sociedade de controle

download sociedade de controle

of 7

Transcript of sociedade de controle

  • 8/2/2019 sociedade de controle

    1/7

    161

    SOCIEDADEDE CONTROLE

    N

    SOCIEDADE DE CONTROLE

    Resumo: Esse artigo trata de algumas diferenas entre as sociedades disciplinares e a sociedade de controle.Ele toma por base as reflexes do filsofo Gilles Deleuze sobre o trabalho de Michel Foucault. Aborda tam-bm as recentes t ecnologias de cont role e os mais recentes projetos do governo norte-americano para rastrearas aes de indivduos no planeta.Palavras-chave: sociedade de controle; cdigo; modulao social.

    Abstract: This article examines some of the differences among disciplinary societies and the society of control.It takes as its starting point the reflections of the philosopher Gilles Deleuze regarding the work of MichelFoucault. It also discusses the new technologies of control and the most recent projects of the United Statesgovernment, capable of tracking the activities of individuals anywhere on the planet.Key words: society of control; code; social modulation.

    ROGRIODA COSTA

    SO PAULOEM PERSPECTIVA, 18(1): 161-167, 2004

    um artigo intitulado Post-Scriptum sobre asSociedades de Controle, o filsofo GillesDeleuze (1990) indicava alguns aspectos que

    poderiam dist inguir uma sociedade disciplinar de umasociedade de controle. As sociedades disciplinares podemser situadas num perodo que vai do sculo XVIII at aSegunda Grande Guerra, sendo que os anos da segundametade do sculo XX estariam marcados por seu declnioe pela respectiva ascenso da sociedade de controle. Se-guindo as anlises de Michel Foucault, Deleuze percebeno enclausuramento a operao fundamental da socieda-

    No h necessidade de fico cient fica para conceber um

    mecanismo de controle que fornea a cada instante a posio de um

    elemento em meio aberto, animal numa reserva, homem numa

    empresa (coleira eletrnica). Flix Guattari imaginava uma cidade

    onde cada um pudesse deixar seu apartamento, sua rua, seu bairro,

    graas ao seu carto eletrnico, que removeria qualquer barreira;

    mas, do mesmo modo, o carto poderia ser rejeitado tal dia, ou

    entre tais horas; o que conta no a barreira, mas o computador

    que localiza a posio de cada um, lcita ou ilcita, e opera uma

    modulao universal

    Gilles Deleuze (1990)

    de disciplinar, com sua repartio do espao em meiosfechados (escolas, hospitais, indstrias, priso...), e suaordenao do tempo de trabalho. Ele chamou esses pro-cessos de moldagem, pois um mesmo molde fixo e defini-do poderia ser aplicado s mais diversas formas sociais.J a sociedade de controle seria marcada pela inter-

    penetrao dos espaos, por sua suposta ausncia de limi-tes definidos (a rede) e pela instaurao de um tempo con-tnuo no qual os indivduos nunca conseguiriam terminarcoisa nenhuma, pois estariam sempre enredados numa es-

    pcie de formao permanente, de dvida impagvel, pri-

    sioneiros em campo aberto. O que haveria aqui, segundoDeleuze, seria uma espcie de modulao constante e uni-versal que atravessaria e regularia as malhas do tecidosocial.

    Deleuze sugere ainda que as sociedades disciplinarespossuem dois plos, a assinatura que indica o indivduo,e o nmero de matrcula que indica sua posio numamassa. Nas sociedades de controle, o essencial no se-ria mais a assinatura nem um nmero, mas uma cifra: acifra umasenha (...) A linguagem digital do controle feita de cifras, que marcam o acesso ou a recusa a umainformao (Deleuze, 1990). A fora dessa interpretao

  • 8/2/2019 sociedade de controle

    2/7

    SO PAULOEM PERSPECTIVA, 18(1) 2004

    162

    reside em um aspecto que gostaramos de analisar nesteartigo: a relao entre identidade pessoal e cdigo

    intransfervel (ou cifra, como diz Deleuze). A passagemde um a outro implica que os indivduos deixam de ser,

    justamente, indivisveis, pois passam a sofrer uma esp-cie de diviso, que resulta do estado de sua senha, de seucdigo (ora aceito, ora recusado). Alm disso, as massas,

    por sua vez, tornam-se amostras, dados, mercados, queprecisam ser rastreados, cartografados e analisados paraque padres de comportamentos repetitivos possam ser

