátria, queratirando-se nos erros materialistas do separatismo (que nada mais édo que o efei to da  concepção d o  "materialismo histórico"  — a  econo-mia, a riqueza material acima de tudo), quer namoran do a  terra-a-terrasocialista na sua mais legítima expressão que desfecha no bolchevis-mo, pregado pelos traidores n acionais ou estran geiros, e cuja respos-ta é e há de ser o  aniquilamento violento, seja  ele  adotado  p or  cidadãos

do  povo, seja  e le  adotado   por  governos qu e  traíram  a   nacionalidade.(...) Não dar atenção aos fra cos que fora m caindo ou desanimand o pe-lo caminho Os poucos ou muitos bravos que restarem das longa s ca-minhadas de sofrimento e con quista serão suficientes para despedaçara  última trincheira dos inimigos da Pátria e da Raça, que são quasesempre os mesmos.9

O que  desejamos destacar aqui é o apoliticismo  da imprensa ne-gra em relação àquilo que Correia Leite chama de luta de classes.

O artigo de Arlindo Veiga, do qual citamos os trechos p rincipais, mos-tra  apenas uma visão abstrata do conceito de Pátria e Nação, paradescambar em um  anti-socialismo acentuado e à equiparação dos con-ceitos de Pátria  e Raça.

4. Do  isolamento  De fato, nas suas páginas não há ne-

étnico à  participação  nhum a referência à participação con-política  creta  do  negro  nos  sindicatos,  nas

lutas reivindicatórias,  ou de  partici-pação política radical  em partidos  de esquerda. Pelo contrário.  Háum a cautela, parece que deliberada, dos diretores e colaboradores des-ses jornais,  que os levava a não abordar certos problemas  críticos,possivelmente considerados  perigosos para eles.

Essa  ideologia absenteísta e isolacionista em relação aos pro-blemas conflitantes será substituída, para  Míriam  Nicolau Ferrara,por uma  outra participante,  a partir  de 1945, com a volta d o regimedemocrático. Para  esta  autora:

Com a volta do regime democrático, em  1945,  inicia-se o terceiro pe-ríodo da impren sa negra. O que diferencia este dos anteriores é a  si-tuação política geral que, de  certa m aneira, reflete-se no s  ornais negros.Temos a propaganda pol í t ica aberta e o apoio a condidaturas tanto denegros quanto de brancos. Isso seria reflexo ou decorrência da forma-ção de outro s partidos  políticos da sociedade brasileira: o Partido So-cial D emoc rático (PSD), o Partido Traba lhista Brasileiro (PTB), a UniãoDemocrática Nacional  (UDN), o  Partido Social Progressista  (PSP), a e-galização do Partido Comunista Brasileiro   (PCB), o Partido SocialistaBrasileiro (PSB), o P artido Social Traba lhista  (PST), o Partido de  Repre-sentação Popular (PRP) e outros.10

Como se pode ver, há um a reviravolta ou, pelo menos, umanova perspectiva d e reflexão na  última fase  da  imprensa negra pau-lista.  O absenteísmo político  da s duas primeiras fases, quando o ne-

gro   cria mecanismos  de  defesa para  não se  pronunciar sobre  osproblemas p olíticos abrangentes, e aquilo que Correia Leite chamoucom propriedade luta de classes, passa a ser considerado com o rele-vante ou p elo menos significativo no seu contexto. A s modificaçõespolíticas  da sociedade brasileira passam,  a partir daí, a ser  registra-das nessa imprensa.

Miriam N icolau escreve, aliás concordando com Bastide, que:

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214 A  IMPRENSA NEGRA  EM SÃO  PAULO

Sinal  de  amadurecimento  foi a  fundação  da  Associação do s  NegrosBrasileiros  que fez uma revisão do s  erros  anteriormente cometidos, nosentido  de uma  autocrítica  e s e  apresenta como  a saída  possível  parao negro. Assim  no  jornal Alvorada de  1945, os artigos, de um  modo  ge-ral, têm uma finalidade: mo strar aos negros os objetiros ea importân-cia da  A.N.B., criada   para   que os  negros  não se  dispersassem; aocontrário, temos agora  com o  advento de uma   fase nova de  reestrutu-ração  do s quadros da  n ossa vida política e  social — a  Associação  do sNegros Brasileiros  —  ideia s ugerida , pode-se dizer  do "amadurecimentodas nossas  antigas experiências", segundo  texto d o ornal A lvoradade 1946. A  imprensa negra registrava, portanto,  nas suas páginas, a saí-

da do país da ditadura do Estado Novo e o início de uma era demo-crática.

Co m todas essas modificações de cará ter ideológico na trajetó-ria da imprensa negra um problema é permanente e dos m ais impor-tantes: o  problema financeiro.

Como manter jornais representativos  de uma comunidade cujamaioria e ra constituída d e ma rginais, subempregados, favelados, bis-

cateiros e  desocupados? Ora, com o já  vimos, esses jornais eram des-tinados à comunidade negra com posta de elementos desarticulados,desajustados ou marginalizados pela sociedade  branca. As fontes definanciamento desses veículos, que não  tinham praticamente publici-dade, a não ser do próprio meio, eram, p ortanto, precárias e consti-tuíam um   problema permanente.  Daí a  irregularidade dessas  pu -blicações.  Um dos seus funda dores, Raul Joviano d o A maral, expli-ca em depoimento como eles conseguiam se manter:

Os   jornais surgiram   com a   finalidade  d e  integrar associat ivamente   onegro. Os iniciadores da imprensa negra, por pertencerem à base dasociedade,  colocados no seu grau mais baixo, não tinham condiçõeseconómicas para manter a  imprensa. É de se adivinhar as dificuldadesque se tinha para editar esses jornais. Como mante-los, se a colet iv i-

dade, o grupo, não tinha nenhum poderio económico? Apenas o sacri-fício, a boa vontade  de  abnegados permitiam   a  existência dessesjornais. Muitos deles despendiam  ò que  ganhavam modestamente pa-ra  manter e publicar esses jornais. Não havia, por isso, uma periodici-dade  regular de publicação: quando havia dinheiro, o jornal saía comregularidade; quando não havia saía com atraso. Uma das maneiras desustentar esses jornais era  franquear as  sociedades negras existen-tes   na época,  distribuí-los e pedir  uma contribuição  para o  próximonúmero.Os  próprios  diretores,  os  próprios  redatores  iam  levá-los  às  sedesdessas associações.  Com o tempo foram criadas cooperativas. Mas,

DO  ISOLAMENTO ÉTNICO À PARTICIPAÇÃO POLÍTICA 215

mesmo  assim, foi muito difícil mante-los à base da co operação por-que o negro não  tinha condições económicas.

O sacrifício  do  negro,  para  Raul Joviano  do  Amaral,

foi   imenso e o seu êxito se  deve a homens humildes como T io Urutu,que era um  cozinheiro  do  Instituto Disciplinar, como José Co rreia Lei-

te, que era  auxil iar de uma drogaria, o qual, além  de  escrever e  or ientaro  jornal, tirava  do s  seus parcos vencimentos  um a  parcela para  mante-lo,  para  que ele pudesse sair c om  alguma regularidade. Outros  abne-gados da  imprensa negra foram Jayme Aguiar, o  argentino Celso  Wan-derley,  co m   O   Progresso Lino Guedes  e   Salatiel Campos. Todoscontribuíam c om   duzentos réis  ou um   tostão, o  máximo  u m  cruzeiro,para que o ornal saísse. O  jornal O  Clarim  d a  A lvorada po r isso mes-mo , nunca teve caixa e,  como  o objetivo  da imprensa negra  era difun-dir à  comunidade negra  as  sua s ideias, o s  seus organizadores nuncaprocuraram  organizaçõ es financeiras para ajudá-la. Tam bém  não  pro-curavam  políticos d a época. Sem ter  prat icamente anúncios, ela  viviada  solidariedade.  Fo i dentro  deste espírito  que a  imprensa negra  viveupo r quase v inte  anos .12

Por este valioso depoimento d e um dos seus organizadores, ve-mo s  que essa imprensa vivia na base da  solidariedade étnica da co-munidade negra. Roger Bastide acha   que a  imprensa negra  era oreflexo do pensamento da classe m édia negra em São Paulo. Emborapudesse questionar  a existência de uma classe média negra ponderá-vel e estruturada e m nível significativo naquela época, o próprio de-poimento  de Ra ul Joviano  do  Amaral mostra, pelo contrário,  queo seu suporte económico eram os homens de baixa renda que muni-ciavam  com os seus centavos  e os seus tostões,  para usarmos o seutermo,  a continuidade  dos  jornais.

Este problema da ma nutenção dos jornais é derivado da situa-ção de m arginalização dó  negro de uma  forma  global  na sociedadediscriminadora. Embora Bastide afirme que os  jornais surgiram deum a classe média negra, o depoimento  de Raul Joviano  do Amaral,

repetimos, parece que demonstra, ao contrário, que era a estratégiade u m mutirão permanente entre os negros qu e dava sustentáculo aesses  órgãos.

Como vemos, os jornais da imprensa negra surgiram quase quena base de informações, notícias, mexericos e destaques sobre a vidaassociativa  da comunidade negra. Com o tempo, no  entanto, tomaconotações de reivindicação racial e social. Isto aconteceu em conse-quência do aguçamento da luta de classe e da exclusão do negro dosespaços sociais mais remunerados e  socialmente compensadores  na

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216 A IMPRENSA  NEGRA EM SÃO PAULO

estrutura  do sistema de capitalismo dependente que se formou apósa  Abolição.

Segundo Aristides Barbosa:

O  preconceito, que até 1936, quando s e escrevia nos   porões  do  Bexi-ga:  Aluga-se quarto não se aceita pessoas d e cor e nos jornais saíamanúncios pedindo empregadas brancas, foi-se  acalmando. Com  issoo negro pensou que o motivo da luta também se acalmou. As contradi-

ções raciais ficaram diluídas nas contradições sociais s económicas.Desta forma  o negro pensa que não há  mais necessidade de uma im-prensa negra de protesto.

Com o jornal Novo Horizonte fundado em 1948, um dos últi-mos da imprensa negra, a situação se repete: são os velhos, os vetera-nos que haviam fundado  O Clarim d a Alvorada  qu e irão ajudar  anova geração e mante-lo. Por outro lado, do ponto de vista organi-zativo  e financeiro nada mudou: são os seus fundadores  e redatoresque têm de sair com os exemplares do jornal embaixo do braço paravendê-los entre os negros. Por isso, em 1955 o Novo Horizonte desa-parece.

Dois outros jornais negros  de São Paulo surgiram no interior.Ainda segundo depoimento de Jayme Aguiar foram O Getuíino, de

Campinas, fundado pelos irmãos Andrade, Lino Guedes e outros eO  Patrocínio de  Piracicaba, fundado po r Alberto d e Almeida. Ain-da  segundo depoimento  de  Jayme Aguiar:

Esses dois jornais foram um sucesso. A vinda, logo após a revolução,de jornalistas campineiros para São Paulo, como  Gervásio Oliveira, B e-nedito Forêncio, Lino Guedes e outros possibilitou a sua participaçãotambém  na grande batalha em prol da grandeza do negro. Todos elesirão participar d a imprensa negra  paulistana.14

Dentro deste quadro d e descenso da funcionalidade  da impren-sa  negra, José Correia Leite ainda  fa z nova tentativa,  em 1946,  quetambém não sobrevive por muito tempo. Geraldo Campos de Olivei-ra edita Senzala já com tendências socialistas. Surgem, ainda, Éba-

no e Níger. A partir daí a  imprensa negra adquire nova  conotaçãoe vai se diluindo ou se cristalizando  em posições ideológicas definidas.Analisando esse período da vida do negro paulista escreve Os-

waldo  de  Camargo:

Os jornais qu e representam o  pensamento da coletividade negra va-riam segundo a múltipla experiência do negro   na vida paulistana. A l-guns ficaram apenas no  nível do contato de notícias sobre um  pequenogrupo  de negros; outros alcançaram  um  alto nível  de  exposição deideias; outros ainda se propuseram a ilustrar e preparar o  negro  para

NOTAS E REFERÊNCIAS  BIBLIOGRÁFICAS 217

o livre debate e   procurar  soluções  do s  problemas comuns dentro  d acomunidade  negra.15

Isto leva a que compreendamos o saudosismo daqueles que par-ticiparam  dessa trajetória,  todos se recordando do jour de gloire des-ses jornais.  Mas,  com a  diversificação progressiva  da  sociedadepaulista  e, especialmente, d a comunidade negra, parece-nos proble-mático  um renascimento negro  em São Paulo através  da reativação

dessa imprensa. Outros objetivos s e apresentam para  o negro registrá-los e enfrentá-los.  A sociedade de capitalismo dependente, poliétnicae preconceituosa  que se desenvolveu no Brasil está a exigir do negroum a participação  na  qual o específico étnico fique embutido no pro-grama de modificações q ue esse tipo  de  sociedade está  a  exigir.  E,a partir daí, não haverá mais necessidade de uma imprensa alternati-va  qu e  defenda  os interesses  de uma comunidade oprimida  e discri-minada, isto porque terão desaparecido  a opressão e a discriminação.

Notas e referências bibliográficas

1 Tivemos oportunidade de proferir palestra na Escola de Comunicação eArte da USP sobre o tema  "A  Imprensa Negra em São Paulo", em nívelde  pós-graduação, abril de 1981,  mas junto à disciplina  "Estudo de  Pro-blemas Brasileiros", não  fazendo parte do currículo.

2  SODRÉ, Nelson Werneck. A  história da imprensa no Brasil. Rio de Janei-ro,  Civilização  Brasileira,  1966.  Passim.

3  BASTIDE,  Roger.  A imprensa  negra em São Paulo.  Apud  Estudos  afro-brasileiros. São Paulo, Perspectiva,  1973. p. 131 et  seq.

4 Depoimento gravado em 15 de junho de  1975.5  FERRARA, Miriam Nicolau. A imprensa negra em São Paulo (Dissertação

de mestrado na  USP). Mimeografado.6  Idem, ibidem.7 O Alfinete,  São Paulo,  3 set.  1918.8 Depoimento  gravado em 15 de junho  de  1975.9

  SANTOS, Arlindo Veiga dos. Aos frentenegrinos. A Voz da Raça, 18 set.1933.10  F E R R A R A ,  Miriam  Nicolau.  Op. cit.11  Idem, ibidem.12 Depoimento gravado  em 15 de  junho  de  1975.13 Idem.

Idem.4

15 CAMARGO, Oswaldo de. A descoberta do frio.  São Paulo, Ed. Populares,1979.  p. 30, nota de pé de página.

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IVDa  insurgência  negra ao

escravismo  tardio

1. Modernizaçãosem mudança

Estamos a ssinalando o centenário da A bo-lição do escravismo no  Brasil. O fato levaa que possamos estabelecer um a série de ní-

veis de reflexão sobre o que ocorreu em resultado da sua mudançapara o chamado trabalho livre, as aderências históricas, sociais e cul-turais que permanecem em consequência de quase quatrocentos anosde  trabalho escravo e os entraves estruturais q ue ainda persistem nasociedade brasileira em decorrência desse longo período traumatizanteda   nossa história.

