Sociedade civil elemento constitutivo da tecnologia de ... John Locke, os indivíduos ... permitiram...
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Sociedade civil - elemento constitutivo da tecnologia de governar pelos
governados
OLDA ANDREAZZA*
Neste artigo, o apelo ao termo sociedade civil é para anunciar que, inscrito no ideário
neoliberal, trata-se de um conceito difundido no Brasil como correlato fundamental ao
Terceiro Setor, e este, por sua vez, é delineado como figura representativa, por excelência, da
relação público-privado entre Estado e sociedade na prestação de serviços sociais, decorrentes
das políticas públicas, sob ordenamento jurídico específico.
Desde a modernidade a noção de sociedade civil está sujeita a diversas e até contraditórias
apropriações conceituais, conforme a posição teórica sobre o contexto histórico e a forma de
autoridade política vigente.
Nas origens do pensamento liberal, século XVII, sociedade política - as instituições do poder
soberano – era distinta de sociedade civil – um campo de relações sociais não jurídicas, a base
da vida social subordinada ao Estado, um Estado Absolutista, na fala de Thomas Hobbes.
Para John Locke, os indivíduos vinculavam-se jurídica e politicamente, por isso a supremacia
da sociedade sobre o governo, baseada na defesa dos direitos naturais ou direito à vida, à
saúde, à liberdade, à integridade física e à propriedade privada dos indivíduos. O princípio de
governo consentido pelos governados determinava o respeito às leis natural e civil, limitando
a finalidade e o poder do Estado. Charles Montesquieu separou as leis naturais das leis
humanas e instituições, propondo o vínculo social e a relação de autoridade num Estado
regido por três poderes separados - o legislativo, o executivo e o judiciário, com funções
respectivas de fazer as leis, administrá-las e julgá-las. Jean-Jacques Rousseau aponta que a
sociedade civil era uma contínua formação de novas relações sociais, na compreensão de
sociedade civilizada - novas estruturas econômicas e conseqüentes novos tipos de autoridade
e governo surgindo do contrato social – e não, propriamente, uma sociedade política,
A defesa da posse da terra, como atributo da natureza humana, incidiu pelo século XVIII, na
caracterização de um pacto que funda a sociedade civil como o local da vida privada e as
formas de organização social, determinadas pelas relações econômicas, resultaram na divisão
interna entre os que tinham a posse da terra para cultivá-la e os demais não proprietários.
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* Profª Assistente-Mestre da Faculdade de Ciências Sociais da PUC/SP, doutoranda do
Programa de Pós- graduação em Ciências Sociais - PUCSP – 2014.
2 Ou seja. Todos integravam a sociedade civil, mas, somente os proprietários podiam demandar
segurança e proteção em seu favor. O Estado, assim consentido pelos governados, passou a
representar os interesses dos proprietários, através de aparatos que regulavam as normas
políticas, religiosas, culturais e, sobretudo, econômicas, para todos, a fim de manter a
estrutura social organizada dessa forma.
Contudo, diferentes tarefas desempenhadas no processo produtivo inscreveram uma divisão
do trabalho e os interesses individuais contraditórios, geraram conflitos que repercutiram
instabilidades em toda vida social, acelerando antagonismos entre os proprietários dos meios
de produção e os não proprietários ou trabalhadores; tais relações econômicas vão determinar
a constituição da sociedade de classes, respectivamente, classe dominante e classe dominada,
onde o Estado é o resultado dessa relação diante o novo processo econômico de produção.
No século XIX, Marx inaugura o sentido de sociedade civil como uma categoria conceitual
relacionada ao conceito de Estado burguês, o qual corresponde à necessidade da classe social
dominante para assegurar e reproduzir sua dominação e, nessa perspectiva, não há separação
nem oposição entre Estado e sociedade, pois dá-se um rompimento com o sentido de pacto,
como se deu na sociedade feudal.
