Sociologia Do Negro Brasileiro_1

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  • este livro o Ic i io i encontrisingular na anlise da SIIKKcultural do negro no Brasil. Ao p ; n i i i d umradical sociologia acadmica, o ; iu lo i p idemonstrar como o modo de produzi"transformou-se, para o p k num rsc /v / r / s / / / , -no qual se cruzavam interesses do c ; ip i t ; i linternacional e relaes de produo queestrangulavam o nosso processo de desenvolvimentoindependente.

    So levantadas, nessa perspectiva, querelativas marginalizao, pobreza, discriminao crejeio social do negro na sociedade brasileira.

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    Administrao Artes Cincias CivilizaoComunicaes Direito Economia EducaoEnfermagem Esttica Farmcia FilosofiaGeografia Lingustica Literatura MedicinaOdontologia Psicologia Sade

  • fDireoBenjamin Abdala Jnior

    Samira Youssef CampedelliPreparao de texto

    Ivany Picasso BatistaCoordenao de composio(Produo/Paginao em vdeo)

    Neide Hiromi ToyotaCapa

    Jayme Leo

    ISBN 8508029337

    1988Todos os direitos reservados

    Editora tica S.A. Rua Baro de Iguape, 110Tel.: (PABX) 278-9322 Caixa Postal 8656End. Telegrfico "Bomlivro" So Paulo

    \

    Sumrio

    Introduo1? Parte

    Teorias procura de uma prticaOs estudos sobre o negro como reflexo da estru-tura da sociedade brasileira1. Pensamento social subordinado2. O racismo e a ideologia do autoritarismo3. Repete-se na literatura a imagem estereotipada do pensamento

    social4. O dilema e as alternativasNotas e referncias bibliogrficas

    II. Sincretismo, assimilao, acomodao, acultu-rao e luta de classes1. Antropologia e neocolonialismo_2. Do "primitivismo fetichista" 'pureza" do cristianismo3. Assimilao para acabar com a cultura colonizada4. Aculturao substitui a luta de classes5. Da rebeldia do negro "brbaro" "democracia racial" _Notas e referncias bibliogrficas

    III. Miscigenao e democracia racial: mito e reali-dade1. Negao da identidade tnica2. Etnologizaco da histria e escamoteao da realidade social3. Estratgia do imobilismo social4. O Brasil teria de ser branco e capitalista5. Entrega de mercadoria que no podia ser devolvida6. Das Ordenaes do Reino atualidade: o negro discriminadoNotas e referncias bibliogrficas

    171720

    252932

    34343842445257

    61

    616470798695101

    IV. O negro como grupo especfico ou diferenciado emuma sociedade de capitalismo dependente 1091. O negro como cobaia sociolgica _2. Grupos especficos e diferenciados_

    109116

  • 3. Grupos especficos versus sociedade global4. Um smbolo libertrio: Exu5. Fatores de resistncia6. Um exemplo de degradaoNotas e referncias bibliogrficas

    2? ParteA dinmica negra e o racismo branco

    I. Sociologia da Repblica de Palmares

    124128137142146

    1. Preferiram "a liberdade entre as feras que a sujeio entre oshomens"

    2. Uma economia de abundncia3. Como os palmarmos se comunicavam?4. Evoluo da economia palmarina5. Organizao familiar: poligamia e poliandria6. Religio sem casta sacerdotal.7. Administrao e estratificao na Repblica,8. Palmares: uma nao em formao?Notas e referncias bibliogrficas

    159

    159162166169174177179181184

    II. O negro visto contra o espelho de dois analistas 1871. Um fluxo permanente de estudos sobre o negro2. Quando o detalhe quer superar o conjunto3. Da viso apaixonada rigidez cientificistaNotas e referncias bibliogrficas

    III. A imprensa negra em So Paulo.

    187192195202

    204204206210213217

    IV. Da insurgncia negra ao escravismo tardio 218

    1. Razes da existncia de uma imprensa negra2. Uma trajetria de herosmo3. Do negro bem-comportado descoberta da '4. Do isolamento tnico participao poltica.Notas e referncias bibliogrficas

    raa

    Modernizao sem mudana 218Rasgos fundamentais do escravismo brasileiro pleno (1550/1850) 220

    222226227230231236

    9. Encontro do escravismo tardio com o capital monopolista 23910. Operrios e escravos em lutas paralelas 245Notas e referncias bibliogrficas 248

    Significado social da insurgncia negro-escravaProsperidade, escravido e rebeldiaO desgaste econmico

    6. O desgaste poltico7. A sndrome do medo8. Rasgos fundamentais do escravismo tardio (1851/1888).

    O negro construiu um pas para outros;o negro construiu um pas para os brancos.

    JOAQUIM NABUCO

  • Introduo

    Este livro a sntese de mais de vinte anos de pesquisas, cursos,palestras, congressos, simpsios, observao e anlise da situao eperspectivas do problema do negro no Brasil, os seus diversos nveis,as posies dos grupos ou segmentos que compem a comunidadenegra, a ideologia branca das classes dominantes e de muitas cama-das da nossa sociedade. Faz parte, tambm, do nosso contato e par-ticipao permanente na soluo do problema racial e social brasileiro.Procura dar resposta a essa problemtica em dois nveis. O primeiro o terico.

    Nele apresentamos diversas propostas de crtica epistemolgica maioria dos trabalhos de cientistas sociais tradicionais sobre a si-tuao do negro em nossa sociedade. Procuramos reanalisar algumasformulaes conceituais j muito difundidas na rea acadmica, sem-pre, ou quase sempre, repetidoras de correntes tericas que nos vmde fora e quase nunca correspondem quilo que seria uma cincia ca-paz de enfrentar como ferramenta da prtica social esses pro-blemas sempre escamoteados no seu nvel de competio e conflitosocial e racial.

    O segundo nvel de abordagem procura, atravs do mtodohistrico-dialtico, analisar alguns aspectos especficos do problemaabordado, objetivando dar uma viso diacnica e dinmica do ms-

  • SERIE34

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  • DireoBenjamin Abdala Jnior

    Samira Youssef CampedelliPreparao de texto

    Ivany Picasso BatistaCoordenao de composio(Produo/Paginao em vdeo)

    Neide Hiromi ToyotaCapa

    Jayme Leo

    ISBN 8508029337

    1988Todos os direitos reservados

    Editora tica S.A. Rua Baro de Iguape, 110Tel.: (PABX) 278-9322 Caixa Postal 8656End. Telegrfico "Bomlivro" So Paulo

    Sumrio

    Introduo1? Parte

    Teorias procura de uma prtical. Os estudos sobre o negro como reflexo da estru-

    tura da sociedade brasileira1. Pensamento social subordinado2. O racismo e a ideologia do autoritarismo3. Repete-se na literatura a imagem estereotipada do pensamento

    social4. O dilema e as alternativasNotas e referncias bibliogrficas

    II. Sincretismo, assimilao, acomodao, acultu-rao e luta de classes1. Antropologia e neocolonialismo2. Do "primitivismo fetichista" "pureza" do cristianismo3. Assimilao para acabar com a cultura colonizada4. Aculturao substitui a luta de classes5. Da rebeldia do negro "brbaro" "democracia racial"Notas e referncias bibliogrficas

    III. Miscigenao e democracia racial: mito e reali-dade1. Negao da identidade tnica2. Etnologizaco da histria e escamoteao da realidade social3. Estratgia do imobilismo social4. O Brasil teria de ser branco e capitalista5. Entrega de mercadoria que no podia ser devolvida6. Das Ordenaes do Reino atualidade: o negro discriminadoNotas e referncias bibliogrficas

    IV. O negro como grupo especfico ou diferenciado emuma sociedade de capitalismo dependente1. O negro como cobaia sociolgica2. Grupos especficos e diferenciados

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  • 3. Grupos especficos versus sociedade global4. Um smbolo libertrio: Exu5. Fatores de resistncia6. Um exemplo de degradaoNotas e referncias bibliogrficas

    124128137142146

    2? ParteA dinmica negra e o racismo branco

    I. Sociologia da Repblica de Palmares1. Preferiram "a liberdade entre as feras que a sujeio entre os

    homens''2. Uma economia de abundncia3. Como os palmarinos se comunicavam?

    Evoluo da economia palmarinaOrganizao familiar: poligamia e poliandriaReligio sem casta sacerdotalAdministrao e estratificao na Repblica.

    8. Palmares: uma nao em formao?Notas e referncias bibliogrficas

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    II. O negro visto contra o espelho de dois analistas 1871. Um fluxo permanente de estudos sobre o negro2. Quando o detalhe quer superar o conjunto3. Da viso apaixonada rigidez cientificistaNotas e referncias bibliogrficas

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    2041 . Razes da existncia de uma imprensa negra2. Uma trajetria de herosmo3. Do negro bem-comportado descoberta da "raa"4. Do isolamento tnico participao polticaNotas e referncias bibliogrficas

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    IV. Da insurgncia negra ao escravismo tardio1. Modernizao sem mudana2. Rasgos fundamentais do escravismo brasileiro pleno (1550/1850)3. Significado social da insurgncia negro-escrava _4. Prosperidade, escravido e rebeldia _5. O desgaste econmico _6. O desgaste poltico _7. A sndrome do medo _

    Rasgos fundamentais do escravismo tardio (1851/1888).

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    9. Encontro do escravismo tardio com o capital monopolista _ 23910. Operrios e escravos em lutas paralelas _ 245Notas e referncias bibliogrficas _ 248

    O negro construiu um pas para outros;o negro construiu um pas para os brancos.

    JOAQUIM NABUCO

  • Introduo

    Este livro a sntese de mais de vinte anos de pesquisas, cursos,palestras, congressos, simpsios, observao e anlise da situao eperspectivas do problema do negro no Brasil, os seus diversos nveis,as posies dos grupos ou segmentos que compem a comunidadenegra, a ideologia branca das classes dominantes e de muitas cama-das da nossa sociedade. Faz parte, tambm, do nosso contato e par-ticipao permanente na soluo do problema racial e social brasileiro.Procura dar resposta a essa problemtica em dois nveis. O primeiro o terico.

    Nele apresentamos diversas propostas de crtica epistemolgica maioria dos trabalhos de cientistas sociais tradicionais sobre a si-tuao do negro em nossa sociedade. Procuramos reanalisar algumasformulaes conceituais j muito difundidas na rea acadmica, sem-pre, ou quase sempre, repetidoras de correntes tericas que nos vmde fora e quase nunca correspondem quilo que seria uma cincia ca-paz de enfrentar como ferramenta da prtica social esses pro-blemas sempre escamoteados no seu nvel de competio e conflitosocial e racial.

    O segundo nvel de abordagem procura, atravs do mtodohistrico-dialtico, analisar alguns aspectos especficos do problemaabordado, objetivando dar uma viso diacnica e dinmica do ms-

  • g INTRODUO

    mo at o cruzamento das lutas dos escravos com as da classe operrianaquela fase que chamamos de escravismo tardio.

    Tomando como ponto de partida a Repblica de Palmares e fa-zendo a anlise de trabalho sobre a escravido, abordamos, tambm,a imprensa negra de So Paulo, aps a Abolio e chegamos, con-forme j dissemos, ao conceito de escravismo tardio no ltimo cap-tulo que traz subsdios para se entender no apenas o perodo dotrabalho escravo, mas, tambm, como o negro se organizou poste-riormente, inclusive nos seus grupos especficos. Abre perspectivas,tambm, para que se possa entender alguns traumatismos da atualsociedade brasileira.