Parece-nos que há, de fato, um atraso teórico muito grande na

análise e interpretação  do sistema escravista no Brasil e, especialmente,no detalhamento das suas particularidades em relação aos demais paí-ses  da América. Arquitetamos um pensamento monolítico sobre aseconomias que foram criadas pelo mercantilismo e pelo colonialismoe não procuramos analisar, em  cada caso pa rticular, as suas singula-ridades mais importantes. N o  caso brasileiro, ao que nos parece, t e-mos um conjunto de fatos que determinam não apenas a especificidadede certos aspectos relevantes do modo de produção escravista no Brasilem  relação  ao s  outros países  da América,  mas, também,  em  decor-

MODERNIZAÇÃO  SEM  M U D A N Ç A  219

rència do seu longo tempo de duração, a permanência de traços e res-tos da formação escravista na estrutur a da sociedade brasileira atua l.

Consideremos o seu primeiro aspecto: a duração do escravismoaté   o ano de  1888. O significativo  e  relevante aqui  não é apenas  otempo  no seu sentido cronológico,  mas as  transformações técnicas,sociais  e económicas que se operaram durante esse período  na socie-

dade brasileira em  decorrência  das modificações que se registraramna economia mundial da qual éra mos dependentes. Do sistema colo-nial que determinou o perfil da primeira fase do escravismo  brasilei-ro que vai até o ario de 1850 e, posteriormente, de  1851 até o térm inodo  escravismo, modificações profundas se verificaram na  economiamundial que passou da fase da exportação de mercadoria para a deexportação de capitais. Os mecanismos reguladores e o comportamen-to quer da economia interna, quer daquelas nações das quais éramosdependentes,   tamtyém s e modificaram. O fluxo de capitais investidosno Brasil em setorbs  estrategicamente controladores da nossa econo-mi a determinou a fase d e modernização das cidades e dos hábitos dosbrasileiros. Tudo  Aquilo  que  significava  civilização  no seu conceito

do capitalismo clássico era trazido de fora e se incorporava à nossasociedade civil (excluídos  os escravos).O processo de modernização da última fase dessa sociedade es-

cravista era, por e$sas razões, injetado. A tecnologia era introduzidado exterior, os meios de comunicação m ecanizavam-se, abriam-se es-tradas de ferro em todo o território nacional, o cabo submarino erainaugurado, tínhamos gás de iluminação, telefone, bondes de traçãoanimal, mas tudo isto superposto a uma estrutura traumatizada noseu dinam ismo pela p ersistência de relações de produção escravistas.Era, portanto,  urfla  modernização  sem mudança social. Em outraspalavras: as estruturas básicas da sociedade brasileira ainda eram aque-las que procuravam manter e eternizar essas relações obsoletas, crian-do, com isto, uma contradição flagrante e progressiva com odesenvolvimento das forças produtivas que se dinamizavam.

Neste  panorama geral podemos assinalar particularidades regio-nais. E não  apenas  regionais,  m as  também diferenciações  de níveisde prosperidade e decadência em função da s preferências dos nossosclientes do m ercado internacional. Disto resultou uma comp lexidademuito grande na  caracterização  da s  relações sociais fundamentais d omodo de produção escravista no Brasil. Eram zonas que floresciam,outras  que entravam  em  decadência, algumas  que  estacionavam  oudiversificavam  a sua produção; finalmente, havia uma teia muito com-

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22 0  DA  INSURGÊNCIA NEGRA AO ESCRAVISMO TARDIO

plexa de relações e interações que criava diferenças regionais e  dia-crônicas. Mas, em todo esse processo de diferenciação ima coisa erapatente: o trabalho  escravo. Quer na agroindústria  canarieira do Nor-deste, ou nos campos de algodão do Maranhão, nas chirqueadas doSul, nos canaviais  da  Bahia, na região urbana de Salvador e do Riode   Janeiro,  na s  fazendas d e café  paulistas e  fluminenses,  ou na pe-

cuária,  o escravo negro era quem produzia, quem criada. Por outrolado,  as diversificações regionais,  que  determinavam particularida-des na situação  do escravo — escravo d e ganho,  escravo doméstico,escravo no eito agrícola, escravo na mineração, etc. — não modifica-rão o essencial. Ele até podia possuir alguns objetos de uso pessoal.Porém o que ele não tinha e não podia ter era a posse do seu própriocorpo, que era propriedade d o seu senhor. Esta é a condição básicaque se sobrepõe  a qualquer outra para definir-se a situação de escra-vo. Isto é: um ser alienado da sua essência humana. E é a partir dacompreensão  deste nível extremo de dominação e alienação de umser  humano po r outro que poderemos compreender os níveis e o con-teúdo social, político  e psicológico d a insurgência negra durante o pe-

ríodo escravista no Brasil e as suas pa rticularidades históricas.Essa grande duração do escravismo no Brasil, de um lado, e,de  outro, as grandes transform ações ha vidas nos interesses e com-portamento das nações centrais (m odificações internas e externas) cria-ram contradições  que vão se acumulando  e  agudizando-se  com otempo.

Podemos,  por isto, dividir  a escravidão  no Brasil em dois pe-ríodos que se completam , mas têm características particulares. O  pri-meiro vai da chegada ao Brasil dos africanos em número significativocomo escravos até a Lei Eusébio d e  Queiroz qu e extingue o tráficonegreiro com a África, em 1850. É o período dos gra ndes piques dotrabalho escravo no Nordeste açucareiro, da mineração em MinasGerais.

2. Rasgos  fundamentaisdo escravismobrasileiro pleno(1550/1850)

Nesse período podemos dizer queos  seus  rasgos fundamentais  eque   o  caracterizam  são os se-guintes:l. Produç ão exclusiva para ex-

portação no m ercado colonial, salvo produção de subsistência poucorelevante.

RASGOS FUNDA MENTAIS DO ESCRAVISMO BRASILEIRO PLENO  (1550/1850)  22 1

2. Tráfico de escravos de caráter internacional e tráfico triangular co-mo elemento mediador.

3. Subordinação total da economia colonial  à Metrópole  e  impossi-bilidade  de urna acumulação primitiva do capital interno e m nívelque pudesse determinar  a passagem do escravismo ao  capitalismonão-dependente.

4. Latifúndio  escravista  como forma fundamental  de propriedade.5.  Legislação repressora contra os escravos, violenta e sem ap elação.6. Os escravos lutam sozinhos, de form a ativa e radical, contra o ins-

tituto da escravidão.O  sistema escravista consolida-se nessa fase.  O número de es-

cravos cresce constantemente. A produção, através do trabalho es-cravo, cria um clima de fastígio da classe senhorial e os negros passama ser os pés e as mãos dos senhores na expressão de um cronista daépoca. Essa consolidação do trabalho escravo  reflete-se,  por outrolado, naquilo  que  determinará esse fausto da classe  senhorial: a si-tuação de total dom inação económica e extra-econômica sobre o ele-mento escravizado,  as  condições sub-humanas  de  tratamento, umsistema  despótico  de  controle social  e,  finalmente, um aparelho deEstado voltado fundam entalmente  para defender os direitos dos se-nhores e os  seus  privilégios. Esses senhores, donos de  escravos e deterras,  são, ao mesmo tempo, exportadores de tudo ou quase tudoo que se produzia  no  Brasil.

Para que isto pudesse ter êxito e esse dinamismo não entrasseem  colapso, criou-se o tráfico com a Á frica que supria de novos bra-ços aqueles que morriam ou eram inutilizados para o traba lho. Destaforma,  o fluxo perma nente de africanos permitia ao senhor níveis deexploração assombrosos e uma margem de lucro que propiciava a ma-nutenção   de todo um aparato de luxo e lazer sem precedentes. Essefastígio tinha, p orém, interna  e externamente, fatores de deteriora-ção contínuos. O monopólio comercial da Metrópole determinava um

nível de transação mercantil unilateral, pois a parte compradora eraquem  estabelecia os preços.  Com isto, os senhores tinham de aceitaraquilo que lhes era imposto. Mas, p or outro lado, o preço do escravoera estabelecido praticamente pelos traficantes ou por  intermediáriosdesses proprietários de navios negreiros. Enqua nto o trá fico conse-guia equilibrar a demanda de novos braços para a lavoura e outrasatividades, as coisas se equivaliam e a aparência de prosperidade con-tínua permanecia à superfície. Quando, porém, por qualquer moti-vo, esse desequilíbrio se rompia, os senhores começavam a protestarcontra aquilo que julgavam ser uma exploração unilateral contra eles.

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222 DA INSURGÊNC1A NEGRA AO ESCRAVISMO TARDIO

Por outro lado, essa economia não permitia a acum ulação in-terna d e capitais em nível capaz d e poder-se dar um passo de mudan-ça   económica  e  social qualitativo  e que  fossem  transformadas asrelações de produção fundam entais. Com isto ficava estagnado o seudinamismo interno  no nível d e reprodução contínua d o trabalho e s-cravo quase que de maneira circular. O  escravismo criava os seus pró-

prios mecanismos de estagnação económica e  social.  O latifúndioescravista era, po r essas razões, a forma fundamental senão a únicarelevante de propriedade. Instala-se no B rasil, nacionalmente, o m o-do de produção escravista moderno  em sua  plenitude.

Os níveis de repressão nesse contexto eram totais, a fim de quea tax a de lucro do senhor não fosse atingida. O trabalho escravo ga-nha, assim, proporções extrema s de exploração. Fecham-se todas aspossibilidades de uma  sociedade  na qual existissem mecanismos m e-diadores  dos conflitos da s  duas classes sociais fundam entais: escra-vos e senhores.

3.  Significado  SOCial  É nesta estrutura que se m anifesta  ain-da  insurgência  surgência do escravo negro. Somentenegro-escrava  através  da  compreensão  da  situação

social e política que a econom ia escra-vista produzia, nesse período, em relação a o escravo, que poderemosreconhecer   a sua  importância. Neste sentido, José Honório Rodri-gues  escreve que:

A  rebeldia  negra  foi um   problema  na   v ida inst i tuc ional  brasileira, re -presentou um sacrifício  imenso, violentou o processo h is tór ico  e or igi-nou um debate historiográfico. Com relação ao  s is tema escravocrata,a rebeldia negra, insurreição racial, foi um processo  contínuo,  perma-nente e não-esporádico, com o  faz ver a  historiografia  oficial. O  debate

historiográfico resultou da  interpretação oficial do  sistema escravocrata,apresentado como tendo por base a legitimidade da propriedade  e nãoo preconceito da  inferior idade  racial, muito  mais for te  nos  EstadosUnidos.A versão de um  quadro paternal  e  doce,  no  qual a confraternização pre-dominou sobre a animosidade, especia lmente  nas  re lações domésti-cas, fa lsamente  generalizado, subver teu  a verdadeira inteligência   doprocesso.1

Em  decorrência dessa extrema exploração  do trabalho  do escra-vo, e da sua consequente rebeldia, surgiram os  racionalizadores  do

SIGNIFICADO SOCIAL DA INSURGÊNCIA NEGRO-ESCRAVA  223

sistema.  No particular,  os dois m aiores sistematizadores desse pro-cesso foram Antonil e Benci. É interessante notar  que ambos são je-suítas e procuram   difundir uma ideologia através da qual o sistemaescravista poderia se r racionalizado. Não por motivos altruístas e cris-tãos, mas, em última instância, objetivando maior produtividade doescravo, mais tempo da sua vida útil e medidas capazes de impedir

a su a  fuga. C om as medidas p or  eles preconizadas poderia s er amor-tecido o potencial de rebeldia do escravo negro contra o seu senhor.Expondo  o seu pensamento, Antonil escreve:

O  qu e   pertence  ao   sustento, vest ido   e  m oderação  no   trabalho, claroestá que se lhes n ão  deve negar; porque a quem o  serve deve o  senhorde jus t iça dar  suf ic iente a l imento; mezinhas na doença,  e modo, comqu e   decentemente  se  cubra, e se  vista, como pede  o   estado  de  servo,e n ão   aparecendo quase   nu  pelas ruas;  e  deve também moderar  o  ser-viço de  sorte que não  se ja super ior  às  forças dos que trabalham, sequer  que possam  aturar.2

Antonil é explícito n as suas intenções e pondera que se essas me-didas não  fossem  tomadas pelos senhores, os escravos

ou  se  irão embora, fugindo para o mato; ou se matarão por si,  comocostumam,  tomando a  respiração  ou enforcando-se, ou procurarão  ti-rar a  vida aos que lha dão tão m á,  recorrendo (se for  necessár io)  a ar -tes  diabólicas, ou  clamarão  de tal  sorte  a Deus que os  servirá .3

E insiste: o bom tratam ento deveria ser concedido aos escravosporque,  em caso contrário, eles

fugirão  por uma vez   para algum mocambo   no  mato, e s e   forem apanha-do s  poderá ser que se  matem  a si  mesmos, antes que o   senhor cheguea  açoitá- los,  ou que algum  seu  parente tome a sua conta a  v ingançaou  com  fe i t iço,  ou com  veneno.4

Benci é mais refinad o, mais teórico do que Antonil, mas chegaàs mesmas conclusões. Referindo-se às  faltas d os escravos e à neces-sidade do senhor julgá-los com isenção afirma:

Não  tendo pois o  servo o  castigo, como  há de  fazer su a  vontade? E  quan-do ainda não chegue a despir to ta lmente  o  medo, porque o cast igo po-de   saber bem; da  muita  continuação  dele nasce  outro  inconvenientenão  pequeno. Porque sabendo  o escravo que o  senhor  lhe não  passaem c laro fa l ta a lguma  e que lhe não  valem  padrinhos; em  chegandoa cometer algum delito, e vendo que não tem  outro remédio para evitaros   r igores  do   mesmo senhor , toma car ta   de   seguro  e f o g e . 5

No entanto, tais medidas nunca foram aplicadas, pelo menosna primeira fase do escravismo brasileiro. Pelo contrário, a   síndro-

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224   DA  INSURGÊNCIA  NEGRA A O  ESCRAVISMO TARDIO

me d o me d o domina profundamente  a classe senhorial e cond ic ionao seu comportamento. A p ossível revolta do s escravos estava sempreem  primeiro  plano quer da s  autoridades, quer d os senhores e do seuaparelho  repressivo.