Na atualidade tem-se caracterizado sociedade civil como
a esfera das relações entre indivíduos, entre grupos, entre classes
sociais, que se desenvolvem à margem das relações de poder que
caracterizam as instituições estatais…terreno dos conflitos
econômicos, ideológicos, sociais e religiosos que o Estado tem a seu
cargo resolver, intervindo como mediador ou suprimindo-os…o
campo das várias formas de mobilização , de associação e de
organização das forças sociais que impelem à conquista do poder
político.(Bobbio, Matteucci, Pasquino, 1983:1208)
Sem pretendermos expor os aspectos constitutivos dessas apropriações pelas matrizes
teóricas contemporâneas, a abordagem de Michel Foucault acerca dessa questão vem ao
encontro do nosso interesse em destacar a nossa formulação – sociedade civil correlata ao
Terceiro Setor.
O autor configura sociedade civil como um novo campo de referência para a arte liberal de
governar, uma tecnologia governamental moderna, indexada aos processos econômicos, que
entre os séculos XVI e meados do século XVIII emerge do jogo das relações de poder entre
governantes e governados, mas não é o seu produto, nem uma realidade em si mesma,
autônoma, primeira e imediata. Em face dessa nova racionalidade governamental há uma
3 nova prática política na historia da política ocidental, determinadas pelas relações
econômicas. A arte de governar, baseada nas virtudes e habilidades humanas do soberano-
governante e na aplicação coercitiva de um corpo de leis sobre o povo, passa a ser o governo
dos homens enquanto um conjunto populacional. A questão de fundo no Estado moderno era
o exercício do poder regulado pela racionalidade, calculados os fatores de poder, as relações,
as riquezas e formas modernas da tecnologia governamental, cuidando de oferecer à
população condições de trabalho, produção e consumo diante o complexo conjunto de
questões de política, economia, ética, religião, expressas pelas relações sociais.
Michel Foucault cria o neologismo governamentalidade¹ para caracterizar esse processo
argumentando que antes, a racionalidade do Estado era a do governante, do indivíduo
soberano, agora é a racionalidade dos que são governados, os sujeitos econômicos, indivíduos
que criam os meios para atender aos seus interesses.
Se o Estado existe tal como ele existe agora… são as táticas de
governo que, a cada instante, permitiram definir o que deve ser do
âmbito do Estado e o que não deve, o que é estatal e o que é não-
estatal… o Estado em sua sobrevivência e o Estado em seus limites
só deve ser compreendico a partir das táticas gerais da
governamentalidade. (Foucault 2008a:145).
A governamentalidade deve ser entendida como uma generalização das técnicas disciplinares,
onde as relações entre liberdade e governo são repensadas a partir das diversas estratégias
usadas para governar indivíduos e o modo como estes aceitam ou recusam ser governados. Do
século XVIII em diante ocorre o fenômeno de “governamentalização”² do Estado e não mais
um processo de estatização da sociedade – uma expressão do modo de produção capitalista.
Se os coordenadores deste simpósio me permitem, no lugar do termo disputa¹ contido no
título, inscrevo um novo pacto², pois neste artigo apresentamos alguns apontamentos sobre a
relação público-privado como um grande e conveniente acordo entre Estado e sociedade,
coroado pela Constituição Brasileira de 88 e governos subseqüentes.
Tratamos acerca de políticas públicas, assim como sobre a insígnia Terceiro Setor.Vejamos.
No modelo formal do Estado de Direito, de concepção liberal clássica, instala-se um governo
por leis, um bloco burocrático e legalista, onde o interesse público era legitimado pelo poder
legislativo, na condição de representante do povo, enfatizando a soberania popular e limitando
a intervenção do poder público sobre a esfera privada.
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¹em itálico, conforme o(s) autor(es)
4 ²em aspas e negrito, destaque nosso.
Não cabia ao Estado guiar a sociedade civil para a realização dos fins comuns e o binômio
proibição-permissão estava contido na lei que aplicava os dispositivos acerca da competência
da Administração Pública e dos particulares.
A esse respeito o jurista Hely Lopes Meirelles descreve no seu Direito Administrativo
Brasileiro:
Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo o que a lei
não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a
lei autoriza. A lei para o particular significa “pode fazer assim”,
para o Administrador significa ”deve fazer assim”. (Meirelles,
2006:88)
Mesmo sob o ideário liberal, a necessidade e o interesse de segurança jurídica, de justiça e
igualdade material (acesso a bens e serviços disponíveis) para todos, determinaram a criação
de uma Constituição, a ata do pacto social, contendo as decisões tomadas pela e para a
sociedade, um contrato de associação e negociação tendo por referência os princípios de
igualdade e liberdade. Deu-se a passagem do Estado de Direito para a configuração de um
Estado Social e Democrático de Direitos que intermedia o mercado livre capitalista e a
economia planificada, onde estão estabelecidos os direitos e deveres para todos e delimitando
o seu poder com fins garantistas.