    percebidos.Para tentar compreender melhor essas distines, e

    esclarecendo desde j que h muitas maneiras de se abor-

    dar a recente sociedade de controle e seus mecanismos(Hardt, 1998; Lessig, 1999; Rheingold, 2002; Shapiro,1999), vamos abordar aqui a forma como os dispositivosde controle se ocupam de informaes resultantes dasvrias aes dos indivduos. Chamadas telefnicas, com-

    pras de passagem area, cmbio, transferncia financeira,uso de carto de crdito, etc. O que se pretenderia obteratravs da anlise de um tal conjunto de informaes? seu contedo que interessa, ou seu padro de composi-o e acesso? Enquanto os contedos apontam para as

    pessoas, para os sujeitos no sentido singular da informa-o (conversou tal assunto, foi para tal pas, trocou tantosdlares...), os padres, por sua vez, nos remeteriam ao qu?Aos indivduos como cdigos digitais dentro de uma amos-tra especfica? H diferena entre viajar uma nica vezou vinte vezes em seis meses a um mesmo pas? Esses

    parecem ser aspectos cruciais na mudana das estratgiasque nos conduziram dos modelos tradicionais de discipli-na aos modelos mais sofisticados de controle atuais.

    H que se notar um aspecto bsico, o de que sociedadesdisciplinares e de controle estruturaram de forma diferentesuas informaes. No primeiro tipo de sociedade, teramosuma organizao vertical e hierrquica das informaes.

    Neste caso, o problema do acesso informao, porexemplo, confunde-se com a posio do indivduo numahierarquia, seja ela de funo, posto, antiguidade, etc. Almdisso, as informaes parecem adequar-se estratgia decompartimentalizao que configura o dispositivodisciplinar. Dessa forma, cada instituio detm seuquinho de informao, como algo que pertence ao seu

    prprio espao fsico. H uma associao profunda entreo local, o espao fsico e o sentido de propriedade dos

    bens imateriais. H uma intensa regulao dos fluxosimateriais no interior dos edifcios e entre eles, de talmaneira que a resposta pergunta onde est? parece

    indicar ao mesmo tempo o lugar fsico e a propriedade dainformao.

    Cabe lembrar que nos dispositivos disciplinares, comonos mostra Foucault (1998), h uma espcie de polariza-o entre a opacidade do poder e a transparncia dos in-divduos. Lembremos da famosa imagem do panptico.O poder, devido a sua situao privilegiada, se manteriafora do alcance dos indivduos, enquanto estes ltimosestariam numa situao de constante observao, sendo

    portanto transparentes aos seus olhos (Foucault, 1998;Rheingold, 2002). Numa tal situao, parece que a rei-vindicao fundamental seria: maior transparncia do

    poder, para que possamos ver quem vive nos espiando e

    controlando.Essa crena acabou alimentando uma srie de reflexessobre a suposta transparncia que a web nos ofereceria,e sua conseqente fora diante dos obscurantistas quedefendem os velhos esquemas de poder. Assim, pode-ramos ter finalmente com a web a liberdade de expresso,o acesso s informaes democratizado, etc.1 Claro quenada disso desprezvel, sendo mesmo algo que nos

    permite uma mobilidade sem precedentes. Mas, o que sepassa, ento, com o advento da sociedade de controle,que predominantemente reticular, interconectada? Huma mudana de natureza do prprio poder, que no mais hierrquico, e sim disperso numa rede planetria,difuso. Isso pode significar que a antiga dicotomiaopacidade-transparncia no seja mais pertinente. Comodiz Deleuze (1990), os anis da serpente so maiscomplexos... O poder hoje seria cada vez mais iloca-lizvel, porque disseminado entre os ns das redes. Suaao no seria mais vertical, como anteriormente, mashorizontal e impessoal. verdade que a verticalidadesempre esteve associada imagem de algum: o coneque preenche o lugar do poder. Mas numa sociedadeinteiramente axiomatizada, as instncias de poder esto

    dissolvidas por entre os indivduos, o poder no tem maisuma cara. Sua ao agora no se restringe apenas conteno das massas, construo de muros dividindocidades, reteno financeira para conter o consumo.Essas so estratgias que pertencem ao passado.

