Socialização primária e concepções das crianças em...

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Socialização primária e concepções das crianças em ciências Margarida Afonso Isabel Pestana Neves Centro de Investigação em Educação Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa Versão pessoal revista do texto final do artigo publicado em: Revista de Educação, VII (1), 107-119 (1998) Homepage da Revista de Educação: http://revista.educ.fc.ul.pt/2003/home-v2.html

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Socialização primária e concepções

das crianças em ciências

Margarida Afonso Isabel Pestana Neves Centro de Investigação em Educação Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa Versão pessoal revista do texto final do artigo publicado em: Revista de Educação, VII (1), 107-119 (1998) Homepage da Revista de Educação: http://revista.educ.fc.ul.pt/2003/home-v2.html

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1. INTRODUÇÃO Este estudo, desenvolvido no âmbito de um projecto mais amplo, faz parte de uma

investigação cujo objectivo consistiu em analisar em que medida as concepções das crianças em ciências são influenciadas por variáveis sociológicas dos contextos familiar e escolar1.

A análise que se apresenta neste artigo centra-se no contexto de socialização primária

(família), procurando explorar a relação entre as concepções das crianças e o seu grupo social (classe social, género) e a relação entre essas concepções e as concepções reveladas pelas mães. Considerou-se importante analisar as interrelações entre o contexto familiar e as concepções das crianças pois que os discursos e as práticas familiares tendem a influenciar os valores, conhecimentos e modos de agir das crianças. Além disso, sendo ainda a mãe que, na sociedade actual, assume, em grande parte das situações, maior responsabilidade na educação dos filhos, considerou-se particularmente importante analisar as concepções das mães e relacioná-las com as concepções das crianças.

Dando continuidade a trabalhos anteriormente realizados que sugerem a influência de

variáveis sociológicas nas concepções apresentadas pelas crianças (Chagas, 1986; Nunes, 1993), o presente estudo inscreve-se num quadro teórico em que se procura articular pressupostos de natureza psicológica e epistemológica com pressupostos de natureza sociológica.

Os pressupostos de natureza psicológica e epistemológica derivam de vários trabalhos

de investigação no âmbito do movimento das concepções alternativas (por exemplo, Driver et al , 1985; Gilbert, Osborne e Fensham, 1982; Osborne e Freyberg, 1990; Ryan et al , 1990). Estes trabalhos têm tido como objectivos diagnosticar as concepções, ideias e explicações que as crianças constroem para dar sentido às suas experiências pessoais e conhecer como tais ideias interferem na aprendizagem em contextos formais. Os resultados destas investigações têm sugerido que as crianças são psicologicamente activas, construindo explicações e concepções acerca dos fenómenos naturais que ocorrem à sua volta e acerca de conteúdos relacionados com a ciência e que essas explicações e concepções são resistentes à mudança. Embora se possam encontrar inúmeros trabalhos nesta área de investigação, usaram-se, como referências principais, os trabalhos que mais directamente se relacionam com as mudanças de estado e, em particular, com a evaporação e condensação da água (por exemplo, Bar, 1989; Bar e Travis, 1991; Pereira e Pestana, 1991; Russell e Watt, 1990; Séré, 1986; Stavy, 1990; Stavy e Stachel, 1985), dado serem estes os conceitos analisados no presente estudo.

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A teoria sociológica que serviu de quadro conceptual de referência foi a teoria do discurso pedagógico de Bernstein (Bernstein, 1977, 1990, 1996; Domingos et al, 1986), tendo-se extraído desta teoria o conceito de código expresso, por este sociólogo, como regulador da relação entre contextos e gerador de princípios orientadores da produção dos textos adequados a cada contexto. Estes princípios são as regras de reconhecimento, que permitem distinguir entre contextos e reconhecer a especificidade de cada contexto, e as regras de realização, que regulam a criação e produção de relações especializadas dentro do contexto, isto é, regras que permitem não só seleccionar os significados necessários à produção do texto (realização passiva) como produzir o texto adequado ao contexto (realização activa). Quando a produção textual se refere a um determinado contexto de aprendizagem, as regras de reconhecimento e de realização traduzem a orientação específica de codificação para esse contexto.

Tomando como referência este quadro teórico, pretende-se no presente estudo (a)

analisar a relação entre a classe social e género e as concepções valorizadas pelas crianças, (b) comparar, em função da classe social, as concepções valorizadas pelas crianças com as concepções valorizadas pelas mães e (c) explicar o significado da natureza diferencial das concepções alternativas, em termos de orientação específica de codificação isto é, em termos de regras de reconhecimento e de realização, em contextos científicos de aprendizagem.

De acordo com os objectivos do estudo, formulou-se o seguinte problema geral: Em que medida as concepções das crianças sobre fenómenos envolvendo conceitos

científicos são influenciadas por variáveis sociológicas do contexto familiar? Partindo deste problema, colocaram-se as seguintes hipóteses: . As concepções valorizadas pelas crianças dos grupos sociais mais favorecidos (em

termos de classe social e género) são mais próximas das concepções que a escola legitima do que as concepções valorizadas pelas crianças dos grupos sociais mais desfavorecidos.

. As concepções valorizadas pelas crianças estão relacionadas com as concepções valorizadas pelas mães.

. A natureza das concepções alternativas reveladas pelos sujeitos pode assumir significados sociológicos diferentes em termos de orientação específica de codificação, isto é, a valorização das concepções não legitimadas pela escola pode traduzir a falta de regras de reconhecimento e/ou a falta de regras de realização.

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Na descrição do estudo, que constitui este artigo, começa-se por caracterizar a amostra e descrever a metodologia, referindo-se as variáveis, os procedimentos gerais de análise e a conceptualização do instrumento de análise. Segue-se a apresentação e análise dos resultados e, por fim, a sua discussão e conclusão do estudo.

2. AMOSTRA A amostra era constituída por 49 crianças e respectivas mães. A idade das crianças

distribuía-se entre os 9 e os 12 anos, tendo a maioria 10 anos. O número de crianças do género feminino era idêntico ao número de crianças do género masculino. Estas eram oriundas de estratos socio-económicos diversificados (desde filhos de pais com um ou dois anos de escolaridade e a exercer profissões de natureza manual não qualificada a filhos cujos pais possuíam elevada habilitação académica e desempenhavam profissões com elevado estatuto social e profissional). As crianças estavam a frequentar pela primeira vez o 5º ano de escolaridade numa escola do 2º ciclo do ensino básico, de uma cidade do interior do país, e estavam distribuídas por duas turmas de composição social heterogénea.