As nações que adicionaram a dimensão democrática na sua Constituição combinaram
liberdades individuais e políticas com os direitos sociais, econômicos e culturais, resultando o
Estado Constitucional – um governo por políticas – onde a liberdade deve prevalecer sobre a
autoridade e a lei advir de um órgão popular representativo, expressar a vontade geral, estar
relacionada e subordinada à Constituição. O binômio proibição-permissão é dissolvido e a
Administração Pública pode atuar sem prévia autorização legal, pois o compromisso com a
transformação social expressa direitos e objetivos, racionaliza a política e legitima o aparato
estatal ao estabelecer metas, tarefas e consecução dos instrumentos e meios adequados para a
satisfação progressiva das necessidades coletivas, em nome do bem comum. Aos particulares
as regras e normas já estão previstas na Constituição.
Um governo por políticas instala-se como modalidade de ação interativa e participativa com a
sociedade [inclua-se aqui a iniciativa privada] na concretização dos valores e realização dos
direitos fundamentais. Vale esclarecer que tais direitos não se deram simultaneamente e,
surgindo para atender às demandas de cada época, no processo histórico das sociedades,
5 foram sendo agregados às Constituições, o que permite sua classificação por gerações, sem
sucessão, nem exclusão, segundo abordagem jurídica. Atualmente coexistem e são eles:
1ª geração – direitos civis e políticos, individuais, com base no valor liberdade, exigem
abstenção do Estado;
2ª geração – direitos sociais, econômicos e culturais, coletivos, exigem atuação do Estado;
3ª geração – destinam-se à proteção do gênero humano e tratam do desenvolvimento ou
progresso, do meio ambiente, da autodeterminação dos povos, do direito à propriedade
sobre o patrimônio comum da humanidade e da comunicação - com base no valor
fraternidade ou solidariedade;
4ª geração – direitos à democracia, informação e pluralismo, sendo introduzidos no
âmbito jurídico em face da globalização política.
Em 1948, pós II Guerra Mundial, foi promulgada a Declaração Universal dos Direitos
Humanos pela ONU, cujos princípios, incorporados nas Constituições da França, Inglaterra,
Alemanha e Estados Unidos, deram rumos mais intervencionistas ao Estado, configurando o
que se denominou Estado de Bem Estar Social (EBES) naqueles países.
Esses princípios só foram inscritos na Constituição Brasileira de 1988 e após vinte e um anos
de ditadura militar, conciliar desenvolvimento econômico e igualdade social era um dos
desafios para superar as condições de vida da população, supondo a construção de um
contrato de associação e negociação coletiva que convocasse a sociedade à participação e ao
controle social, desígnios da nova ordem neoliberal – uma nova tecnologia de governo ou
governamentalidade, conforme Foucault. Significava enfrentar a crise do Estado e sua crise
fiscal, superar o sistema burocrático normativo e centralizador da administração pública,
efetuar a reforma do aparelho do Estado.
Foi necessário estabelecer dois focos estratégicos da Administração Pública: a eficiência na
formulação e na implementação de políticas públicas e a eficácia dos seus resultados. Tal
eficácia, atribuída aos princípios constitucionais, assenta-se em política pública de direitos
humanos individuais e coletivos, devendo ser juridicamente desvinculada da lógica do
mercado. Os direitos sociais, por sua vez, obedecendo a graus de mediação e revestimento
jurídico devem assegurar os benefícios e os serviços instituídos pelo Estado democrático para
a sociedade democrática, circunscritos no Direito Público como tarefa essencial de governos
eleitos e, inscritos no campo do Direito Privado, como tarefa da própria sociedade – pessoas
físicas e jurídicas.
6 Princípios e políticas são proposições que estabelecem padrões a serem \adotados. Os
princípios descrevem direitos individuais, por exigência ético-moral da sociedade, como a
justiça e equidade, mas não asseguram nem promovem a situação econômica, política ou
social, propriamente dita, dos cidadãos. As políticas descrevem objetivos coletivos e
estabelecem a melhoria de algum aspecto econômico, político e/ou social e representam o
modo de ação, por excelência do modelo de Estado Constitucional.