No  Nordeste,  com a  República  de  Palmares, essa síndrome seaguça e perm anece dur ante quase um século. A luta dos escravos da

Serra da Barriga foi o centro de preocupações da  Metrópole e dossenhores de engenhos não  apenas na Cap itania d e Pernambuco à qualpertencia o território emancipado, mas em toda a região. Palmaresconverge,  em  pleno século XVII, para si as atenções da  Metrópole,mas, mesmo assim, assume proporções  de um ato de resistência  quenão teve similar na América Latina. A vasta documentação que exis-te a respeito, especialmente de origem portuguesa  (sabe-se,  também,da   existência de documentos em arquivos holandeses e italianos), bemdemonstra a  preocupação  da Metrópole, de um lado, e, de outro,  aimportância social, económica e militar de Palmares. Esta dicotomiabásica era o motor do comportamento  das duas classes fundam entaisdo escravismo brasileiro. A preocupação substantiva, portanto, querdos senhores quer das autoridades locais ou da Metróp ole era mantera coerção  económica e extra-econômica atrav és da qua l se consegui-ria   extrair todo o sobretrabalho d o escravo. Por isto, no  sistema detrabalho escravo na sua plenitude os níveis de repressão despóticosfuncionavam constantemente  e faziam  parte d a normalidade  do com-portamento dos dominadores. Nesse sistema de trabalho a racionali-dade , ou melhor a racionalização pretendida por Antonil e Benci nãopodia funcionar. Conforme já dissemos, não havia nenhum nível demediação e a exploração tinha de ser total pa ra que o senhor pudesseter lucros compensadores, dentro da forma como era  feita  a distri-buição da renda no sistema colonial. À produção interna estava liga-da a  divisão internacional  do  trabalho  e  isto impedia qualquerpossibilidade de um comportamento  que não fosse o d a absoluta e x-

ploração.  Marx dizia, por  isto:Desde que os povos cuja produção se move ainda nas  formas inferio-res  da escravidão e da servidão sáo atraídos pelo mercado internacio-nal dominado pelo modo de produção capitalista e que em decorrênciaa venda dos seus produtos no estrangeiro se torna o seu principal in-teresse, desde  esse momento  os  horrores d o sobretrabalho, esse pro-duto  da  civilização vem se juntar  à  barbárie  da  escravidão  e da  servidão.Enquanto a produção, no s Estados  do Sul da  União Americana, era prin-cipalmente  dirigida  para a  sat is fação da s  necessidades imediatas, otrabalho  do s  negros representava  um   caráter moderado   e patriarcal.

SIGNIFICADO SOCIAL DA INSURGENCIA NEGRO-ESCRAVA 225

À  medida, porém, que a exportação do  algodão tornou -se  o interessevital desses Estados, o negro foi  sobrecarregado e a consumação desua  vida em sete anos de  trabalho tornou-se parte   integrante de umsistema friamente calculado. N ão se tratava mais de obter dele  certamassa de  produtos  úteis.  Tratava-se da  produção  da  mais-valia aomáximo.6

Isto  pode ser aplicado perfeitamente ao escravismo brasileiro.

As estruturas de dominação e os seus mecanismos estratégicos, ta ntoem  um caso como no outro, eram idênticas e não podiam permitirque o escravo fosse tratado a não ser como coisa, pois de outra  for-ma o sistema não funcionaria  de acordo  com os  seus objetivos.

Por  isto,  dando continuidade  à linha  ideológica  de Antonil  eBenci, vamos  encontrar, após a Abolição,  toda uma literatura queidealiza   a escravidão  no Brasil, criando vertentes históricas  que de-fendem   a sua benignidade. Como vemos é todo um espectro de pen-samento que procurou antes racionalizar e atualmente tenta   roman-tizar, através de vários argumentos, a forma despótica como existiua  escravidão  no Brasil.

É exatamente nesse período que vai da Colónia  até meados doSegundo Império que as revoltas de escravos, assumindo diversas for-

mas, contestam e desgastam mais violentamente o sistema. A quilom-bagem  é uma constante nacional  e acontece nesse período  de formamuito violenta. A última dessas insurreições arquitetadas nessa   fasee  que  fracassa ainda  em  projeto  é e m Salvador,  em  1844, seis anosantes, portanto, da Lei Eusébio de Queiroz.

Podemos constatar que onde há o pique do escravismo na suaprimeira fase, há, também,  o pique de revoltas. Na fase colonial te-m os Palmares, a que já nos referimos, e os seus desdobramentos pos-teriores na região nordestina que se p rolongam até o século XIX. E mMinas Gerais, qua ndo se chega ao auge da exploração a urífera e dia-mantífera o quilomb o do Ambró sio e inúmeros mais perturbam e des-gastam  a harmonia social e económica  da região. Há, como podemos

ver, uma correspondência entre o nível de exploração e a  incidênciadessas  revoltas.Palmares acontece em um mom ento em que o Nordeste estava no

auge da produção acucareira, fato que levou a Holanda a ocupar a re-gião para explorá-la em seu proveito.  Em Minas, o Quilombo do Am-brósio, qu e chegou a ter cerca de dez mil habitantes,  foi destruído  em1746 também em um momento d e prosperidade.  Não  queremos estabe-lecer, porém, uma relação mecânica entre os níveis de opressão e rebel-dia.  Ma s podemos estabelecer  um a linha  de  frequência n o  particular.

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226 DA  INSUROÊNCIA NEGRA  AO  ESCRAVISMO TARDIO

Convém particularizar, também,  o tipo  de  atividade  desses es-cravos rebeldes na  divisão técnica d o  trabalho.  Os escravos  que  fugi-ra m  para  Palmares estavam estruturados na agroindústria açucareira.Já nas revoltas urbanas  do século XIX ,  em Salvador, o escravo de ga-nh o será o núcleo dinamizador mais relevante. Por outro lado, comoveremos oportunamente,  na segunda fase  da escravidão essas revoltasterão um significado b em diferente, quer em quantidade, quer em ní-vel de radicalização. Com exceção dos  quilombos sergipanos de  1870a  1875, a revolta passiva será típica d o comportamento d os escravos.

4.  Prosperidade,  Em  contrapartida,  é  exatamente  nos mo-escravidão  e  mentos em que os escravos se revoltam querebeldia  as leis repressivas são aprovadas e executa-

das. Ainda no ciclo de Palmares surge o Al-vará de março de 1741, mandando que fosse  ferrado com um Femsua espádua  todo escravo  fujão encontrado em quilombo. No ciclo

mineiro de revoltas encontramos, além do bando de Gomes Freirede Andrade recomendando o cumprimento do alvará daquele ano,a Carta  Régia de 24 de fevereiro de  1731 q ue autorizava  o  governa-dor de  Minas Gerais  a  aplicar  a pena  de morte  ao s  escravos.

Finalmente, vem o ciclo das insurreições baianas. Em consequên-cia,  surge, e m primeiro lugar,  a criação  no Código Criminal do Im-pério, em 7 de janeiro d e  1831, da  figura  jurídica de insurreição emrelação às revoltas  dos escravos. Para o s cidadãos livres que conspi-ravam contra a tranquilidade pública a denominação seria de  cons-piração  ou  rebel ião.  No  artigo  113  do Código era considerada in-surreição a reunião d e "vinte ou mais escravos para haverem a liber-dade pela força".  7

Mas logo depois da insurreição escrava da capital baiana de 1835é aprovada a Lei n? 4, de 10 de junho daquele ano, acerca da puni-ção dos escravos que matassem ou ferissem os seus senhores. A ínte-gra  da lei  deve  ser transcrita  para  um a  análise  do seu  significadojurídico  e político:

A Regê ncia Permanente em Nome do Imperador D. Pedro Segundo fazsaber a  todos os  súditos  do   Império que a Assem bleia G eral Legislati-va  Decretou, Ela sancionou a Lei seguinte: Art. 1?  —Serão  punidos compena de morte os escravos ou escravas, que matarem por qualquer ma-neira que seja, propiciarem veneno, ferirem gravemen te ou fizerem ou-

O  DESGASTE ECONÓMICO 227

tra qualquer ofens a física a seu senhor, a sua mulher, a descend entesou ascende ntes, que em sua companh ia morarem, e administrador, fei-tor e às   suas  mulheres que com  eles  conviverem. Se o   fer imento o uofensa física forem leves, a pena  será d e açoites à  proporção d as  c i r-cunstâncias mais ou  menos agravantes. Art. 2? —  Acontecendo algumdos  delitos mencionados n o  Art. 1.° o d e insurreição e qualquer outrocometido  po r pessoas escravas, em que caiba a pena de  morte, haveráreunião extraordinária do Júri doT ermo (caso não esteja em exercício)convocada pelo Juiz de Direito, aquém tais acontecimentos serão ime-diatamente comunicados. Art. 3 . — Os  Juizes de Paz  terão jurisdiçãocumulativa, em todo o Município para processarem tais delitos até adenúncia com as diligências legais posteriores, e prisão dos delinquen-tes, e concluído que seja o enviarão ao Juiz de Direito para esteapresentá-lo ao Júri, logo que esteja reunido e seguir-se os mesmostermos. Art . 4.°  — Em  tais delitos a   imposição   da  pena  de  morte serávencida po r dois terços do  número de votos; e para as  outras pela maio-ria; e a  sentença se for condenatória, se executará sem  recurso algum.Art. 5? — Ficam revogadas todas as Leis, Decretos e mais disposiçõesem contrário. Dada no Palácio de Rio de Janeiro, aos 10 dias do mêsde junho de 1835.8

Como podemos ver havia um a conexão entre a insurgência es-

crava (quilombagem) e a legislação repressiva. A rticulou-se um a le-gislação baseada  na  síndrome  do  med o criada pelos antagonismosestruturais do escravismo e que atingia a classe senhorial de formaa  deformar-lhe  o  comportamento.  As lutas  do s escravos foram umelemento de desgaste permanente. Como podemos ver, se as cons-tantes lutas nã o chegaram a o nível modificador da estrutura, criandoum  novo modelo de ordenação social, foram , no entanto, um moti-vo  de permanente desgaste do sistema. Podemos dizer que esse des-gaste permanente apresenta-se em três níveis principais: a) desgasteeconómico; b) desgaste político; c) desgaste psicológico.

5. O desgaste  No primeiro nível de desgaste devemos consi-econômico  derar o fato de que o escravo fugido correspon-

dia a um  património subtraído ao senhor. Mas,além disto, era um património que produzia valor através do seu tra-balho,  e esse valor não-produzido também onerava o seu senhor, poisalém da perda física do escravo ele perdia aquilo que deveria ser pro-duzido durante o tempo em que permanecia evadido, muitas  vezespara o resto da vida. Além d isto, devemos computar as despesas coma captura, pagamento a  capitães-do-mato, recompensas a informan-

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228 DA I N SUR OÊ N CI A NEGRA AO  ESC R AVISMO  T ARD IO

tes, despesas  com o tempo em que o escravo encontrava-se em pri-sões do Estado e muitas outras. Soma-se  a todas  essas  razões a des-valorização no mercado do valor do fugitivo, dificilmente adquirívelpor outro senhor a não ser por baixo preço.

Esse desgaste económico, que não podemos quantificar, ma s foisignificativo, onerava obviamente o custo d e produção, da í vermos,

constantemente, as queixas dos senhores contra a fuga  dos seus es-cravos. José Alípio  Goulart, abordando apenas um dos aspectos dodesgaste económico  — o  preço  do escravo evadido — ,  afirma  que:

Negros fugidos contavam-se  aos  milhares, muitos milhares, fossem  aqui-lombados   ou   ribeirinhos. Repre sentand o cada  cabeça determinado  va-lor monetário, torna-se possível aquilatar o volumoso capital m produtivo,concentrado  na  população d e calhambolas espalhados  por  esses bra-sis.  Calculando o preço unitário de cada escravo,   grosso  modo, em100SOOO, valor corrente durante largo espaço  de  tempo;  e consideradaa   informação de que apenasmente nos Palmares concentravam-se emtorno de 60 000 fugitivos, conclui-se que só aquele quilombo   represen-tou acúmu lo de capital inoperante da ordem de seis mil contos de réis(6.000:0005000), verdadeira fábula em dinheiro naquela época. Em idên-tica ordem  de raciocínio, cita-se o quilombo de Trombetas, no Pará, re-gião financeiramente pobre  e onde por tal  razão a incidência de escravosnegros foi relativamente pequena. Aquele quilombo, com seus 2 000 ca-lhambolas  representava  uma imobilização de capital da ordem  de tre-zentos  contos de réis (300:000$000), pois ali, ao surgirem, os africanoseram  vendidos, quando menos, p or  150$000 a  "cabeça". Assim  o  qui-lombo de Campo Grande, em Mato Grosso, e outros  que  aglutinavamdezenas, centenas, vezes  até   milhares  de  componentes.9

Mas, conforme já d issemos, esse desgaste não se limitava à per-da do valor do escravo e do seu trabalho. Era m uito mais abrangen-te. Incluía, também , as despesas dos senhores e do aparelho d o Estado.Neste particular,  as Câmaras sempre reclamavam falta  de  dinheiroe verba para dar combate aos quilombolas.  Por isto, os governos dasprovíncias criavam verbas para premiar  captores. Em  1852 há uma

resolução  do  presidente d o Pará criando prémios d e 200$000 depoisde  executada a diligência e capturados  os fugitivos,  quantia q ue seriapaga pelo Tesouro Público Provincial. N a m esma resolução, o presi-dente fica autorizado a  dispender  até a quantia de 12 contos de réiscom  a destruição  dos quilombos e captura dos escravos neles refugia -dos 10.  Este fato pode  ser generalizado a quase todo  o Brasil.

Finalmente, havia a destruição por parte do escravo da p roprie-dade e da lavoura do senhor. Se isto acontecia esporadicamente noNordeste, n a primeira fase do escravismo, com o aqueles escravos que,

O  DESGASTE  E CO NÓMICO   229

durante a ocupação holandesa destruíram engenhos e plantações emPernambuco u vamos encontrar este comportamento, de forma maissistemática,   já no final d a escravidão, praticado p or  escravos  flumi-nenses orientados p or abolicionistas radicais. Aliás, o episódio é sig-nificativo  porque é atípico do comportamento do escravo do restodo Brasil nessa segunda fase  do  escravismo.