Além da amostra experimental, foi igualmente seleccionada uma amostra piloto

contituída por 13 mães e respectivos filhos (5 raparigas e 8 rapazes). As crianças da amostra piloto estavam na mesma escola e no mesmo ano de escolaridade mas pertenciam a turmas diferentes da amostra experimental. Os níveis socio-económicos a que pertenciam estavam presentes na amostra experimental.

3. METODOLOGIA 3.1. Aspectos gerais Na caracterização sociológica dos sujeitos foram considerados inicialmente quatro

índices: habilitação académica da mãe (HAM), habilitação académica do pai (HAP), ocupação profissional da mãe (OM) e ocupação profissional do pai (OP). Posteriormente, na organização dos dados para as análises estatísticas, em que a classe social2 foi utilizada como variável de estudo, usou-se como índice de classe social a habilitação académica da mãe. Além desta variável se ter revelado, neste estudo, altamente correlacionada com os outros índices de classe social (HAP, OM, OP), alguns estudos têm referido que a habilitação académica é uma variável importante na resposta das crianças à escola e que as crianças, pelo menos nesta faixa etária, tendem a ser mais influenciadas pela mãe do que pelo pai no processo de socialização familiar (Neves, 1991; Morais et al, 1993). Além disso, as mães

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constituíam, na investigação, parte da amostra. Utilizaram-se dois níveis de habilitação académica, HAM1 e HAM2 . HAM1 inclui os sujeitos da classe social mais baixa, em que a habilitação académica da mãe é igual ou inferior ao 1º ciclo do ensino básico e HAM2 inclui

os sujeitos da classe social mais elevada, em que a habilitação académica da mãe é superior ao 1º ciclo do ensino básico. Em relação a outras análises foi usada a variável sociológica género em que G1 se refere às raparigas e G2 aos rapazes.

Para analisar a natureza das concepções dos sujeitos foi construído um questionário de

escolha múltipla3 que incluía quatro situações, duas envolvendo o fenómeno da evaporação da água e duas envolvendo o fenómeno da condensação da água. Em cada situação eram colocadas várias questões e, para cada questão, eram apresentadas quatro opções. Estas opções obedeciam a um mesmo padrão, correspondendo, do ponto de vista do movimento das concepções alternativas, a categorias de concepções habitualmente referidas para os conceitos de evaporação e condensação da água e, do ponto de vista do seu significado sociológico, à presença/ausência de regras de reconhecimento e/ou de realização. Uma descrição mais detalhada deste instrumento é feita mais adiante (§ 3.2).

Na análise da interrelação entre as concepções das crianças e variáveis do contexto de

socialização primária foram utilizados os dados obtidos através das respostas das mães e dos filhos ao questionário sobre as concepções. As respostas das mães e das crianças ao questionário foram, num primeiro momento, organizados de modo a obter a sua distribuição percentual pelas diversas categorias de concepções. A distribuição percentual das concepções foi utilizada na construção de tabelas de contingência com o objectivo de conhecer o significado estatístico das diversas relações, tendo por base o conceito de orientação específica de codificação. A partir destas tabelas de contingência foram calculados os valores de X2 para as relações que pretendíamos estudar.

3.2. Instrumento - concepção e aplicação O questionário construído para analisar a natureza das concepções dos sujeitos

apresentava, como anteriormente referido, quatro situações, duas focando o fenómeno da evaporação da água e duas o fenómeno da condensação da água. No primeiro caso, as situações referiam-se à evaporação da água do corpo após um banho na praia/piscina e à evaporação da água dos lagos. No segundo caso, as situações referiam-se à condensação da água num copo contendo líquido gelado e à formação do nevoeiro. Pretendia-se, assim, recorrer, em cada um dos fenómenos, quer a situações mais directamente associadas ao dia-a-dia, quer a situações mais directamente exploradas no contexto formal de aprendizagem. Cada uma das quatro situações continha seis questões que abordavam os seguintes aspectos: (1) de

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onde vem a água/para onde vai a água; (2) condições que originam a evaporação/condensação; (3) possibilidade de aceleramento do processo e em que condições esse aceleramento ocorre; (4) possibilidade de retardamento do processo e em que condições o retardamento se realiza; (5) possibilidade de reversibilidade do processo e em que formas essa reversibilidade se concretiza; (6) condições necessárias à reversibilidade do processo.

Em cada uma das questões foram apresentadas quatro opções que obedeciam a um

mesmo padrão: - resposta de senso comum, que não envolvia qualquer conhecimento escolar (SC). - resposta errada que, envolvendo conhecimento escolar, é emitido de uma forma

considerada incorrecta (E). - resposta incompleta que, embora envolvendo conceitos e explicações de natureza

escolar, não contém toda a informação para ser considerada correcta (I). - resposta correcta em que estão envolvidos conceitos e explicações de natureza

científica de um modo considerado completo pela escola para o nível etário dos alunos (C).

A título de exemplo apresentam-se, para duas situações, uma questão do questionário e

respectivas opções: Exemplos: Fenómeno envolvido: Evaporação da água.

Questão:

Quando tomamos banho na praia ou na piscina, passados alguns minutos estamos secos outra vez.

O que aconteceu à água que estava no nosso corpo?

Opções:

Caiu do corpo enquanto ele secava (SC)

Foi para o ar sem sofrer alterações (E)

Passou para a humidade do ar (I)

Passou a vapor e foi para o ar (C)

Fenómeno envolvido: Condensação da água.

Questão:

Copos contendo sumo ou outra bebida gelada apresentam, passado algum tempo, pequenas gotas de água

do lado de fora do vidro.

De onde vêm essas gotas?

Opções:

Vêm das bebidas que estão nos copos (SC)

Vêm da humidade que há nos copos (E)

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Vêm do ar que está à volta dos copos (I)

Vêm do vapor de água que está no ar (C) De acordo com o padrão utilizado, três das opções (SC, E, I), correspondem a

concepções alternativas às concepções valorizadas pela escola (C). De entre as três categorias de concepções alternativas, uma envolvia apenas conhecimento de senso comum (SC), enquanto as outras duas envolviam conhecimento escolar (E, I). Entre as duas categorias de concepções alternativas que envolviam conhecimento escolar, uma correspondia a conhecimento escolar formulado de um modo errado (E) e a outra a conhecimento escolar formulado de um modo incompleto (I). Uma maior valorização, dada pelos sujeitos, a uma das quatro categorias, revelará não directamente as suas concepções sobre os conteúdos mas que tipo de concepções (SC, E, I, C) têm tendência a valorizar. O questionário não pretendeu, por isso, diagnosticar a diversidade de concepções sobre evaporação e condensação da água mas antes investigar que categorias de concepções eram tendencialmente mais valorizadas pelos sujeitos.