    Hoje, o importante parece ser essa atividade de modu-lao constante dos mais diversos fluxos sociais, seja decontrole do fluxo financeiro internacional, seja de reati-vao constante do consumo (marketing) para regular osfluxos do desejo ou, no esqueamos, da expanso ilimi-tada dos fluxos de comunicao. Por outro lado, da mes-ma forma que o terrorismo uma conseqncia do terror

  • 8/2/2019 sociedade de controle

    3/7

    163

    SOCIEDADEDE CONTROLE

    imposto pelo Estado, a ao no localizada dos hackers,produzindo disfunes e rupturas nas redes, parece ser o

    efeito que corresponde adequadamente aos novos modosde atuao do poder. Nenhuma forma de poder parece serto sofisticada quanto aquela que regula os elementosimateriais de uma sociedade: informao, conhecimento,comunicao. O Estado, que era como um grande parasi-ta nas sociedades disciplinares, extraindo mais-valia dosfluxos que os indivduos faziam circular, hoje est se tor-nando uma verdadeira matriz onipresente, modulando-oscontinuamente segundo variveis cada vez mais comple-xas. Na sociedade de controle, estaramos passando dasestratgias de interceptao de mensagens ao rastreamento

    de padres de comportamento...

    INTERCEPTAO DE MENSAGENS:SISTEMA ECHELON

    Boa parte do sistema atual de vigilncia eletrnica glo-bal ainda baseada na interceptao de mensagens. Essessistemas so a conseqncia inevitvel da inveno dardio, e esto ligados prpria essncia das telecomuni-caes. Assim como o rdio possibilitou a transmisso demensagens para alm dos continentes, do mesmo modo

    permitiu que qualquer um as escutasse. No h dvidasde que foi a inveno da rdio que deu uma nova impor-tncia criptografia, a arte e a cincia de criar cdigossecretos. Ela estaria na origem do mercado de intercepta-o de sinais.

    Um dos sistemas mais famosos de vigilncia planet-ria desenvolveu-se principalmente em decorrncia dosconflitos da Segunda Guerra Mundial. Duncan Campbell(2001), autor de um relatrio para o Parlamento Europeusobre o sistema Echelon, conta que durante a SegundaGrande Guerra, enormes organizaes de decodificao

    pertencentes s foras aliadas, na Inglaterra e nos EUA,

    leram e analisaram centenas de milhares de sinais alemese japoneses. Foi nesse perodo que entrou em funciona-mento uma rede de escuta planetria chamada Ukusa, umacordo firmado em 1947 entre os governos dos EUA, In-glaterra, Canad, Austrlia e Nova Zelndia. Num esfor-o de vigilncia jamais visto, a Agncia de Segurana

    Nacional dos Estados Unidos NSA, criou um sistemaglobal de espionagem chamado Echelon (dentro do acor-do Ukusa), que hoje tenta capturar e analisar virtualmen-te todas as chamadas telefnicas e mensagens de fax, e-mail e telex enviadas de qualquer ponto do planeta. Osistema Echelon muito simples em seu desenho: esta-

    es de interceptao de sinais em todo o mundo captu-ram todo o trfego de comunicaes via satlite, micro-

    ondas, celular e fibra tica, processando essas informa-es em computadores de alta capacidade. Isso inclui

    programas de reconhecimento de voz, programas de re-conhecimento de caracteres, procura por palavras-chavee frases no dicionrio Echelon, que capacitam o compu-tador a marcar as mensagens, grav-las e transcrev-las

    para futuras anlises.O projeto Echelon enquadra-se numa perspectiva de

    controle baseada na interceptao de sinais e de comuni-cao, e na quebra de seu cdigo para se chegar a seucontedo. Trata-se, portanto, de vasculhar o contedo de

    mensagens transmitidas por diversos meios e trocadas pelasmais diferentes instncias, como indivduos, governos,organizaes internacionais, organismos privados ecomerciais.

    Nos anos 40, o primeiro foco das operaes do Echelonfoi a espionagem militar e diplomtica. J nos anos 60, naesteira do crescimento do comrcio internacional, a inter-ceptao de informaes acabou incluindo os campos eco-nmico e cientfico. S recentemente a ateno dessa redede vigilncia planetria voltou-se para o trfico de dro-gas, a lavagem de dinheiro, o terrorismo e o crime organi-zado. O governo Clinton, por exemplo, teria apoiado, em1993, a atuao das operaes de interceptao no planocomercial. significativa a lista apresentada por Campbelldas empresas americanas que teriam vencido concorrn-cias graas interveno do governo norte-americano ecom a ajuda de informaes obtidas pela NSA (o projetoSivam, do Brasil, por exemplo, encontra-se entre os cita-dos). J o atual governo Bush tem trabalhado incansavel-mente na interceptao de informaes das redes terroris-tas e do crime organizado.