Entendidas como mecanismos de decisão entre órgãos públicos, organizações de
personalidade privada e demais atores da sociedade, as políticas públicas orientam para o bem
comum, para o bem estar de todos os habitantes de um território – finalidade essencial do
Estado Democrático de Direito. Apontam para a criação e prestação dos serviços públicos
específicos e afins, que garantam o atendimento aos direitos sociais, culturais, econômicos.
Assim tomada, está se tratando de um certo tipo de transferência do que era especificamente
privado para composição de ações coletivas no espaço público e compromisso explícito de
responder às demandas das diversas áreas da vida social. Pelos princípios de liberdade,
igualdade e satisfação das necessidades básicas para todos e implicada a dimensão de poder
decisório as políticas públicas estão relacionadas aos direitos sociais de saúde, educação,
trabalho (emprego, acesso a terra), previdência social, transporte, segurança, saneamento,
condições ambientais, lazer, cultura, esporte.
Segundo a Constituição Brasileira de 88, no seu Título VII – DA ORDEM SOCIAL - os
serviços considerados de relevância pública e essenciais à vida social são institucionalizados
pelo governo e respaldados por dispositivos contantes do Novo Código Civil de 2002. Pelo
princípio de universalidade a que se referem, podem ser executados diretamente pelo poder
público, por empresas estatais e de economia mista [exploração econômico-financeira por
parte do Estado], assim como pela atribuição e qualificação de terceiros particulares - pessoa
física ou jurídica de direito privado, com finalidade lucrativa - a exemplo dos serviços de
infra-estrutura como abastecimentto de água, saneamento básico, energia elétrica, gás,
telefonia, transporte coletivo. O fato de o Estado ser titular desses serviços não o obriga ser o
prestador, mas deve disciplinar e promover a execução. As políticas públicas específicas
como a industrial, agrícola, monetária, de proteção social indicam programas e projetos de
execução por Acordo, Protocolo, Contrato de Gestão, Termo de Parceria, Concessão e outras
figuras que vão ganhando ordenamento jurídico do Estado.
Trata-se de uma outorga legal à iniciativa privada, um novo pacto entre Estado, mercado e
sociedade civil para dar conta da governamentalidade do país, onde o princípio de
7 universalidade se dissolve diante o duplo pagamento compulsório dos usuários: impostos e
taxas de um lado, boletos de cobrança periódica do outro.
Criamos o neologismo Dualização institucional para caracterizar todo este mecanismo de
legalização que transfere do Estado para a sociedade civil a decisão e a execução dos serviços
públicos, instruída na última Constituição pelos dispositivos normatizados sob a
denominação: Concessão, uma modalidade de contrato; Permissão, ato unilateral do Poder
Público e Autorização, um ato de “polícia administrativa”, pelo Direito Administrativo que
libera alguma conduta privada em condições emergenciais aguardando providências para a
sua concessão ou permissão. Na concessão
o Estado atribui o exercício de um serviço público a alguém que
aceita prestá-lo em nome próprio, por sua conta e risco, nas
condições fixadas e alteráveis unilateralmente pelo Poder Público,
mas sob garantia de um equilíbrio econômico-financeiro,
remunerando-se pela própria exploração do serviço, em geral e
basicamente mediante tarifas cobradas diretamente dos usuários do
serviço.(Mello,2005:658)
No art. 175 da Constituição está descrito: Incumbe ao Poder Público, na forma da lei,
diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a
prestação de serviços públicos. Tem-se, assim, o aparato operacional de execução pela
administração pública direta e indireta, pelas estatais e mistas, pelas empresas privadas e pelas
modalidades de terceirização de bens e serviços.
Na década de 1990 a crise do Estado brasileiro se acentuava e era preciso reconstruí-lo, rever
as estratégias de intervenção no plano econômico e social, extinguir as intervenções diretas,
criar formas regulatórias em conjunto com a iniciativa privada e a sociedade civil, tornar a
administração pública mais flexível e eficiente, reduzir seu custo, oferecer mais qualidade aos
serviços sociais do Estado. Era necessária a reforma do aparelho do Estado, considerando que
a própria Constituição de 1988 tornou rígida e burocratizada a administração pública.
