Sobre Um Crítico (Antonio Candido)

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    Sobre um Crtico

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    A crtica literria est hoje no Brasil para a literatura mais ou menos como omagistrio secundrio para as diferentes profisses. Assim como at h pouco osmdicos, advogados, engenheiros que no sabiam o que fazer se dedicavam ao ensi-no nos ginsios, na literatura atual quem no reconhece em si mesmo nenhuma vo-cao especfica se pe a fazer crtica de livros. E mesmo quem tem vocao deter-minada no deixa de vir dar o seu palpite. De modo que, embora extraordinariamen-te intensificada em nmero, a atividade crtica continua mais ou menos sem relevoespecial. Raros so os bons crticos. Rarssimos os de primeira ordem. E mais rarosainda aqueles que se dedicam apenas crtica.

    Assim sendo, um nome como do Sr. lvaro Lins avulta imediatamente dentreos seus confrades e vem a ser um verdadeiro exemplo de dedicao exclusiva crticaliterria, qual ele se entrega como a uma misso. Os resultados, claro, no se fa-zem esperar. Cada dia que passa o crtico pernambucano cresce em autoridade e emfirmeza, e no sei se ser exagero falar dele como da maior autoridade que possumosem crtica literria hoje em dia.

    A primeira coisa que se nota aps a leitura desta 2 srie doJornal de crtica1um progresso marcado e decisivo sobre a primeira, aparecido h coisa de ano e meio.

    O que vem provar que o Sr. lvaro Lins est longe de ser o prodigioso prodgio dematuridade precoce de que o querem fantasiar os seus crticos mal avisados. Esteprogresso real, profundo, extremamente fecundo, demonstra a mocidade, a frescurapermanente do seu esprito moo.

    No meu modo de ver, tal progresso devido sobretudo a um sentido maisfilosfico da crtica e da obra criticada. sua j conhecida intuio e perspiccia, oSr. lvaro Lins junta nestes ensaios uma capacidade maior de relacionar, de estabe-lecer ligaes em profundidade entre autor, obra, tempo, vida - que justamente umadas caratersticas do esprito filosfico.

    Talvez se pudesse dizer que o Sr. lvaro Lins, na primeira srie do seu jornal,se desenvolvia em julgador certeiro das obras, enquanto que hoje se apresenta como

    um descobridor do sentido das mesmas.A faculdade mestra do Sr. lvaro Lins parece ser a de intuir e localizar... afaculdade mestra de uma obra e de um escritor. Num sentido, porm, ao mesmotempo mais denso e mais vasto que o de um crtico taineano.

    No Sr. Jos Lins do Rego, por exemplo, o Sr. lvaro Lins apanha as duasmolas do seu processo criador: memria e imaginao. Imediatamente, nos mostracomo estas caratersticas se desdobram e do origem ao mundo dos personagens doSr. Jos Lins do Rego, num movimento como que dialtico de enriquecimento que sedesdobra. Imaginao e memria se unem atravs da sua oposio; o autor que elas

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    caraterizam se ope ao mundo exterior e com ele se unifica atravs delas. O resultado uma obra de extraordinria vitalidade e trepidao humana.Este sentido de jogo da psicologia do autor com a sua esttica, e delas com o

    meio, resultando de tudo o carter significativo da obra, me parece a marca da crticade fico do Sr. lvaro Lins.

    Alis, creio poder dizer que ele o maior crtico de fico que j apareceu, noBrasil. A crtica de fico a pedra de toque para se reconhecer o verdadeiro crtico,aquele que funde sensibilidade com poder de analisar. a mais complexa e a maisdelicada.