    Deve-se notar, no entanto, que nos ltimos 15 anos aevoluo tecnolgica da rede Echelon deixou de estar

    adiante de seu tempo, sendo hoje alcanada pelas redesindustriais e acadmicas com seus equipamentos de lti-ma gerao. O chamado ciclo da informao, compos-to pela interceptao, coleta, seleo, tratamento e entre-ga das mensagens relevantes aos clientes, que ainda cumprido quando se trata de transmisses em alta freqn-cia, em ondas curtas, cabos submarinos, satlites de co-municao ou Internet, agora tem dificuldades com as re-des de fibra tica de alta capacidade e com redes desatlites do tipo Iridium. Alm disso, como afirmaCampbell (2001), os organismos de espionagem dos si-nais reconhecem que a longa batalha contra a criptografia

  • 8/2/2019 sociedade de controle

    4/7

    SO PAULOEM PERSPECTIVA, 18(1) 2004

    164

    civil e comercial foi perdida. Uma comunidade acadmi-ca e industrial slida est agora voltada para a criptografia

    e a criptologia. Reconhecendo esse fato, os EUA libera-ram em janeiro de 2000 seu servio de exportao demtodos de criptografia, permitindo a cidados e a em-

    presas no-americanas comprar e utilizar produtos de co-dificao potentes (traduo do autor).

    Isso significa que, de algum modo, a percepo sobrea prtica da interceptao de mensagens est mudando, eno porque se trate apenas de aprimorar as tcnicas decriptografia, mas tambm de mudar a forma de aborda-gem do controle. Afinal, apesar de todo o poder do proje-to Echelon e de vrios outros do mesmo gnero, os ata-

    ques terroristas continuaram passando sem interceptaessignificativas. Por conta disso, atualmente, dezenas deempresas trabalham para o Departamento de Defesa dosEUA, muitas delas localizadas no Vale do Silcio. Duasdas mais importantes so AST e The Ideas Operation, di-rigidas por antigos funcionrios do alto escalo da NSA.As duas trabalham no desenvolvimento de softwares defiltragem, tratamento de dados, anlise de fac-smiles, an-lise do trfego de informaes, reconhecimento de pala-vras-chave, anlise por temas, sistemas de reconhecimen-to de voz, etc. So empresas que possuem pleno domniodas novas tcnicas desenvolvidas para rastrear as maisdiversas aes dos indivduos e, a partir disso, construir

    padres de comportamento.

    A QUESTO DA VIGILNCIA

    O projeto Echelon representa, portanto, um caso exem-plar, pois pode ser considerado o ltimo grande descen-dente dos sonhos de uma sociedade disciplinar e de suaconcepo de vigilncia, sendo ao mesmo tempo o ances-tral de nossa sociedade de controle. Isso porque ele en-frentou a transio nos sistemas de comunicao do pla-

    neta, provocada pela revoluo da informtica.H aqui uma modificao no sentido de vigilncia, que

    passa da sociedade disciplinar sociedade de controle. Naprimeira, a idia de vigilncia remetia ao confinamento e,portanto, situao fsica que caracterizava as preocupaesdessa sociedade. O problema era o movimento fsico dosindivduos, seu deslocamento espacial. Vigiar era, basi-camente, regular os passos das pessoas, era olhar. Com aexploso das comunicaes, uma nova figura ganha fora:a vigilncia das mensagens, do trnsito de comunicaes. a poca dos espies, dos agentes secretos. UltrapassamosSherlock Holmes, que seguia os ndices e pistas dos

    movimentos dos suspeitos, e alcanamos 007, envolvidoem tramas internacionais via satlite. Vigiar passou a

    significar, sobretudo, interceptar, ouvir, interpretar.Com a exploso da web alguma coisa est mudando.