    O negro urbano brasileiro, especialmente do Sudeste e Sul doBrasil, tem uma trajetria que bem demonstra os mecanismos de bar-ragem tnica que foram estabelecidos historicamente contra ele na so-ciedade branca. Nele esto reproduzidas as estratgias de seleoestabelecidas para opor-se a que ele tivesse acesso a patamares privi-legiados ou compensadores socialmente, para que as camadas bran-cas (tnica e/ou socialmente brancas) mantivessem no passado emantenham no presente o direito de ocup-los. Bloqueios estratgi-cos que comeam no prprio grupo famlia, passam pela educaoprimria, a escola de grau mdio at a universidade; passam pela res-trio no mercado de trabalho, na seleo de empregos, no nvel desalrios em cada profisso, na discriminao velada (ou manifesta)em certos espaos profissionais; passam tambm nos contatos entresexos opostos, nas barreiras aos casamentos intertnicos e tambmpelas restries mltiplas durante todos os dias, meses e anos que re-presentam a vida de um negro.

    , como dissemos, uma trajetria significativa neste sentido por-que reproduz de forma dinmica e transparente os diversos nveis depreconceito sem mediaes ideolgicas pr-montadas como a da de-mocracia racial; demonstra, por outro lado, como a comunidade ne-gra e no-branca de um modo geral tem dificuldades em afirmar-seno seu cotidiano como sendo composta de cidados e no como apre-sentada atravs de esteretipos: como segmentos atpicos, exticos,filhos de uma raa inferior, atavicamente criminosos, preguiosos,ociosos e trapaceiros.

    Em So Paulo, com a dinmica de uma sociedade que desen-volveu at as ltimas consequncias os padres e normas do capita-lismo dependente, tendo a competio selvagem como centro de suadinmica, podemos ver como, no mercado de trabalho, ele sempre,

    INTRODUO 9

    segundo expresso de um sindicalista negro durante o I Encontro Es-tadual de Sindicalistas Negros, realizado em So Paulo, em 1986, "o ltimo a ser admitido e o primeiro a ser demitido". Este quadrodiscriminatrio, cujos detalhes sero apresentados no presente livro,restringe basicamente o comportamento do negro urbano, quando eleno ocupa o espao universitrio ou pequenos espaos burocrticos.A grande massa negra que atualmente ocupa as favelas, invases, cor-tios, caladas noite, reas de mendicncia, pardieiros, prdios aban-donados, albergues, aproveitadores de restos de comida, e por exten-so os marginais, delinquentes, ladres contra o patrimnio, baixasprostitutas, lumpens, desempregados, horistas de empresas multina-cionais, catadores de lixo, lixeiros, domsticas, faxineiras, margari-das, desempregadas, alcolatras, assaltantes, portadores das neurosesdas grandes cidades, malandros e desinteressados no trabalho,encontra-se em estado de semi-anomia.

    Essa grande massa negra repetimos , sistematicamente bar-rada socialmente, atravs de inmeros mecanismos e subterfgios es-tratgicos, colocada como o rescaldo de uma sociedade que j temgrandes franjas marginalizadas em consequncia da sua estrutura decapitalismo dependente, rejeitada e estigmatizada, inclusive por al-guns grupos da classe mdia negra que no entram em contato comela, no lhe transmitem identidade e conscincia tnicas, finalmenteno a aceitam como o centro nevrlgico do dilema racial no Brasile, com isto, reproduzem uma ideologia que justifica v-la como peri-frica, como o negativo do prprio problema do negro.

    A sociologia do negro , por estas razes, mesmo quando escri-ta por alguns autores negros, uma sociologia branca. E quando es-crevemos branca no queremos dizer que o autor negro, branco,mulato, mas queremos expressar que h subjacente um conjunto con-ceituai branco que aplicado sobre a realidade do negro brasileiro,como se ele fosse apenas objeto de estudo e no sujeito dinmico deum problema dos mais importantes para o reajustamento estruturalda sociedade brasileira. Como podemos ver, o pensamento social bra-sileiro, a nossa literatura, finalmente o nosso ethos cultural em quasetodos os seus nveis, est impregnado dessa viso alienada, muitasvezes paternalista, outras vezes pretensamente imparcial. O prprionegro da classe mdia introjetou esses valores de tal forma que, emum simpsio sobre o problema racial, ouvimos de um socilogo ne-gro a afirmao de que eles deviam preparar-se para dirigirem as mul-tinacionais que operam no Brasil. "Por que no?", dizia ele, sem

  • 10 INTRODUO

    saber, ou possivelmente sabendo, que a General Motors s contratatrabalhadores negros como horistas, sem nenhuma garantia, sem pos-sibilidades de fazer carreira, isto , so escolhidos para desempe-nharem aqueles trabalhos sempre considerados sujos, indignos e hu-milhantes.

    Esta falta de perspectiva que impede ver-se a ponte entre o pro-blema do negro e os estruturais da sociedade brasileira, isto , supor-se que o negro, atravs da cultura, poder dirigir uma multinacional,bem demonstra o nvel de alienao sociolgica no raciocnio de quemexps o problema desta forma. O problema do negro tem especifici-dades, particularidades e um nvel de problemtica muito mais pro-fundo do que o do trabalhador branco. Mas, por outro lado, esta ele ligado porque no se poder resolver o problema do negro, asua discriminao, o preconceito contra ele, finalmente o racismo bra-sileiro, sem atentarmos que esse racismo no epifenomnico, mastem causas econmicas, sociais, histricas e ideolgicas que alimen-tam o seu dinamismo atual. Um negro diretor de uma multinacional sociologicamente um branco. Ter de conservar a discriminao con-tra o negro na diviso de trabalho interno da empresa, ter de execu-tar suas normas racistas, e, com isto, deixar de pensar como negroexplorado e discriminado e reproduzir no seu comportamento empre-sarial aquilo que um executivo branco tambm faria.

    A articulao do problema tnico com o social e poltico quealguns grupos negros no esto entendendo, ou procuram no enten-der para se beneficiarem de cargos burocrticos e espaos abertos pa-ra os membros qualificados de uma nfima classe mdia branqueada.Guerreiro Ramos teve oportunidade de enfatizar o perigo de se criaruma "sociologia enlatada". E tememos que alguns elementos negrosao conclurem a universidade, ao invs de se transformarem em ide-logos das mudanas sociais que iro solucionar o problema racial noBrasil, assimilem os valores ideolgicos dessa sociologia enlatada, oque levar o negro a continuar sendo cobaia sociolgica daqueles quedominam as cincias sociais tradicionais: brancos ou negros.

    Como se pode ver, no quero que exista uma sociologia negrano Brasil, mas que os cientistas sociais tenham uma viso que enfo-que os problemas tnicos do Brasil a partir do negro, porque, at ago-ra, com poucas excees, o que se v uma cincia social que procuraabordar o problema atravs de uma pseudo-imparcialidade cientficaque significa, apenas, um desprezo olmpico pelos valores humanosque esto imbricados na problemtica que estudam. No observam

    INTRODUO 11

    que os seus conceitos teoricamente corretos (dentro da estrutura con-ceituai da sociologia acadmica) coloca-os "de fora" do problema,no penetram na sua essncia, so andinos, inteis, desnecessrios soluo do problema social e racial do negro e por isto mesmo sofrutos de uma cincia sem prxis e que se esgota na ressonncia queo autor desses trabalhos obtm no circuito acadmico do qual fazparte.

    No Brasil a maioria dos estudiosos do problema do negro oucaem para o etnogrfico, folclrico, ou escrevem como se estivessemfalando de um cadver. Na primeira posio, conforme veremos nodecorrer deste livro, o etnogrfico, o contato entre culturas, o cho-que entre as mesmas, as reminiscncias religiosas, de cozinha, lingus-ticas e outras ocupam o centro do universo desses cientistas. Nasegunda, vemos o indiferentismo pela situao social do negro,destacando-se, pelo contrrio, a imparcialidade cientfica do pesqui-sador em face dos problemas raciais e sociais da comunidade negra.O absentesmo cientfico transforma-se em indiferena pelos valoreshumanos em conflito. E com isto o negro transformado em simplesobjeto de laboratrio.

    verdade que h, tambm, cientistas sociais que seguem umaperspectiva cientfica diferente. No vem o negro como simples ob-jeto de estudo ou de um futuro diretor de multinacional. Colocam-no como membro de uma etnia explorada, discriminada e desclassifi-cada pelos segmentos dominantes e a partir dessa posio inicial pssam a estud-lo e compreend-lo. Incontestavelmente foi Roge;Bastide, apesar dos seus erros, quem iniciou esta posio renovador;no Brasil. Artur Ramos que poderia ter sido o grande precursor nestisentido, embora sem querermos diminuir a sua notvel e at hoje rspeitvel contribuio ao estudo do problema, deixou-se influenciaipela psicanlise e, depois, pelo mtodo histrico-cultural que ele acha-va ST o instrumental terico e metodolgico capaz de explicar e re-por em bases cientficas o problema. Bastide teve a sorte de criar umaverdadeira escola que iniciou a reanlise do problema do negro, ini-cialmente em So Paulo, depois em outras reas do Brasil. Entre osseus continuadores temos Florestan Fernandes que conseguiu reporo problema em bases sociologicamente polmicas e renovadoras. Aele, em So Paulo, deram continuao a esses estudos Octvio lanni,Oracy Nogueira, Tefilo de Queiroz Jnior, Joo Batista Borges Pe-reira, Fernando Henrique Cardoso e, na Bahia, alm da obra clssi-ca de Edison Carneiro que se filiava mais ao pensamento de Artur

  • 12 INTRODUO

    Ramos, embora dele divergindo terica e metodologicamente, os tra-balhos de Thales de Azevedo, Maria Brando, Luiz Mott, Yeda Pes-soa de Castro, Ktia Matozo, Vivaldo da Costa Lima, Jeferson AfonsoBacelar, Pierre Verger, Juana Elbein dos Santos e muitos outros.

    No Rio de Janeiro podemos citar os nomes de Lana Lage daGama Lima, L. A. Costa Pinto, Carlos Hasenbalg, Llia Gonzales,Joel Rufino dos Santos, sem que a citao destes nomes signifiqueexcluso de outros por razes de julgamento do valor do trabalho dosdemais.

    Mas o que est caracterizando o enfoque do problema do negrono Brasil uma importante literatura sobre o assunto que surge e sedesenvolve fora das universidades. Neste particular, entre outros, osnomes de Ariosvaldo Figueiredo, Martiniano J. da Silva, Jacob Go-render, Nunes Pereira, Abguar Bastos, Dcio Freitas, Luiz Luna, JosAlpio Goulart mostram como a preocupao com o problema do ne-gro transcendeu o circuito acadmico e transformou-se em uma preo-cupao permanente de camadas significativas da intelectualidadebrasileira.

    Isto prometedor porque demonstra como aquilo que era umasociologia sobre o negro brasileiro est se estruturando como umasociologia do e para o negro no Brasil.

    Alm dessa produo de cientistas sociais no-acadmicos, des-ligados das universidades, h, tambm, o trabalho relevante de pes-quisas realizadas pelas entidades negras sobre diversos assuntos ligadosaos problemas raciais no Brasil. Inmeros grupos ou instituies or-ganizadas pelos negros esto redimensionando esses estudos a partirde uma posio dinmica, operacional e engajada. Isto est assus-tando, inclusive, alguns acadmicos que s admitem a discusso dequalquer problema dentro dos muros sacralizados das universidades. toda uma constelao de cientistas sociais que desponta a partir des-sas organizaes no sentido de reformular os objetivos dos estudossobre o negro.