    Na poesia, o crtico pode se deixar levar pela comunicao afetiva e, sugerin-do apenas este movimento de participao, colocar-se fora da anlise. Na crtica de

    idias, pode ser que demonstre apenas esta. Na de fico, preciso que se combinemambas, pela prpria natureza do gnero criticado. De acordo com a maneira por quepenetra num romance, sentindo-o, analisando-o, revelando-o, situando-o, conhe-cem-se a universalidade e a profundidade de um esprito crtico. Grande crtico defico, o Sr. lvaro Lins me parece menos feliz na de poesia, onde a interveno dasua inteligncia se d um pouco de mais, onde ele como que abafa as foras de parti-cipao que se sente existirem nele. Na de idias, onde caminha com menos segu-rana, creio que chegar a uma grande firmeza, quando estiver de posse do seu m-todo.

    Porque o Sr. lvaro Lins ainda no possui um mtodo. Apenas se encaminhapara ele.

    A caraterstica mais geral do crtico do Correio da Manh o seu individualis-mo. A sua conscincia que, como a do artista, no quer se comprometer para no selimitar. Tal atitude, que me parece condenvel, e que leva os crticos menores aodesbragamento personalista e a um infra-relativismo em que se dissolve de todo ainteligncia ordenadora - aparece, no entanto, em crticos da sua estatura, como pro-pcia a inmeras vantagens.

    Antes de mais nada, porque h na sua iseno uma virtude superior de impar-cialidade; depois, porque vem de ambas um carter fecundo de universalidade; final-mente, porque, de posse destas duas qualidades que podiam ser defeitos e descair nafalta de carter intelectual o Sr. lvaro Lins as articula e organiza segundo uma soli-dssima linha tica de pensamento e de conduta.

    Ora, o resultado que tal crtico, fazendo embora da sua atividade uma aven-

    tura sempre renovada em face das obras, mantm o rigor de uma diretriz, graas firmeza de um princpio de moral intelectual toda voltada para o conhecimento lite-rrio, e s para ele.

    No h dvida que o Sr. lvaro Lins , quimicamente falando, o crtico maispuro que existe hoje em dia no Brasil. H certos momentos em que quase nos co-movemos ante algumas das suas pginas, ao sentirmos a nobre tenso em que vive oseu esprito, defendendo ciosamente o justo equilbrio e a imparcialidade, entre oimpressionismo esttico que ameaa os grandes individualistas e a solicitao da ati-

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    vidade no mundo, que arrasta o intelectual para o turbilho dos acontecimentos e daspaixes polticas.Tanto mais quanto, no difcil notar no Sr. lvaro Lins um interesse apai-

    xonado, pelo seu tempo e pelo seu semelhante - interesse que ele no permite, maisainda neste segundoJornalque no primeiro, ameace seriamente a sua equanimidade.Sob a serenidade contida deste crtico sente-se um drama; sente-se um homem quevive compondo a cada momento a sua posio em face do mundo, num esforopermanente de compreenso. Esta luta interior, esta agonia como diria o velhoUnamuno, d s pginas de crtica do Sr. lvaro Lins um valor humano e espiritualque lhe assegura a prioridade sobre quantas se publicam entre ns.

    Para os moos que escrevem e que, talvez por menos fortaleza de nimo, ou

    uma crena menos total na literatura, no conseguem desligar o seu trabalho de umtempo que os solicita vertiginosamente e onde eles se inscrevem com a fatalidade daqueda dos graves, para os moos de agora, dizia, o Sr. lvaro Lins constitui motivode inspirao, e de conforto.

    que eles o sentem, de um modo ou de outro, como algum que h de man-ter sempre puro o trabalho crtico; que h de se dirigir sempre literatura com a in-teno de cuidar dela, e s dela, sem deix-la, pobre ancila, se desfigurar no tumultoviolento para o qual nos encaminhamos cada vez mais. Sentem, por outro lado, queno meio da horda dos impressionistas deshumanos e anti-sociais, h um individualis-ta consciente que, em que pese s solicitaes do meio, prestar literatura brasileirao servio de lhe indicar o caminho certo, preservando-a do partidarismo e da utiliza-o indevida.