Em Campos de Goitacazes, Estado do Rio de Janeiro, os escra-vos fugitivos incendiavam as fazendas numa atitude  radical que ge-rou  pânico  entre  os  senhores.  No dia  15  de  agosto  de  1877 mani-festou-se o prim eiro incêndio em uma usina do Q ueimado. Seguiu-seum rosário de  sinistros provocados pelos escravos orientados nessesentido pelos abolicionistas. Segundo um historiador  desse período:

O encarregado  de  incendiar o  canavial executava esse atentado  se mreceio de que pudesse o acusar de o ter feito. Um vidro de óculos, umalente, era colocado em lugar onde convergindo os raios solares, faziamacender a mecha  de  véspera  aí posta, e às  m esmas horas do dia ante-rior,  estando  o incendiário  longe do  lugar, o  canavial  era  preso dechamas.12

Depois do primeiro incêndio

 não param mais. Pelo

 contrário.Continuam   com maior intensidade. Depõe Júlio Feydit:

Em  14 de janeiro de  1887, e m  Guarulhos, foram  incendiados os  cana-viais  das  fazendas e usinas   S.  João  do s  srs. Lima   &  Moreira; uma fa-zenda Penha, do Sr. António Póvoa, outros dois na fazen da Abadia.Sete dias depois o fogo destruía na freguesia de S. Salvador um cana-vial do Sr. Ferreira Pinto, e no dia seguinte, outro. A 26 de janeiro o Sr.Barão de  Miranda perdia devido a  incêndio  um canavial de 1 500 arro-bas  de açúcar ou 30 caixas; três dias depois, os canaviais das fazen-das do Sr. Manoel Coelho Batista Cabral ardiam.Além dessa s fazendas, a do Outeiro, a 23 de aneiro, a do Sr. Sebastiãode  Almeida  Rebello, tiveram   os canaviais  incendiados.Em  6 de   fevereiro  de  1887, ao  meio-dia, ardiam   as  canas da  FazendaVelha; e mais os can aviais na Fazenda Paraíso, pertencente a Guilher-me  de  Miranda  e Silva,  e  também outras três  na  fazenda  do  majorCrespo.Em  março, na  f reguesia  de S. Sebastião lançaram fogo  a um  canavialdo Sr. José Pinto Passanha, sendo o seu prejuízo de 15 a 20 arrobascada uma. Como podemos ver, era um estado de conflagração permanen-

te, que transcendia a o simples protesto p acífico costumeiro na segundafase  da escravidão,  mas enveredava em um movimento d e subleva-çã o regional.  O mesmo historiador afirma, ainda,  comentando a si-tuação  geral nesse período:

230  DA  INSURGÊNCIA NEGRA  AO  ESCRAVISMO TARDIO

Era uma   devastação medonha;  era uma uta tremenda; o s fazendeiros

A SlNDROME DO MEDO  23 1

insurreição de 1835 encontram os um bem elaborado plano militar que

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enchiam  as fazendas de capangas sob o   título de  agiegados e cama-radas, faziam reuniões, tendo em uma delas sido proposto que se com-prasse o chefe abolicionista em Campos e se ele não quisesse se  venderse pagasse a quem o suprimisse. 14

Podemos ver, pelo exposto,  que em Campos havia um desgasteponderável  na  economia escravista daquela região fluminense. Em-bora tenha sido uma m anifestação tópica e já sob a influência ou di-reção  de  abolicionistas radicais,  o  comportamento  do s escravos a li

demonstra como  o  desgaste económico produzido pela  rebeldia n e-gra, em vários níveis  e durante todo o tempo, não deve ser despreza-do na análise  da  importância do seu comp ortamento de negação  aosistema.

6. O desgaste político  No particular do desgaste  político,a  quilombagem despertou  na classe

senhorial o receio permanente e agudo da propagação da rebeldia,da   insubmissão,  da  violência d os quilombolas  da s  fazendas  ou dosinsurretos urbanos. Isto porque os negros davam demonstração na

prática política (descartamos o conceito de movimentos pré-políticos)de  que havia a possibilidade de uma solução alternativa possível mes-mo no sistema escravista: a form ação de unidades independentes nasquais o trabalho escravo não era praticado. O exemplo  de Palmarese a sua organização política sempre era visto com apreensão pelas au-toridades coloniais e imperiais. Dura nte a existência do Quilombo doAmbrósio,  em Minas G erais,  o m esmo raciocínio  se verificou. Sabia-se que ali havia um a  organização política  que ordenava a sua econo-mia de modo comunitário. S egundo se afirma havia  um  modelo d eorganização  e disciplina, d e  trabalho comunitário .  Os negros eramdivididos em grupos, ou setores "todos  trabalhando de acordo coma sua capacidade".  1S

No Quilombo  do Ambrósio praticava-se a pecuária, através de

campeiros e criadores. A parte responsável pela produção agrícolaencarregava-se  dos engenhos,  da plantação de cana  e  fabricação  deaçúcar, aguardente, além  de mandioca para fazer  farinha e azeite co-m o produtos complementares.

Essa preocupação política das autoridades é mais visível aindadurante  as  insurreições  baianas do  século XIX. Especialmente  na

não foi  totalmente executado pela antecipação  do  movimento  euma caixa para finanças, através da qual eles conseguiam recursosfinanceiros para angariar  ou comprar alforria dos seus líderes. A s pró-prias autoridades da Província reconheceram o conteúdo político domovimento.

Outra preocupação d as autoridades e dos senhores era a alian-ça  d os  quilombolas o u  insurretos negros de um modo geral com ca-madas e grupos oprimidos da sociedade escravista. Os palmarmospraticaram largamente esse costume, o m esmo acontecendo em Mi-nas Gerais. Nessa Capitania  os quilombolas ligavam-se co m frequên-cia  aos  faiscadores e aos contraband istas de diamantes e ouro, comeles m antendo comércio clandestino.  Em  face  dessa concordata,  oscontrabandistas prestavam serviços aos quilombolas, informando- osda s m edidas tomadas pelo aparelho repressor contra eles. Esse con-tato  do s  negros  fugidos  ou  aquilombados co m outras camadas opri-midas,  quer durante a  Colónia,  quer durante o Império, será umaconstante p reocupação política e militar das autoridades e da classesenhorial.

7. A  SÍndrome  Finalmente, o desgaste psicológico. Referim o-do  medo  nos àquele sentim ento sociopsicológico  que de-

nominamos de  síndrome do  m ed o  e que foiresponsável pelo com portamento  da  classe senhorial durante toda  aduração do escravismo. O receio da insurreição, especialmente no pri-meiro período, criava  um estado d e pânico permanente.  O "perigode São Dom ingos (repetidam ente mencionad o), as possíveis ligaçõesdos escravos brasileiros com os de outros países, a provável articula-ção em  nível nacional d os escravos rebeldes, a obsessão  da violênciasexual  contra  mulheres  brancas ou outras  formas  de  insurgência,tudo isto levou a que o senhor de escravos se transformasse em umneurótico.

Um a  verdadeira paranóia apoderou-se d os membros d a  classesenhorial e determinou  o seu comportamento básico em relação àsmedidas repressivas contra  os negros  em geral.

Na   primeira fase, às autoridades coloniais e a classe senhorialusam de toda a brutalidade, legislando de forma despótica contra oescravo. Isto vai dos alvarás mandando  ferrar escravos  à legislação

232 DA INSURGÊNCIA NEGRA AO  ESCRAVISMO TARDIO

da pena de morte, do açoite, execução sumária "sem  apelo algum"

A SÍNDROME DO  M E D O  233

Para os senhores da Bahia isso nada tinha de impossível, pois a des-

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do s escravos rebeldes etc. Nessa fase não há nenhum processo  de me-diação e a legislação terrorista  reflete essa síndrome deforma  trans-parente. Aliás, para respaldar esse conjunto de medidas jurídicas hátodo um aparato de repressão brutal e  legal. Os escravos têm o seudireito de locomoção praticamente impedido. Os troncos, os pelouri-nhos, a gonilha, o bacalhau, a máscara de flandres,  ovira-mundo,o  anjinho, o libambo, as placas de ferro com inscrições infamantes,

as correntes, os grilhões, as gargalheiras, tudo isso formava o apare-lho de tortura ou aviltamento através do qual as leis eram executadascomo medida de normalidade social.

A síndrome do medo das classes senhoriais tinha apoio mate-rial no grande número de escravos negros e na possibilidade perma-nente da sua rebeldia. Refletia uma ansiedade contínua e, com isto,a necessidade de um aparelho de controle social despótico, capaz deesmagar, ao primeiro sintoma de rebeldia, a possibilidade dessa mas-sa escrava se rebelar. Os senhores de escravos, por isto, especialmen-te os senhores de engenho, onde a massa negra era bem superior àbranca e os meios de comunicação escassos, estavam sempre a pedirprovidências acauteladoras  ao  governo.

Na Bahia, por exemplo, a classe senhorial vivia angustiada com

a possível rebeldia dos seus escravos. Quantitativamente Spix e Mar-tius, quando estiveram em Salvador, por volta de 1824, davam a se-guinte estatística populacional  a qual bem demonstra a superioridadedos homens de cor sobre os brancos. Apoiados em   Balbi, davam,incluindo-se a Capitania  de  Sergipe, este quadro  demográfico:

Brancos  192 000índios  13000Gente livre  de cor 80 000  

Escravos de cor 35 000Negros escravos 489000)Negros forros 49000 )

115000

538 000858 000

Como se vê, para uma população branca de 192 000 pessoas ha-

via uma grande massa não-branca, incluindo-se os índios, de 666 000pessoas. A desproporção  era gritante. Essa posição de ansiedade daclasse senhorial se aguçará diante da inquietação  da classe escrava quese  levantara naquela região  a partir de 1807. Os cidadãos  e senhoresde escravos dirigiram-se  em 1814 diretamente ao rei expondo-lhe  osseus temores. Comentando a situação conflitante a historiadora  Ma-ria Beatriz Nizza da Silva assim  a expõe:

proporção  numér ica era muito grande entre brancos e mulatos, de umlado, e negros do outro. Pelas  listas de população mandadas  tirar notempo do Conde da Ponte, antecessor do Conde dos Arcos, só na ci-dade se calculava entre 24 a 27 negros para cada homem  branco oumulato.  Fora  dela,  a desproporção aumentava: havia 408 engenhos,calculando-se 100 escravos por engenho e, no máximo, 6 brancos e par-dos em cada um. De nada servia argumentar, como se tinha feito, quea rebelião era impossível por serem os negros de nações diferentes einimigas entre  si, pois o que se verificara na insurreição era a aliança

dos  Aussás aos Nagôs, Calabar etc.lf>

A síndrome do medo nos senhores reflete-se nos termos de umdocumento que enviaram ao rei. Vejamos:

Senhor,Com o mais profundo respeito o Corpo do Comércio, e mais cidadãosda praça da Bahia cheios  da maior aflição vão representar a V. A. R.a horrorosa catástrofe, e atentados, que têm acontecido e suplicar apronta providência que exige o deplorável estado das cousas para asegurança de suas vidas, honras, e fazendas.É notório que há 3 para 4 anos os negros tentam rebelar-se e matar to-dos os brancos, e tendo nos anteriores feito 2 investidas, agora ao ama-nhecer do dia 28 de fevereiro em distância somente de uma légua destacidade deram a 3? com muito mais estragos, e ousadias, que as outras.

Estes ensaios, Senhor, bem prognosticam, que chegará (a não ser setomarem medidas  mui sérias)  um dia em que eles de todo acertem erealizem inteiramente o seu  projeto,  sendo nós as vítimas da suarebelião e tirania.

E prosseguem descrevendo a rebelião de 1814:

Eles começaram na armação de Manuel Inácio, e seguindo pelo sítiode Itapoã até o rio de Joanes com o desígnio de irem incorporando-secom os dos mais engenhos, e armações gritavam liberdade, vivam osnegros, e seu rei o... e morram os brancos e mulatos; e a todas as ne-gras, e algum moleque, que os não queriam acompanhar matavam, lo-go é claro que o partido é que entre si, e que forçosamente  devesucumbir o dos brancos, e pardos. Ninguém de bom senso, mesmo pres-cindindo do prognóstico do atual acontecimento, poderá duvidar, que

a sorte desta Capitania venha a ser a mesma da Ilha de S. Domingospor 2 princípios, 1.° pela demonstrada da enorme desproporção de for-ças, e em uma gente aguerrida, e tão bárbara, que quando acometemnão temem morrer; pois que nos seus países se matam pelo festejo,e têm a superstição de que passam ao seu reino, e se chegam mesmoa assassinar por qualquer leve paixão, ou falso pundonor, e muitos nestainsurreição se acharam enforcados pelos matos do rio Vermelho; e o2° princípio  para deduzir a mesma consequência é a relaxação dos

234 DA INSURGÊNCIA NEGRA AO ESCRAVISMO TARDIO A  SfNDROME DO MEDO 235

costumes,  e falta de polícia, que  geralmente   se  observa nesta cidade, controle permanece. E a síndrome d o m ed o continua,  sob novas for-

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pelas muitas larguezas que se lhes tem dado, de  sorte que são contí-nuos  os  insultos, atacando  vergonhosamente   a  mulheres brancas.

A classe senhorial n ão satisfeita com as medidas de controle  to-madas pelo governo insiste no mesmo documento:

Isto ainda mais é de esperar  onde não há castigo;   pois que chegou otempo de até os senhores   serem  repreendidos pelo governo se o fa-zem, mesmo  com   justiça,  atendendo-se  mais  as  queixas  do s  negros,que as  razões d os   senhores, e  chama-se  a isto humanidade,  e idade

de ouro do Brasil; mas assim o é para os negros que têm o privilégiode  humanidade, e nós de desumanidade, além  de outros muitos fatos,e desgraças, que diariamente nos cercam, e o que mais é para admiraré nesta  tão  lamentável, e  funesta, a indiferença, e  indolência d o  gover-no, que não satisfeito de por espaço de 40 dias nenhum a providênciadar, ainda permite, e aconselha na sua 1? e única  ordem  do dia  d ez  docorrente abril que os negrinhos brinquem com os seus bailes nos doiscampos do Barbalho, e Graça, pontos tão perigosos pelo ajuntamentoque aí sem serem  vistos  podem fazer, quando   em as circunstânciasatuais nem 3 se deviam consentir conversar unidos; e em reco mpen sada barbaridade com que tratavam os dos lugares incendiados, cujascasas chegam  a cento e  cinquenta e  tantas, e  assassinados cinquen-ta e tantos, ainda recom enda na sua dita 1 ." ordem que na cidade seimpeçam   os  tais batuques  co m   toda moderação.  Deverá talvez pedir-lhes de joelhos, que não batuquem, e façam (como até  agora) disto ser-

tão de Costa de Mina. Assentar que se devem mandar os negros a di-vertimentos tão profanos em dias de descanso, e dedicados ao cultodo verdadeiro Deus, isto com prejuízo da sociedade, e do sossego pú-blico, quanto m uitos brancos, com o v. g. os soldados, e caixeiros, quenão têm domingo, nem dia santo aplicados sempre nos seus serviçose aqueles em guarda, e rondas de dia e de noite, e até mesmo por moti-vo  deles negros, passam sem eles, e até onde pode chegar a  relaxa-ção de costumes 17

Como vemos, a classe senhorial baia na, pelos seus representan-tes, dirige-se diretamente ao Rei para expor o seu estado  de espíritoem face  da  insurgência d os  escravos.

Quando o eixo dinâmico (económico e social) do escravismo sedesloca  do  Nordeste para Minas,  Rio de Janeiro  e São  Paulo, esse

mecanismo  de  defesa  senhorial  também  se  racionaliza.Da mesma forma como o número de escravos já não é mais pro-porcionalmente tão grande em relação aos  brancos os  mecanismosrepressivos  se modificam, como veremos. Há toda uma  moderniza-çã o das classes senhoriais que depois da lei de 1835 passam a procu-rar  elaborar leis protetoras contra  a  massa escrava. Modernizam astáticas, mas a estratégia de poder a fim de manter os escravos  sob

mas, a condicionar o com portamento dos senhores de escravos. É umcontinuum q ue acompanha  o outro — o da  discriminação  do negro—   em diferentes níveis,  mas com fins convergentes. Conforme vere-m os adiante,  o branco  fo i atingid o pela síndrome d o m ed o ,  de formasistemática  e  contínua, pela neurose e paranóia  da  classe senhorial.

Levando-se em   consideração  que o  número  de  escravos  e ne-gros durante  muito tempo era superior ao de brancos podemos vero estado de pânico permanente d os senhores de escravos. Daí não serpermitido ao escravo nenhum privilégio, pois os espaços sociais rigi-damente delimitados dentro  da  hierarquia escravista somente possi-bilitavam a sua ruptura e mudança estrutural através da negação dosistema: a insurgência social e racial do escravo.

