Sociedade de Esquina - Jornal Do Brasil: Mandamentos do Pesquisador

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Antropologia Clássico dos estudos urbanos, de William Foote Whyte, chega ao Brasil Mandamentos do pesquisador Licia Valladares Socióloga Enfim o leitor brasileiro tem acesso a Sociedade de esquina, de William Foote Whyte, um clássico dos estudos urbanos e livro que deveria ser obrigatório em todo curso de métodos qualitativos e pesquisa social. Gilberto Velho, autor da apresentação e responsável pela coleção Antropologia Social, da Jorge Zahar, tomou a iniciativa, de traduzir a edição de 1993, comemorativa dos 50 anos da primeira publicação do livro. A primorosa tradução inclui os anexos que o autor foi acrescentando nas várias reedições do livro, referentes à pratica do trabalho de campo, ao depoimento de um dos personagens e à sua lista de publicações. Originalmente publicado em 1943, o texto é não só atual pela temática que aborda - a juventude, a organização social das gangues e dos bairros pobres - como também um must para aqueles que fazem trabalho de campo nas cidades. Trata-se de uma obra fundamental para os sociólogos urbanos que a cada dia aderem mais aos métodos qualitativos e aos estudos de caso, e se interessam pelo tema das redes sociais, da ju- ventude, da política local e da territorialização da pobreza. William Foote Whyte, filho de classe média alta americana, pesquisou nos anos 30 uma área pobre e degradada da cidade de Boston, onde morava. Conhecido como um dos slums mais perigosos da cidade e sobre o qual circulavam várias ideias estigmatizantes, o bairro foi pouco a pouco “desbravado” pelo aprendiz que conhecia por “ouvir dizer”. Ao mesmo tempo em se inseria na localidade e ia redefinindo os objetivos sua pesquisa, tropeçava no convívio com os moradores, aprendendo a refletir sobre a natureza da relação com os informantes. Aos poucos vai sendo aceito, mas se dá conta de que é fun- damental poder contar com um intermediário para realizar sua observação. Para além do interesse temático, o livro constitui um verdadeiro guia da observação participante em sociedades complexas. Dez “mandamentos” podem ser depreendidos da leitura do livro. l) A observação participante implica, necessariamente, um processo longo. Muitas vezes o pesquisador passa inúmeros meses para “negociar” sua entrada na área. Uma fase exploratória é essencial para o desenrolar ulterior da pesquisa. O tempo a um pré-requisito para estudos que envolvem o comportamento e a ação de grupos: para se compreender a evolução do comportamento das pessoas é necessário observá-las por um longo período. 2) O pesquisador não sabe de antemão onde está “aterrissando”, caindo geralmente de “pára-quedas” no território pesquisado. Não é esperado pelo grupo, desconhecendo muitas vezes as teias de relações que marcam a hierarquia de poder e a estrutura social local. SÁBADO, 29 DE ABRIL DE 2006

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Reportagem do Jornal do Brasil, Caderno Ideias e Livros, sobre o lançamento no Brasil do Livro Sociedade de Esquina de Willian Foote Whyte em 29 de abril de 2006 com tradução de Gilberto Velho.

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Antropologia Clássico dos estudos urbanos, de William Foote Whyte, chega ao Brasil

Mandamentos do pesquisador Licia Valladares Socióloga

Enfim o leitor brasileiro tem acesso a Sociedade de esquina, de William Foote Whyte, um clássico dos estudos urbanos e livro que deveria ser obrigatório em todo curso de métodos qualitativos e pesquisa social. Gilberto Velho, autor da apresentação e responsável pela coleção Antropologia Social, da Jorge Zahar, tomou a iniciativa, de traduzir a edição de 1993, comemorativa dos 50 anos da primeira publicação do livro. A primorosa tradução inclui os anexos que o autor foi acrescentando nas várias reedições do livro, referentes à pratica do trabalho de campo, ao depoimento de um dos personagens e à sua lista de publicações.