    Vejamos as razes que me levaram a dizer que o Sr. lvaro Lins est se en-caminhando para o seu mtodo, para ele, o objeto da crtica - declarado no ensaioque abre o livro e reafirmado mais de uma vez nos outros - a determinao, na obraliterria, daquilo que eterno, que transcende s contingncias. O Sr. lvaro Linsest certo ao pensar deste modo. A literatura, como a arte, tem razo de ser na me-dida em que significa uma fixao de certos elementos que venam o tempo e secoloquem acima da sua realidade. Pensando assim o seu mtodo consequentementeo de uma penetrao de essncias, o trabalho crtico, se perfazendo com a revelaodo ncleo absolutamente significativo de uma obra, a crtica se tornando uma aven-tura da personalidade, um esforo para inserir na mesma ordem de que participa aessncia da obra literria.

    No entanto, por mais completa que possa ser a participao de um crtico noncleo essencial de uma obra, fora de dvida que s h um meio para se chegar aeles: os seus sinais exteriores; toda aquela parte que significa neles ligao com otempo, contingncia, relatividade. o prprio Sr. lvaro Lins que o reconhece a umdado momento.

    Ora, se supusermos que h de fato alguma coisa de eterno no homem, queempresta durao obra de arte, refletindo-se nela, fora de dvida que essa algumacoisa se apresenta de um modo ou de outro conforme o tempo, e o lugar. Fosse defato possvel a existncia por si de uma realidade humana extra temporal, poder-se-ia

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    dizer, caricaturando, que a primeira obra-prima da literatura a teria esgotado. E nohaveria lugar para nenhuma outra mais. Pelo fato daquilo que o Sr. lvaro Lins cha-ma de efmero, de temporal, de contingente, constituir de fato o aspecto significativodas obras, que possvel haver uma cadeia ininterrupta de grandes obras atravs dahistria da cultura.

    Assim no se justifica uma das afirmaes-chave do Sr. lvaro Lins: [...] te-nho a coragem de ser indiferente ao que moderno e ao que antigo, procurandosomente a verdade - o que me parece a verdade pelo menos - sem ligao com ascircunstncias de espao e de tempo2.

    Ora, as circunstncias de espao e de tempo so grandemente responsveispelo fato, de Dostoievski no tratar o eterno humano da mesma maneira por que o

    fizeram Cervantes ou Villon. Atravs delas, portanto, que podemos chegar ao n-cleo de significao de uma obra, pois que so elas que definem a verdade que o Sr.lvaro Lins quer colocar fora e acima delas. De maneira alguma ser possvel ao cr-tico deixar de comear por elas o seu trabalho. Nem quando imagina estar entrandoem comunho mstica com as essncias, pois ainda neste caso nada mais far do queintuir diretamente uma realidade que, no passa da hipostase das circunstncias detempo e de espao.

    O mtodo do Sr. lvaro Lins, na sua primeira fase, parecia mais radicalmenteindividualista e essencialista. Ou, antes, a sua falta de mtodo. Nesta segunda fase,em que lhe pese, ele se aproxima muita mais da considerao do aspecto cultural dacriao literria. o que me leva a crer que, num futuro no remoto, o seu mtodosurgir, tendo como caraterstica uma sntese feliz do seu essencialismo personalista eda valorizao justa do condicionamento cultural das obras.

    Como se v, a sua carreira vem se desenvolvendo num progresso contnuopara o aprofundamento e, atravs do processo que mencionei no princpio, da corre-lao em profundidade, para um largo e definitivo universalismo crtico.

    II

    Para um crtico, sempre perigoso falar de outro; geralmente temos os nossospontos de vista mais ou menos firmados a respeito do ofcio, e tanto mais nos ape-gamos a eles quanto eles so, por assim dizer, os nossos instrumentos de trabalho. Seo instrumento de trabalho, do colega estudado parecido com o nosso, somos leva-

    dos a admir-lo, revendo nos seus escritos um pouco de ns mesmos. Se diferente,somos levados a encar-lo com desconfiana, pois para admiti-lo somos obrigados,no raro, a admitir primeiro a deficincia do nosso. Alm disso, retm-nos certosescrpulos de tica profissional, tanto no ataque, que poderia parecer despeito,quanto na admirao, que poderia parecer barretada prudente.