A  síndrome d o m ed o estender-se-á, também , à segunda fase  doescravismo brasileiro, m as através de m ecanismos táticos  diferentes.A  classe senhorial já não legisla mais através dos seus agentes parareprimir e/ou muitas vezes destruir fisicamente o escravo, ma s passaa produzir leis protetoras. A partir  da extinção  do tráfico e a  dimi-nuição  da  população escrava começam a suced er-se leis que  prote-gem  e beneficiam  o escravo,  como veremos  adiante.

Desta form a, a s índrome do m edo defor mou psicologicamente

a classe senhorial, deu-lhe elementos  inibidores para assumir um com-portamento patológico e caracterizou a postura sádica dos seusmembros.

Depois  de 1850,  com a extinção  do  tráfico, temos o  início  doque chamamos  escravismo tardio. O comportamento  da classe senho-rial e do legislador  se alteram. Para conservar  o escravo, cujo preçoaumentara de forma drástica, surgem as primeiras  leis protetoras.  Poroutro lado,  o escravo negro que até então lutara sozinho com a suarebeldia   radical contra o instituto da escravidão  começa a ser vistoatravés  de uma  ótica liberal.  As manifestações hum anistas  se suce-dem. E as posições que refletiam uma consciência crítica contra a ins-tituição também aparecem, especialmente entre a  mocidade boémiae  alguns grupos  adeptos de um liberalismo mais  radical.

Neste contexto de mudanç a da cham ada opinião pública as leisprotetoras se sucedem: Lei do  Ventre Livre, Lei dos  Sexagenários,lei que extingue a pena do a çoite, proibição de venda separada de es-cravos casados e outras que objetivam proteger  o escravo valorizadopela impossibilidade de reposição antiga. Neste sentido alguma s pro-víncias decretam  antecipadamente extinta a escravidão nos seus terri-

236 DA INSURGÊNCIA NEGRA AO ESCRAVISMO TARDIO

tórios. N o Am azonas ela se extingue em 1884 e nessemesmo ano no

RASGOS FUNDAMENTAIS DO ESCRAVISMO TARDIO   (1851/1888)  237

Como vemos,  no  escravismo tardio entrecruzam-se relações es-

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Ceará  e em  Porto Alegre.Paralelam ente, a escravidão regionaliza-se e aqueks antig as áreas

de  prosperidade  da sua primeira fase entram em deadência, dandolugar  ao  florescimento  de uma  economia nova  que se desenvolverájá como o segundo ciclo do  escravismo  no Brasil.

8.  Rasgos  fundamentais  Essa nova  fase, p ara nós, terá osdo  escravismo  seguintes rasgos funda men tais:tardio (1851/1888)  1. Relações de  produção escra-

vistas diversificadas regional-mente, mas concentradas na parte que dinamizava uma  economianova, especialmente Rio de Janeiro e São Paulo.

2. Parcelas de trabalhadores  livres predominando em algumas re-giões, quer nas áreas decadentes quer naquelas  que decolaram como  café.

3.  Concomitância de relações capitalistas (de um capitalismo subor-dinado ao capital monopolista) e permanência de relações escra-vistas (Mina  de  Morro Velho).

4. Subordinação, no nível de  produção industrial, comunicações, es-

tradas de ferro, portos,  iluminação a gás, telefone etc. a o  capitalmonopolista, especialmente inglês; no nível de relações comerciaissubordinação  ao mercado mundial e sua  realização, internamen-te, em grande parte, por  casas comerciais estrangeiras,  a  mesmacoisa acontecendo  no  setor bancário  e de  exportação.

5. Urbanização e  modernização  sem mudança nas relações deprodução.

6. Tráfico  de escravos  interprovincial substituindo o internacional.Aumento  do seu preço  em  consequência.

7.  Trabalhador livre importado desequilibrando a oferta da forçade  trabalho e  desqualificando  o  nacional.

8. Empresas de trabalho  livre como  a colónia de  Blumenau.9. Empresas de trabalho livre e escravo, como no sistema de parce-

ria de  Ibicaba  em São  Paulo.10.  Empresas de trabalho escravo.11. Influência progressiva do capital monopolista  nesse processo.12.   Legislação protetora, substituindo a repressora  da primeira fase.13. Luta  dos  escravos  em aliança  com outros  segmentos sociais.  A

resistência passiva substitui  a insurgência  ativa da primeira  fase.Primeiras lutas da classe operária.

cravistas  e capitalistas. Mas, com uma  característica particularizado-ra :  essas relações capitalistas,  no que elas têm de mais importante esignificativo,  não  surgiram preponderantemente da  nossa acumula-ção interna, mas  foram injetadas  de fora, implantadas por todo umcomplexo subordinador  que atuava  no pólo externo. Com isto, háalterações no comportamento da classe senhorial e dos escravos. Asgrandes  lutas  radicais do século XVII até a primeira parte do século

XIX entram em recesso. Nesta segunda   fase  do escravismo, novosmecanismos  reguladores influem também no comportamento  dos se-nhores. Uma coisa porém não se altera: o escravo continua como pro-priedade, como coisa,  ou, para usarmos um conceito económico, elecontinua como capital  fixo.  Na sua essência, a situação do escravopermanece a mesma,  com modificações apenas nas táticas controla-doras da sua rebeldia por  parte  dos  seus proprietários.

Mesmo assim, há  transformações também no comportamentodo  escravo. Não apenas pelas m odificações táticas, m as por manipu-lações estratégicas da classe senhorial. O tráfico interprovincial de-sarticula mais uma vez a população escrava, desfazendo muitas vezeso grupo família. A lei que regula e procura p roteger  a  família escravanão permitindo a sua fragmentação  na venda,  faz-se quase  fora do

temp o pois é de 1869. Ela surge como medid a reprodutora e não p ro-tetora, pois as famílias passam a ser matrizes de novos escravos nomomento em que a reprodução desses elementos para o trabalho  ca -tivo  começa a escassear.

Se na primeira  fase do escravismo essa desarticulação verificava-se na África , o mesmo irá acontecer na segunda, quando os escravossão  vendidos das outras províncias para  Sã o Paulo  e Rio de Janeiro.Somente que ela se realiza internamente. A lei que impede essa desar-ticulação  familiar somente chega durante a Guerra do Paraguai, pa-ra   impedir  a  total  fragmentação  do  acasalamento escravo, pois  apopulação negra foi aquela que mais   sofreu  em consequência doconflito.

Paralelamente há  substanciais modificações  e diferenciações  naeconomia brasileira. Superpostas às relações de produção  escravistasimplantam-se,   do exterior, relações capitalistas dependentes. O capi-tal monopolista cria um complexo cerrado de dominação na quilo quea economia brasileira deveria dinamizar se tivesse  forças económicasinternas capazes de efetuar  uma  mudança qualitativa  a fim de sairdo escravismo e entrar na senda do desenvolvimento capitalista auto-

238 DA INSURGENCIA NEGRA AO ESCRAVISMO TARDIO

nomo. O escravismo brasileiro, no seu final, já era um anacronismo

ENCONTRO  DO  ESCRAVISMO TARDIO COM O  CAPITAL MONOPOLISTA  239

Precisamente no fim do Império vamos constatar que as vinte firmas

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aberrante e a sua decomposição verifica-se simultaneamente ao iní-cio   da dominação imperialista. Conforme já  dissemos  em parte,  agrande duração do escravismo brasileiro levou-o a encontrar-se c omaquelas forças económicas  de dominação exógenas que não  tinhammais  interesse em exportar mercadorias, m as capitais.

Depois de ocupado e dominado o mercado interno, a Inglater-ra  investe capitais para subalternizar estruturalmente a economia bra-sileira. O representante do s Estados Unidos junto ao  nosso governo

ao  iniciar-se a segunda metade do século XIX descreveu essa situa-ção da  seguinte maneira:

Em  todas  as  fazendas d o Brasil,  os  donos  e seus escravos vestem-secom manufaturas do trabalho livre, e nove décimosdelas são inglesas.A Inglaterra fornece todo o capital necessário paramelhoramentos in-ternos  no  Brasil  e fabrica todos  os  utensílios  de uso ordinário,  de en-xada para cima, e quase todos os artigos de luxo, ou de  necessidade,desde o alfinete até o vestido caro. Cerâmica inglesa, os artigos ingle-se s  d e vidro, ferro e madeira,  sã o  t ão universais como o s panos de lãe os  tecidos  de  algodão.  A Grã-Bretanha fornece ao  Brasil  os seus n a-vios  a vapor e a vela, calça-lhe e  drena-lhe a s   ruas, ilumina-lhe  a gásas  cidades, constrói-lhe  as  ferrovias, explora-lhe as  minas, é o seu ban-queiro, levanta-lhe as linhas telegráficas,  transporta-lhe as malas pos-tais, constrói-lhe as docas, motores, vagões, numa palavra: veste e faz

tudo,  menos alimentar  o povo brasileiro.

18

Nelson Werneck Sodré, comentando esta realidade, afirma:

No início da segunda metade do século XIX, realmente, o Brasil come-ça a emergir da prolongada crise que tivera no início com a decadên-cia da mineração, ainda no período colonial. A necessidade estava emaumentar  a  exportação, conservando  a  estrutura vigente, isto  é,aumentá-la produzindo quantidade maior  de produto agrícola de con-sumo suscetível de desenvolvimento  nos mercados externos. Para is-so, havia dois fatores favoráveis: a larga  disponibilidade de terras e oexcesso de oferta da força de trabalho, já concentrada e adaptada aoregime escravista.  O fator negativo,  na época, consistia  na fraca dis-ponibilidade de recursos  monetários.19

Essa emergência não produz ruptura com a estrutura escravis-ta, mas prolonga-a e reajusta-a aos novos mecanismos internos e ex-ternos sempre na direção de sujeição progressiva  ao capital externo.

Para se ter uma ideia do nível de subalternização económica doBrasil n o final d o escravismo tardio e d e como todos os nódulos es-tratégicos da nossa economia àquela época encontram-se dominadospelo capital alienígena, vejamos o  levantamento de Humberto Bas-tos no fim do  século XIX:

maiores exportadoras  de  café eram d e origem estrangeira, controlan-do cerca de 70% das exportações, como citarei a seguir: Arbukle Bro-thers, E. Johnston & Cia., Levering & Cia., Hard Rand & Cia., J. H. Doane&Cia., Philipps Brothers &Cia., WilleSchmilinsk &Cia., GustavTrunsk& Cia., Norton Megaro & Cia.,  Andrew Mur & Cia.,  Karl Valois & Cia.,Berle Cia., Mc Kinnel &Cia., Max Nothmann  &Cia., O. S. Nicholson& Ca., Pradez & Fls. Com ndicação nacional havia apenas duas gran-de s firmas na praça do Rio de Janeiro: J. F. de Lacerda & Cia. e ZenhaRamos & Cia. O Brasil tinha o monopólio natural  da produção  do café.

O  monopólio comercial, porém, pertencia a firmas estrangeiras.

Da mesma forma como  o capital monopolista estrangeiro ab-sorve e domina a comercialização do  café, monopoliza, igualmente,ainda em pleno regime escravista, todos os setores estratégicos da nossaeconomia. Ainda  é Humberto Bastos quem informa:

Num longo período que vai de 1868 a 1888, não se registra em  territóriobrasileiro a fundação de fortes empresas  nacionais. Notamos, isto sim,a  fundação da The Amazon Stean Navegation Co. Ltd.,  New  Londonand Brazilian Bank Ltd., The Braganza Gold Mining Ltd., The Madeiraand Mamoré Railway, The São Pedro Brazil Gás Co. Ltd., The PitanguyGold Mining Co., Wilson Sons and Co. Ltd., The Rio Grande do Sul GoldMining Ltd., The City of Santos Improvements  Co. Ltd., The CamposSyndicate Ltd., The Rio de Janeiro Four Mills and Granaríes Ltd., So-

cieté Anonime du Rio de Janeiro, The Singer Manufacturing  Co., Brazi-lian Exploration Co. Ltd.20

É o encontro do escravismo tardio com o capitalismo monopo-lista internacional estrangulando a possibilidade de um  desenvolvi-mento capitalista autónomo  no  Brasil.

9.  Encontro  do  Com isto ficam traumatizadas e estrangu-escravismo  tardio  ladas as fontes de desenvolvimento capi-COm O capital  talista autónomo. A modernização avan-monopolista  ca, a economia  se regionaliza,  a urbani-

zação se acentua,  mas as relações escra-vistas e a s suas instituições correspondentes,  finalmente a estruturasocial, conserva-se intocável n o fundamental embora  já com todosos sintomas de decomposição em face  da sua incapacidade de dina-mismo económico interno. Por outro lado, progride o estrangulamen-to das possibilidades  de  desenvolvimento capitalista nacional  emconsequência da dominação  do capital das metrópoles. Esse proces-

240   PA  INSURGENCIA NEGRA AO ESCRAVISMO TARDIO EVCONTRO DO ESCRAVISMO TARDIO COM O CAPITAL MONOPOLISTA  241

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so de decomposição va i encontrar — do ponto devista interno — umasaída para adiar a sua morte e  neutralizar os grupos  abolicionistasque  se formavam: a Guerra do Paraguai.

O conflito resultou, de fato, dos interesses ingleses na Américado Sul, mas, internamente, serviu de anteparo ideológico para sustara visão crítica que ia se avolumando em relação ao trabalho escravo.Passou-se a invocar o brio patriótico do povo todas as vezes que al-

guém ou algum grupo queria tocar no delicado issunto. Por  outrolado, os escravos passaram a ser recrutados e muitos fugiram dos seussenhores para se alistarem  objetivando alcançar aliberdade que lhesera prometida. Ele é também alforriado pelo Império e os chamadosescravos da nação são incorporados às tropas brasileiras. Os senho-res, por seu turno, para fugirem ao dever de se incorporarem às tro-pas, enviam em seu lugar escravos da sua propriedade e m númerode  um, dois, três e até mais. Com a deserção  quase total da classesenhorial dos seus deveres militares, o exército será engrossado  subs-tancialmente por escravos negros (voluntários ou engajados compul-soriamente), capoeiras, negros forros, mulatos desocupados etc.

A Lei n.° 1.101 de 20 de setembro de 1860 (Artigo 5.°,  § 4?),e, depois, o Decreto n? 3.513, de 12 de setembro de 1865, facultavama substituição do convocado ou recruta por outra pessoa ou pessoasou o pagamento de uma "indenizacão" ao governo. 21 Com isto, oExército que foi combater no Paraguai era predominantemente ne-gro. Os negros eram enviados em grande número para a Unha de frentee foram os grandes imolados nas batalhas ali travadas. Por esta ra-zão  J. J.  Chiavenato escreve que:

As  consequências   da  Guerra do Paraguai foram terríveis para os ne-gros. Os mais fortes, em uma seleção que os tirou do eito para a guer-ra, morreram lutando. Os negros mortos somaram de 60 a 100 mil —há estimativas que informam até 140 mil. Isso na frente de batalha, noParaguai. Esses números nunca aparecem nas estatísticas oficiais.Cotejando-se porém estimativas de militares brasileiros — Caxias in-clusive — à margem da historiografia oficial, dos observadores estran-geiros, dos próprios aliados argentinos, chega-se com relativa segurançaem  torno de 90 mil negros mortos na Guerra do Paraguai. Na guerra

em  si, porque outros milhares morreram de cólera durante a fase detreinamento, de disenteria, de maus-tratos nos transportes.22

O que desejamos destacar, em seguida, é a diferença da insur-gência negra durante a primeira fase do escravismo e na  fase do es-cravismo tardio. E também salientar a mudança de estratégia da classesenhorial em relação à legislação de controle social sobre o escravoque  foi praticamente invertida: de uma legislação repressiva terroris-ta e despótica passou a produzir uma legislação protetora.