Atendendo ao significado sociológico, atribuído no estudo, às concepções alternativas,

considerou-se que a valorização de uma opção de senso comum (SC) traduziria a ausência de regras de reconhecimento e de realização. Ao valorizar conhecimentos do senso comum, o sujeito revela que não faz a demarcação entre o contexto do dia-a-dia e o contexto escolar e, por isso, não produz o texto adequado ao contexto escolar. Considerou-se, pelo contrário, que a valorização de opções de tipo E, I e C traduziriam a posse de regras de reconhecimento, dado que qualquer delas envolve conhecimento relacionado com o contexto escolar. Contudo, como só a opção C corresponde a uma concepção escolar cientificamente correcta, considerou-se que apenas a sua valorização traduziria a posse de regras de realização enquanto a valorização de qualquer das outras duas opções traduziria a falta dessas regras.

Como na presente investigação os sujeitos, quando respondiam ao questionário, apenas

tinham que seleccionar os textos adequados, não lhes sendo pedido que produzissem os textos, as regras de realização, referem-se à realização passiva e não à realização activa.

A figura 1 descreve as relações estabelecidas entre a natureza das concepções e a

orientação específica de codificação.

(inserir figura 1) O questionário construído foi objecto de uma pilotagem realizada em duas fases.

Durante a primeira fase, foram apresentadas oito situações, quatro relacionadas com a

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evaporação e quatro relacionadas com a condensação. As questões, em cada uma das situações, eram abertas e foram apresentadas em situação de entrevista de forma a permitir que as respostas fossem dadas livremente. Estas respostas foram então tomadas em consideração na construção das opções a introduzir no questionário final de tipo fechado. Teve-se ainda o cuidado de procurar na literatura sobre estudos na área das concepções alternativas, mais directamente relacionados com a evaporação e a condensação da água, quais as concepções mais frequentes para as contemplar no questionário. Numa segunda fase de pilotagem, em que se apresentaram, também em situação de entrevista, as mesmas situações e as mesmas questões, mas agora sob a forma de um questionário fechado, pretendeu-se principalmente testar a adequação das opções aos objectivos do questionário e detectar problemas de vocabulário e de compreensão relativamente ao que se pretendia em cada questão. As duas pilotagens permitiram, assim, diminuir os desvios e enviesamentos que qualquer questionário fechado pode originar.

Após a pilotagem, o questionário foi reduzido, tendo-se seleccionado as situações que

apresentaram maior poder discriminativo quanto à classe social e que, simultaneamente, originaram menor dificuldade na resposta às respectivas questões. A estrutura geral das questões e das opções permaneceu idêntica, tendo havido apenas pequenos ajustes ao nível da formulação das frases e dos vocábulos utilizados.

Durante a sua aplicação, o questionário foi apresentado em cartões de diferentes cores,

em que cada côr correspondia a uma situação e em que cada cartão continha uma questão com as respectivas opções. Houve o cuidado de ordenar as questões de modo a que a resposta e a informação de umas não interferissem na resposta às questões seguintes. Além disso, o conjunto das quatro opções (SC, E, I e C) foi apresentado com uma ordem diversa ao longo do questionário. Aos inquiridos foi pedido, para cada uma das questões, a escolha de apenas uma das quatro opções, a que consideravam ser a mais adequada.

A aplicação do questionário às crianças foi feita na aula de ciências, antes do início do

estudo dos fenómenos analisados e em dias consecutivos em cada uma das turmas. A aplicação do questionário às mães foi feita na escola, em horário pós-laboral, e imediatamente a seguir à aplicação do questionário aos filhos. Pretendeu-se, com esta medida, que o intervalo de tempo que mediava as respostas dadas pelos filhos e mães ao questionário fosse o mais pequeno possível, para evitar alguma interferência nas respostas dadas pelas mães.

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4. APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS RESULTADOS Numa primeira fase, analisam-se os dados relativos aos filhos, relacionados com a

classe social e o género; em seguida, analisam-se os dados que permitem comparar as concepções das mães com as concepções dos filhos.

Para ilustrar as diferentes relações analisadas, construiram-se gráficos, onde se refere a

frequência de respostas pelas diversas categorias de concepções consideradas no estudo. Essas categorias estão identificadas por SC, E/I e C. A junção das concepções E e I numa só categoria deve-se ao facto de, embora com significado diferente do ponto de vista do movimento das concepções alternativas, estas concepções terem o mesmo significado sociológico, em termos de orientação específica de codificação. Para complementar a análise das relações expressas nos gráficos, recorre-se aos valores de X2 obtidos através das tabelas de contingência, em que a distribuição percentual das respostas foi agrupada em função da posse de regras de reconhecimento e da posse de regras de realização4.

4.1. Concepções das crianças em função da classe social Ao considerar a relação entre a classe social e as concepções valorizadas pelas crianças

(relativamente aos atributos específicos da evaporação e da condensação) obtivemos os dados expressos no gráfico da figura 2.

(inserir figura 2) A análise das concepções das crianças relativamente aos conceitos de evaporação e de

condensação da água, revela que ambos os grupos sociais valorizam predominantemente opções que envolvem concepções de natureza escolar, dado que a percentagem de opções envolvendo conhecimento de senso comum (SC) é bastante reduzida. Relativamente ao conceito de evaporação, as respostas das crianças do grupo HAM1 recaem predominantemente

em opções do tipo E/I (39.9%), havendo uma percentagem mais reduzida e semelhante de respostas dos tipos SC e C (respectivamente 32.0% e 28.1%); as respostas das crianças do grupo HAM2 recaem predominantemente em opções dos tipos E/I e C (respectivamente 37.6%

e 34.3%), havendo uma percentagem mais reduzida de respostas do tipo SC (28.1%). Relativamente ao conceito de condensação, as crianças do grupo HAM1 seleccionam

predominantemente concepções do tipo E/I (45.8%) sendo a selecção de concepções correctas reduzida e igual à de concepções de senso comum (27.1%); as crianças do grupo HAM2

apresentam uma frequência de concepções E/I (39.9%) próxima da frequência de concepções

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C (38.5%), sendo mais baixa a selecção de concepções de senso comum (21.6%). Estes dados sugerem que a dificuldade das crianças, de ambos os grupos sociais, em seleccionar o texto legítimo, se deve principalmente à falta de regras de realização e não tanto à falta de regras de reconhecimento.