    Devido nova forma como as informaes so estru-turadas, em rede e reproduzidas em n pontos, acabamosgerando uma nova forma de vigilncia, que se preocupaem saber de que modo essas informaes esto sendoacessadas pelos indivduos. Parece que o mais importanteagora a vigilncia sobre a dinmica da comunicao noapenas entre as pessoas, mas sobretudo entre estas e asempresas, os servios on-line, o sistema financeiro, enfim,todo o campo possvel de circulao de mensagens. O que

    parece interessar, acima de tudo, como cada um semovimenta no espao informacional. Isso parece dizertanto ou mais sobre as pessoas do que seus movimentosfsicos ou o contedo de suas mensagens. A vigilnciaconstante sobre as trilhas que os indivduos deixam na web,

    por exemplo, tornou-se objeto de inmeras discusses eespeculaes. Afinal, quem somos ns? Para onde vamos,o que fazemos, o que dizemos? Ou o que pensamos? Omodo como nos deslocamos por entre informaes revelamuito do como pensamos, pois mostra como associamoselementos dspares ou semelhantes.

    O trackinggeneralizado nos chama a ateno. H umaespcie de vigilncia disseminada no social, j que todos

    podem, de certa forma, seguir os passos de todos. O con-trole exercido generalizado, multilateral. As empresascontrolam seus clientes; as ONGs controlam as empresase os governos; os governos controlam os cidados; e oscidados controlam a si mesmos, j que precisam estaratentos ao que fazem.

    A BUSCA POR PADRES DECOMPORTAMENTO

    Como lembra o matemtico e socilogo francs MichelAuthier, o sentido de um documento est menos nele pr-

    prio do que nas pessoas que o consultam.2 Isso significaque os vrios sentidos de um documento vm sobretudo dosinteresses de quem o consulta e que, dessa forma, no senti-do inverso, o mapeamento da afluncia de grupos de usu-rios a um determinado tipo de informao pode revelar muitosobre cada indivduo e seus pares. Estamos falando aqui daimportncia da construo do perfil do usurio, termo quecom o advento da web passou a ter um significado e usomais amplo do que o atribudo pelos departamentos de RH.

    Na Internet, no temos uma identidade, mas um perfil3

  • 8/2/2019 sociedade de controle

    5/7

    165

    SOCIEDADEDE CONTROLE

    (Costa, 2002). Com a exploso da web, no incio dos anos90, muitos foram ossites que comearam a utilizar a decla-

    rao do perfil de cada usurio para uma srie de opera-es: oferta de produtos, de notcias, de programao nosveculos de mdia, endereamento de perguntas, encontrode parceiros, etc. J na virada do milnio, o desenvolvi-mento da tecnologia de agentes inteligentes permitia ma-

    pear os perfis de usurios da web de maneira dinmica,acompanhando suas atividades e aprendendo sobre seushbitos. Essas novas ferramentas trabalham hoje no ape-nas orientadas por palavras-chave, mas tambm relacionan-do as consultas realizadas por todos os usurios em sua basede dados. Isso feito com a finalidade de se encontrar pa-

    dres que possam auxiliar o prprio sistema na sua relaocom os usurios, antecipando a oferta de produtos e servi-os (Costa, 2002).

    Um dos casos mais interessantes e conhecidos dessetipo de tecnologia que funciona no ciberespao o queauxilia as pessoas a selecionarem filmes, livros, progra-mas televisivos eshows a partir, exclusivamente, da cor-relao entre os gostos pessoais de vrios usurios (Maes,1997). Osite mais conhecido que possui esse tipo de agenteinteligente o da livraria Amazon.com. Todos aqueles que

    j o consultaram a procura de um ttulo, tiveram a oportu-nidade de receber como sugesto dosite uma lista de quatroa seis outros ttulos que tambm interessaram a outras

    pessoas que compraram o livro ou produto em questo.Essa lista produzida a partir do rastreamento feito porum agente inteligente que constri um perfil dinmico da

    pessoa, tendo como referncia o que ela adquire atravsdosite (como livros, CDs, vdeos, brinquedos, etc.). Des-sa forma, possvel apresentar uma lista de sugestes aousurio, com base naquilo que outras pessoas de perfilsemelhante ao dele compraram. Trata-se da construo de

    padres de interesse, a partir dos quais indivduos quecompartilham os mesmos gostos funcionam como um pa-

    dro para indicaes interessantes que podem ser cruza-das dentro de um mesmo grupo (Costa, 2002).

    Essa tcnica de rastreamento das atividades dos usurios usada tambm emsites como o Abuzz.com, do New YorkTimes, uma comunidade virtual que funciona em torno de

    perguntas e respostas enviadas por seus participantes. Oagente inteligente de Abuzz acompanha cada usurio emsuas atividades, construindo um perfil de acordo com suas

    perguntas e respostas, com os temas tratados, com afreqncia de suas aes, etc. Isso permite ferramentaenderear adequadamente perguntas para aqueles que maisse aproximam do perfil dos que podem responder.