Originalmente publicado em 1943, o texto é não só atual pela temática que aborda - a juventude, a organização social das gangues e dos bairros pobres - como também um must para aqueles que fazem trabalho de campo nas cidades. Trata-se de uma obra fundamental para os sociólogos urbanos que a cada dia aderem mais aos métodos qualitativos e aos estudos de caso, e se interessam pelo tema das redes sociais, da ju-ventude, da política local e da territorialização da pobreza.

William Foote Whyte, filho de classe média alta americana, pesquisou nos anos 30 uma área pobre e degradada da cidade de Boston, onde morava. Conhecido como um dos slums mais perigosos da cidade e sobre o qual circulavam várias ideias estigmatizantes, o bairro foi pouco a pouco “desbravado” pelo

aprendiz que conhecia por “ouvir dizer”. Ao mesmo tempo em se inseria na localidade e ia redefinindo os objetivos sua pesquisa, tropeçava no convívio com os moradores, aprendendo a refletir sobre a natureza da relação com os informantes. Aos poucos vai sendo aceito, mas se dá conta de que é fun-damental poder contar com um intermediário para realizar sua observação.

Para além do interesse temático, o livro constitui um verdadeiro guia da observação participante em sociedades complexas. Dez “mandamentos” podem ser depreendidos da leitura do livro.

l) A observação participante implica, necessariamente, um processo longo. Muitas vezes o pesquisador passa inúmeros meses para “negociar” sua entrada na área. Uma fase exploratória é essencial para o desenrolar ulterior da pesquisa.

O tempo a um pré-requisito para estudos que envolvem o comportamento e a ação de grupos: para se compreender a evolução do comportamento das pessoas é necessário observá-las por um longo período.

2) O pesquisador não sabe de antemão onde está “aterrissando”, caindo geralmente de “pára-quedas” no território pesquisado. Não é esperado pelo grupo, desconhecendo muitas vezes as teias de relações que marcam a hierarquia de poder e a estrutura social local.

SÁBADO, 29 DE ABRIL DE 2006

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3) A observação participante supõe a interação pesquisador/pesquisado. As informações que obtém dependerão do seu comportamento e das relações que desenvolve, com o grupo estudando. Sua transformação em “nativo” não se verificará.

4) Por isso o pesquisador deve

mostrar-se diferente do grupo pesquisado. Seu papel de pessoa de fora terá de ser reafirmado. Não deve enganar aos outros, nem a si mesmo.

5) Uma observação, participante não se faz sem um intermediário que “abre as portas” e dissipa as dúvidas junto às pessoas da localidade. Com o tempo, de informante-chave passa a colaborador da pesquisa: é com ele pesquisador esclarece algumas das incertezas que peimanecerão ao longo da investigação. Pode mesmo chegar a. influir nas interpretações do pesquisador.

6) O pesquisador quase sempre desconhece a própria imagem junto ao grupo pesquisado... Seus passos no trabalho de campo são conhecidos e muitas vezes controlados por membros da população local.

7) A observação participante implica saber,ouvir,escutar, ver, fazer uso de todos os sentidos. É preciso aprender quando perguntar e quando não perguntar, assim como que perguntas fazer na.hora certa. As entrevistas formais são muitas vezes desnecessárias, devendo a coleta de informações não se restringir às mesmas.

8) Desenvolver uma rotina de trabalho é fundamental. O pesquisador não deve recuar frente a um cotidiano que muitas vezes se mostra repetitivo e de dedicação intensa. Através das notas e da manutenção do diário de campo, o pesquisador se auto-disciplina a observar e anotar sistematicamente.