Os senhores de escravos e suas estruturas de poder correspon-dentes, com a Guerra do Paraguai, resolveram ou pelo menos adia-ram a solução da  crise institucional que a escravidão havia criado,apelando para o patriotismo dos abolicionistas e, do ponto de vistada  ideologia racial, encontraram oportunidade de branquear a popu-lação brasileira através do envio de grande quantidade de negros pa-ra os campos de batalha, de onde a sua maioria não regressou e muitos

dos que voltaram foram reescravizados.Ao  mesmo tempo,  o comportamento do negro escravo é bemdiferente daquele que proporcionou a formação de Palmares, no sé-culo XVII, e as insurreições baianas do século XIX. Nessa segundafase já não se aproveitam da guerra para se livrarem dos seus senho-res, como fizeram aqueles que iriam formar Palmares durante a ocu-pação holandesa  ou como aqueles negros que durante a  luta pelaindependência, na Bahia,  fugiram para as matas, escapando ao con-trole dos seus senhores. Não se têm notícias de grandes movimentosde rebeldia escrava durante o período da guerra. É que a própria classeescrava já estava parcialmente desarticulada, passara por um proces-so de diferenciação muito grande quer na divisão do trabalho querna localização das suas atividades e, por estas e outras razões, já não

tinha mais aquele ethos de rebeldia antiga, anestesiada (pelo menosparcialmente) pelas medidas jurídicas decretadas em seu favor.A rebeldia escrava chega ao seu apogeu até a primeira parte do

século XIX. Em seguida é substituída por uma resistência passiva,muitas vezes organizada não por eles mas por grupos liberais que pro-curam  colocar  os escravos dentro de padrões não-contestatórios  aosistema. Não é por acaso que um ano depois da Guerra do Paraguaié promulgada a Lei do  Venti  > Livre que dá àqueles escravos descon-tentes a esperança de que através de medidas institucionais a Aboli-ção chegaria. A classe senhorial manipula mecanismos reguladoresnovos e arma uma estratégia que consegue deslocar sutilmente o fimdo escravismo das lutas dos escravos para  o Parlamento.  23

Mas essa estratégia senhorial é desenvolvida em cima de condi-

ções económicas e sociais muito particulares e desfavoráveis. É queo Brasil, ao sair da guerra, é uma nação completamente dependentee endividada, com compromissos alienadores da nossa soberania queproduzem descontentamento e inquietação política em diversos seg-mentos sociais. Por isso procura manobrar, de um lado, procurandoimpedir um conflito maior entre senhores e escravos, e, de outro, ten-tando saldar os seus compromissos financeiros internacionais assu-midos durante o conflito, especialmente com os Rotschild.  24

242 DA INSUROÊNCIA NEGRA AO ESCRAVISMO  TARDIO

A  população escrava, por seu turno, sai consideravelmente di-

ENCONTRO   DO ESCR AVISMO TARDIO  COM O  CAPITAL MONOPOLISTA  243

fosse posto  em prática. Os negros escravos não tinham a hegemonia

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minuída   da Guerra  do Paraguai. Não tem mais o peso demográficoda  primeira  fase  do escravismo. Por outro lado, o aparelho repressorse refina'pelo menos aparentemente, os negros escravos estão menosconcentrados,  a urbanização e a modernização prosseguem. Tudo is-to diferencia ainda mais o escravo na divisão técnica d» trabalho. S eupotencial de rebeldia se vê bloqueado por todas essas razões,  enquantoo capital monopolista consegue dominar a queles setores económicos

que  darão prosseguimento à form ação de um modelo dependente decapitalismo.Após a Guerra do Paraguai a escravidão decompunha-se social

e economicamente não apenas naquelas áreas decadentes do Nordes-te, mas no centro  mesmo daquelas de economia nova e  ascendente.

Se, de um  lado,  os  escravos  não  mais participavam d e movi-mentos radicais  armados,  de outro,  na  última  fase  da escravidão, asimples resistência pa ssiva atuava como agente desarticulador e de-sestruturador daquelas unidades económicas  que ainda produziam ba-seadas exclusivamente no traba lho escravo. O movimento abolicionistasó se articula nacionalmente em 1883, quando  é fundada a  Confede-ração  A bolicionista. Esse movimento que teve diversas alas ideológi-cas procurava, na  verdade, extinguir a escravidão, mas  objetivava

igualmente manter o s escravos qu e abandonavam o trabalho sob seucontrole.

Desses mov imentos d a  última  fase  do  escravismo dois  são osmais significativos:  a atuação dos Caifases  e a estruturação do Qui-lombo do Jabaqua ra, amb os em São Paulo, sendo que o segundo éum   prolongamento do primeiro.

Os  Caifases,  liderados po r António Bento, iniciam-se com umdiscurso radical, pregando através  do seu jornal A Redenção a eman-cipação dos escravos por quaisquer meios, inclusive o revolucioná-rio. Mas já no  final  a sua direção entra em conciliação com osfazendeiros, inclusive servindo de intermediária entre os escravos fu -gitivos e os proprietários das fazendas. N ão queremos negar que du-

rante algum tempo António Bento tenha sido um elemento valiosopar a a desarticulação das relações escravistas nessa última fase. O quedesejamos caracterizar e destacar é que dentro das condições sociaise históricas em que a transição  se realizava, com os pólos de mudan-ça  já  dominados estrategicamente pelos agentes económicos externos— inclusive com a introdução d o trabalhador estrangeiro para subs-tituir  o negro  — ,  não havia possibilidades  de que o discurso radical

do  processo  de mudança.  Daí porque o  próprio António Bento e n-trou e m contato  co m fazendeiros paulistas q ue necessitavam d e bra-ços para a lavoura e oferece-lhes os próprios escravos fugidos  de outrasfazendas.  Bueno d e  Andrada  descreveu essa negociação  nos seguin-tes  termos:

António  Bento enveredou  por um caminho  revolucionário mais origi-nal.  Combinou com alguns  fazendeiros, dos quais  havia já  despovoa-

do as  roças, para receberem escravos retirados de  outros donos. Cadatrabalhador adventício  receberia de  seus patrões o salário de 400 réis.O processo, sem perturbar completamente a lavoura, libertou turmase   turmas de escravizados e interessou muitos fazendeiros na vitór ia dasnossas ideias. Foi uma bela  ideia

Sobre essa solução encontrada pelos abolicionistas paulistas, Ro-bert Conrad  escreve que:

Segundo este proprietário, que conduziu  ele  mesmo  os  proprietáriosa Bento  para negociações, na data da Abolição mais de um terço dasfazendas  d a  província  de São  Paulo já   estavam sendo trabalhadas  po r escravos que haviam abandonado outras propriedades. (...)  Para osplantadores  de café, é claro, este arranjo era vantajoso,  já  que, a 400por dia, talvez mesmo uma escala temporária  de salário, a renda anualdo trabalhador recentemente  libertado era mais ou menos o equivalentedo valor de três sacas de café, ta lvez um oitavo da sua  capacidade pro-dutiva. 25

Como vemos, os escravos qu e fugiram  através d a proteção do sCaifases  não tiveram liberdade de vender a sua força  de trabalho d eforma  independente, mas ela foi  feita  através  de intermediários queestabeleceram inclusive o valor do salário. Tudo isto estava  subordi-nado à conjuntura de transição sem a participação em primeiro pla-no  daquelas forças sociais  interessadas na  mudança  radical.

Existiam, portanto, mecanismos controladores  da  insurgênciaescrava por parte dos p róprios a bolicionistas. E com isto os negrosfugidos  ficaram praticamente à mercê do protecionismo dos aboli-cionistas b rancos.

Com o Quilombo do Jabaquara, prolongamento d a atuação d osCaifases,  o mesm o acontece. E le também surge na última fase d a cam-panha, organizado  po r  políticos  que eram contra  o  instituto da es-cravidão, mas, a o mesmo tempo, tinham receio de uma radicalizaçãoindependente da grande massa de negros fugidos  da s fazendas de ca-fé.   Po r isto mesmo teve particularidades  em relação  ao s quilombosque se organizaram na prim eira fase do  escravismo. Uma delas é que

244 DA   INSURGÊNCIA  NEGRA AO ESCRAVISMO TARDIO OPERÁRIOS E ESCRAVOS EM LUTAS PARALELAS  245

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ele não surgiu lenta e espontaneam ente, como acontecia com os qui-lombos  da primeira fase e era criação dos quilombolasem confrontocom a sociedade escravista no seu conjunto.  Foi, ao contrário, orga-nizado por um grup o de abolicionistas que tinham  objetivos  muitoclaros e metas bem delimitadas.  Os escravos evadidos tiveram, no ca-so,  portanto, um papel passivo no processo.  O seu líder, por outrolado  (e talvez  po r  isto mesmo) foi o ex-escravo sergipano Quintino

de L acerda que não surgiu de uma luta independente dos escravosaté conseguir pela confiança geral a sua chefia, mas foi indicado pelogrupo organizador de abolicionistas moderados. Com ovemos, o qui-lombo teve a sua formação subordinada às peculiaridades conciliató-rias da  ideologia abolicionista  e não às lutas d os  próprios escravos.

A chegada de ondas sucessivas de cativos  a  Santos, vindos dediversas regiões d a Província e que ali se refugiavam, levou os  aboli-cionistas daquela cidade paulista a tom arem um a posição prática nosentido de  organizá-los convenientemente. Em 1882, por iniciativa deXavier Pinheiro, realizou-se u m a reunião desses abolicionistas paradecidirem o destino que poderiam dar às centenas de negros que che-gavam diariamente àquela cidade.

Feita uma coleta entre eles para a organização de um quilom-bo , conseguiu-se num abrir e fechar de olhos" duzentos homens ar -mados. Quintino de Lacerda foi escolhido  chefe  do quilombo eelemento de ligação entre os negros do reduto  e os abolicionistas dacidade. Os abolicionistas escolheram, tam bém , o local do quilombo:  uma área ainda  em estado primitivo, coberta  de matos  e  cortadade riachos". 26 Segundo um historiador da cidade de Santos a esco-lha de Quintino de Lacerda para  chefe  do quilombo deveu-se à ne-cessidade de um líder que os m antivesse (os negros fugidos) em ordeme  arrefecesse  os seus ímpetos naturais  e compreensíveis . 2?  Comovemos, o quilombo foi organizado  como mecanismo  controlador deum   possível radicalismo no comportamento dos negros  fugidos.

Esse quilombo, como  vemos,  era bem diferente d e quantos s e

formaram na primeira fase da escrav idão. Os abolicionistas p rocura-va m  tirar os escravos das fazendas, mas não permitiam que eles seorganizassem  sem a m ediação do seu poder de direção sobre eles. E raportanto uma solução intermediária que subordinava os escravos fu-gidos às  correntes abolicionistas.

Daí terem surgido, dentro desse conjunto de forças, contradi-ções e divergências quanto a o tratam ento que deveria ser dado a es-ses negros. Joaquim  Xavier  Pinheiro, abolicionista e inspirador da

fundação do quilom bo, embora no seu início tenha aj udad o com di-nheiro o movimento, explorou posteriormente o trabalho dos quilom-bolas em  proveito  próprio. Possuidor de uma caieira, em pregava osescravos refugiados no Jabaquara sem remuneração na sua empresa,a troco de comida e esconderijo. Os demais abolicionistas sabiam dofato mas fingiam ignorá-lo, pois, para eles  a sua contribuição à cau-sa  justificava aquele procedimento.

Sem  acesso à terra, o negro se marginalizou na cionalmente de-pois da Abolição. Em relação ao Nordeste, Manoel Correia de An-drade escreve com acerto que:

A Abolição, apesar de ter sido  um a medida revolucionária, de vez queatingiu em ch eio o direito de propriedade, negando indenizaçâo aos de-sapropriados, não tendo sido complementada por medidas que demo-cratizassem o acesso à propriedade da terra, não provocou modificaçõessubstanciais nas estruturas existentes. As mesmas famílias, ou mes-mo grupos dominantes continuaram a dirigir a economia da área açu-careira,  apenas substituindo o que em parte já haviam feito, o uso damão-de-obra   escrava pelo uso da   mão-de-obra  assalariada.28

Os  mecanismos seletores e discriminadores foram os mesmos.Tanto no Nordeste quanto nas  demais regiões.

Como v emos, a rebeldia negra, na fase conclusiva da Abolição,ficou subordina da àquelas forças abolicionistas m oderadas que pro-curaram subalternizar o negro livre de acordo com padrões de obe-diência próximos aos do escravo. Era o início d a m arginalização  donegro após a Abolição q ue persiste até hoje. O s próp rios a bolicionis-tas   se encarregaram  de colocá-lo  no seu devido lugar".

10. Operários  e  É uma característica desse escravismo  tardioescravos em  o cruzamento de relações escravistas e capi-lutas paralelas  t alistas. Se isto se verificava no nível das clas-

ses  dominantes, vamos encontrar o mesmofenómeno n o nível da classe trabalha dora, isto é , a existência de mo-vimentos de resistência escrav a e movimentos de trabalhadores livres,de operários. Os escravos ainda lutava m p ela extinção do ca tiveiroe já os operários, paralelamente, p artiam para um a posição reivindi-cativa, inclusive organizando greves. Isto bem demonstra a hetero-doxia desse modo de produção na sua última fase, o encontro decontradições  entre  senhores e escravos  e capitalistas e operários.