    Um outro exemplo do que est sendo dito, mas agorafora do campo da Internet, o da TV digital interativa. A

    empresa lder no mercado mundial, OpenTV, desenvol-veu um pequeno agente inteligente que capaz de traara silhueta de uma pessoa atravs de sua ao cotidianasobre o controle remoto. Nesse caso, o agente constri asilhueta rastreando a ao pura e simples do telespectador

    junto ao televisor. Ele atua registrando e associando v-rias coisas automaticamente: os momentos em que a pes-soa assiste a TV, os programas que ela assiste e, o maisimportante, o ritmo de mudana de canais. De posse des-ses dados, o agente consegue estabelecer, para uma fam-lia usual (quatro ou cinco pessoas), os hbitos televisivos

    dos adultos homens, dos adultos mulheres e das crianas.Ou seja, ele constri um conjunto de padres de compor-tamento a partir das aes dos prprios usurios. Isso sig-nifica que no h nenhuma tabela a priori de padres paraele se orientar. Com o tempo, ele consegue reconhecer cadaum no momento mesmo em que liga a TV, e pode assimlhe oferecer alguma sugesto (Costa, 2002).

    RASTREANDO O PLANETA O PROJETO TIA

    toda essa tecnologia que vem sendo agora incorporadapelos mais recentes projetos que alimentam a sociedadede controle. Um exemplo importante, e recente, o projetoamericano TIA Total Terrorism InformationAwareness, que prope abertamente capturar a assinatura-informao das pessoas. Dessa forma, o governo poderiarastrear terroristas potenciais e criminosos envolvidos emtipos de crimes contra o Estado de difcil deteco.4

    A estratgia do projeto rastrear indivduos, coletan-do tanta informao quanto possvel e usando softwaresinteligentes e anlise humana para detectar suas ativida-des potenciais. O projeto est investindo no desenvolvi-mento de uma tecnologia revolucionria para a armaze-

    nagem de uma quantidade enorme de todo tipo de fontede informao, associando essas mltiplas fontes para criarum grande banco de dados, virtual e centralizado. Adiferena aqui que essa grande memria seria alimenta-da a partir das transaes contidas em diversos bancos dedados, tais como os registros financeiros, registros mdi-cos, registros de comunicao, registros de viagens, etc. com esse material que o rastreamento das informaesser possvel, e com ele a construo de padres e asso-ciaes entre os dados. O reconhecimento de padres estdiretamente ligado mudana nos mtodos de controledas aes individuais.

  • 8/2/2019 sociedade de controle

    6/7

    SO PAULOEM PERSPECTIVA, 18(1) 2004

    166

    Ora, aquilo que na web a construo de um perfil di-nmico de usurios com fins comerciais, que serve para

    alimentar a sociedade de controle lightdo marketing, agorano TIA passa a ser a construo do perfil total, que ser oresultado do cruzamento das ligaes telefnicas de umindivduo (sua origem, destino, data e durao), as despe-sas efetuadas em cartes de crdito (quanto, onde, quan-do) e, a partir destas, as operaes comerciais mais diver-sas. O que o projeto almeja, com esse esforo, a produode uma viso dos padres de comportamento de amostrasda populao. O objetivo bsico do projeto auxiliar ana-listas a compreender e mesmo prever uma ao futura, nocaso uma ao terrorista. Mas o mais importante que,

    diferentemente da estratgia de interceptao de mensa-gens que j conhecemos no Echelon, onde o que se pro-cura de forma direta so contedos especficos associa-dos a pessoas especficas, no TIA o processo seria em

    princpio indireto, pois pelo negativo dos padres quese intercepta um comportamento suspeito. E com a im-

    plantao de um tal projeto, chegamos definitivamente namodulao contnua da sociedade de controle de que nosfala Deleuze, pois deixamos de olhar para as informaescomo associadas a indivduos, e sim como relacionadasentre si dentro de um quadro maior. justamente essaamostra ou conjunto de dados que deve ser modulado.