9) O pesquisador aprende com os erros que comete durante o trabalho de campo e deve tirar proveito dos mesmos na medida em que os passos em falso fazem parte do aprendizado da pesquisa. Deve refletir sobre o porquê de uma recusa, e o

porquê de um desacerto

10) O pesquisador é, em geral, “cobrado”, sendo esperada uma “devolução” dos resultados do seu trabalho. “Para que serve esta pesquisa?”. “Que benefícios ela trará para o grupo ou para mim?” Mas só uns poucos consultam e se servem do resultado final da observação. O que fica são as relações de amizade pessoal desenvolvidas ao longo do trabalho de campo. Da leitura do livro fica claro que a observação participante não é uma prática simples, mas repleta de dilemas teóricos e práticos que cabe ao pesquisador gerenciar. A experiência descrita e analisada pelo autor, numa linguagem que dispensa o jargão especializado, mostra que a observação participante exige, sim, uma cultura-metodológica e teórica; Foote Whyte não vinha de uma formação em antropologia ou sociologia, mas havia estudado na tradicional e bem cotada Universidade de Harvard.

Outro aspecto importante diz respeito

à atualidade do livro e sua; pertinência para entender áreas pobres e o mundo popular no Brasil de hoje. O diagnóstico oferecido pelo autor se contrapõe à imagem produzida pelo senso comum que vê as áreas pobres exclusivamente como problema: degradadas, homogêneas, desorganizadas, caóticas e fora da lei, tendo necessariamente de ser “ajuda-das”, uma vez que, “abandonadas à sua própria sorte nunca se desenvolverão. Vistas de dentro, e a partir do olhar arguto do cientista social, têm-se outra visão: tais localidades corresponderiam a áreas onde coexistem espaços e grupos locais diferenciados porém estruturados a partir de redes de relações sociais. A desorganização social não é, portanto a tônica geral - o que não quer dizer negar a existência do conflito entre os grupos. Foote Whyte não cai assim nem numa visão miserabilista nem populista dos pobres. Insiste na importância da sociabilidade que ocorre no espaço público do mundo popular - na “sociedade da esquina”, para usar seu próprio linguajar. Pois é na esquina, no espaço informal que as decisões são tomadas, que os grupos se estruturam e que as relações sociais se constroem e se destroem.

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SOCIEDADE DE ESQUINA (Street Corner Society) A estrutura social de uma área urbana pobre e degradada William Foote Whyte 392pp; 16x23cm; R$54 Tradução: Maria Lúcia de Oliveira Revisão técnica: Karina Kuschnir Coleção Antropologia Social

JORGE ZAHAR EDITOR

Em fevereiro de 1937, o então jovem economista William Foote Whyte, com uma bolsa de iniciação de Harvard, decidiu estudar um bairro italiano pobre de Boston, a que deu o nome de Cornerville.

Um clássico da pesquisa sociológica, o trabalho de Whyte sobre Cornerville tem servido como modelo para a etnografia urbana há quase 70 anos. Utilizando o método de observação participante, o autor revela um mundo de intrincadas relações sociais, considerando pessoas e situações reais. Com seu olhar profundo e detalhista, Whyte mudou a maneira de se compreender a pobreza e a vida nas grandes cidades.

A versão ora lançada no Brasil é traduzida da edição comemorativa de 50 anos de Sociedade de esquina. Nela o leitor encontra a obra original enriquecida com os anexos posteriormente elaborados pelo autor; as respostas que formulou às críticas que recebeu; uma seção sobre “Cornerville revisitado”, em que segue a carreira de alguns dos personagens principais do livro; um corajoso comentário que fez do livro meio século depois. De suma importância também é o depoimento de um dos “rapazes de esquina”, Angelo Orlandella, a respeito do impacto da obra de Whyte sobre sua vida, incluído igualmente nesta edição.

“Um livro de impressionante atualidade e de alto interesse interdisciplinar. É um exemplo magistral de como um trabalho de investigação científica pode ser um instrumento precioso para a crítica de estereótipos e preconceitos.”

Gilberto Velho

Sobre o autor: William Foote Whyte formou-se em economia e fez doutorado em sociologia/antropologia na Universidade de Chicago, onde passou a lecionar em 1944. Foi diretor de pesquisa do programa de emprego da Cornell University, presidente da American Sociological Association e da Society of Applied Anthropology. Escreveu diversos livros, sobretudo sobre metodologia de pesquisa, como Learning from the Field e Participant Observer. Whyte morreu em 2000.

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