Esses, entre outros aspectos de análise pautaram a estruturação do Plano Diretor da Reforma
do Aparelho do Estado, lançado em 1995 pelo então titular do Ministério da Administração
Federal e da Reforma do Estado – MARE - Luiz Carlos Bresser Pereira. Estão expressos os
quatro setores estatais que compõem a redefinição do papel do atual Estado brasileiro:
1. o Núcleo Estratégico - correspondente às funções dos poderes Executivo, Legislativo,
Judiciário e do Ministério Público – instâncias onde as decisões estratégicas são
tomadas e as leis e políticas públicas são definidas;
8 2. as Atividades Exclusivas - só executadas ou reguladas, fiscalizadas e fomentadas pelo
Estado;
3. a Produção de bens e serviços para o mercado - na área de atuação das empresas
estatais, vinculadas ao mercado produtivo ou ao mercado financeiro, caracteriza o
desempenho de atividades econômicas pelo Estado, tradicionalmente exercidas pela
iniciativa privada;
4. os Serviços não exclusivos – na área de atuação de organizações do chamado
“Terceiro Setor” - prestados por organizações de direito privado pela relevância das
atividades relacionadas aos direitos humanos fundamentais, como as universidades,
escolas, hospitais, centros de pesquisa, museus. Para tanto foi implantado o programa
Publicização – transformação de entidades estatais de serviços sociais em entidades
públicas não-estatais, com ampla autonomia na gestão de suas receitas e despesas.
Terceiro Setor no Brasil tem se revestido de conceitos genéricos: conjunto de iniciativas
privadas com fins públicos, espaço natural de articulação entre os setores público e privado
(governo e empresas) para responder às demandas sociais, espaço de participação de novas
formas de analisar e intervir sobre a realidade social = locus de esfera público-privada.
A mobilização das camadas populares e sua demanda por mais e melhores serviços públicos
foram acirradas em face de um Estado “enxuto”, determinado pela estratégia neoliberal
vigente na economia mundial. Determinações político-econômicas do grande capital para as
nações do terceiro mundo, no manejo de ações sociais, sob véu humanitário, satisfazem as
exigências do ideário neoliberal: menos Estado, mais Mercado e a terceira via – Sociedade
Civil.
No caso brasileiro, considerado um país de desenvolvimento social tardio, o apelo à
participação social foi então ampliado para a sociedade civil, estimulando o associativismo
com a criação de entidades de direito privado ou setor público não-estatal, cujos serviços são
subsidiados pelo Estado. É uma convocação à população para o dever de participar dos
mecanismos de proteção e controle social, com destaque às parcelas carentes e empobrecidas.
Tais formas associativas da população assumem o dever do Estado e o desinteresse da
iniciativa privada por serviços que devem ser prestados gratuitamente, por isso configuradas
sob a rubrica Terceiro Setor. Num processo de descentralização, a execução de medidas
pacíficas para a resolução de conflitos a respeito da alocação de bens e recursos públicos fica
nas mãos dos atores de decisão: políticos eleitos e indicados de confiança, burocratas,
tecnocratas, empresários, trabalhadores.
9 Com a análise da dualização institucional distinguimos os serviços públicos executados
pelas organizações do mercado onde se efetiva o processo de privatização - um fluxo de
minimização da função do Estado – e os serviços de utilidade pública, que mantém a
apropriação pela iniciativa privada e a partir da década de 1990 foi estendida para o
associativismo civil, sob regulamentação, credenciamento e certificação condicionantes à
celebração de Convênios com o governo - expedientes criados para a expansão do fluxo de
retração da responsabilidade estatal frente às demandas da questão social – o conjunto de
condições de desigualdade social expressas pela polarização entre ricos e pobres, pela
pauperização de parcela significativa da população, diferenças entre apropriação e usufruto
dos bens e riquezas produzidos.
Porém, o caráter público das políticas permite a participação ativa de toda a sociedade, que se
torna responsável pela formulação dos serviços, pelo sistema de controle do custeio e
financiamento das atividades, dos projetos e programas, e o exercício do controle dos recursos
públicos com transparência, no atendimento aos direitos sociais, sem vincular vantagens e
interesses individuais e particulares dos que promovem e participam da decisão, por isso a
finalidade estatutária das organizações de associativismo civil é o Interesse Público.