    Este livro surge, pois, no momento em que o problema do ne-gro est sendo nacionalmente reposicionado e questionado em faceda necessidade de uma avaliao do que foram os cem anos de traba-lho livre para ele. Da a nossa preocupao em levantar algumas ques-tes que podero dar explicao sua situao de marginalizao,pobreza, discriminao e rejeio social por parte de grandes segmen-tos da populao brasileira. No o escrevemos, pois, por uma ques-to de moda comemorativa (mesmo porque no h nada a come-

    INTRODUO 13

    morar), mas como um material de reflexo para todos aqueles queno se aperceberam da importncia do assunto, e, ao reconhec-la,possam fazer uma anlise crtica sobre o comportamento alienado deuma grande parte da nossa nao que os negros criaram com o seutrabalho durante quase quatrocentos anos como escravos, e, depois,com cem anos de trabalho livre.

    Esse gueto invisvel que faz do negro brasileiro ser apenas ele-mento consentido pela populao branca e rica, autoritria e domi-nante, que dever ser rompido se o Brasil no quiser continuar sendouma nao inconclusa, como at hoje, isto porque teima em rejei-tar, como parte do seu ser social, a parcela mais importante para asua construo.

    Sabemos que no sero apenas estudos, livros e pesquisas semuma prxis poltica que iro produzir essa modificao desalienado-ra no pensamento do brasileiro preconceituoso e racista. Mas, de qual-quer forma, esses trabalhos ajudaro a que se forme uma prtica socialcapaz de romper a segregao invisvel mas operante em que vive apopulao negra no Brasil.

  • l? Parte

    Teorias procurade uma prtica

    A controvrsia sobre a realidade ouno-realidade do pensamento iso-lado da prxis uma questo pu-ramente escolstica.

    KARL MARX

  • IOs estudos sobre o negro como

    reflexo da estrutura dasociedade brasileira

    1. Pensamento Os estudos sobre o negro brasileiro, nosSOCial subordinado seus diversos aspectos, tm sido media-

    dos por preconceitos acadmicos, de umlado, comprometidos com uma pretensa imparcialidade cientfica, e,de outro, por uma ideologia racista racionalizada, que representa osresduos da superestrutura escravista, e, ao mesmo tempo, sua conti-nuao, na dinmica ideolgica da sociedade competitiva que a suce-deu. Queremos dizer, com isto, que houve uma reformulao dosmitos raciais reflexos do escravismo, no contexto da sociedade de ca-pitalismo dependente que a sucedeu, reformulao que alimentou asclasses dominantes do combustvel ideolgico capaz de justificar openeiramento econmico-social, racial e cultural a que ele est sub-metido atualmente no Brasil atravs de uma srie de mecanismos dis-criminadores que se sucedem na biografia de cada negro.

    Uma viso mais vertical do assunto ir demonstrar, tambm,como esses estudos acadmicos, ao invocarem uma imparcialidadecientfica inexistente nas cincias sociais, assessoram, de certa forma,embora de forma indireta, a constelao de pensamento social racis-ta que est imbricado no subconsciente do brasileiro mdio. Essa cin-cia, quase toda ela estruturada atravs de modelos tericos epostulados metodolgicos vindos de fora, abstm-se de estabelecer

  • 18 OS ESTUDOS SOBRE O MICRO COMO REFLEXO DA ESTRUTURA DA SOCIEDADE BRASILEIRA

    uma prxis capaz de determinar parmetros conclusivos e normas deao para a soluo do problema racial brasileiro nos seus diversosnveis e implicaes.

    Tomando-se corno precursores Perdigo Malheiros e Nina Ro-drigues, podemos ver que o primeiro absteve-se na sua Histria daescravido de apresentar uma soluo para o problema que estudou,atravs de medidas ridicais, e, o segundo, embebido e deslumbradopela cincia oficial europeia que predominava no seu tempo e vinhapara o Brasil, via o negro como biologicamente inferior, transferin-do para ele as causas do nosso atraso social. Em Nina Rodrigues po-demos ver, j, essa caracterstica que at hoje perdura nas cinciassociais do Brasil: a subservincia do colonizado aos padres ditos cien-tficos das metrpoles dominadoras.

    A partir de Nina Rodrigues os estudos africanistas, ou assimchamados, se desenvolvem sempre subordinados a mtodos que noconseguem (nem pretendem) penetrar na essncia do problema paratentar resolv-lo cientificamente.

    O continuador de Nina Rodrigues, Artur Ramos, conforme ve-remos em captulo subsequente, recorre psicanlise, inicialmente,e ao mtodo histrico-cultural americano, para penetrar naquilo queele chamava de o mundo do negro brasileiro. A viso culturalista trans-feria para um choque ou harmonia entre culturas as contradies so-ciais emergentes ou as conciliaes de classes. Antes de Ramos,Gilberto Freyre antecipava-se na elaborao de uma interpretao so-cial do Brasil atravs das categorias casa-grande e senzala, colocandoa nossa escravido como composta de senhores bondosos e escravossubmissos, empaticamente harmnicos, desfazendo, com isto, a pos-sibilidade de se ver o perodo no qual perdurou o escravismo entrens como cheio de contradies agudas, sendo que a primeira e maisimportante e que determinava todas as outras era a que existia entresenhores e escravos.

    O mito do bom senhor de Freyre uma tentativa sistemticae deliberadamente bem montada e inteligentemente arquitetada parainterpretar as contradies estruturais do escravismo como simplesepisdio epidrmico, sem importncia, e que no chegaram a desmen-tir a existncia dessa harmonia entre exploradores e explorados du-rante aquele perodo.

    Convm salientar que a gerao que antecedeu a Freyre no pri-mava pela elaborao de um pensamento isento de preconceitos con-tra o negro.

    PENSAMENTO SOCIAL SUBORDINADO 19

    O desprezo por ele, mesmo como objeto de cincia, foi domi-nante durante muito tempo entre os nossos pensadores sociais. SlvioRomero constatou o fato escrevendo:

    Muita estranheza causaram em vrias rodas nacionais o haverem estaHistria da literatura e os Estudos sobre a poesia popular brasileira re-clamando contra o olvido proposital feito nas letras nacionais a res-peito do contingente africano e protestando contra a injustia daoriginada. (...) Ningum jamais quis sab-lo, em obedincia ao prejuzoda cor, com medo de, em mostrando simpatia em qualquer grau poresse imenso elemento da nossa populao, passar por descendentesde raa africana, de passar por mestio*... Eis a verdade nua e crua. preciso acabar com isto: mister deixar de temer preconceitos, dei-xar de mentir e restabelecer os negros no quinho que lhe tiramos: olugar que a eles compete, sem menor sombra de favor, em tudo quetem sido, em quatro sculos, praticado no Brasil.1

    O destaque que faz Slvio Romero que tambm no ficouimune a esse preconceito contra a pecha de mestios bem de-monstra como se procurava fugir, j naquela poca, nossa identi-dade tnica, como veremos posteriormente. O mestio era consideradoinferior. No tinha apelao diante das concluses da cincia do tem-po, isto , aquela cincia que chegava at ns. Guerreiro Ramos emtrabalho desmistificador mostra a subordinao desse pensamento so-cial s limitaes estruturais na nossa sociedade. Demonstrando o queestamos querendo dizer aos leitores, Guerreiro Ramos reporta-se aopensamento de Slvio Romero afirmando, no seu texto, que ele, tam-bm, incorreu em muitos enganos em relao ao problema de supe-rioridade e inferioridade de raas classificando os negros entre os"povos inferiores". 2 O prprio Euclides da Cunha tambm malsi-nou o mestio. Foi, segundo Guerreiro Ramos "vtima da antropo-logia do seu tempo".

    Mas, sem querermos fazer uma anlise sistemtica da bibliogra-fia pertinente daquele tempo, queremos destacar que esse pensamen-to social era subordinado a uma estrutura dependente de tal formaque os conceitos chamados cientficos chegavam para inferioriz-laa partir de sua auto-anlise. Isto , no queramos aceitar a nossa rea-lidade tnica, pois ela nos inferiorizaria, criando a nossa intelignciauma realidde mtica, pois somente ela compensaria o nosso ego na-cional, ou melhor, o ego das nossas elites que se diziam representati-vas do nosso ethos cultural.

    Afirma, no particular, Guerreiro Ramos:

  • 20 OS ESTUDOS SOBRE O NEGRO COMO REFLEXO DA ESTRUTURA DA SOCIEDADE BEASILEIRA

    luz da sociologia cientfica, a sociologia do negro no Brasil , ela mes-ma, um problema, em engano a desfazer, o que s poder ser conse-guido atravs de um trabalho de crtica e autocrtica. Sem crtica eautocrtica, alis, no pode haver cincia. O esprito cientfico no secoaduna com a intolerncia, no se coloca jamais em posio de sis-temtica irredutbilidade, mas, ao contrrio, est sempre aberto, sem-pre disposto a rerer posturas, no sentido de corrigi-las, naquilo em quese revelarem inadequadas percepo exata dos fatos. A nossa so-ciologia do negro , em larga margem, uma pseudomorfose, isto , umaviso carente desuportes existenciais genunos, que oprime e dificul-ta mesmo a emergncia, ou a induo da teoria objetiva dos fatos davida nacional.}

    luz deste pensamento de Guerreiro Ramos podemos compreen-der o mito do bom senhor de Freyre como uma tentativa sistemticae deliberadamente montada para interpretar as contradies estrutu-rais do escravismo como simples episdio sem importncia, que nochegaram a desmentir a existncia dessa harmonia entre explorado-res e explorados. Finalmente podemos compreender por que toda umagerao que sucede a de Freyre psicologiza o problema do negro, sendoque grande parte dela composta de psiquiatras como Ren Ribeiro,Gonalves Fernandes, Ulisses Pernambucano e o prprio Artur Ra-mos. Salve-se, nesse perodo, a obra de Edison Carneiro, autor queprocurou dar uma viso dialtica do problema racial brasileiro.

    2. O racismo e a Todos esses trabalhos procuravam ver, es-ideologia do tudar e interpretar o negro no como umautoritarismo ser socialmente situado numa determinada

    estrutura, isto , como escravo e/ou ex-escravo, mas como simples componente de uma cultura diferente doethos nacional. Da vermos tantas pesquisas serem realizadas sobreo seu mundo religioso em nvel etnogrfico e sobre tudo aquilo queimplicava diferena do padro ocidental, tido como normativo, e topoucos estudos sobre a situao do negro durante a sua trajetria his-trica e social. Minimiza-se por isto, inclusive, o nmero de escravosentrados durante o trfico negreiro, fato que vem demonstrar comoesses estudos, conforme j dissemos, assessoram, consciente ou in-conscientemente, e municiam a subjacncia racista de grandes cama-das da populao brasileira, mas, especialmente, o seu aparelho dedominao. No mostram a importncia social do trfico e no

    O RACISMO E A IDEOLOGIA DO AUTORITARISMO 21

    procuram (na sua maioria) demonstrar como a importncia sociol-gica do trfico no se cifra ao nmero de escravos importados, masna sua relevncia estrutural o que permite os seus efeitos se eviden-ciarem em grupos e instituies da sociedade que foram organizadosexatamente para impedi-lo, j que, a partir de 1830, o trfico era ofi-cialmente considerado ilegal.

    Neste particular, Robert Edgar Conrad 4 mostra como toda amquina do Estado passa a servir de mantenedora e protetora dessetipo de comrcio, citando a taxa ou comisso que os juizes recebiam(10,8%) para liberar as cargas de escravos ilegalmente desembarca-dos. Mas, no era apenas o poder judicirio o conivente com o trfi-co criminoso; o segmento militar participa tambm ativamente, demodo especial a Marinha, que tinha papel substantivo na repressoao trfico negreiro. Nele estavam envolvidos os mais significativosfigures e personalidades importantes da poca: juizes, polticos, mi-litares, padres e outros segmentos ou grupos responsveis pela nor-malidade do sistema.