Comparando as concepções das crianças dos dois grupos sociais, verifica-se que as

crianças do grupo social mais desfavorecido (HAM1) apresentam, para ambos os conceitos,

uma percentagem ligeiramente maior de concepções de senso comum (SC) e, simultaneamente, uma menor percentagem de concepções científicas correctas (C) quando comparadas com as concepções das crianças do grupo social mais favorecido (HAM2).

Embora esta diferença não se tenha revelado significativa, nem ao nível do reconhecimento nem ao nível da realização, ela pode ser entendida, no quadro teórico desta investigação, como sugerindo que as crianças da classe social mais favorecida tendem a reconhecer e a realizar melhor nestes contextos científicos do que as crianças da classe social mais desfavorecida.

Quando se considerou, numa análise complementar, a distribuição percentual das

concepções incluídas nas categorias E e I, os resultados mostraram que, de um modo geral, e para ambos os conceitos estudados, as crianças dos dois grupos sociais valorizam mais as concepções de tipo I do que as concepções de tipo E. Assim, as concepções das crianças que indicam haver reconhecimento do contexto mas ausência de realização parecem estar mais associadas à falta de informação (concepções de tipo I) do que à posse de informação incorrecta (concepções de tipo E). Esta análise permitiu ainda verificar que, relativamente ao conceito de condensação, a posse de informação incorrecta é ligeiramente mais acentuada nas crianças da classe social mais desfavorecida.

Em relação às concepções das crianças, de ambas as classes sociais, sobre a

possibilidade de reverter e alterar a velocidade dos processos da evaporação e da condensação, foi possível constatar que não existem diferenças entre as crianças, considerando a maioria ser possível que tal aconteça.

4.2. Concepções das crianças em função do género Os dados que evidenciam a relação entre o género das crianças e as suas concepções,

relativamente aos conceitos de evaporação e de condensação, estão expressos no gráfico da figura 3.

(inserir figura 3)

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Uma análise global das concepções dos rapazes e das raparigas revela que, em relação aos conceitos de evaporação e de condensação, quer os rapazes quer as raparigas, valorizam mais o conhecimento escolar do que o conhecimento do senso comum, pois as suas opções recaem predominantemente em explicações de natureza escolar (E/I e C). No caso da evaporação, as respostas dos rapazes recaem fundamentalmente em opções de tipo E/I (40.4%), havendo 30.8% de respostas de tipo C e 28.8% de respostas de tipo SC; neste contexto, as raparigas também dão fundamentalmente respostas de tipo E/I (36.8%), incidindo 32.8% das respostas em opções de tipo C e 30.4% em opções de tipo SC. No caso da condensação, os rapazes e as raparigas optam fundamentalmente por concepções de tipo E/I (respectivamente 41.0% e 43.6%); neste contexto, as concepções de tipo C correspondem a 36.5% das respostas dos rapazes e a 31.4% das respostas das raparigas e as concepções de tipo SC a 22.5% das respostas dos rapazes e a 25% das respostas das raparigas. Em termos sociológicos, estes resultados parecem sugerir que as dificuldades encontradas pelas crianças dos dois géneros, nos conteúdo analisados, são fundamentalmente devidas à falta de regras de realização.

Comparando a distribuição das concepções das crianças dos dois géneros, verifica-se

que, embora sem significado estatístico, no contexto da evaporação, são as raparigas que tendem a valorizar mais concepções de senso comum mas, simultaneamente, mais concepções científicas correctas e que, no contexto da condensação, são os rapazes que tendem a valorizar menos concepções de senso comum e mais concepções científicas correctas. Em termos da presente análise sociológica, tais tendências poderão fazer supôr que os rapazes revelam, para o contexto da evaporação, maior reconhecimento mas menor realização do que as raparigas e que, para o contexto da condensação, revelam simultaneamente maior reconhecimento e maior realização do que as raparigas.

Em relação à distribuição percentual das concepções, quando se discriminam as

respostas de tipo I e de tipo E, relativamente aos conteúdos da evaporação e da condensação, verificou-se que essa distribuição é ligeiramente superior na concepção I em qualquer dos grupos de crianças. Tal tendência parece indicar que a dificuldade em realizar se deve fundamentalmente à falta de informação (concepções de tipo I) e não tanto à posse de concepções erradas (concepções de tipo E). No caso da condensação, verificou-se alguma diferença entre os dois géneros, dado que as raparigas dão mais respostas de tipo E do que os rapazes.

Em relação às concepções das crianças, de ambos os géneros, sobre a possibilidade de

reverter e alterar a velocidade dos processos, verificou-se que a maior parte das crianças considera ser possível que tal aconteça, não havendo assim diferenças relevantes entre rapazes e raparigas.

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4.3. Análise comparativa das concepções das crianças e das mães Os resultados da análise comparativa entre as concepções valorizadas pelas crianças e

pelas mães de diferente classe social, quando se consideram os fenómenos da evaporação e da condensação da água, estão expressos no gráfico da figura 4.

(inserir figura 4) Uma análise global das respostas dadas pelas mães permite verificar que, relativamente

aos conceitos de evaporação e de condensação da água, e para as duas classes sociais, predominam as concepções de natureza escolar. Estes resultados sugerem que as mães têm maior tendência a valorizar este tipo de concepções em detrimento das concepções de senso comum. No contexto da evaporação, as mães do grupo HAM1 valorizam predominantemente

concepções de tipo E/I (38.3%), seguida de concepções de senso comum (32.6%), sendo a valorização do texto científico correcto relativamente mais baixa (29.1%); as mães da classe social mais elevada (HAM2) valorizam, neste contexto, predominantemente concepções

científicas correctas (45.6%), às quais se seguem concepções de tipo E/I (33.8%) e concepções de senso comum, numa percentagem relativamente mais baixa (20.6%). Em relação ao contexto científico da condensação, as mães do grupo HAM1 apresentam mais de

metade das suas concepções nas categorias que envolvem conhecimento de natureza escolar não legitimado pelas ciências (51.5%), seguida de concepções de senso comum (28.7%) e de concepções científicas correctas (19.8%); as mães do grupo HAM2 apresentam

predominantemente concepções cientificamente correctas (45.1%), seguida de concepções envolvendo conhecimento escolar não valorizado pelas ciências (43.4%) e de concepções de senso comum (11.5%).