OPERÁRIOS  E  ESCRAVOS E M LUTAS PARALELAS  247

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246 DA   INSURGÊNCIA NEGRA A O  ESCRAVISMO TARDIO

Neste sentido, Hermínio  Linhares  registra u m a  jreve  de tipó-grafos em 1858, apenas oito anos, portanto, após a extinção do  tráfi-co  negreiro.  Diz ele neste sentido:

A greve do s tipógrafos  em   1858 foi a primeira greve do Rio de Janeiro,talvez do Brasil. O trabalho dos t ipógrafos não era regularizado, princi-

palmente  no s grandes jornais, começavam  a  trabalhar à s três horas datarde  e só  largavam alta noite  e à s  vezes  terminavam de  madrugada.Em  dezembro de  1855 resolveram pedir o  aumento de dez tostões diá-rios, sendo prontamente atendidos. Decorridos dois anos, nos primór-dios de dezembro de 1857, como o custo de vida tivesse subido muito,pediram  novo aumento.  Não  especificaram quanto desejavam, pelo con-trário, declararam que se satisfaziam com  qualquer quantia, mesmo pe -quena. Os empregadores, alegando ser necessário estudar o problema,pediram que aguardassem resposta até o início do ano. Nos primeirosdias d e janeiro veio a resposta: o aumento não era possível. Em  8-1-1858os   tipógrafos d os   jornais  Diário  do Rio de Janeiro,  Correio  Mercantil

e Jornal  do  Comércio, qu e eram os  grandes jornais d a época, não sa-tisfeitos  com a resposta dada, exigiram aumento  de dez tostões diá-rios.  Os patrões se negaram. Foi desencadeada a primeira  greveorganizada  do  Rio. No dia   9-1-1858  nã o houve jornais. No dia 10, do-

mingo, o s  tipógrafos lançaram  o seu jornal  — Jornal  do s  Tipógrafos.Nele se defendiam e ao mesmo tempo atacavam os proprietários dosjornais; além disso, o jornal era igual aos demais, possuindo todas assessões clássicas da época. Assustados, os proprietários dos jornaispediram ao chefe de polícia providências enérgicas; este chamou umacomissão de vinte grevistas, que tão bem se houve na defesa das suasreivindicações que o chefe de  polícia nada pode fazer. Foram feitos ape-los pelos proprietários ao Ministro da Justiça que também nada con-seguiu. Em desespero, correram ao Ministro da Fazenda; este ordenouque os tipógrafos da Imprensa Nacional fossem postos à disposiçãodas três folhas. Tais tipógrafos, porém, solidários com seus colegas,se  negaram a trabalhar. Foram necessárias muitas ameaças, medidasde  repressão etc., para que  eles ocupassem o  lugar do s grevistas. Quan-do terminou a greve, os tipógrafos foram acusados de elementos per-turbadores, de anarquistas.29

Ainda está por se fazer um levantamento dos movimentos dostrabalhadores livres no período escravista  e as possíveis convergên-cias ou divergências com as lutas dos escravos. Na greve que estamosregistrando, encontramos, ainda  em  Hermínio Linhares:

Como fosse difícil a impressão de seu jornal (dos grevistas), um grupode  tipógrafos se ofereceu e trabalhou de graça. No n.°14, lê-se: Já ét empo de acabarem as opressões de toda casta; já é tempo de se guer-rear por todos os meios legais  toda exploração do homem pelo mes-mo homem . A Imperial Associação Tipográf ica Fuminense deu onzedos doze contos de réis que tinha em caixa para auxiliar o jornal.30

Queremos destacar aqui,  nesta perspectiva de possível conexãode lutas operárias  com as dos escravos, que foi exatamente essa I m -perial Associação Tipográfica Fluminense que, ao ser informada de

que entre os seus associados tinha um que era escravo designou uma

comissão para libertá-lo.Do ponto de vista em que nos colocamos  em relação  ao escra-

vismo tardio o exemplo é significativo pois demonstra como já exis-tiam escravos trabalhando como operários e se associando  a entidadesde trabalhadores livres e, em contrapartida,  a iniciativa de uma des-

sas entidades  no  sentido  de modificar  o status  do seu  associado,

concedendo-lhe o título de  cidadão.As greves e movimentos  reivindicatórios dos operários durante

o escravismo ainda não foram levantadas sistematicamente por pes-quisadores. Há, porém, diversas informações esparsas. Escreve Fer-nando Henrique  Cardoso:

Em  época anterior à greve dos chapeleiros,  em 1884, houve um movi-mento reivindicatório levado adiante pelos trabalhadores de uma es-trada de ferro. Reclamavam a obrigação que lhes era imposta de gastaros salários nos armazéns da própria companhia, onde pagavam o do-bro do preço corrente no mercado pelos géneros de que necessitavampara viver. No decorrer do movimento reivindicatório enviaram um me-morial à Companhia onde diziam:  Somos pobres e temos que nos su-jeitarmos aos caprichos desses senhores, por infelicidade nossa. Istonão é justo.  Impõe-se-nos  como obrigação gastarmos de 15$000 a20$000 por mês, podendo nós gastarmos muito menos. Isto é duro. De-pois, se algum trabalhador resiste e não gasta nos tais armazéns é lo-go despedido. À digna diretoria levamos os nossos queixumes,esperando que ela providencie no sentido de que se dê liberdade e  pro-teção aos trabalhadores .31

Esses movimentos de trabalhadores livres que coexistem com osescravos bem demonstram como o escravismo tardio  do  Brasil de-monstrava, na sua estrutura, dois níveis de contradições na área dasrelações  de trabalho.  Uma era entre os senhores de escravos e a es-cravaria que se revoltava, outra  era aquela  que existia entre patrões

e operários que reivindicavam maior valorização da sua força de tra-

balho. De permeio, influindo em uma e na outra, o capital monopo-lista internacional garroteava o desenvolvimento autónomo  da nossaeconomia e a colocava em situação de dependência como está até hoje.

24*  DA INSUROÊNCIA  NEGRA  AO  ESCRAVISMO TARDIO NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 249

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Notas e referências bibliográficas

1 RODRIGUES, José Honório. A rebeldia negra e a Abolição. Afro-Ásia,  pu-blicação semestral do Centro de Estudos Afro-Ocidentais, Salvad or, (6/7):102-3, jun./dez. 1968.

2 ANTONIL, André João.  Cultura e opulência  do  Brasil. Saltador, LivrariaProgresso, 1950.  p. 55.

3 Idem,  ibidem, p. 86.4  Idem, ibidem, p. 57.5 BENCI,  Jorge S. J.  Economia  cristã dos senhores no  governo  do s  escra-

vos.  São  Paulo,  Grijalbo, 1977. p .  139.6  MARX,  Kar l . Lê  capital.  Paris,  1949. v. II, p. 91.7 Vejamos como a lei é  detalhista, igualando-se à resposta do Rei ao Conse-

lho Ultramarino quando  define o que é quilombo, entrando, tam bém , naminúcia do número : quilombo era toda habitação de negros fugidos  quepassem  d e cinco, em parte desprovida, ainda que não  tenham ranchos le-vantados nem se achem  pilões neles". A resposta é de 1740.

8  Coleção das Leis do Governo do Império do Brasi l ,  1835, p. 5-6.9  GOULART,  José Alípio. Da fuga ao suicídio (Aspectos de rebeldia dos es-

cravos  no Brasil). Rio de Janeiro, Conquista, 1972. p. 35.10  SALLES,  Vicente. O  negro no Pará. Rio de  Janeiro, FGV/UFP, 1971.  p.217.

11 Vejamos a situação descrita po r José António Gonçalves de Mello: Des-de 1638 há referência a quilombos que constituíam uma grande ameaçapara as populações e os bens da colónia. Havia tam bém pequenos aldea-mentos ou bandos de negros  que roubavam  e matavam pelos caminhos:os  'boschnegers', contra os quais eram empregados capitães de campo bra-sileiros, já que os holandeses eram considerados incapazes para tal fun-ção. (...) Outros quilombos surgiram  no período da dominação holandesa,ma s são poucas as informaç ões sobre eles. Um deles estava situado na 'MataBrasil' e os seus elementos corriam a região em bandos, roubando e ma-tando. O governo holandês castigava-os exemplarmente: eram enforcadosou queimados vivos (.'..) Mas a guerra empreendida pelos holandeses no

período 1630/1635 desorganizou completamente a vida da colónia. Todosos  negros aproveitaram a oportunidade para fugir.  Pela leitura dos docu-mentos vê-se que, parou quase com pletamente  o trabalho nos  engenhos.Um a relação  dos  engenhos existentes entre o rio das Jandadas  e o Una ,feita pelo conselheiro Schott, mostra-nos a verdadeira situação dessas pro-priedades, exatamente na zona mais rica da Cap itania, e a zona Sul. Eramcanaviais queimados, casas-grandes abrasadas, os cobres jogados aos rios,açudes arrombados, os bois levados ou  comidos, fugidos todos os negros.Só não  haviam fugido  os negros velhos  e molequinhos". (MELLO,  NETO,José António  Gonçalves de.  Tempo de flamengos .  Rio de Janeiro, JoséOlympio,  1947.  p.  206-30.)

12  FEYDIT,  Júlio. Subsídios para  a  história  do s  campos d os goitacases. Ri ode Janeiro, Esquilo, 1979. p. 361. Devemos assinalar a técnica sofisticadausada para o incêndio, o que demonstra a participação pelo menos indire-ta de abolicionistas junto  aos escravos fugidos, pois  o uso de lentes paratais atos pressupõe uma intenção de impunida de que o quilombola tra di-cional não tinha.

13  Idem, ibidem, p. 362.14  Idem, ibidem, p. 362.15 V ejamos como um historiador do Quilombo do Am brósio descreve a di-

visão do trabalho naquele reduto: Foi um modelo de organização, de dis-ciplina, de trabalho comunitário. Os negros, cerca de mil, eram divididosem grupos ousetores, trabalhando todos d e acordo  com a sua especialida-de. Havia os excurcionistas ou exploradores, qu e saíam em grupos de trinta,mais ou menos, assaltavam   fazendas ou carava nas de viajantes; havia oscampeiros ou criadores, que cuidava m do gado; havia os caçadores ou me-garefes; os ag ricultores que cuidavam das roças e plantações; os que trata-va m  do s engenhos,  fabricação de açúcar, aguardente, azeite,  farinha etc.Todos trabalhavam nas suas funções.  (...) As colheitas eram conduzidasaos   paióis  da comunidade .  (BARBOSA, W aldemar  de  Almeida.  Negrose qui lombos em Minas Gerais. Belo  Horizonte, 1972. p. 31.)

16  SILVA, Maria Beatriz Nizza da. A primeira gazeta da Bahia: Idade  d'Ou-

ro do Brasi l .  São Paulo, Cultrix/MEC, 1978. p. 101.17 Doe. na  Biblioteca  Nacional do  Rio, seção  de  manuscritos  II, 24, 6, 53,apud  SILVA,  Maria Beatriz  Nizza  da. Op.  cit.

18 Apud SODRÉ, Nelson W erneck. Brasil: radiografia  de um  modelo .  Petró-polis,  Vozes, 1975. p. 43.

19  SODRÉ,  Nelson W erneck. Op.  cit.,  p. 46.20  Apud  MARTINS, Ivan Pedro  de .  Introdução à economia brasileira. Rio de

Janeiro, José Olympio, 1961. p. 100-1.21  CHIAVENATO,  J. J.  Os voluntários da pátria (e outros mitos). São Paulo,

Global, 1983. p. 33.22  Idem, O negro no Brasil (da senzala  à Guerra do Paraguai). São Paulo,

Brasiliense,  1980. p. 203-4.23  Nab uco, o mais conspícuo abolicionista no Parlam ento, dizia no particu-

lar: A propagand a abolicionista, com  efeito, não se dirige aos escravos.Seria uma cobardia, inepta e criminosa, e, além disso, um suicídio políti-co para o partido abolicionista, incitar à insurreição ou ao  crime, homenssem  defesa, e que a lei de Linch , ou a justiça pública, im ediatamente ha-veria de esmagar. Cobardia, porque seria expor outros a perigos que o pro-vocador não  correria  com eles; inépcia, porque seria  fazer  os inocentessofrerem   pelos culpados, além da cumplicidade que cabe ao que induz ou-trem  a cometer o crime; suicídio político, porque a nação inteira — vendoum a classe, essa a mais influente e poderosa do Estado, exposta à vinditabárbara e selvagem de uma população mantida até hoje ao  nível dos ani-mais e cujas  paixões, quebrando o  freio  do  medo, nã o conheceriam limi-

250  DA  INSURGÊNCIA NE GR A AO ESCRAVISMO TARDIO

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tes no modo de satisfazer-se — pensaria que a necessidade urgente era sal-var a sociedade a todo custo por um exemplo tremendo, e isto seria o sinalde morte do abolicionismo. (...) A emancipação há de ser  feita, entrenós,por uma lei que tenha os requisitos externos e internos, de todas as outras.É assim, no Parlamento  e não nas fazendas ou quilombos d» interior,  nemnas ruas e praças das cidades, que se há de ganhar, ou perder, a causa daliberdade. Em semelhante luta, a violência, o crime, o descontentamento

de ódios acalentados, só pode ser prejudicial ao lado de  quem tem por sio direito, a justiça, a preocupação dos oprimidos e os votosda humanida-de  toda".  (NABUCO,  Joaquim.  O abolicionismo.  São Paulo, Nacional,1938.  p.  5-6.)

24 Vejamos como um historiador da Guerra do Paraguai descreve a situaçãoeconómica do Brasil após o conflito: "O Brasil ficou economicamente exau-rido. Terá que recorrer aos empréstimos ingleses. Entre  1871 e 1889 con-trai dívidas que montam a 45.504.100 libras. Seu comércio exterior estádominado por capitalistas britânicos. O café, seu principal produto de ex-portação,  foi monopolizado pelas seguintes firmas: Phillips Irmãos,Schwind Mc Kinnel, Ed. Johnson and Co., Wright and Co., Boje & Cia.Apenas um nome brasileiro, o último da lista. Em 1875, do volume de co-mércio de toda a América Latina com a Inglaterra,   32% das exportaçõese 40% das importações cabe ao Brasil Império. Nesse setor, o Brasil ocu-pa o primeiro lugar, com larga diferença em relação aos outros. Os inves-

timentos ingleses, nesse ano, incluindo os empréstimos não-amortizados,atingem a casa de 31.289.000  libras".  (POMER,  Leon. Paraguai: nossa

guerra contra esse soldado.  2. ed. São Paulo,  Global, s.d.  p.  50.)25 CONRAD, Robert. Os Mimos anos da escravatura no Brasil. Rio de Ja-

neiro, Civilização Brasileira/MEC, 1975. p. 310. O depoimento de Buenode Andrada encontra-se  na  mesma página  da  citação.

26  MARTINS DOS SANTOS, Francisco. História de Santos.  São  Paulo, Revistados Tribunais, 1937. v. 2, p. 12.

27 Idem, ibidem.28  ANDRADE, Manoel Correia de. Escravidão e trabalho "livre" no Nordes-

te açucareiro. Recife, ASA, 1985. p. 39-40.29  LINHARES, Hermínio. Contribuição à história das lutas operárias no Bra-

sil. São Paulo, Alfa-Ômega,  1976.30

 Antes dessa greve de 1858 há notícias de um movimento reivindicativo maisremoto.  "Trata-se do movimento dos acendedores de luz. Esses homensameaçaram  a cidade  de  deixá-la  às trevas caso  não  fossem satisfeitas  asexigências que faziam. Sabe-se que interveio a polícia e a ameaça dos acen-dedores de luz foi à força afastada."  (QUEIROZ, Maurício Vinhas de. Asprimeiras lutas operárias no Brasil.  Revista do Povo,  (2), 1946.)

31  CARDOSO, Fernando Henrique. Proletariado no Brasil: situação e compor-tamento social. Revista Brasiliense, São  Paulo,  (41): 108, 1966.