    Em 1836, por exemplo, um certo capito Vasques, comandanteda fortaleza de So Joo, na entrada da baa do Rio de Janeiro,transformou-a em um depsito de escravos. Polticos apoiavam e con-viviam abertamente com os traficantes. Manoel Pinto da Fonseca,um dos mais notrios contrabandistas de escravos, era companheirode jogo do chefe de polcia e foi elevado a Cavaleiro da Ordem daRosa Brasileira, honra imperial concedida por D. Pedro II.

    Esta atitude sistemtica de defesa ideolgica e emprica de umtrfico ilegalizado por presso da Inglaterra e pelas autoridades bra-sileiras no se dava acidentalmente, porm. Era uma decorrncia daprpria essncia da estrutura do Estado brasileiro. Sem se fazer umaanlise sociolgica e histrico/dialtica do seu contedo no pode-mos entender esses padres de comportamento da elite poltico/ad-ministrativa da poca. Por no fazerem esse tipo de anlise dialtica,certos historiadores acadmicos chegam a falar em uma "democra-cia coroada" (Joo Camilo de Oliveira Torres) para caracterizar oreinado de Pedro II. No entanto, como todo Estado de uma socieda-de escravista ele era inteiramente fechado a tudo aquilo que poderiaser chamado de democracia. Durante toda a existncia do Estado bra-sileiro, no regime escravista, ele se destinava, fundamentalmente, amanter e defender os interesses dos donos de escravos. Isto quer di-zer que o negro que aqui chegava coercitivamente na qualidade desemovente tinha contra si todo o peso da ordenao jurdica e militar

  • n OS ESTUDOS SOBRE O MORO COMO REFLEXO DA ESTRUTURA DA SOCIEDADE BRASILEIRA

    do sistema, e, com isto, todo o peso da estrutura de dominao e ope-ratividade do Estado.

    O historiador Antnio Torres Montenegro elaborou, no parti-cular, um esquema que explica muito bem o contedo do tipo de Es-tado escravista monrquico/constitucional e qual o seu papel e funo.

    Diz ele:Esta (a estruturado Estado monrquico/escravista) se caracteriza pe-la rigidez e pela imobilidade. Isto se poderia evidenciar em muitos ou-tros aspectos como: a escolha de eleitores e candidatos, feita conformeo critrio de renda, o que exclui grande parcela da populao, fato quea luta abolicionista (tornando livre muitos escravos) e o processo denaturalizao dos imigrantes tende a corrigir; a interveno direta dogoverno nas eleies da Cmara, sempre se formando maiorias parla-mentares correspondentes aos gabinetes; a escolha de um senador vi-talcio entre os que compunham a lista trplice, feito pelo PoderModerador, em funo de critrios pessoais; a existncia, no interiorda estrutura de poder, de um segmento vitalcio, o Conselho de Esta-do (constitudo de 12 membros) e o Senado (constitudo de 60 mem-bros) que, apesar de todas as crises, permanecia no poder e seconstituam na base poltica do Poder Moderador.5

    Esse tipo de estrutura de Estado (desptico na sua essncia) al-tamente centralizado e tendo como espinha dorsal e suporte perma-nente dois segmentos vitalcios (o Conselho de Estado e o Senado)foi montado prioritariamente para reprimir a luta, entre os escravose a classe senhorial. No foi por acaso, por isto mesmo, que o Brasilfosse o ltimo pas do mundo a abolir a escravido.

    O que caracteriza fundamentalmente esse perodo da nossa his-tria social a luta do escravo contra esse aparelho de Estado. E ,por um lado, exatamente este eixo contraditrio e decisrio para amudana social que subestimado pela maioria dos socilogos e his-toriadores do Brasil, os quais se comprazem em descrever detalhes,em pesquisar minudncias, exotismos, encontrar analogias, fugindo,desta forma, tentativa de se analisar de maneira abrangente e cien-tfica as caractersticas, os graus de importncia social, econmica,cultural e poltica dessas lutas. Toda uma literatura de acomodaosobrepe-se aos poucos cientistas sociais que abordam essa dicoto-mia bsica, restituindo, com isto, ao negro escravo a sua postura deagente social dinmico, no por haver criado a riqueza comum, mas,exatamente pelo contrrio: por haver criado mecanismos de resistn-cia e negao ao tipo de sociedade na qual o criador dessa riquezaera alienado de todo o produto elaborado.

    O RACISMO E A IDEOLOGIA DO AUTORITARISMO 23

    Em vista disto a imagem do negro tinha de ser descartada dasua dimenso humana. De um lado havia necessidade de mecanismospoderosos de represso para que ele permanecesse naqueles espaossociais permitidos e, de outro, a sua dinmica de rebeldia que a issose opunha. Da a necessidade de ser ele colocado como irracional, assuas atitudes de rebeldia como patologia social e mesmo biolgica.

    O aparelho ideolgico de dominao da sociedade escravista ge-rou um pensamento racista que perdura at hoje. Como a estruturada sociedade brasileira, na passagem do trabalho escravo para o livre,permaneceu basicamente a mesma, os mecanismos de dominao in-clusive ideolgicos foram mantidos e aperfeioados. Da o autoritaris-mo que caracteriza o pensamento de quantos ou pelo menos grandeparte dos pensadores sociais que abordam o problema do negro, apsa Abolio. Veja-se, por exemplo, Oliveira Vianna. Para ele o autori-tarismo estava na razo direta da inferioridade do negro. Por isto de-fende uma organizao oligrquica para a sociedade brasileira. Diz:

    Pelas condies dentro das quais se processou a nossa formao po-ltica, estamos condenados s oligarquias: e, felizmente, as oligarquiasexistem. Pode parecer paradoxal; mas numa democracia como a nos-sa, elas tm sido a nossa salvao. O nosso grande problema, comoj disse alhures, no acabar com as oligarquias: transform-las fazendo-as passarem da sua atual condio de oligarquias broncas parauma nova condio de oligarquias esclarecidas. Estas oligarquias es-clarecidas seriam, ento, realmente, a expresso da nica forma de de-mocracia possvel no Brasil.6

    Mas, segundo Oliveira Vianna, essas oligarquias, para ascende-rem de broncas a esclarecidas teriam de se arianizar. Porque aindapara ele

    a nossa civilizao obra exclusiva do homem branco. O negro e o n-dio, durante o longo processo da nossa formao social, no do, co-mo se v, s classes superiores e dirigentes que realizam a obra decivilizao e construo, nenhum elemento de valor. Um e outro for-mam uma massa passiva e improgressiva, sobre que trabalha, nem sem-pre com xito feliz, a ao modeladora da raa branca.7

    Toda a obra de Oliveira Vianna vai nesse diapaso. Continuaa ideologia do Poder Moderador de D. Pedro II e procura ordenara nossa sociedade atravs da "seleo racial". No por acaso queo mesmo autor chega a elogiar as teorias racistas 6 fascistas no planopoltico. Esse autoritarismo de Oliveira Vianna uma constante nopensamento social e h um cruzamento sistemtico entre essa visoautoritarista do mundo e o racismo.

  • 24 OS ESTUDOS SOBRE O NEGRO COMO REFLEXO DA ESTRUTURA DA SOCIEDADE BRASILEIRA

    Atravs de vieses menos agressivos, podemos ver que a defe-sa das oligarquias por parte de Oliveira Vianna poder fundir-se defesa dos senhores patriarcais de Gilberto Freyre. Em um dos seuslivros, Freyre escreve defendendo, da mesma fornia que Oliveira Vian-na, a necessidade de reconhecermos realisticamente a funo positi-va das oligarquias:

    No Brasil do sculo passado, os publicistas e polticos de tendnciasreformadoras, defensores mais de ideias e de leis vagamente liberaisque de reformas correspondentes s necessidades e s condies domeio, para eles desconhecido, sempre escreveram e falaram sobre osproblemas nacionais com um simplismo infantil. Para alguns deles ogrande mal do Brasil estava indistintamente nos grandes senhores; nosvastos domnios; na supremacia de certo nmero de famlias. E pararesolver essa situao bastava que se fizessem leis liberais. Apenasisto: leis liberais (...) Os senhores de engenho no constituam um oni-potente legislativotinham de desdobrar-se em executivo. Da os "reis",mas "reis" antiga, intervindo na atividade dos moradores e escravos,que alguns deles pareceram a Tollenare. O viajante francs viu senho-res fiscalizando trabalhos; agradando a miualha preta; falando rspi-do a negros enormes, certos do prestgio da voz e do gesto.8

    As oligarquias de Oliveira Vianna tm muita semelhana comos senhores de engenho idealizados por Gilberto Freyre, pois so asformas diversificadas de um mesmo fenmeno. Ambos criaram e man-tiveram os suportes justificatrios de uma sociedade de privilegiados,no Imprio ou na Repblica. Entre os dois pensamentos h uma cons-tante: a inferiorizao social e racial do negro, segmentos mestiose ndios e a exaltao cultural e racial dos dominadores brancos.

    Esta ligao entre racismo e autoritarismo uma constante nopensamento social e poltico brasileiro. Outro socilogo, AzevedoAmaral, um dos idelogos do Estado Novo, escreve:

    A entrada de correntes imigratrias de origem europeia realmente umadas questes de maior importncia na fase de evoluo que atraves-samos e no h exagero afirmar-se que do nmero de imigrantes daraa branca que assimilarmos nos prximos decnios depende literal-mente o futuro da nacionalidade (...) Uma anlise retrospectiva do de-senvolvimento da economia brasileira desde o ltimo quartel do sculoXIX pe em evidncia um fato que alis nada tem de surpreendente por-que nele apenas reproduzia em maiores propores ainda, o que j ocor-rera em fases anteriores da evoluo nacional. As regies para ondeafluram os contingentes de imigrantes europeus receberam um impulsoprogressista que as distanciou de tal modo das zonas desfavorecidasde imigrao que entre as primeiras e as ltimas se formaram diferen-as de nvel econmico e social, cujos efeitos justificam apreen-

    REPETE-SE NA LITERATURA A IMAGEM ESTEREOTIPADA DO PENSAMENTO SOCIAL 25

    soes polticas. Enquanto nas provncias que no recebiam imigrantesem massa se observava marcha lenta do desenvolvimento econmicoe social, quando no positiva estagnao do movimento progressivo,as regies afortunadas a que iam ter em caudal contnuas levas de tra-balhadores europeus foram cenrio de surpreendentes transformaeseconmicas de que temos os exemplos mais importantes em So Pau-lo e no Rio Grande do Sul. Alis, aconteceu entre ns o mesmo quepor toda a parte onde as naes novas surgem e prosperam com a coo-perao de elementos colonizadores vindos de pases mais adianta-dos habitados por povos de raas antropologicamente superiores. (...)O problema tnico brasileiro chave de todo destino da nacionalida-de resume-se na determinao de qual Vir a ser o fator da trplicemiscigenao que aqui se opera e que caber impor ascendncia doresultado definitivo do caldeamento. claro que somente se tornarpossvel assegurar a vitria tnica dos elementos representativos dasraas e da cultura da Europa se reforarmos pelo fluxo contnuo de no-vos contingentes brancos. Os obstculos opostos imigrao de ori-gem europeia constituem portanto dificuldades deliberadamentecriadas ao reforamento dos valores tnicos superiores de cujo predo-mnio final no caldeamento dependem as futuras formas estruturaisda civilizao brasileira e as manifestaes de seu determinismo eco-nmico, poltico, social e cultural. (...) A nossa etnia est longe do pe-rodo final de cristalizao. E como acima ponderamos, os mais altosinteresses nacionais impem que se faa entrar no pas o maior nme-ro possvel de elementos tnicos superiores, a fim de que no eplogodo caldeamento possamos atingir um tipo racial capaz de arcar comas responsabilidades de uma grande situao.9

    Isto era escrito logo depois da implantao do Estado Novo,em livro elaborado para defend-lo e justificar o seu autoritarismo.