Comparando as concepções das mães dos dois grupos sociais, verifica-se que, em

qualquer dos contextos científicos, as mães da classe social mais elevada apresentam menos concepções de senso comum e mais concepções científicas correctas do que as mães da classe social mais desfavorecida. Em termos de análise estatítica, as diferenças encontradas entre as mães dos dois grupos sociais revelaram-se, no caso da evaporação, próximas da significância quanto à posse das regras de reconhecimento e significativamente diferentes quanto à posse das regras de realização. As diferenças associadas ao fenómeno da condensação revelaram-se estatisticamente significativas, quer ao nível do reconhecimento, quer ao nível da realização.

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Interpretando estes resultados, em função da orientação específica de codificação, pode-se afirmar que as mães socialmente mais favorecidas reconhecem e realizam melhor do que as mães do grupo social mais desfavorecido e que as diferenças entre os dois grupos sociais se fazem particularmente sentir ao nível da realização para o contexto da evaporação e ao nível do reconhecimento e da realização para o contexto da condensação.

Comparando as concepções das mães e das crianças, quando se considera o fenómeno

da evaporação, é possível verificar, através da análise das tabelas de contingência, que entre as mães e as crianças de qualquer das classes sociais não há diferenças significativas nas concepções que valorizam. Analisando mais pormenorizadamente as respostas das mães e das crianças, verifica-se que, embora na classe social mais desfavorecida (HAM1), as concepções sejam bastante próximas, na classe social mais elevada (HAM2) existem algumas diferenças

que se traduzem no facto de as crianças apresentarem mais concepções de senso comum e, simultaneamente, menos concepções cientificamente correctas do que as mães. Em termos de significado sociológico, estes resultados sugerem que o padrão de reconhecimento e de realização das crianças é semelhante ao das mães do mesmo grupo social mas que essa semelhança é tendencialmente mais evidente no caso da classe social mais desfavorecida.

No contexto científico da condensação, os resultados também mostram uma semelhança

geral entre as concepções das mães e das crianças que é mais evidente no caso da classe social mais desfavorecida. No caso presente, a análise das tabelas de contingência revela que entre as mães e as crianças do grupo social mais elevado existe mesmo uma diferença próxima da significância, ao nível do reconhecimento. Com efeito, na classe social mais baixa, a percentagem de concepções de senso comum é idêntica para mães e crianças, enquanto na classe social mais elevada as concepções de senso comum são muito mais valorizadas pelas crianças do que pelas mães. Embora sem significado estatístico, a percentagem de concepções científicas correctas é, no grupo social mais desfavorecido, um pouco maior nas crianças do que nas mães e, no grupo social mais favorecido, um pouco maior nas mães do que nas crianças. Em termos de orientação específica de codificação, estes dados sugerem que, na classe social mais elevada, as crianças tendem a revelar maior dificuldade do que as mães ao nível da realização e, principalmente, ao nível do reconhecimento e que, na classe social mais baixa, as crianças tendem a revelar um grau de reconhecimento semelhante ao das mães mas um maior grau de realização do que as mães.

A análise das concepções, em termos das categorias E e I, mostrou que, em qualquer dos

grupos sociais, e para qualquer dos conceitos, as mães apresentam, como as crianças, mais concepções de tipo I e, simultaneamente, menos concepções de tipo E. Esta análise também mostrou que, tal como as crianças, são as mães do grupo social mais desfavorecido que apresentam mais concepções de tipo E. Assim, há também neste aspecto um padrão

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semelhante entre as concepções das crianças e as concepções das mães, padrão esse que se revelou novamente mais evidente entre as mães e crianças da classe social mais desfavorecida. Verificou-se ainda que a maioria das mães, tal como como a maioria das crianças, considera que os processos da evaporação e da condensação da água são reversíveis e passíveis de ocorrerem a diferentes velocidades, não havendo, portanto, também quanto a este aspecto, diferenças notórias entre crianças e mães.

5. DISCUSSÃO E CONCLUSÕES A análise dos dados obtidos sobre as concepções valorizadas por crianças de diferente

classe social, relativamente aos fenómenos de evaporação e condensação da água, permitiu verificar que, de um modo geral, as crianças de ambos os grupos sociais considerados valorizam mais as concepções que envolvem conhecimento escolar do que as concepções de senso comum. Contudo, os resultados sugerem que a percentagem de opções que envolvem conhecimento de natureza escolar, varia consoante o grupo social, sendo as crianças do grupo social mais favorecido as que mais tendem a valorizá-lo. A percentagem de respostas que envolvem explicações de natureza científica, consideradas pela escola como correctas e adequadas é, em ambos os grupos sociais, relativamente baixa e também varia em função do grupo social, apresentando as crianças da classe social mais elevada novamente percentagens um pouco superiores.

Na perspectiva sociológica em que o presente estudo se fundamenta, estes resultados

sugerem que, de um modo geral, as crianças, de ambos os grupos sociais, têm regras de reconhecimento que lhes permitem reconhecer que o contexto específico da investigação requer conhecimento escolar na resposta às diversas questões e que esse reconhecimento é ligeiramente maior para as crianças da classe social mais elevada. Ao nível da realização, as crianças de ambos os grupos sociais, apresentaram valores relativamente baixos, mas são as crianças pertencentes à classe social mais elevada que tendem a realizar melhor. Embora estas diferenças não tivessem assumido, para qualquer dos fenómenos, significado estatístico, elas revelaram-se tendencialmente mais evidentes no caso da condensação do que no caso da evaporação.

Quanto à variável sociológica género, verificou-se que, embora a percentagem das

diversas categorias de concepções seja relativamente semelhante para os sujeitos dos dois géneros, são os rapazes que, de um modo geral, tendem a apresentar menos concepções de senso comum relativamente a qualquer dos fenómenos analisados e mais concepções cientificamente correctas, no caso da condensação. Embora sem significância estatística, esta diferença sugere que os rapazes têm tendência a reconhecer melhor do que as raparigas e que

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as raparigas parecem realizar melhor do que os rapazes no contexto de evaporação enquanto os rapazes parecem realizar melhor do que as raparigas no contexto de condensação.