    No obstante, a critica um gnero literrio como os outros, e no h razopara deix-lo de lado num rodap que procura mais ou menos, informar o leitor so-bre o movimento literrio. Com estas precaues iniciais, passo a abordar a 4 srie

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    doJornal de crticado Sr. lvaro Lins, mestre de todos ns que lidamos, com a crtica,no Brasil.3O primeiro reparo que fazemos ao folhear esta 4 srie a que os estudos

    sobre fico e poesia so em nmero limitado, predominando os de teoria literria,idias, etc.. Parece que o crtico, medida que progrediu no seu trabalho foi sentindocada vez mais necessidade de ventilar idias em vez de interpretar criaes artsticas, -etapa perfeitamente justificvel e, deixem-me dizer desde j, em muito boa hora em-preendida pelo Sr. lvaro Lins. Na seqncia dos seus livros, este ficar, talvez, comoo exemplar mais tpico de critica de idias, at aqui praticada por ele com maior par-cimnia. Se no me engano, (no tenho o artigo mo) ao fazer a resenha da 2 sriedo Jornal de crticah uns trs anos, observei que o Sr. lvaro Lins no me parecia

    manobrar, neste terreno, com a mesma mestria demonstrada em outros, principal-mente no da crtica de fico. Agora sou obrigado a inverter a afirmativa, porque meparece que, no caso em vista, ele se realiza com mais firmeza na anlise e discussodas idias do que na interpretao dos romances e, mesmo, da poesia. Razo a maispara lhe estimarmos a obra, cuja variedade far que permanea em prateleira sempreconsultada da nossa estante.

    A esta altura da sua carreira, j no tem mais sentido julgar o Sr. lvaroLins. Trata-se, apenas, de discutir, esclarecer, interpretar uma obra solidamente as-sentada em nossa literatura, qual tem prestado, nestes ltimos sete anos, um servioapenas comparvel ao do Sr. Tristo de Athayde, no decnio de Vinte, e o de JosVerssimo, no comeo do sculo. Como estes predecessores ilustres, o Sr. lvaroLins tem sido o principal fator para a manuteno, entre ns, de uma elevada com-preenso da crtica, num trabalho constante e pertinaz de apoio e interpretao domovimento literrio. No quero dizer que seja o melhor crtico brasileiro, porqueestas questes no tm sentido. Na primeira plana, em que ele se coloca, a esto ossrs. Srgio Milliet, Srgio Buarque de Holanda, Afonso Arinos de Melo Franco, Ota-vio Tarqunio de Sousa, Barreto Filho, Otto Maria Carpeaux e mais alguns. O de queno h dvida que de todos os citados ele o mais crtico, o nico que no in-terrompe a atividade, que no a cultiva incidentalmente, que no se cansa de criticar -e isto vale dizer que , de todos, o que mais conscincia revela da sua misso, encon-trada pelos outros em setores diferentes: historia, poltica, filosofia.

    A prova desta vocao do Sr. lvaro Lins , justamente, a capacidade deapresentar, nos vrios volumes do Jornal de crtica, aspectos diversos, ora se detendo

    na fico, ora cuidando da poesia com mais afinco, ora, como no presente, se vol-tando sobretudo para a discusso das idias, literrias, filosficas ou polticas, sem,por isso, deixar um s momento de ser crtico literrio. que, no Sr. lvaro Lins, ocrtico se mistura to intimamente com o humanista (no sentido largo), com o cida-do que o seu trabalho est, a todo momento, assumindo o aspecto de debate com osproblemas do mundo. Embora ningum, mais do que ele, tenha a preocupao desalvaguardar a autonomia e a pureza da literatura, acima das suas utilizaesno-literrias, ningum, mais do que ele, a tem sabido compreender dentro do mo-mento, da direo humana e social. Sob este ponto de vista houve, alis, na obra do