    Como vemos h um continunm neste pensamento social da inteli-gncia brasileira: o pas seria tanto mais civilizado quanto mais bran-queado. Esta subordinao ideolgica desses pensadores sociaisdemonstra como as elites brasileiras que elaboram este pensamentoencontram-se parcial ou totalmente alienadas por haverem assimiladoe desenvolvido a ideologia do colonialismo. A este pensamento seguem-semedidas administrativas, polticas e mesmo repressivas para estancar ofluxo demogrfico negro e estimular a entrada de brancos "civilizados".

    3. Repete-se na literatura Este aspecto alienante que sea imagem estereotipada encontra na literatura antropo-do pensamento social lgica, histrica e sociolgica, eque tem suas razes sociais na estrutura desptica e racista do apare-

  • 26 OS ESTUDOS SOBRE O NEGRO COMO REFLEXO DA ESTRUTURA DA SOCIEDADE BRASILEIRA

    lho de Estado escravista, e, posteriormente, na estrutura intocada dapropriedade fundiria, encontra-se, tambm, na literatura de ficoda poca do escravismo, com desdobramentos visveis e permanentesaps a sua extino.

    O mundo ficcional, o imaginrio desses romancistas ainda es-tava impregnado de valores brancos, o seu modelo de beleza aindaera o greco-romano e os seus heris e heronas tinham de ser pauta-dos por esses modelos. E a nossa realidade ficava desprezada comotemtica: os heris tinham de ser brancos como os europeus e a mas-sa do povo apenas pano de fundo dessas obras.

    Em toda essa produo nenhum personagem negro entrou co-mo heri. O problema do negro na literatura brasileira deve compor-tar uma reviso sociolgica que ainda no foi feita. Quando surgea literatura nacional romntica, na sua primeira fase, surge exatamentepara negar a existncia do negro, quer social, quer esteticamente. Todaa ao e tudo o que acontece nessa literatura tem de obedecer aospadres brancos, ou de exaltao do ndio, mas um ndio distante,europeizado, quase um branco naturalizado ndio. Idealizao de umtipo de personagem que no participava da luta de classes ou dos con-flitos, como o negro, mas era uma idealizao de fuga e escape paraevadir-se da realidade scio-racial que a sociedade branca do Brasilenfrentava na poca. Era mais Rousseau e romantismo do "bom sel-vagem", quase um cavaleiro europeu, do que uma tentativa de mos-trar a situao de extermnio do ndio brasileiro. Era, de um lado,descartar o negro como ser humano e herico, para coloc-lo comoextico-bestial da nossa literatura, e, de outro, fazer-se uma idealiza-o do ndio em oposio ao negro. No se abordava o ndio que seexterminava nas longnquas dimenses geogrficas daquela poca des-trudo pelo branco. O ndio do romantismo brasileiro era, por tudoisto, uma farsa ideolgica, literria e social. Era uma contrapartidafcil para se colocar o quilombola, o negro insurreto e o revolucion-rio negro, de um modo geral, como anti-heri dessa literatura defuga e alienao. Esse indianismo europeizado entrava como umenclave ideolgico necessrio para se definir o negro como inferiornuma esttica que, no fundamental, colocava-o de um lado como anegao da beleza e, de outro, como anti-heri, como facnora oucomo subalterno, obediente, quase que ao nvel de animal conduzidopor reflexos.

    REPETE-SE NA LITERATURA A IMAGEM ESTEREOTIPADA DO PENSAMENTO SOCIAL 11

    Temos o exemplo de Machado de Assis que escreve durante aescravido como se vivesse uma realidade urbana europeia, queren-do branquear os seus personagens, heris e heronas. Toda a primei-ra gerao romntica, por isto mesmo, uma gerao cooptada peloaparelho ideolgico ou burocrtico do sistema escravista. Por isto mes-mo no podiam criar uma literatura que refletisse o nosso ser cultu-ral. Tinham de ir buscar de fora os elementos com os quais repre-sentavam a sua forma de expresso e de criao literria. Escreve ana-lisando esta situao estrutural Nelson Werneck Sodr:

    interessante distinguir um aspecto a que temos concedido, em re-gra, ateno distante, quando a concedemos: aquele que se refere origem de classe dos homens de letras, j mencionado, de passagem,ligando-se agora ao detalhe de fazerem tais homens de letras seus es-tudos na Europa. O costume, prprio da classe proprietria, de man-dar os filhos estudar em Coimbra e, mais adiante, nos centros uni-versitrios mais conhecidos, particularmente na Frana, constitua, nos um inequvoco sinal de classe, como o caminho natural para a eva-so da realidade da colnia e do pas, to diversa do ambiente em queiam aprimorar os conhecimentos e que lhes pareceria o modelo insu-perado. A alienao que ainda um trao de classe uma vez queno podiam tais elementos solidarizar-se com um povo representado,em sua esmagadora maioria, por escravos e libertos pobres, em quea classe comercial mal comeava a se definir e era vista com despre-zo, corresponderia, no fundo, secreta nsia de disfarar em cada umo que lhe parecia inferior, identificando-se com o modelo externo tofascinante. E tais elementos, cuja formao mental os distanciava doseu pas, e, cujas origens de classe os colocavam em contrastes comeste, ligando-os ao estrangeiro, eram os que formavam os quadros im-periais, quadros a que os cursos jurdicos atendiam: "J ento as Fa-culdades de Direito eram ante-salas da cmara", conforme observouNabuco.10

    Por estas razes sociais toda a primeira gerao romntica umagerao cooptada pelo aparelho ideolgico e burocrtico do sistemaescravista representado pelos diversos escales do poder, terminadono Imperador. Gonalves de Magalhes, introdutor oficialmente doromantismo potico, vai ser diplomata na Itlia, tendo publicado oseu primeiro volume de versos em Paris; Joaquim Manoel de Mace-do ser preceptor da famlia imperial; Gonalves Dias vive pesqui-sando na Europa s expensas de D. Pedro II durante muitos anos;Manoel Antnio de Almeida com pouco mais de vinte anos nomea-do administrador da Tipografia Nacional, o que corresponderia hojea diretor da Imprensa Oficial, e Jos de Alencar, o maior ficcionistaromntico (indianista), ser Ministro da Justia em gabinete doImprio.

  • OS ESTUDOS SOBRE O NECSO COMO REFLE.XO DA ESTRUTURA DA SOCIEI

    Toda essa ligao orgnica com o sistema ir determinar ou con-dicionar, em graus maiores ou menores, o contedo dessa produo.Nas outras atividades culturais a subordinao se repete e o caso de Car-los Gomes conhecido: tendo composto a pera O escravo com libretode Taunay, foi forado a modific-lo, substituindo o seu personagemcentral, que era negro, por um escravo ndio. Carlos Gomes tambmestava estudando na Europa atravs do mecenato do Imperador.

    Aqui cabe fazer uma distino: a literatura dessa poca por ve-zes aborda o escravo no seu sofrimento ou na sua lealdade, humildemuitas vezes, outras vezes querendo a sua liberdade. Os demais seg-mentos em que se divide a classe escrava so tambm abordados; ame preta, a mucama domstica e at relaes incestuosas entre filhade escrava com o sinhozinho, filhos do mesmo pai. O que nessa lite-ratura est ausente o negro como ser, como homem igual ao bran-co, disputando no seu espao a sua afirmao como heri romntico.Escreve, neste sentido Raymond S. Sayers:

    At mesmo o sentimento escravista que originou vasta literatura no s-culo XVIII na Inglaterra, na Frana e mesmo na Alemanha de Herdercom o seu Neger Idyllen, est ausente desta potica de imitao. Emverdade, embora os negros povoassem bastantemente o panorama so-cial, os poetas preferiram ver apenas com os olhos da imaginao nin-fas e pastores encantadores, em vez de ver a realidade de escravos emulatinhas inquietos e andrajosos. H somente dois poemas em queos negros aparecem como indivduos, o Quitbia, de Jos Baslio daGama, em que um negro nobre o heri, e o Caramuru, de Santa RitaDuro, que dedica algumas estancas ao episdio de Henrique Dias. Foradisso, na maioria das vezes em que o negro aparece nessa poesia, como mero pormenor do ambiente, figura digna de piedade no egos-mo melanclico de quem o observa. u

    Outros exemplos poderiam ser dados mas, ao que nos parece,j expusemos o suficiente para demonstrar como essa literatura erarepresentativa de um sistema social, o escravismo, e somente a partirda compreenso deste fato poderemos analisar em profundidade oseu contedo e a sua funo.

    Uma exceo deve ser feita, no nosso entender, j na segundafase do romantismo: Castro Alves, provavelmente nico que tenharessaltado na sua obra o papel social e ativo do escravo negro na suadimenso de rebeldia, e na sua interioridade existencial, criando poe-mas com personagens negros. Com Castro Alves o negro se humani-za, deixa de ser a besta de carga ou o facnora, ou, ento, compo-nente da galeria de humilhados e ofendidos da primeira gerao. Cas-

    O DILEMA E AS ALTERNATIVAS 29

    tro Alves , por isto, o grande momento da literatura brasileira, por-que coloca o negro escravo como homem que pensa e reivindica, queama e luta. Um exemplo para mostrar a diferena de universos so-ciais e estticos entre ele e Gonalves Dias: Castro Alves escreve oseu grande poema "O navio negreiro" sem nunca ter visto uma des-sas embarcaes, pois o trfico foi extinto em 1850, enquanto Gon-alves Dias que teve oportunidade de v-los s dezenas, provavelmenteno seu cotidiano, jamais o usou como temtica dos seus versos.

    Castro Alves poderia ter visto algum barco do trfico interpro-vincial, mas nunca um tumbeiro como ele descreve no seu poema.Por outro lado, quando escreveu "Saudao a Palmares" os negrosquilombolas ainda existiam e eram caados como criminosos. No en-tanto, ele inverteu os valores e, ao invs de apresent-los como crimi-nosos perturbadores, apresenta-os como heris.

    Essa literatura orgnica que funcionou como superestruturaideolgica do sistema argamassa cultural de manuteno que atra-vessa o perodo do escravismo e penetra na sociedade de capitalismodependente que persiste at hoje. Por isto, somente com Lima Barre-to, que morre em 1922, o negro se redignifica como personagem fic-cional, como ser humano na sua individualidade. Depois de LimaBarreto, exceo feita ao romance Macunama de Mrio de Andra-de, na fase modernista, somente com a gerao de 1930 ele aparecesem ser apenas componente extico, sem interioridade, sem sentimen-tos individuais.

    Surgem ento, Moleque Ricardo, de Jos Lins do Rego, e Ju-biab, de Jorge Amado, assim mesmo ainda relativamente folclori-zados. Mas, de qualquer forma, um avano no comportamento doimaginrio dos nossos escritores em relao ao negro. Dessa pocaem diante que o negro vai entrar mais detalhada e amiudadamentena nossa novelstica. Mas a dvida dos nossos intelectuais e roman-cistas em particular, para com o negro, ainda no foi resgatada. Aconscincia crtica dos nossos intelectuais em relao ao problema t-nico do Brasil em geral, e do negro, no particular, ainda no se cris-talizou em nvel de uma reformulao das categorias ideolgicas eestticas com as quais manipulam a sua imaginao. Ainda so mui-to europeus, brancos, o que vale dizer ideologicamente colonizados.