A execução dos serviços deixaram de ser tarefa exclusiva do governo que se ocupa da criação
de documentos oficiais específicos que o Governo opera para regular cada modalidade de
relação com as organizações da sociedade civil – Acordos, Protocolos, Termo de Parceria ou
Acordo de Cooperação, Convênio, Contrato de Gestão, Parceria Público-Privada ou seu
acrônimo PPP. Tais considerações explicitam a contradança entre o Estado que se retraiu das
práticas de ações diretas e o forte interesse da iniciativa privada em investir socialmente no
capital humano, travestido de apelo ao pacto democrático - o compromisso de participação
da sociedade nos destinos de um país desenvolvido.
Em verdade, expressões organizativas da nossa sociedade têm sido capturadas e reguladas,
convenientemente, pelos gestores do mercado e do governo. Os acrônimos ONGS, O.S,
OSCIPS, RSE, as Entidades e Obras sociais, de voluntariado, de solidariedade, beneficentes,
beneméritas, caritativas e, principalmente filantrópicas, são inscritas como organizações
sociais na pretensa lógica do Terceiro Setor, enquanto conjunto orgânico, autêntico e
legítimo de associativismo civil. É sim, em muitos casos, um flagrante “mercado paralelo”.
Parece que tudo pode desde que, tendo a cidadania como álibi, a retomada da solidariedade e
cooperação mútua justificam apropriar mecanismos de inclusão social para o enfrentamento
das manifestações da Questão Social.
10 Agrega-se a isto uma motivação gerada pela máquina midiática e que vem se intensificando: é
“politicamente correto” ajudar profissionalmente, mesmo como voluntário, as camadas “mais
carentes, menos favorecidas ou menos privilegiadas” da população e assim por diante... como
slogan recuperado da sociedade disciplinar, sob nova direção, expressa pelo sentimento,
desejo e crença na democracia universal que sustenta a honra de ser um cidadão
comprometido com os direitos humanos e com os valores universais de liberdade e justiça
para todos. É interessante que de igualdade pouco se tem tratado entre esses atores e sujeitos
empreendedores .
Configuro em três blocos a tipologia das organizações sociais pelo caráter institucional e
jurídico que lhe é próprio, desconstruindo, pois, a forjada consideração de Terceiro Setor - a
Sociedade Civil, por exclusão do primeiro – o Estado e do segundo – o Mercado.
1) Neste conjunto encontram-se as tradicionais entidades sociais de natureza confessional,
caritativa, benemérita, beneficente, filantrópica, cujo trabalho caracteriza-se direto, gratuito e
voluntário na concessão de bens e serviços, portanto, ações assistencialistas, em face da moral
cristã e de sentimentos humanitários que historicamente transitam por determinados
segmentos da sociedade brasileira, diante a significativa pobreza e miserabilidade de outros.
Não bastasse o mote de caridade confessional do gesto, foi criado um aporte legal que
devidamente regula como praticar o bem comum. Dá-se a profissionalização da solidariedade
e da filantropia que responda, de modo satisfatório, à crise das políticas públicas e sociais
pautadas nos direitos sociais fundamentais, antes uma tarefa do Estado [segundo a
Constituição de 1988], agora uma evocação, uma demanda ou mesmo uma convocação à
“sociedade civil” para o dever de participar do ideário de um sistema que garanta mecanismos
de controle e proteção social à parcela carente da população, com a prestação de serviço
sociais estritamente gratuitos. Há uma aplicação genérica e indiscriminada dos acrônimos
Ong, Onl, Ongd, respectivamente, Organização não-governamental, Organização não-
lucrativa, Organização não-governamental de desenvolvimento para caracterizar essas
entidades sociais, sem resguardo de qualquer precisão conceitual. Lembrando que são apenas
figuras sintáticas como apostos dessas entidades regulamentadas por ordenamento jurídico
como Associações ou Fundações na sua Razão Social.