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    Sr. lvaro Lins, inegvel, uma passagem (no digo evoluo) da atitude mais pura-mente esttica para a atitude mais participante; e, com ela, uma atenuao de certaconfiana altiva em si mesmo a favor de maior humildade profissional. Na 1 srie doJornal de crtica, o Sr. lvaro Lins acentuava, talvez demasiado, o desejo de, pessoal-mente, se colocar acima da contingncia e construir obra duradoura, vlida para ofuturo e, literariamente, de no transigir com os elementos anestticos da literatura.Com o correr do tempo, modificou um pouco a atitude inicial, aceitando, sem relutaras implicaes sociais (isto , contingentes) da produo artstica, participando commaior freqncia nas questes do momento, como que reconhecendo a necessidadede abaixar a mira dos seus estudos para integr-los melhor no minuto presente, semcom isso comprometer-lhes a solidez e o brilho. Numa palavra, deu sua obra aquele

    carter de literatura empenhada, littrature engage, de que fala Sartre; empenhada e noancilar, isto , servindo o homem e o esprito, mas evitando, o mais possvel, subor-dinar o significado especfico da obra literria ao seu aproveitamento puramente ide-olgico.

    A 4 srie do Jornal de crticanos leva a verificar tudo isso e, por conseguinte,nos serve, mais do que qualquer dos anteriores, para chegar mais perto da personali-dade literria do autor, que nos aparece porventura como fruto de tenso constanteentre um esprito de crtico e um temperamento de lutador. A sua maneira de escre-ver se caracteriza por grande policiamento mental, que o leva a banir dos estudosinclusive o senso de humor e o aproxima, no raro, da frieza, visto que pouco seafasta de um meticuloso equilbrio. Por outro lado, notria a sua tendncia polmi-ca, qual se abandona de corpo e alma, sem rejeitar parada, se me permitem a gria.As suas idias so claras e firmes; da, talvez, a segurana com que as defende sempreque h oportunidade. As vezes chega a parecer que o Sr. lvaro Lins no duvida - tala segurana comunicada aos seus conceitos; e provvel que nesta circunstncia es-teja uma das causas de sua predileo, pela crtica judicativa, porque, se o seu tempe-ramento afirmativo e a sua organizao mental exige nitidez de linhas, nada maisnatural que, para ele, a funo crtica por excelncia esteja ligada ao julgamento liter-rio, surgindo este como resultante da convergncia de seu esprito com o seu tempe-ramento. Alm disso - preciso notar para a sua rigorosa noo de tica profissionalo julgamento aparece como exigncia de um espirito que se compraz na responsabi-lidade assumida.

    Se no estou mal informado, o Sr. lvaro Lins suplente de deputado pelo

    Estado de Pernambuco, em cuja poltica tem participado intensamente. Com estedado, podemos chegar mais perto da sua personalidade literria, estabelecendo umaseqncia elucidativa, em que se alinham o gosto pelo debate, a necessidade de ao ea tendncia judicativa em crtica. Optar, julgar, agir - processos que talvez lhe condi-cionem tanto a vida quanto a obra e que muito bem cabem na sua natureza de cat-lico inconformado, cheio de dramas e aspiraes.

    No se pode, claro, dizer - como diziam os inimigos ou invejosos de SlvioRomero - que sobretudo polemista, pois um crtico autntico, embora seja, aomesmo tempo, um intelectual combativo quando entram em jogo as suas convenes

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    ou, mesmo, suscetibilidades pessoais. Voltando ao ponto de partida, confesso agra-dar-me a frmula que lhe apliquei e que ter, se tiver, o relativo valor de todas asfrmulas: esprito de crtico em temperamento de lutador - a serenidade da intelign-cia disciplinando a ebulio dos impulsos e o julgamento crtico se compondo se-gundo as suas linhas de fora, numa combinao que tende mais para o julgamentodo que para a interpretao ou o comentrio.