As tendências observadas, e anteriormente referidas, dão algum apoio à hipótese da

existência de uma relação entre a natureza das concepções e o grupo social de pertença das crianças.

Considerando as dificuldades reveladas pelas crianças na selecção das concepções

científicas correctas, situação que se traduziu na ausência de significado estatístico na relação grupo social-concepções, pode-se pensar que uma explicação para esse facto é a falta de conhecimentos que as crianças têm sobre os conceitos em análise, dado que ainda não os tinham aprendido na escola. Contudo, o facto de as crianças socialmente mais favorecidas (particularmente, em termos de classe social) terem revelado, relativamente às crianças mais desfavorecidas, uma tendência ligeiramente maior para optarem por concepções de natureza escolar pode ser explicado pelo acesso, a uma maior diversidade de contextos, que é normalmente proporcionado a essas crianças através da família. Tal acesso, que parece ser essencial para a compreensão de conceitos que envolvem um nível mais elevado de abstracção (Morais, 1992; Morais, Peneda e Medeiros, 1993), pode mesmo justificar a seleccão mais frequente dessas crianças da concepção científica correcta ao nível do contexto da condensação, contexto que parece revelar-se mais abstracto e, portanto, de mais difícil assimilação, como indicam resultados obtidos noutras investigações (Russell e Watt, 1990).

Atendendo à natureza das concepções apresentadas pelas mães verificou-se que elas

tendem a seleccionar predominantemente as concepções que envolvem conhecimento de natureza escolar, sendo as concepções de senso comum, em qualquer dos conteúdos científicos, inferiores ao conjunto das concepções de natureza escolar. Verificou-se ainda que essa valorização é mais acentuada nas mães socialmente mais favorecidas e que são também estas mães que mais frequentemente apresentam concepções cientificamente correctas. No quadro sociológico de referência, estes dados significam que as mães da classe social mais elevada reconhecem e realizam melhor, em qualquer dos conteúdos científicos, do que as mães da classe social mais baixa, revelando-se a realização, no caso da evaporação, e o reconhecimento e a realização, no caso da condensação, significativamente diferentes para os dois grupos sociais.

É possível que o facto de todas as mães da amostra terem frequentado a escola

(nenhuma das mães era analfabeta) e o facto do questionário ter sido respondido no espaço escolar facilitassem o reconhecimento e, portanto, conduzissem à sua menor valorização de concepções do senso comum, aproximando mesmo os dois grupos quando as concepções se referem ao fenómeno da evaporação. É, no entanto, importante referir que as mães, mesmo as

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que possuem maior grau de habilitação académica, optam com alguma frequência por concepções de senso comum e por concepções que, embora envolvendo conceitos escolares, não são legitimados pelas ciências. Estes resultados parecem indicar que as concepções alternativas das mães persistiram e que a escolaridade não foi suficientemente capaz de provocar uma mudança conceptual efectiva. O facto de, ao nível da realização, as concepções das mães da classe social mais elevada serem significativamente diferentes das concepções das mães da classe social mais baixa pode estar associado ao seu grau académico (no grupo social mais elevado, algumas mães tinham um curso superior em ciências) e ao acesso diferencial destes grupos a contextos socioculturais diversificados.

Comparando as concepções valorizadas pelas crianças com as concepções valorizadas

pelas mães das duas classes sociais, verificou-se que as crianças apresentam, em termos gerais, uma distribuição de respostas, pelas diversas categorias de concepções, próxima da distribuição de respostas das mães. Os resultados da investigação dão, assim, apoio à hipótese formulada acerca da existência de uma relação entre as concepções das crianças e as concepções das mães.

Verificou-se, contudo, que essa proximidade é maior entre as crianças e as mães da

classe social mais baixa. Tal pode dever-se ao facto de mães e filhos desta classe social terem um grau de escolaridade bastante próximo, dado que quase todas as mães deste grupo possuíam o primeiro ciclo do ensino básico completo e os seus filhos tinham começado a frequentar o segundo ciclo do ensino básico. Na perspectiva sociológica da teoria de Bernstein, quer as mães quer os filhos reconheceram, de um modo geral, que o contexto requeria conhecimento escolar, o que se pode explicar pelo facto de ambos terem já passado por contextos de socialização secundária e, portanto, terem aprendido a valorizar este tipo de conhecimento. Em relação às mães e aos filhos da classe social mais elevada, embora apresentando, em termos gerais, uma distribuição percentual das suas concepções próxima, são as mães que optam menos frequentemente do que os filhos por concepções de senso comum e mais frequentemente por concepções cientificamente correctas. Em termos de orientação específica de codificação as mães do grupo social mais favorecido são capazes de reconhecer e realizar melhor do que os filhos, o que pode estar relacionado com o facto de terem já aprendido estes conteúdos quando passaram pela escola, enquanto que os filhos ainda não os aprenderam.

De um modo geral, pode afirmar-se que os resultados obtidos na investigação dão

algum apoio às hipóteses formuladas sobre a influência de variáveis do contexto de socialização primária nas concepções que as crianças revelam sobre determinados fenómenos envolvendo conhecimentos de natureza científica e vão de encontro a resultados obtidos noutras investigações (Chagas, 1986; Nunes, 1993).

- 17 -

Os resultados do estudo permitiram ainda sugerir que, para os conteúdos científicos

analisados, as concepções alternativas dos sujeitos estão relacionadas com a natureza dos factos envolvidos na construção dos conceitos. Para alguns aspectos relacionados com os conceitos de evaporação e condensação, como é o caso da possibilidade de alterar a velocidade de ambos os fenómenos e de os reverter, as crianças e as mães mostraram, em geral, possuir as concepções legitimadas pela escola. Para outros aspectos, como o destino ou proveniência da água e os factores envolvidos nas duas mudanças de estado, tanto as mães como as crianças mostraram maior dificuldade em apresentar as concepções correctas. Esta interpretação deve, contudo, ser tomada com algumas reservas pois, as respostas das crianças e das mães, relativamente à alteração da velocidade e à reversibilidade dos fenómenos, poderão ter sido influenciadas pelo modo como as questões foram apresentadas. Por um lado, pode ter acontecido que as afirmações que se seguiam a estas questões tivessem sugestionado as respostas das crianças e das mães. Por outro lado, considera-se que o facto de os sujeitos terem, em geral, respondido correctamente a essas questões não significa necessariamente que eles compreendam esses aspectos dos fenómenos. Só estudos posteriores poderão ajudar a clarificar esta questão.