    4. O dilema e Toda essa produo cultural, quer cientfica,as alternativas quer ficcional, que escamoteia ou desvia do

    fundamental o problema do negro nos seusdiversos nveis, desvinculando-o da dinmica dicotmica produzida

  • 30 OS ESTUDOS SOBRE O NEGRO COMO REFLEXO DA ESTRUTURA DA SOCIEDADE BRASILEIRA

    pela luta de classes, na qual ele est inserido, mas com particula-ridades que o transformam em um problema especfico ou comespe-cificidades que devem ser consideradas, fez com que pouco se acres-centasse s generalidades ou lugares-comuns na sua maioria ditos sobreele. Somente a partir das pesquisas patrocinadas pela Unesco, apsa Segunda Guerra Mundial, essas generalidades otimistas e ufanistasforam revistas com rigor cientfico e reanalisadas. Uma dessas gene-ralidades refere-se, constantemente, existncia de uma democraciaracial no Brasil, exemplo que deveria ser tomado como paradigmapara outras naes. Ns ramos o laboratrio onde se conseguiu asoluo para os problemas tnicos em sentido planetrio. Os resul-tados dessas pesquisas, no entanto, foram chocantes para os adeptosdessa filosofia racial. Constatou-se que o brasileiro altamente pre-conceituoso e o mito da democracia racial uma ideologia arqui-tetada para esconder uma realidade social altamente conflitante e dis-criminatria no nvel de relaes intertnicas.

    Aqueles conceitos de acomodao, assimilao e aculturao conforme veremos depois que explicavam academicamente as re-laes raciais no Brasil foram altamente contestados e iniciou-se umnovo ciclo de enfoque desse problema. Verificou-se, ao contrrio, queos nveis de preconceito eram muito altos e o mito da democracia ra-cial era mais um mecanismo de barragem ascenso da populaonegra aos postos de liderana ou prestgio quer social, cultural ou eco-nmico. De outra maneira no se poderia explicar a atual situaodessa populao, o seu baixo nvel de renda, o seu confinamento noscortios e favelas, nos pardieiros, alagados e invases, como a suasituao no momento.

    Esse mecanismo permanente de barragem mobilidade socialvertical do negro, com os diversos nveis de impedimento sua as-censo na grande sociedade, muitos deles invisveis, os entraves cria-dos pelo racismo, as limitaes sociais que o impediam de ser umcidado igual ao branco, e, finalmente, a defasagem scio-histricaque o atingiu frontal e permanentemente aps a Abolio, como ci-dado, indo compor as grandes reas gangrenadas da sociedade docapitalismo dependente que substituiu escravista, toda essa conste-lao como se fosse um vis complementar, preferindo-se, por isto,a elaborao de monografias sobre o candombl e o xang, assim mes-mo desvinculado do seu papel de resistncia social, cultural e ideol-gica, mas vistos apenas como reminiscncias religiosas trazidas dafrica.

    O DILEMA E AS ALTERNATIVAS 31

    No entanto, aps as pesquisas patrocinadas pela Unesco e quetiveram Florestan Fernandes e Roger Bastide como responsveis nacidade de So Paulo, L. A. Costa Pinto, no Rio de Janeiro, e Thalesde Azevedo, na Bahia, houve a necessidade de uma reordenao te-rica e metodolgica por parte de alguns cientistas sociais, destacando-se, no particular, Florestan Fernandes, Octvio lanni, Emlia Viottida Costa, L. A. Costa Pinto, Clvis Moura, Jacob Gorender, LanaLage da Gama Lima, Lus Luna, Dcio Freitas, Oracy Nogueira, JoelRufino dos Santos, Carlos A. Hasenbalg e alguns outros que, preo-cupados no apenas com o tema acadmico, mas tambm com os pro-blemas tnicos emergentes na sociedade brasileira e os possveis con-flitos raciais da decorrentes, esto tentando uma reviso do nossopassado escravista e do presente racial, social e cultural das popula-es negras do Brasil.

    Esta situao concreta ir criar ndulos de resistncia, tenso ouconflitos scio-racistas, agudizando-se, especialmente, o preconceitode cor medida que certos setores urbanos da comunidade negra co-meam a analisar criticamente essa realidade na qual esto engastadose reagem contra ela. Desse momento de reflexo surgem vrias entida-des negras de reivindicao, no apenas pesquisando dentro de sim-ples parmetros acadmicos, mas complementando-os com uma prxisatuante, levantando questes, analisando fatos, expondo e questionandoproblemas, e, finalmente, organizando o negro, atravs dessa reflexocrtica, para que os problemas tnicos sejam solucionados.

    uma convergncia tentada entre as categorias cientficas e aprxis que vem caracterizar a ltima fase dos estudos sobre o negro.O negro como ser pensante e intelectual atuante articula uma ideolo-gia na qual unem-se a cincia e a conscincia.

    Evidentemente que no se pode falar, ainda, em uma conscin-cia plenamente elaborada, mas de uma posio crtica em processode radicalizao epistemolgica a tudo, ou quase tudo, o que foi fei-to antes, quando se via o negro apenas como objeto de estudo e nun-ca como sujeito ativo no processo de elaborao do conhecimentocientfico.

    Em face da emergncia dessa nova realidade, muitos cientistassociais acadmicos no aceitam, ainda, esta posio como vlida cien-tificamente, mas somente mensurvel como ideologia, bandeira de lu-ta, ponta de lana de ao e de combate. A unidade entre teoria eprtica repugna a esses cientistas que ainda no querem permitir intelligentsia negra participar do processo dialtico do conhecimento.

  • T32 OS ESTUDOS SOBRE O NEGRO COMO REFLEXO DA ESTRUTURA DA SOCIEDADE BRASILEIRA

    nesta encruzilhada que os estudos sobre o negro brasileiro sesituam. H encontros e desencontros entre as duas tendncias: de umlado a acadmica, universitria, que postula urna cincia neutra, equi-librada, sem interferncia de uma conscincia crtica e/ou revolucio-nria, e, de outro, o pensamento elaborado pela intelectualidade negraou outros setores tnicos discriminados e/ou conscientizados, tam-bm interessados na reformulao radical da nossa realidade raciale social.

    Evidentemente que esses movimentos negros esto comeandoa elaborao do seu pensamento, nada tendo ainda de sistemtico ouunitrio. Muito pelo contrrio. Isto, porm, no quer dizer que sejamenos vlido do que a produo acadmica, pois ele elaborado naprtica social, enquanto o outro se estrutura e se desenvolve nos la-boratrios petrificados do saber acadmico.

    Podemos supor, por isto, dois caminhos diferentes que surgi-ro a partir da encruzilhada atual. Um se desenvolver proporoque a luta dos negros e demais segmentos, grupos e/ou classes inte-ressados na reformulao radical da sociedade brasileira se dinami-zarem poltica, social e cientificamente. Do outro lado continuar aproduo acadmica, cada vez mais distanciada da prtica, sofistica-da e andina.

    Esta produo acadmica evidentemente estudar, tambm, co-mo elemento de laboratrio, o pensamento dinmico/radical elabo-rado pelos negros na sua luta contra a discriminao racial, o anal-fabetismo, a injusta distribuio da renda nacional nos seus nveissociais e tnicos. Ela chamar de ideolgica a proposta dessa prticapoltica, cultural, social e racial. No entanto, este pensamento novo,elaborado pela intelligentsia negra (no obrigatoriamente por negros),tem a vantagem de ser testado na prtica, enquanto o pensamentoacadmico servir apenas para justificar ttulos universitrios.

    Notas e referncias bibliogrficas1 ROMERO, Slvio. Histria da literatura brasileira. 5.ed. Rio de Janeiro, Jo-

    s Olympio, 1953. 5 v. v. l, p. 137-238.2 RAMOS, Guerreiro. O problema do negro na sociologia brasileira. Cader-

    nos do Nosso Tempo, Rio de Janeiro, (2), 1954. Ver tambm RAMOS,Guerreiro. Introduo crtica sociologia brasileira. Rio de Janeiro, An-des, 1957.

    NOTAS E REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 33

    3 RAMOS, Guerreiro. Loc. cit.

    4 Diz Conrad: "Os mais vistosos, notrios e ricos participantes do trficoilegal eram, naturalmente, os prprios mercadores de escravos, propriet-rios de frotas de navios, de dispendiosas e ostentosas casas na cidade epropriedades de campo, de depsitos na costa do Brasil e barraces na fri-ca, chefes de um exrcito de seguidores e subordinados, e frequentementeamigos ntimos da elite de plantadores e governadores. Pelas razes men-cionadas acima, a sociedade brasileira no menosprezava esses negocian-tes de seres humanos. De fato, os novos contrabandistas desenvolveramuma aura romntica em torno de muitos contemporneos por seu desafioaos britnicos bem como por suas atividades irregulares e perigosas. Le-galmente aqueles que se ressentiam da interferncia britnica e suspeita-vam da sua motivao (que na verdade estava longe de ser pura) paraaqueles que acreditavam que os mercadores de escravos realizavam um ser-vio essencial ao Brasil e sua economia agrcola, os traficantes eram ho-mens honrados merecedores de ttulos e condecoraes, e da amizade erespeito dos polticos mais poderosos". (CONRAD, Robert Edgar. Tum-beiros. So Paulo, Brasiliense, 1985. p. 120.)

    5 MONTENEGRO, Antnio Torres. O encaminhamento poltico do fim da es-cravido (Dissertao de mestrado). Campinas, Unicamp, 1983. Mimeo-grafado.

    6 VIANNA, Oliveira. Instituies polticas do Brasil. Rio de Janeiro, JosOlympio, 1949. 2 v. v. 2, p. 205.

    7 Evoluo do povo brasileiro. 4. ed. Rio de Janeiro, Jos Olympio,1956. p. 158. Sobre a conexo entre o pensamento racista de Oliveira Viannae a sua defesa do autoritarismo importante a consulta do trabalho deJarbas Medeiros "Introduo ao estudo do pensamento poltico autorit-rio brasileiro 1914/1915", especialmente o item 5 "Racismo & Elites" docaptulo II "Oliveira Vianna" (Revista de Cincia Poltica, Rio de Janei-ro, FGV, 17(2), jun. 1974). Ver tambm, no particular; VIEIRA, EvaldoAmaro. Oliveira Vianna & O estado corporativo. So Paulo, Grijalbo, 1976.passim.

    8 FREYRE, Gilberto. Regio e tradio. Rio de Janeiro, Jos Olympio, 1941,p. 174-7.

    9 AMARAL, Azevedo. O Estado autoritrio e a realidade nacional. Rio deJaneiro, Jos Olympio, 1938, p. 230-4.

    10 SODR, Nelson Werneck. Histria da literatura brasileira (seus fundamen-tos econmicos). 3. ed. Rio de Janeiro, Jos Olympio, 1960. p. 195.

    11 SAYERS, Raymond S. O negro na literatura brasileira. Rio de Janeiro, Ed.O Cruzeiro, 1958. p. 110. Cf. tambm no mesmo sentido, porm com po-sies mais radicais do que Sayers: BROOKSHAW, David. Raa e cor na li-teratura brasileira. Rio Grande do Sul, Mercado Aberto, 1983. Passim.