As  séri s  Princíp ios   e  u n d a m e n t o s  sã o   fruto   de um   trabalho editorialintenso  e  realista e  apresentam  l i v r o s  intimamente ligados   aos   currículosde   nossas   faculdades sempre elaborados   po r   autores   representativos de

diversas áreas   do   conhecimento   e  integrados   ao   Ensino Superior   do   país.Conheça   também   os   volumes   da   série   Fundamen to s

1.   Na sala de   aulaCaderno de análise  literáriaAntónio  Cândido

2.   Novas lições d e análise

sintàticaAdriano  da   Gam a   Kury

3.   Tem pos da literaturabrasileiraBenjamin   Abdala Júnior BSamira   Youssef  Campedellí

4. No  reino d a  falaEleonora Moita  Mata

5. Literatura infantil brasileiraHistória &  históriasMa is a  Lajoio  õRegina Zilberman

6.   Iniciação ao  teatroSábato Magald i

7 Estónas africanasHistória &  antologiaMaria  Aparecida Santilli

8. Reflexões sobre a arteAlfredo  Bosi

9. No mundo da escritaUrna perspectivapsicolinguisticaMary  A.  Kato

10.  Linguagem

 e escolaUma perspectiva socialMagda  Soares

11.   Psicologia diferencialDante  Moreira   Lei te

12.   MorfossintaxeF/ á  v ia de Bam  s Carone

13.   L iteraturas africanas deexpressão  portuguesaManuel  Ferreira

14.   Romance htspano-americanoBeíla Jozef

15. Falares  crioulosLínguas em  contatoFernando   Tarallo  EtTânia Alkmin

16. A prática da  reportagemRicardo   Kotscho

17-  A  língua   escrita no   BrasilEdith  Pimentel  Pinto

18.   Cultura brasileiraTemas e situaçõesAlfredo  Bos i

19.   Pensamento pedagógicobrasileiroMoacir  Gadot t i

20. Constituições brasileiras ecidadaniaCélia Galvão  Quir ino Maria   Lúcia Montes

2Í .  História d a  línguaportuguesaL  Século  Xlll  e século XIVOswaldo   Ceschin

22 .  História da   línguaportuguesaII  Século  XV e meados doséculo   XV IDulce d e  Faria Paiva

23 .  História da línguaportuguesaIII.  Segunda metade doséculo XVI e século   XVI ISegismundo   Spina

24 .  História da línguaportuguesaIV.   Sécuio XVI I IRolando Morei Pinto

25. História d a  línguaportuguesaV   Século  X IXNilce  Sant'Anna Martins

26. História da   línguaportuguesaVI. Século XXEdith  Pimentel Pinto

27.   Administração estratégicaLuiz   Ga  

28.   A tragédia  -  estrutura &históriaLígia  Militz da  Costa &Mana   Luiza Ritzel Remédios

29. Dicionário de teoria danarrativaCarlos Reis QAna   Cr ist ina M.  Lopes

30 .  Introdução à economiamundial  contemporâneaGeraldo Muller

31. O tempo na  nar ra t ivaBenedito Nunes

32 .  Classes,  regimes eideologiasRobert Henry   Srour

33 . AIDS  -Uma estratégia  para aassistência de  enfermagemRobert   J-   Pratt

34. Sociologia do negrobrasileiroClóvis Moura

35. Aprendizagem eplanejamento  de  ensinoWilson de  Faria

36.   Sociologia d a sociologiaOctavio lanni

37. A fo rm ação d o   EstadoPopulista na AméricaLatinaOctavio lanni

38.   Introdução   à f ilosof ia daar t eBenedito   Nunes

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SÉRIE

EBDNCfEDS1 Paródia paráfrase  &  Cia.  -  AffonsoRomano de SanfAnna  * 2. Teoria do con-to  -   Nádia  Battella Gotlib * 3 A persona-gem  - Beth  Brait  4. Ofoco narrativo -Lígia  Chiappini Moraes Leite  * 5. A cróni-ca  -  Jorge de Sá *6. Versos sons rit-mos   -  Norrna  Goldstein * 7. Erotismo eliteratura  — Jesus António  Durigan  * 8.Semântica  —   Rodo l f o   Ilari &   JoãoWanderley  GeraRJT*  9.  A pesquisa socio-lingúfstica - Fernando Taral lo  10.  Pro-núncia do inglês norte-americano -  Mar-tha Steinberg * 11. Rumos da literaturainglesa  -  Mana  Elisa Cevasco & Valter  Lel-lis Siqueira  *  12   Técnicas de comunica-ção escrita  -  Izidoro Blikstein *  13 Oc a-ráter social da  ficção  do Brasil  -  FábioLucas  ir  14.   Best-seller:  a   literatura  demercado - Muniz Sodré *15. Osigno  -Isaac  Epstein *  16. Adança -  Miriam  Gar-cia   Mendes *  17. Linguagem e persuasão—   Adilson Citelli *  18.  Para uma nova gra-mática do Português — Mário A.  Penn  *19. Atelenovela  -  Samira Youssef C am-pedelli  * 20.  A poesia lírica  -  Salete deAlmeida   Cara  21 . Períodos literários  -Lígia  Cademar tor i * 22. Informática e so-ciedade  — António N icolau   Youssef & Vi-cente  Paz Fernandez  * 23  Espaço e ro-mance  — António  Dimas  * 24. O herói —Flávio  R . Kothe *  25.  Sonho e loucura  -

José  Roberto Wolf f  * 26. Ensino  da gra-mática. Opressão? Liberdade?  —   EvanildoBechara  27. Morfologia  inglesa - no-

ções introdutórias -Martha Steinberg ir28.   Iniciação à música popular brasileira-  Waldenyr Caldas + 29.  Estrutura da no-tícia -  Nilson Lage *  30   Conceito de psi-quiatria   —   Adilson Grandino  &   Durval No -gueira *  31 . O  inconsciente  — um estudocrítico  -  Alf redo  Naffah  Neto  * 32. Ahis-teria  -  Zacaria Borge Ali Ramadam * 33.O trabalho na América Latina colonial  -Ciro F lamar ion S. Cardoso *34. Umbanda

—   José Guilherme Cantor  Magnani  * 35.Teoria dainformação   - Isaac  Epstein 36.  O enredo  -  Samira  Nahid de Mesquita*  37   Linguagem jornalística — Nilson Lagê  * 38. O feudalismo: economia e socie-dade  — Hamilton  M.  Monteiro  * 39. Acidade-estado antiga  -  Ciro Flamarion S.Cardoso  * 40. Negritude  — usos e  senti-

dos  —  Kabengele Munanga  *  41 .  Impren-sa  feminina  —   Dulc í l ia Schroeder Buitoni 42.  Sexo e adolescência -Içami  Tiba  43. Magia e  pensamento mágico   —

Paula  Montero  44. Ametalinguagem  -Samira  Chalhub  * 45. P sicanálise  e  lin-guagem   -  Eliana de Moura   Castro * 46.Teoria da literatura  -  Rober to  Acízelo deSouza  * 47. Sociedades do Antigo Orien-te Próximo — Ciro F lamar ion S. Cardoso  *48   Lutas camponesas  no  Nordeste  -Manuel Correia de Andrade * 49 . Alingua-gem literária  -  Domicio  Proença Filho  +50.  Brasil Império  -  Hamilton M. Monteiro 51. Perspectivas  históricas da educa-ção   — Eliane Marta   Teixeira  Lopes *52.Camponeses -  Margarida Maria Moura-*53.   Região  e organização espacial  —  R o-berto  Lobato  Corrêa  * 54.  Despotismo es-clarecido  -  Francisco  José  Calazans Fal-con  55  Concordância verbal -  MariaAparecida Baccega  * 56. Comunicação ecultura brasileira  — Virgílio Noya  Pinto  *57.   Conceito  de poesia  -  Pedro Lyra  *58.   Literatura comparada   —   Tânia FrancoCarvalhal  *  59   Sociedad es indígenas   -

Alcida  Rita  Ramos  * 60. Modernismo bra-sileiro e vanguarda  -  Lúcia  Helena  *  61.Personagens   da  literatura  infanto-juvenil*Sônia  Salomão  Khéde  * 62. Cibernéti-ca  —  Isaac Epstein *63. Greve — fatos esignificados  —  Pedro   Castro  * 64. Aaprendizagem  do ator  -  António   Januzel-li, Janô + 65.  Carnaval carnavais -  JoséCarlos  Sebe  * 66. Brasil República  - Ha-milton  M. Monteiro  * 67. Computador e

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ensino  — u m a  aplicação  à  língua  portu-guesa   — Cristina P. C.  Marques,  M. IsabelL. de Mattos,  Yves de Ia Tail le  * 68. Modocapitalista de produção e agricultura  -Ariovaldo Umbelino de Oliveira  * 69.  Casa-mento,  amor e  desejo no  Ocidente Cris-tão  — Ronaldo Vainfas  * 70. Marxismo eteoria da revolução proletária  -  Eder  Sá-der *71.   Pescadores  do mar - SimoneCarneiro  Maldonado  * 72. Aalegoria  —Flávio  R.   Kothe  * 73. Consciência  e iden-tidade - Malvina Muszkat  74. Oficinade  tradução  — Ateoria  na prática  -  Ro-semary  Arro jo *  75.  História do movimen-to   operário   no   Brasil  —  Antón io Paulo Re-zende  76.  Neuroses - Manuel IgnacioQuiles  77.  Surrealismo  -  Marilda deVasconcellos  Reboliças  * 78. Romantismo*Adilson Citell i  79.  Higiene  bucal  -Giorgio de Micheli,   Carlos  Eduardo Aun,Michel  Nicolau  Yousse f  * 80.  Aspectoseconómicos  da  educação  -  LadislauDowbor  *  81.  Escola Nova  — Cristiano DiGiorgi  * 82. Análise  da  conversação —Luiz António Marcuschi  * 83. O Estado

Federal  - Dalmo deAbreu  Dallari  84.Iluminismo — Francisco   José Calazans Fal-con  85.  Constituições - Célia   GalvâoQuirino, Maria  Lúcia  Montes  * 86. Litera-tura infantil — voz de criança  —  Maria Jo -sé  Paio,  Maria  Rosa  D.  Oliveira  * 87. Aimagem - Eduardo Neiva Jr.  88.  Teorialexical -  Margarida Basilio  89. Apolíti-ca   externa brasileira  (1822-1985)  -Amado Luiz Cervo, Clodoaldo   Buefio * 90.Energia & fome  -  Gilberto Kobler  Corrêa  91 Sonhar brincar, criar, interpretar  -

Arlindo C. Pimenta * 92. História da litera-tura alemã  -  Eloá  Heise,  Ruth Ròhl * 93.História   do   trabalho  — Carlos  Rober to deOliveira  94   Nazismo — O Triunfo daVontade — Alcir Len haro  * 95. Fascis-mo  italiano  —  Angelo Trenío  * 96. Asdrogas  -  Luiz  Carlos  Rocha  *  97.  Poesiainfantil  -  Maria d a Glória  Bordini  * 98.Pactos   e  estabilização económica   —  Pe -dro Scuro Neto  *  99. Estática  do sorriso—   Michel Nicolau Youssef, Carlos «EduardoAun, Giorgio  de Micheli  *  100.  Leitura

sem   palavras  —  Lucrécia D'Aléssio  Feirara

  101 ODiabo  no imaginário  cristão Carlos  Rober to F. Nogueira *  102. Psicote-rapias  -  Zacaria   Borge  Ali  Ramadam  -*103.  O  conto  de  fadas  -  Nelly  NovaesCoelho  104. Guia teórico do alfabetiza-dor -Míriam Lemle *  105. Entrevista — odiálogo possível  — Cremilda de  Araújo M e-dina  *  106  Quilombos  — resistência aoescravismo  - Clóvis.Moura  107. Raça—   conceito  e  preconceito  —   Eliane Azeve-do *  108. Candomblé — religião  e resis-tência cultural  Raul  Lody  *  109  Aboli-ção e reforma agrária  -  Manuel Correia deAndrade  *  110   Poemas eróticos de Car-

los Drummond da Andrade - R i t a de Cãssia   Barbosa  *  111.  Cinema  e  montagem—   Eduardo  Leone e Maria Dora Mourão  *

' 112.  Democracia  -  Décio  Saes *  113. Overbo   inglês  —   teoria  e prática  —   ValterLellis Siqueira   A 114. Descobrinentos colonização   —   Janice  Theodoro da  Silva* 1 1 5 D. João VI: os bastidores da  inde-pendência  — Leila  Mezan  Algranti  *  116.Escravidão   negra  no Brasil  -  Suely Ro-bles  Reis de Queiroz  *  117. Anarquismo eanarcossindicalismo  —   Giuséppiíia  Sferra*  11 8  Afeitiçaria na Europa moderna  Laura de Mello e Souza *  119   Funções dalinguagem  - Samira Chalhub  120. Cicloda  vida — ritos e ritmos -  Thales de Azevedo   *  121. Televisão e psicanálise —Muniz  Sodré  *  122 .  Cultura popular noBrasil -  Marcos Ayala e Maria  Ignez NovaisAyala  *  123. Desenvolvimento  da  perso-nalidade -  símbolos earquétipos -  CarlosByington   *  124.  Sistemas de comunica-ção  popular  - Joseph M. Luyten  125.Períodos filosóficos  - João daPenha 126. Os povos bárbaros -   Ma ria Sonsoles

Guerras  *  127. Abolição   —   Antón io TorresMontenegro  k   128.  Como ordenar   asideias  - Edivaldo M. Boaventura  129.Advérbios  - Eneida   Bomfim  130.  Im-

prensa operária  no Brasil  -  Maria  Naza-reth  Ferreira  ir   131. O  método  junguiano*Glauco   Ulson  132. O antástico  -Selma Calasans Rodrigues *  133. Gramscíe a escola  — Luna  Galano   Mochcovi tch  *134   Dimensões  simbólicas da personali-dade  — Carlos  Byington  *  135. Estruturada  personalidade  —  Persona e  sombraCarlos  Byington  *  136. Grandezas e uni-dades de  medida  — O  sistema internacio-nal de unidades  -  R o me u C. Rocha-Filho 137   Linguagem e ideologia - José LuizFiorin  *  138   Subordinação  e  coordena-ção — Confrontos e contrastes  Fláviade Barros  Carone   k   139.  Ernest Heming-way  — Julian Nazario  *  140.  Roma repu-blicana  —  Norma Musco Mendes  *  141.Pesquise  de   mercado  — Marina Rutter &Sertório   Augusto de Abreu *  142 . Burgue-sia e capitalismo no Brasil -  Antón io C ar

los  Mazzeo *  143   Sistemas de comunica-ção popular  — Joseph M .  Luyten  *  144.Evolução  biológica  -  Controvérsias  -

Celso  Piedemonte de Lima *  145.  Arqueo-logia  -  Pedro  Paulo  Abreu  Funari  *  146.Escara   —   Problema   na   hospitalizaçãoMaria  Coeli  Campedelli  &  Raquel RaponeGaidzinski  *  147  Injecões  —  Modos  emétodos  — Brigitta  Pfeiffer  Caste l lanos  *148  Ecologia  cultural  — Uma antropolo-gia da mudança  -  Renate  Br ig i t te Vierther+ 149   Inças  e  astecas  —  Culturas pré-colombianas  -  Jorge  Luiz  Ferreira.