Um outro aspecto interessante que ressaltou da análise dos resultados é o facto de a

distribuição das respostas pelas várias categorias de concepções ter variado, dentro do mesmo grupo social (classe social, género) conforme o contexto conceptual analisado, evaporação ou condensação. Quer as mães, quer as crianças, de ambos os grupos sociais, valorizam menos as concepções de senso comum nas situações relacionadas com o fenómeno da condensação do que nas situações que envolvem o fenómeno da evaporação o que, em termos de orientação específica de codificação, significa que, no contexto de condensação, os sujeitos demarcam melhor os conhecimentos de natureza escolar dos conhecimentos de senso comum, isto é, reconhecem melhor neste contexto do que no contexto da evaporação. Esta diferença pode ser explicada pelo facto de os fenómenos relacionados com a condensação da água não serem tão frequentemente referidos no dia-a-dia nem serem tão frequentemente explicados com base em conhecimentos de senso comum (Russell e Watt, 1990), facilitando o reconhecimento ao nível deste fenómeno e, portanto, levando os sujeitos a optarem em maior percentagem por respostas elaboradas com base em conhecimento escolar. Contudo, é no contexto de condensação que as mães e as crianças do grupo social mais desfavorecido revelam maior dificuldade em realizar o texto adequado ao contexto. Atendendo a que esta maior dificuldade não se faz sentir no caso das mães e crianças do grupo social mais favorecido, pode-se pensar que o maior ou menor acesso dos sujeitos a contextos diversificados, ao condicionar a sua orientação de codificação, pode interferir na compreensão de conceitos que envolvam um maior nível de abstracção (Morais, 1992;

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Morais, Peneda e Medeiros, 1993). Apesar de relacionado com o fenómeno da evaporação, o fenómeno da condensação revela um grau mais elevado de abstracção e como, em geral, são os grupos sociais mais desfavorecidos que têm um acesso mais limitado a contextos diversificados, esta poderá ser uma explicação para a maior dificuldade demonstrada pelo grupo social mais desfavorecido em relação a este fenómeno.

A natureza contextual das concepções, sugerida neste estudo, vem ao encontro de

resultados de alguns trabalhos realizados na âmbito do movimento das concepções alternativas (Fernandez et al, 1988; Russell et al, 1989; Russell e Watt, 1990; Ryan et al, 1990; Rafael e Mans, 1987) que mostram que os sujeitos apresentam por vezes concepções diferentes para conteúdos que, sob o ponto de vista científico, são considerados idênticos (isto é, que são explicados envolvendo o mesmo tipo de conhecimentos). O facto de se verificar, neste estudo, que os sujeitos de diferentes grupos sociais valorizam concepções algo diferentes para os conteúdos da evaporação e da condensação da água (conteúdos que, sob o ponto de vista científico, são considerados relacionados) pode ser explicado, em parte, por razões de natureza sociológica. Como hipótese explicativa pode-se pensar que as crianças, na família e, posteriormente na escola, são socializadas de modo a valorizarem principalmente as diferenças entre os fenómenos e acontecimentos quotidianos. A sociedade em geral e os contextos de socialização, em particular, legitimam normalmente classificações fortes entre categorias (agentes e discursos) e os sujeitos são, por isso, normalmente socializados de modo a valorizarem principalmente as diferenças (e não as semelhanças) que digam respeito a fenómenos ou a acontecimentos do quotidiano. Esta tendência, que se pode resumir pela regra "mantenham-se as coisas separadas" (Domingos et al, 1986, p. 170), pode reflectir-se nas construções conceptuais dos sujeitos de tal modo que estes podem apresentar maior tendência para dar explicações diferentes para fenómenos que, sob o ponto de vista científico, são próximos.

O estudo realizado permite salientar a ideia de que a selecção de uma concepção não

legitimada no contexto instrucional das ciências pode não significar necessariamente que os sujeitos possuam a concepção errada. Pode antes significar que não seleccionaram a concepção correcta porque começaram por não reconhecer que o contexto requeria conhecimento científico. Pode também significar que, embora tenham reconhecido que o contexto requeria conhecimento científico, apresentem concepções consideradas ilegítimas porque ainda não possuem informação suficiente sobre o conteúdo, como é o caso das concepções que, envolvendo conceitos e explicações de natureza escolar, não contêm toda a informação para serem consideradas correctas. Em termos sociológicos, e dentro do quadro conceptual de referência, o estudo permite então mostrar que as concepções alternativas que os sujeitos apresentam podem dever-se à falta de regras de reconhecimento e/ou de realização,

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isto é, à ausência de orientação específica de codificação para os contextos conceptuais a que se referem essas concepções.

Estes resultados vistos à luz da investigação educacional mostram que o conhecimento e

as concepções dos sujeitos não devem ser encarados apenas como uma construção individual e idiossincrática mas também como uma construção social. Neste estudo, variáveis de natureza sociológica, associadas ao contexto de socialização primária, revelaram estar relacionadas com as concepções dos sujeitos. De entre elas, as concepções das mães parecem desempenhar um papel particularmente importante.

Ao sugerir que a natureza das concepções apresentadas pelas crianças se pode dever,

para além de razões de natureza psicológica, a razões de natureza sociológica o estudo realizado aponta para a importância de integrar diferentes linhas de investigação na análise de dificuldades educacionais relacionadas com a aprendizagem científica.

Notas

1. Ver investigação de Afonso (1995) realizada no âmbito do Projecto ESSA - Estudos Sociológicos da

Sala de Aula.

2. A classe social é entendida nesta investigação como um conceito nominal, descritivo e não como um

conceito analítico, pois é tomado apenas para evidenciar o seu papel como categoria interveniente nas

diversas relações analisadas.

3. Ao optar-se por um questionário de tipo fechado, teve-se em consideração as ideias expressas por

Tamir (1990) e a sua adequação aos objectivos do presente estudo, uma vez que não se pretendia

diagnosticar as concepções dos sujeitos mas analisar que tipo de concepções eles mais valorizavam.

4. As tabelas de contingência apresentam um grau de liberdade e o nível de significância refere-se a

valores de p=.05 (se X2calculado <3.84 significa que a hipótese nula é validada).