    Por ver desta maneira a personalidade do Sr. lvaro Lins que sou um dosseus mais constantes admiradores. O humanismo de intelectual empenhado d sua crtica atual um calor que ela provavelmente no teria, caso levasse muito avanteo certo hieratismo com que primeiro nos apareceu, austera e sequiosa de absolutos.A tendncia de julgar, discriminando com severidade e afirmando com intransigncia

    os padres literrios, pode no raro engendrar, com o exerccio prolongado da crti-ca, o sentimento de infalibilidade, que descamba s vezes at o pedantismo (este es-pantalho de todos ns, comentadores de obras literrias), que o senhor lvaro Linsafastou do seu caminho pela compreenso mais humilde dos caminhos dos outros epela integrao do seu pensamento nas dores do tempo presente. Pedantismo que eleprprio (estou seguramente informado) situou certa vez em conversa com muitagraa, ao dizer que em todo crtico, quer queira quer no, h sempre um pouco demozarlesco... Se, como membro da grei, paira sobre ele o perigo desta asa negra, noh dvida que (para continuar na Gnomonia Ovalle-Bandeira) o seu temperamento sobretudo de kerniano e de dantas - quer na energia das convices e nas reaes queelas motivam, quer no fervor e na pureza da apego critica e literatura.

    III

    Para no correr o risco de parecer contraditrio, vou dividir esta crnica emduas metades complementares, como que solicitando do leitor um esforo de se co-locar em dois pontos de vista diferentes: um, relativo s possibilidades e aos deveresdo crtico e da crtica moderna; outro, relativo ao destino de ambos numa perspectivahistrica. Sendo um escritor caracterstico do seu tempo, o Sr. lvaro Lins nos servepara centro de debates sobre um problema que ele to bem encarna.

    1 parte:

    A crtica no apenas arte literria, mas, sob vrios aspectos, verdadeira me-todologia, segundo a concebeu Slvio Romero. Da levar-nos a uma atitude de espri-to mais geral do que a especificamente literria, visando a indagaes que abrangem,no raro, diversos setores da cultura.

    Nos tempos em que possuia, realmente, influncia orientadora sobre a cultu-ra, o crtico tendia a participar intensamente nos valores da sua poca, falando comomoralista, pensador, tanto quanto como literato. Esperava-se dele uma espcie denorma, buscada no convvio das obras literrias e aplicada ao pensamento e ao com-portamento. O sculo por excelncia da crtica, o XIX, viu crticos universais e efici-

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    entes que eram, ao mesmo tempo (no raro), pensadores, educadores no sentidolargo, concebendo a crtica enquanto atitude geral do esprito e se sentindo obrigadosa intervir na vida espiritual e social. Taine, crtico de literatura, arte e filosofia, se de-dicou, aps a guerra de Setenta, tarefa de dar Frana um alicerce para a restaura-o social e poltica, vista por ele do lado das idias conservadoras. O idealismo cr-tico de De Sanctis levou-o, na prtica, doutrinao liberal. Matthew Arnold foi dosmaiores tcnicos de pedagogia do seu tempo. Tefilo Braga no separava atividadecrtica de luta ideolgica e chegou a presidente da Repblica Portuguesa. Lemaitre,Faguet, Brunetire, foram homens de doutrinao moral e poltica e, no Brasil, aeminncia de Slvio Romero provm, em grande parte, do fato de ele haver dado sua crtica uma funo amplamente social e nacional.

    No obstante, o maior crtico do sculo, Sainte-Beuve, se limitou atividadeliterria e histrico literria, dando o exemplo de uma especificidade bastante acen-tuada do trabalho crtico. Mais pura e isenta, a sua obra pressagia o ponto de vistamoderno, mais acentuadamente esttico e procurando separar-se de outras preocu-paes. Mas nem este enrolamento da crtica sobre si mesma, at certo ponto salutar,esta exigncia mais rigorosa de autonomia, impediu que os crticos tendessem para aparticipao na vida do seu grupo e do seu tempo. Para no falar dos nor-te-americanos, freqentemente ligados ao pensamento poltico; para no citar Eliot,Middleton Murry, Spender ou Read, ingleses mergulhados em filosofia social; paraficar no Brasil, basta citar o exemplo eminente do Sr. Tristo de Atade, to ligado aopensamento e ao religiosa e social que acabou por comprometer o sentido liter-rio da sua crtica.