  • IISincretismo, assimilao,acomodao, aculturao

    e luta de classes

    1. Antropologia No presente captulo queremos discutir ae neocolonialismo insuficincia de conceitos comumente ma-

    nipulados por alguns antroplogos brasi-leiros, especialmente no que diz respeito ao contedo das relaes entrenegros e brancos no Brasil. O esquecimento, por parte do antroplo-go ou socilogo, ao analisar o processo de interao, da posio es-trutural das respectivas etnias portadoras de padres de cultura di-versos (sem levar-se em conta, portanto, a estrutura social em queesse processo de contato se realiza) leva a que se tenha, no mximo,uma compreenso acadmica do problema, nunca, porm, o seu co-nhecimento captado no processo da prpria dinmica social. Isto por-que, antes de examinarmos esses contatos culturais, temos de situaro modo de produo no qual eles se realizam, sem o que ficaremossem possibilidade de analisar o contedo social desse processo. so-bre exatamente essa problemtica terica que iremos tecer considera-es para reflexo epistemolgica dos interessados.

    Queremos nos referir, aqui, particularmente, aos conceitos desincretismo, assimilao, acomodao e aculturao quando aplica-dos em uma sociedade politnica, e, concomitantemente, dividida emclasses e camadas com interesses conflitantes e/ou antagnicos, inte-resses e conflitos que servem de combustvel sua dinmica, ou seja,

    ANTROPOLOGIA E NEOCOLONIALISMO 35

    produzem a luta de classes, para usarmos o termo j mundialmenteconsagrado nas cincias sociais. Achamos, por isto, que no ser intilremetermos o leitor a uma posio reflexiva em relao quilo quenos parece ser mais importante para levar a antropologia e as cin-cias sociais de um modo geral (num pas como o nosso, politnicoe, ao mesmo tempo, subordinado a um plo metropolitano externo)a terem um papel mais vinculado prtica social, saindo, assim, deuma posio de cincia pura e contemplativa, equidistante da realidadeemprica e somente reconhecida na sua prxis acadmica (terica).A reviso desses conceitos to caros a uma certa cincia social colo-nizadora, usada pelo colonizado, remete-nos prpria origem da an-tropologia e sua funo inicial de municiadora do sistema colonial, atividade prtica que exerceu no sentido de racionalizar o colonia-lismo e necessidade de uma reavaliao crtica do seu significadono conjunto das cincias sociais. A sua posio eurocntrica e umbi-licalmente ligada expanso do sistema colonial deixou, como nopodia deixar de ser, uma herana ideolgica que permeia e se mani-festa em uma srie de conceitos bsicos, at hoje usados pelos antro-plogos em nvel significativo.

    No caso particular do Brasil, o fenmeno se reproduz quase queintegralmente. Como pas de economia reflexa, evidentemente repro-duzimos o pensamento do plo metropolitano de forma sistemtica,fato que se pode constatar no apenas no que diz respeito antropo-logia, de presena bem recente, mas no nosso pensamento social dopassado. Desta forma, ao colocarmos em discusso os conceitos aci-ma explicitados, devemos dizer que o traumatismo de nascimento no apenas da antropologia no Brasil, mas do nosso pensamento socialde um modo geral, quase todo ele influenciado, em maior ou menornvel, pela ideologia do colonialismo.

    Alis, o carter de municiador ideolgico da poltica das me-trpoles por parte da antropologia j foi destacado e denunciado porinmeros socilogos, os quais, insatisfeitos com a estrutura concei-tuai formalista dos antroplogos metropolitanos (colonizadores), co-meam a fazer uma reviso dos seus conceitos e da sua funo. Nestesentido, numa aproximao crtica geral do assunto, o professor Ka-bengele Munanga escreve que

    Para se compreender a manifestao de resistncia e a persistnciadesta atitude de recusa da antropologia estrangeira pelas populaesafricanas, faz-se necessrio fazer a histria crtica ou a crtica ideol-gica da antropologia desde os incios da colonizao at as indepen-

  • 36 S1NCRETISMO, ASSIMILAO, ACOMODAO, ACULTURAO E LUTA DE CLASSES

    dncias desses pases e mesmo depoisdas independncias, na situa-o chamada "neocolonialismo".'

    Da nossa parte, j havamos escrito em outro local que...a substituio do proletrio pelo primitivo no foi, contudo, um casofortuito. Veio preencher aquele vazio de estudos que se fazia sentir so-bre as relaes metrpole/colnia colocadas na ordem do dia por umasrie de fatores. Ora, essa literatura especializada ao tempo em quemostrava a temeridade de se procurar elevar o nvel de vida dessas po-pulaes nativas criava tcnicas de controle colonial, exercendo as au-toridades domnio completo atravs dos chefes tribais. A destribalizaoera desaconselhada exatamente porque os nativos ao abandonaremos seus valores originais se inseriam num universo de ao completa-mente novo. Da o interesse desses antroplogos em estabeleceremtcnicas de controle partindo dos elementos nativos que mantinhamo prestgio social entre os membros das respectivas tribos.2

    Kabengele Munanga, citando vrios outros autores, refere-sea S. Adotevi, do Daom, o qual submeteu essa antropologia co-lonialista (etnologia) a uma crtica radical e contundente.3 Esta visocrtica est se avolumando e, mais recentemente, os professores I.Grigulvitch e Semin Koslov, alm de uma crtica terica radical,detiveram-se na artlise das vinculaes dessa cincia com rgos deinteligncia e segurana das naes neocolonizadoras. 4

    Centrando a sua anlise na funo neocolonizadora dessa an-tropologia, o professor Maurcio Tragtenberg escreve:

    Mais ntida a vinculao entre o imperialismo e a antropologia. Porocasio do fim da Guerra dos Boers (1899/1902), os antroplogos in-gleses procuravam aplicar seus conhecimentos tendo em vista fins pr-ticos. O Royal Antropological Institute apresentou, na poca, ao Se-cretrio de Estado para as Colnias, a proposta para que se estudas-sem as leis e instituies da diferenciao tribal na frica do Sul. Talestudo tinha em mira criar uma base poltica administrativa "racional".A administrao dos povos coloniais sempre foi considerada terrenoprivilegiado para a aplicao do conhecimento antropolgico. Os go-vernos coloniais tinham noes diversas sobre a rapidez do processode "ocidentalizao" dos "primitivos".5

    O mesmo autor passa a enumerar a funo instrumental dessaantropologia chamados por ele de antroplogos coloniais co-mo funcionrios da Administrao Colonial nas colnias inglesas dafrica Tropical, dando cursos de antropologia aos governos domi-nadores. A pedido da Administrao Colonial, Meyer-Fortes escre-veu sobre costumes matrimoniais dos Tallesi e Rattgray escreveu

    ANTROPOLOGIA E NEOCOLONIALISMO 37

    sobre os Ashanti, tudo isto objetivando o controle colonial, via con-trole cultural. Houve tambm em Tanganica experimentos de antro-pologia aplicada nos quais um antroplogo pesquisou com base emperguntas especficas formuladas por um burocrata colonial. O go-verno britnico na Nigria e Costa do Ouro sempre partilhou a ideiade que os nativos com posio tradicional eram melhores agentes lo-cais da poltica do governo, o mesmo ocorrendo com o colonialismobelga que na formao dos funcionrios, segundo o antroplogo Ni-caise, dedicava mais tempo ao estudo da etnografia e do direito cos-tumeiro do que a Gr-Bretanha. Mas esta vinculao da antropologiacom o sistema colonial vai mais alm. Em 1926, fundou-se o Institu-to Internacional Africano para dedicar-se pesquisa em antropolo-gia e lingustica. O conhecimento (dos povos nativos) ajudaria oadministrador a fomentar o crescimento de uma sociedade orgnicas e progressiva. O East African Institute, por seu turno, especializou-se em estudar as consequncias sociais da emigrao da mo-de-obra,as causas de as deficincias dos chefes de aldeias africanas atuaremcomo agentes da poltica do governo colonial.

    O Rhodes Livingstone Institute estudou a urbanizao nas mi-nas de cobre da frica Central e o West African Institute pesquisouas populaes empregadas nas exploraes agrcolas da CameroonsDevelopment Corporation.

    Mas estas pesquisas no se limitavam rea de explorao eco-nmica das regies colonizadas. Desdobravam-se tambm em auxi-liares de objetivos militares. Diz Maurcio Tragtenberg que "porocasio da Segunda Guerra Mundial que o governo norte-americanoempregou antroplogos com a finalidade de explicar a cultura daszonas ocupadas queles membros do Exrcito que precisavam do tra-balho dos nativos como operrios, ou mensageiros". 6 Depois de ci-tar numerosos outros exemplos da aplicao da antropologia emprojetos militares por parte dos colonizadores, Maurcio Tragtenbergconclui:

    O conhecimento antropolgico pode serviro imperialismo; desse mo-do, um "antroplogo crtico" no poder "esquentar" durante muitotempo cadeira no Centre National de Recherche Scientifique ou na Uni-versidade de Cambridge. Especialmente se ele for voltado ao atual.7

    Como vemos h, de fato, uma vinculao entre as formulaestericas e a instrumentalidade dessa antropologia. Da um pesquisa-dor citado por Michel T. Clare afirmar que "outrora, a boa receitapara vencer a guerrilha era ter dez soldados para cada guerrilheiro;hoje, dez antroplogos para cada guerrilheiro". 8

  • 3 SINCRET1SMO, ASSIMILAO, ACOMODAO, ACULTURAO E LUTA DE CLASSES

    2. Do "primitivismo fetichista" Mas, voltando quilo "pureza" do cristianismo que nos interessa de

    modo central, quere-mos destacar aqui que certos conceitos da antropologia revelam, deforma transparente, outras vezes em diagonal, a sua funo de cin-cia auxiliar de uma estrutura neocolonizadora.

    Sobre o conceito de sincretismo, to usado pelos antroplogosbrasileiros que estudam as relaes intertnicas no particular da reli-gio, convm destacar que at hoje ele usado, quase sempre, paradefinir um contato religioso prolongado e permanente entre membrosde culturas superiores e inferiores. A partir da, de um conceito dereligies animistas em contato com o catolicismo basicamente supe-rior, o qual , na maioria das vezes, a religio do prprio antroplo-go, passa-se a analisar os seus efeitos.

    O professor Waldemar Valente, em um trabalho muito difun-dido e acatado sobre o sincretismo afro-brasileiro/catlico, assim de-fine o processo:

    O trabalho do sincretismo af ro-cristo, a princpio, como j tivemos oca-sio de assimilar, no passou de mera acomodao. Tal fenmeno, co-mo j ficou acentuado, foi devido momentnea incapacidade mentaldo negro para assimilar os delicados conceitos do Cristianismo. A im-possibilidade de uma rpida integrao. Condio que no deve ser me-nosprezada na obra de assimilao, que constitui, ao nosso ver, o pro-cesso final do sincretismo, o tempo. O que parece certo, como tive-mos oportunidade de chamar a ateno, que os negros recebiam areligio como uma espcie de anteparo por trs do qual escondiam oudisfaravam conscientemente os seus prprios conceitos religiosos.(...) Das pesquisas que temos realizado na intimidade dos xangs per-nambucanos no nos tem sido difcil constatar a influncia sempre cres-cente que o catolicismo vem exercendo sobre o fetichismo africano.9

    Queremos destacar, aqui, a forma como Waldemar Valente co-loca o problema do sincretismo: de um lado o cristianismo (alis eleescreve a palavra com C maisculo) e, de outro, o fetichismo africa-no. Uma religio delicada (superior) e outra fetichista (inferior). Da,evidentemente, a influncia sincrtica ter de ser como ele conclui, cres-cente da dominante (superior) sobre a dominada (inferior) ou, paracontinuarmos no mesmo nvel de argumentao por ele desenvolvi-do: os negros, membros de uma religio fetichista, por incapacidademental, "no tinham condies de assimilar, em curto prazo, os deli-cados conceitos do Cristianismo", o que somente se verificaria (aps

    DO "PRIMITIVISMO FETICHISTA" "PUREZA" DO CRISTIANISMO 39

    um perodo de acomodao) atravs da influncia crescente do cris-tianismo (religio superior) nos xangs do Recife.