Evaporação Condensação

Reconhecimento Realização Reconhecimento Realização

Crianças HAM1/HAM2 0.36 0.68 0.82 2.39

Crianças G1/G2 0.06 0.23 0.17 0.46

Mães HAM1/HAM2 3.69 3.93 9.21 10.55

Mães/Crianças HAM1 0.01 0.05 0.06 1.47

Mães/Crianças HAM2 1.53 1.8 3.69 0.67

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________________________________________________________

Opções Concepções Orientação específica

de codificação

________________________________________________________

SC Concepção de Não reconhece/Não realiza

senso comum

________________________________________________________

E Concepção escolar,

cientificamente errada

Reconhece/Não realiza

I Concepção escolar,

cientificamente incompleta

________________________________________________________

C Concepção escolar, Reconhece/Realiza

cientificamente correcta

________________________________________________________

Figura 1 - Correspondência entre a natureza das concepções dos sujeitos

e a posse das regras de reconhecimento e de realização.

Figura 2 - Relação entre a classe social e as concepções das crianças, relativamente aos conceitos de evaporação e de condensação da água

0

20

40

60

80

100

120

HAM1 HAM2 HAM1 HAM2

C

E/I

SC

Fre

q. R

esp

ost

as (

%)

Evaporação Condensação

Figura 3 - Relação entre o género e as concepções das crianças, relativamente aos conceitos de evaporação e de condensação da água

0

20

40

60

80

100

120

G1 G2 G1 G2

C

E/I

SC

Evaporação Condensação

Fre

q.

Figura 4 - Relação entre as concepções das mães e as concepções das crianças, relativamente aos conceitos de evaporação e de condensação da água

0

10

20

30

40

50

60

SC E/I C SC E/I C

Mães HAM1

Mães HAM2

Crianças HAM1

Crianças HAM2

Evaporação Condensação

Fre

q. R

esp

ost

as (

%)

- 27 -

Socialização primária e concepções das crianças em ciências

Resumo

O presente estudo procura analisar a natureza das concepções em ciências de crianças socialmente diferenciadas (classe social, género) e a relação entre essas concepções e as concepções reveladas pelas mães. No âmbito de uma abordagem sociológica, é objectivo do estudo explorar o significado das concepções em termos de regras de reconhecimento e de realização, recorrendo-se, para tal, ao conceito de código de Bernstein (Bernstein, 1977, 1990, 1996; Domingos et al , 1986). A amostra era constituída por 49 alunos (e respectivas mães) pertencentes a duas turmas, socialmente heterogéneas, da mesma escola e que frequentavam pela primeira vez o 5º ano de escolaridade. Os conceitos de evaporação e de condensação da água constituíram os contextos científicos do estudo.

Os resultados sugerem que são, em geral, os sujeitos dos grupos sociais mais favorecidos que mais frequentemente revelam concepções próximas das concepções legitimadas pela escola. Os resultados sugerem também a existência de um padrão geral de semelhança entre as concepções das mães e as concepções das crianças, particularmente evidente na classe social mais desfavorecida. É ainda possível observar que as concepções dos sujeitos diferem em função do contexto científico em análise. Considerando a relação entre a natureza das concepções e a orientação específica de codificação, o estudo mostra que as concepções alternativas podem estar associadas à falta de regras de reconhecimento e/ou de regras de realização, dependendo a posse destas regras do grupo social dos sujeitos. O estudo salienta a importância de desenvolver investigação no âmbito das concepções alternativas que, articulando pressupostos de natureza psicológica e sociológica, conduza a uma compreensão mais aprofundada sobre a natureza e origem das concepções dos alunos em ciências.

Abstract

The study aimed at analysing scientific conceptions of socially differentiated children (social class, gender) and their relation with mothers' conceptions. Within a sociological approach, it was intended to explore the meaning of those conceptions in terms of recognition and realization rules, i. e. in terms of Bernstein's concept of code (Bernstein, 1977, 1990, 1996, Domingos et al , 1986). The sample was made up of 49 students (and respective mothers) who were part of two socially heterogeneous classes of the same school and who attended the 5th

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year of schooling (age 10- - 11+). The concepts of evaporation and condensation of water were the scientific contexts of the study.

The results suggest that, in general, are the subjects of advantaged groups who show more frequently scientific conceptions closer to the conceptions legitimized by the school. The results also suggest a general pattern of similarity between mothers' and childrens' conceptions, particularly evident for the lower social class. Also subjects' conceptions differ according to the scientific context, that is the concept under study. Another suggestion of the study is that alternative conceptions are associated with the lack of recognition and/or realization rules. Possession of these rules depends on the social group of the subject. The study highlights the importance of developing research within the alternative conceptions which integrates psychological and sociological assumptions so that a deeper understanding of the nature and origin of students' conceptions can be achieved. Résumée

Cette étude essaie d'analyser la nature des conceptions en sciences par des enfants socialement différenciés (classe sociale, genre) et la relation entre ces conceptions et les conceptions de leurs mères. Il s'agit d'une étude sociologique dont l'objectif est d'explorer le sens des conceptions au niveau des règles de reconnaissance et de réalisation, á travers le concept de code de Bernstein (Bernstein, 1977, 1990, 1996; Domingos et al, 1986). L'échantillon était constitué par 49 élèves (et leurs mères) distribués par deux groupes socialement hétérogènes de la même école et qui fréquentaient par la première fois la 5ème année de scolarité. Les conceptions d'évaporation et de condensation de l'eau ont constitué les contextes scientifiques de l'étude.

Les résultats suggèrent qu'en général les sujets issus des couches sociales les plus favorisées révèlent plus fréquemment des conceptions semblables à celles que l'école légitime. Les résultats suggèrent aussi l'existence d'un type général de ressemblance entre les conceptions des mères et celles des enfants, particulièrement évidente dans la classe sociale la moins favorisée. Il est encore possible d'observer que les conceptions des sugets changent en fonction du contexte scientifique analysé. La comparaison entre la nature des conceptions et l'orientation spécifique de codification montre que les conceptions alternatives peuvent être associées au manque de règles de reconnaissance et/ou de règles de réalisation et que le domaine de ces règles dépend de la couche sociale des sujets. L'étude souligne l'importance des investigations concernant les conceptions alternatives qui permettent une compréhension plus approfondie de la nature et origine des conceptions des élèves en sciences, à travers l'articulation de présupposés psychologiques et sociologiques.