    DA IDENTIDADE AO CDIGO

    Quando assinamos um documento, um cheque, estamosimprimindo ali nossa identidade. A assinatura, historica-mente, sempre foi o signo maior da identidade pessoal. OCPF, que o nmero de registro numa massa, assegura aoindivduo seu estatuto de existente regulamentado. Com asociedade de controle, a assinatura posta em dvida, deveser verificada, e o CPF usado para checar seus movi-mentos financeiros. Mas o controle inventa ainda seus

    prprios dispositivos: o cdigo e a senha no lugar da assi-natura. A diferena que a assinatura produzida peloindivduo, e o cdigo produzido pelo sistema, para oindivduo: dito intransfervel, pois, dado que foi feito

    por voc, como sua marca prpria e singular, pode serpassado a outro. interessante notar que, enquanto noscartes de crdito, a operao de dbito automtico re-quer o uso de senha, a operao de crdito, pelo menos

    por enquanto, requer a assinatura (alm do nmero docarto). A senha checada na hora porque estamosacessando o sistema, ao passo que a operao de crdito realizada apenas posteriormente. Acontece que, muitas

    vezes, mesmo sem motivo aparente, sua senha recusa-da! No h nada a fazer, voc no mais voc para aque-la operao, mesmo que continue sendo voc para pagarde outra forma. Voc voc para algumas coisas, e no voc para outras... porque sua senha num sistema no foiaceita. Esse o conceito de modulao universal de quenos fala Deleuze, onde o indivduo passa a ser divisvel,ora podendo, ora no podendo. Na verdade, a modulaoocorre sobre um conjunto ou grupo de cdigos, o indiv-duo podendo ou no ter acesso a um servio liberado pelosistema (overbooking, rodzio de carros, sistemapay-per-view, acesso a provedor...).

    Tambm do ponto de vista da geografia, o cdigo vem

    substituindo gradativamente a identidade. As noes deidentidade e corpo fsico sempre estiveram associadas umaa outra. Com o advento do espao urbano partilhado ad-ministrativo, h a emergncia de um duplo do corpo: osistema numrico que nos identifica. Assim, o telefone, ocarto de crdito, o nmero da previdncia, etc. permi-tem, cada vez mais, expandir ou restringir nossa mobili-dade no espao fsico. Hoje j temos a clareza de estar-mos vivendo sob um novo conceito: o de ser humano emrede (Boullier, 2000).

    Numa sociedade disciplinar, atrelada ao espao fsico,um indivduo era referenciado por seu endereo postal,que remetia a um lugar fsico que no era mais que um

    ponto numa rede geogrfica de longa durao. Hoje, umhabitante se define como inscrito numa rede varivel, ondea prova de domiclio no mais o ttulo de propriedadeou o pagamento de aluguel, mas a fatura de gua, de ele-tricidade ou gs, de telefone, etc. nossa inscrio nes-sas redes, nosso estatuto de consumidor de fluxos tcni-cos que serve como prova jurdica de nosso pertencimentoespacial (Boullier, 2000). Somos humanamente definidoscomo membros de mltiplas redes.

    As redes sociotcnicas so muitas: gua, transportes,

    comrcio, telecomunicao, telefonia, comunicao, TV,jornal, computao, web , portteis. Estamos dentro demuitas redes simultaneamente e permanentemente.Alwaysonandeverywhere (Rheingold, 2002). Na cidade digital,em casa ou no trabalho, pelo fato de essas redes estareminterconectadas, podemos acessar mltiplos servios sema necessidade de nos deslocarmos. Temos entrega de pro-dutos, pagamentos tipo homebanking, servios pblicos,trabalho e muitas outras coisas possveis pelo fato de quea cidade est digitalizada. Por outro lado, em trnsito, te-mos acesso cidade digital via cartes multiservios, ter-

    minais eletrnicos, aparelhos portteis. Uma nova lgica,

  • 8/2/2019 sociedade de controle

    7/7

    167

    SOCIEDADEDE CONTROLE

    portanto, est em curso, no que diz respeito aos desloca-mentos e acessos.

    No esqueamos, no entanto, que essa ubiqidade dosseres s possvel por causa do dinheiro eletrnico. Elerepresenta mais uma mutao do capitalismo, pois se odinheiro papel caro e sem controle em sua circulao, odinheiro eletrnico, alm de reduzir os custos, acaba ge-rando mais controle sobre os indivduos e a circulao docapital. O papel moeda annimo, o dinheiro eletrnicono. o caso do imposto CPMF criado no Brasil, atravsdo qual possvel controlar toda a circulao financeiradigital do pas.