    Jamais Waldemar Valente viu a possibilidade inversa, isto , ainfluncia cada vez maior daquelas religies chamadas fetichistas nomago das "delicadezas" do cristianismo. No foi visto que dentrode um critrio no-valorativo no h religies delicadas ou fetichis-tas, mas, em determinado contexto social concreto, religies domi-nadoras e dominadas. No nosso caso, dentro inicialmente de uma es-trutura escravista, o cristianismo entrava como parte importantssi-ma do aparelho ideolgico de dominao e as religies africanas eramelementos de resistncia ideolgica e social do segmento dominado.Parece-nos que est justamente aqui a necessidade de se analisar ainfluncia do conceito de sincretismo criticamente, pois ele inclui umjulgamento de valor entre as religies inferiores e superiores que, pe-lo menos no Brasil, reproduz a situao da estrutura social de domi-nadores e dominados.

    Numa outra aproximao crtica, desta vez sobre o problemaespecfico do sincretismo lato sensu, Juana Elbein dos Santos escreveque:

    Desde bruxaria, magia, sistema de superstio, fetichismo, animismo,at as mais pudicas dominaes dos cultos afro-brasileiros, toda umamultiplicidade de designao leva implcito negar o carter de religioao sistema mstico legado pelos africanos e reelaborados pelo seusdescendentes, despojando-os de valores transcendentais e encobrin-do sobretudo o papel histrico da religio como instrumento fundamen-tal j que a independncia espiritual foi durante longo tempo a ni-ca liberdade individual do negro que nucleou os grupos comunit-rios que se constituram em centros organizadores da resistncia cul-tural e da elaborao de um ethos especfico que resistiu s pressesde desvalorizao e de domnio. (...) A religio afro-brasileira, assim comoo cristianismo, o resultado de um longo processo de seleo, asso-ciaes, reinterpretaes de elementos herdados e outros novos, cu-jas variaes foram se estruturando de acordo com as etnias locaise de um inter-relacionamento scio-econmico, mas todas elas deli-neando um sistema cultural bsico que serviu de resposta s institui-es oficiais.10

    O painel de visualizao aqui bem outro na colocao e inter-pretao do problema das religies e do processo sincrtico. J notemos, agora, conforme se v, a superioridade e delicadeza do cris-tianismo e o fetichismo das religies africanas, fato que levaria a queo cristianismo superior pulverizasse ou fragmentasse, neutralizasse ouinferiorizasse os valores religiosos das camadas animistas dominadas.

  • 40 SINCRET1SMO, ASSIMILAO, ACOMODAO, ACULTURAO E LUTA DE CLASSES

    A falta de capacidade de captar as abstraes da religio superior reanalisada e o universo religioso afro-brasileiro resgatado. Juana El-bein dos Santos no hierarquiza, mas desenvolve um pensamento quedemonstra satisfatoriamente que tanto as religies africanas e de seusdescendentes como o cristianismo passaram pelo mesmo processo deelaborao gentica. A diferenciao somente surge em consequn-cia da inferiorizao social, cultural e poltica daquelas populaesque foram trazidas coercitivamente para o Brasil. uma viso do do-minador e no da religio superior que a autora desmistifica.

    Cabe, portanto, agora, um momento de reflexo: at que pon-to os antroplogos brasileiros, ou principalmente aqueles influencia-dos por um culturalismo colonizante, analisam e interpretam a in-fluncia dessas religies a partir dos padres da religio dominadora?

    O sincrtico, para muitos deles, somente analisado a partir dainferioridade das religies do dominado, razo pela qual a ticaanaltica sempre parte daquilo que se incorporou ao espao religiosodo dominado, porm nunca, ou quase nunca, daquilo que o domi-nado incorporou e modificou no espao religioso do dominador,concluindo-se, por isto, o processo ainda segundo Waldemar Valen-te e outros que seguem a mesma orientao terica, na assimilao.

    Como vemos, h uma axiologia implcita, subjacente, nesta for-ma de analisar-se o contato entre os dois universos religiosos: reli-gies africanas e afro-brasileiras e crists, especialmente catlica. Aassimilao seguir apenas um caminho, no havendo possibilidadede um processo inverso? A esta possibilidade reage institucionalmen-te a religio dominadora, criando sanes contra essa contaminao sua "pureza". n

    Pretendemos demonstrar que, mesmo inconscientemente, o re-ferencial bsico de comparao, nesses estudos e pesquisas, a reli-gio dominante, considerada, por extenso, como superior. A posiode antroplogos, que se dizem imparciais, "cientficos", no se dis-tancia muito do que estamos afirmando. Partem de um critrio sub-jetivista, eurocntrico (algumas vezes paternalista e/ou romntico),por no considerarem as contradies sociais no seio das quais esseprocesso sincrtico se realiza, para conclurem pela assimilao da re-ligio oprimida no conjunto mstico da religio dominadora.

    Mesmo os catlicos que desejam dar uma viso humanista compreenso da inter-relao entre religies diferentes tm de consi-derar o cristianismo (muitas vezes o catolicismo) como o referencialsuperior. 12

    DO "PRIMITIV1SMO FETICH1STA" "PUREZA" DO CRISTIANISMO 41

    O telogo Leonardo Boff, por exemplo, refletindo esta limita-o, expe assim o assunto:

    Pode ocorrer o processo inverso: uma religio entra em contato como cristianismo e, ao invs de ser convertida, ela converte o cristianis-mo para dentro da sua identidade prpria. Elabora um sincretismo uti-lizando elementos da religio crist. Ela no passa a ser crist porquesincretizou dados cristos. Continua pag e articula um sincretismopago com conotaes crists. Parece que algumas pesquisas tm re-velado este fenmeno com a religio (candombl ou nag) no Brasil.13Mas, prossegue o mesmo autor:Isto no significa que a religio yoruba seja destituda de valor teol-gico. Significa apenas que ela deve ser interpretada no dentro dosparmetros intra-sistmicos do cristianismo como se fora uma concre-tizao do cristianismo, como , por exemplo, o catolicismo popular,mas no horizonte da histria da salvao universal. A religio yo-ruba concretiza, ao seu lado, o oferecimento salvfico de Deus; no ainda um cristianismo temtico que a si mesmo se nomeia, mas, porcausa do plano salvfico do Pai em Cristo, constitui um cristianismoannimo.14

    A tese, decodificada para uma linguagem antropolgica, signi-fica a assimilao, a transformao das religies afro-brasileiras, emltima instncia, em cristianismo popular, em religio que se purifi-ca ao se aproximar dos valores dogmticos do cristianismo, emboracom espaos de concesso liberados pelos telogos.

    Queremos centrar a nossa anlise no presente momento nosincretismo que se verifica entre as religies afro-brasileiras e o cris-tianismo, especialmente o catolicismo, e, por isto, no iremos darexemplos histricos e atuais de como o fenmeno acontece noque diz respeito ao contato entre as religies indgenas e os gruposou instituies crists. 1S

    Para esses estudiosos, antroplogos, socilogos e/ou sacerdo-tes, de vrias formaes tericas mas todos convergindo sincronica-mente nas concluses, depois de um perodo de acomodao (perodode resistncia, portanto, pois a acomodao pressupe a conscinciapelo menos parcial do conflito) o processo dever desembocar fatal-mente na assimilao. E com isto as religies afro-brasileiras, por in-feriores, fetichistas, e, por isto mesmo, incapazes de dar resposta sindagaes e inquietaes msticas satisfatrias dos afro-brasileiros,seriam diludas na estrutura do catolicismo, religio capaz de respon-der, a essas indagaes medida que os afro-brasileiros fossem se ca-pacitando mentalmente a entender as delicadezas do catolicismo.

  • n S1NCRETISMO, ASSIMILAO, ACOMODAO, ACULTURAO E LUTA DE CLASSES

    3. Assimilao O problema da assimilao, no seu as-para acabar com pecto lato, tem uma conotao polti-a cultura colonizada ca. A poltica assimilacionista foi,

    sempre, aquela que as metrpoles pre-gavam como soluo ideal para neutralizar a resistncia cultural, so-cial e poltica das colnias. O chamado processo civilizatrio (as me-trpoles tinham sempre um papel "civilizador") era transformar aspopulaes subordinadas aos padres culturais e valores polticos docolonizador. Este aspecto j foi analisado por Amlcar Cabral. Diz ele:

    , por exemplo, o caso da pretensa teoria da assimilao progressivadas populaes nativas, que no passa de tentativa, mais ou menosviolenta, de negar a cultura do povo em questo. O ntido fracasso desta"teoria", posta em prtica por algumas potncias coloniais, entre asquais Portugal, a prova mais evidente da sua inviabilidade, seno mes-mo do seu carter desumano. (...) Estes fatos do bem a medida do dra-ma do domnio estrangeiro perante a realidade cultural do povodominado. Demonstram igualmente a ntima ligao, de dependnciae reciprocidade, que existe entre o fato cultural e o fato econmico (po-ltico) no comportamento das sociedades humanas. (...) O valor da cul-tura como elementos de resistncia ao domnio estrangeiro reside nofato de ela ser a manifestao vigorosa, no plano ideolgico ou idea-lista, da realidade material e histrica da sociedade dominada ou a do-minar. Fruto da histria de um povo, a cultura determina simulta-neamente a histria pela influncia positiva ou negativa que exerce so-bre a evoluo das relaes entre o homem e o seu meio e entre oshomens ou grupos humanos no seio de uma sociedade, assim comoentre sociedades diferentes.16

    No caso especfico do Brasil em relao s culturas afro-bra-sileiras h nuanas diferenciadoras, pois no estamos diante de um pasocupado por membros de uma populao estrangeira, mas o conte-do do assimilacionismo, a sua estratgia ideolgica a mesma. Todasas tcnicas de incentivo assimilao, desde a catequese e cristianiza-o aos planos regionais e "cientficos" de etnlogos contratados porinstituies colonizadoras, foram e continuam a ser empregadas paraque a assimilao seja acelerada. Apesar dessas nuanas especficas nasrelaes intertnicas entre "brancos" e negros no mbito do contatoreligioso, o aparelho de dominao ideolgico da religio catlica do-minadora continua atuando no sentido de fazer com que, via sincre-tismo, as religies afro-brasileiras sejam incorporadas ao bojo docatolicismo e permaneam assimiladas no nvel de catolicismo popular.

    Estabelecida uma escala de valores em cima das diferentes reli-gies em contato e elegendo-se o catolicismo como religio superior,

    ASSIMILAO PARA ACABAR COM A CULTURA COLONIZADA 43

    teremos como concluso lgica a necessidade de se fazer com que asreligies chamadas fetichistas, inferiores, se incorporem, tambm, aospadres catlicos ou cristos de um modo geral, da mesma forma co-mo, nos contatos tnicos, se apregoa um branqueamento progressivoda nossa populao, atravs da miscigenao, at chegar-se a um ti-po o mais prximo possvel do branco europeu.

    Essa assimilao assim concebida tem uma essncia escamotea-dora da realidade via valores neocolonialistas, ideologia que aindafaz parte do aparelho de dominao das classes dominantes do Brasile de grandes camadas por elas influenciadas. Tomando-se como pers-pectiva de anlise uma viso alienada do problema, a concluso quese tira de que, de fato, essas religies