2) Aqui situam-se as Organizações Sociais [O.S] e as Organizações da Sociedade Civil de
Interesse Público [Oscips], usuais na linguagem vulgar como Ongs mas que diferem
radicalmente das demais. O problema aqui, menos de linguagem é do objetivo e da finalidade
estatutários que as constituem, determinados por leis e normas jurídicas específicas. As O.S
11 foram criadas pela Lei 9.637, em 15/05/1998 e são instaladas por Contrato de Gestão com o
governo por atuar em serviço públicos não exclusivos do Estado mas vinculado a ele, como
parte integrante de conselho Deliberativo, cujos membros fundadores podem ser remunerados
pelas suas atividade na organização. As Oscips criadas pela Lei 9.790 em 23 /03/ 1999, são
regidas por Termo de Parceria com o Poder Público, recebe aplicações de recursos estatais,
cujo controle é dirigido aos resultados das atividades; seus dirigentes podem se remunerados.
O aval de funcionamento dessas e das entidades acima mencionadas é sob forma de: Registro,
Credenciamento, Autorização, Cadastramento, Certificação. São, portanto, legalizadas.
3) os empresários que sob o apanágio das designações: Responsabilidade Social Empresarial,
R.S. Corporativa, Cidadania Corporativa, R.S. Mútua, Economia Solidária, Empresa Cidadã,
Empreendedorismo Cidadão, Filantropia Empresarial e, mais recentemente,
Investimento Social Privado, Empresarial ou Corporativo convertem responsabilidade social -
obrigações intrínsecas à razão social do próprio negócio - a compromisso com a cidadania,
um novo negócio e criam suas próprias fundações, associações de utilidade pública ou
finalidade social, cujas atividades, apoios e patrocínios revertem determinadas isenções e
imunidades tributárias sobre o lucro operacional da respectiva empresa privada. A este tipo de
dispositivo de exceção em favor da lucratividade indireta das empresas, aplico um conceito
figurado “Renúncia de Despesa” por analogia ao conceito contábil de Recusa de Receita.
Essas organizações não são ambíguas, embora expressem heterogeneidade e ambivalência na
sua caracterização. O que lhes confere uma articulação entre si e as legitima oficialmente é a
submissão a uma dada lógica de regulação instruída por dispositivos institucionais de controle
estabelecidos junto ao governo e organismos nacionais e internacionais, financiadores de
projetos sociais de intervenção, a exemplo da Unicef, Unesco.
Vale destacar que, como estas, novas e outras categorias terminológicas podem surgir na
proporção direta a cada nova forma de empreendimento de serviços sociais [essenciais ou
não] e a institucionalização de dispositivos que as regulem, demandada pelos agentes que as
decidem.
Já houve revogação de algumas leis, criação de novas, alteração de outras, que beneficiam os
agentes fundadores e dirigentes da entidades sociais do 1º bloco, quando demandam recursos
materiais e financeiros para sua gestão. O sistema de financiamento de entidades e de projetos
pode ser feito quer por doação [pessoa física e pessoa jurídica], quer por investimento “social”
de pessoa jurídica que recebe isenção ou imunidade tributárias. Para as organizações sociais
corporativas do 3º bloco, são criados Selos de “fidelização” às empresas por operarem suas
12 atividades de investimento social através de seus institutos ou fundações agregados, como
também aos seus produtos (bens e serviços) reconhecidos de “excelência”, e isenção ou
imunidade sobre o lucro operacional da respectiva empresa.
Retomando Michel Foucault, sociedade civil continua sendo um novo campo de referência da
arte de governar e agora, pela razão do neoliberalismo, os indivíduos econômicos operam
novos meios, arranjos e pactos de interesse do e no mercado.
Não há Terceiro Setor, mas uma articulação conveniente ente Estado e Mercado.
Vale recorrer a Gilles Deleuze em Conversações (pg. 213, 2007):
No capitalismo só uma coisa é universal, o mercado.
Não existe Estado universal, justamente porque existe
um mercado universal cujas sedes são os Estados, as
Bolsas. Ora, ele não é universalizante, homogeneizante,
é uma fantástica fabricação de riqueza e miséria. Os
direitos do homem não nos obrigarão a abençoar as
“alegrias” do capitalismo liberal do qual eles
participam ativamente. Não há Estado democrático que
não esteja totalmente comprometido nesta fabricação da
miséria humana.
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13
BIBLIOGRAFIA
.
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