    Outro aspecto fundamental da modulao na geografia o monitoramento da localizao de portteis. Isso j uma realidade para usurios de celulares ou palms. Elesfuncionam atravs do sistema GPS Global PositioningSystem e de redes celulares.5 Segundo Pfeiffer (2003) osconsumidores tero sua disposio um conjunto detecnologias trabalhando juntas para assegurar que algumou alguma rede sempre saiba onde voc est, o que vocest procurando e aonde voc precisa chegar. Pense nisso,diz ele, como um Big Brother consentido um irmo maisvelho com bom senso de direo. Em princpio, essalocalizao funcionaria para que os usurios pudessemsolicitar servios diversos, como o restaurante mais

    prximo, cinemas, estaes de metr, mapas e informaessobre a rea em que se encontra. O servio de emergncia,911, j teria inclusive uma lei de obrigatoriedade delocalizao automtica, para facilitar a chegada de socorro.Mas os usurios podem tambm optar por recebermensagens de marketing. Com isso, estando numa rea

    prxima a um certo comerciante, possvel receber umapromoo exclusiva, personalizada, pelo simples fato dousurio se encontrar prximo do ponto de venda.

    Bem, se somarmos a isso todos os sistemas de vigiln-cia por cmeras, disponveis para os departamentos detrnsito, estaremos finalmente desembarcando no mundo

    deMinorityReport, onde a grande questo no simples-mente antecipar os crimes do futuro, mas estabelecer essamodulao contnua, no presente, de todos os comporta-mentos, com os indivduos no sendo mais que pontoslocalizveis numa srie de redes que se entrecruzam. As-sim, s resta aos usurios controlar todo o tempo as infor-maes pessoalmente identificveis que eles esto forne-cendo ao sistema continuamente. Como nos alerta Deleuze(1990), diante das prximas formas de controle inces-sante em meio aberto, possvel que os mais rgidos sis-temas de clausura nos paream pertencer a um passadodelicioso e agrdavel.

    NOTAS

    1. Pierre Lvy (2002) um dos que mais defende essa posio, de quea transparncia da web seria uma forma de resistncia ao poder.

    2. Michel Authier conhecido por seus trabalhos filosficos com PierreLvy e tambm por seus estudos matemticos, sobretudo pela inven-o do algoritmo do mecanismo de busca por proximidade chamadoUmap e das rvores de Conhecimentos.

    3. Tracking de cookie ou nmero IP - Internet Protocol.

    4. Ver doissites importantes para informaes sobre as aes de con-trole dos EUA: e .

    5. O Departamento de Defesa dos Estados Unidos lanou o GPS em1978 para possibilitar o bombardeio com armas de preciso.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    BOULLIER, D. Processeur et rseau: les nouveaux formats de ltreurbain. In: SANDOVAL, V. (Org.). La Ville Numrique. Paris:Hermes, 2000. p.171-190.

    CAMPBELL, D. Surveillance Electronique Planetaire. Paris: Allia,2001.

    COSTA, R. A cultura digital. So Paulo: Publifolha, 2002. (ColeoFolha Explica).

    DELEUZE, G. Pourparlers. Paris: Les ditions de Minuit, 1990.

    FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. Petrpolis, RJ: Vozes, 1998.

    HARDT, M. La socit mondiale de contrle. In: ALLIEZ, E. (Org.).Gilles Deleuze, une vie philosophique. Paris: Synthlabo, 1998.p.359-376.

    LESSIG, L. Code and other laws of cyberspace. New York: Perseus,1999.

    LVY, P. Cyberdemocratie. Paris: Odile Jacob, 2002.

    MAES, P. Agents that reduce work and information overload. In:BRADSHAW, J. Software Agents. Cambridge, MA: MIT Press,1997.

    PFEIFFER, E. Technology review. Folha de S.Paulo, So Paulo, 22out. 2003. Folha Informtica.

    RHEINGOLD, H. SmartMobs. The Next Social Revolution. Cambridge,MA: Perseus, 2002.

    SHAPIRO, A.L. The Control Revolution. New York: Public Affairs,1999.

    TIA.Elect ronic Privacy Information Center. Disponvel em:.

    ROGRIODA COSTA:Filsofo, Professor na Ps-Graduao em Comuni-cao e Semitica da PUC-SP, Coordenador do Laboratrio de Intelign-

    cia Coletiva ([email protected], www.pucsp.br/linc).