    Na 4 srie do Jornal de crtica, o Sr. lvaro Lins apresenta um pensamentopoltico entrosado nas idias literrias. No que as suas idias polticas estejam condi-cionando as literrias; ao lado destas se apresentam como novo elemento ideolgico,concorrendo todas para caracterizar de maneira mais rica o seu pensamento.

    Embora no seja possvel, nem conveniente, estabelecer princpios geraissobre o assunto, preciso convir que a poltica nem sempre redunda em beneficio daliteratura, quando o crtico baseia o seu critrio em teorias polticas. Por outro lado, aatividade crtica nos aproxima de tal modo de nexos como motivao-obra, cria-dor-pblico, estilo-momento, que quase sempre prejudicial o alheiamento dasquestes sociais do minuto que vivemos. Ao apontar, no artigo passado, a ligaoentre a crtica do Sr. lvaro Lins e a sua atividade poltica, eu fiz com o intuito de

    salientar, nesta 4 srie do Jornal, os ensaios de fundo social e poltico, indicando onormativismo fecundo para o qual me parece ir caminhando o seu esprito e a suaobra.

    Acho que a literatura no tem obrigao de ser social nem os crticos o deverde julgar segundo padres no-literrios. Mas acho que, sobretudo em tempo como onosso, o crtico s pode enriquecer a sua obra se tomar conscincia dos problemassociais e organizar o seu pensamento em relao a eles. Cada poca tem proble-mas-chave, e os sociais, no se pode negar, ocupam a primeira plana em nossos dias.E a conscincia de tal modo solicitada por eles que se torna quase impossvel no

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    ter posio poltica definida, se no na militncia, pelo menos no campo terico.Quando cuida ardentemente de poltica e questes sociais, o Sr. lvaro Lins esttrazendo, para a sua poca uma contribuio a que o homem de inteligncia no sedeve furtar.

    Um socialista, o Sr. Paulo Emlio, escreveu na resposta Plataforma da novagerao: Estou, alis, convencido de que por maiores que sejam as realizaes quepossam estar reservadas, minha gerao no campo literrio, artstico e cientfico,esse conjunto no pode deixar de aparecer como um detalhe, diante do destino pol-tico, militar e religioso de uma juventude chamada a participar do desaparecimentode um Brasil formal e do nascimento de uma nao.

    Num catlico inconformado e moo, como o Sr. lvaro Lins, encontro con-

    ceito paralelo, embora no coextensivo ... h os momentos tormentosos e, agitados,porm, em que a poltica ocupa o primeiro lugar como direo e compreenso dosfenmenos sociais. H uma poltica da guerra, uma poltica da revoluo, uma polti-ca da construo da paz. Parece evidente que estamos vivendo um desses momentosem que necessrio pensar politicamente.

    2 parte:

    Assim, temos que o Sr. lvaro Lins reconhece a necessidade do crtico situ-ar-se politicamente, embora distinguindo dois reinos, seno independentes, pelomenos autnomos: o da literatura e o da poltica. Esta separao, muito recomend-vel para impedir o aviltamento da arte, significa, no obstante e em que pese neces-sidade que temos ns de pratic-la, uma cunha metida na unidade espiritual do crti-co. Praticando-a, o Sr. lvaro Lins, e a maioria dos contemporneos, se divide e, porassim dizer, se dilacera, porque ope, dentro do pensamento, o aspecto de interpre-tao esttica ao aspecto de participao poltica. No primeiro, se esfora por jogarcom critrios de ordem esttica; no segundo, com critrios de ordem sociolgica efilosfica. Mesmo que no consiga uma absoluta dualidade, o que mesmo imposs-vel, o esforo revela a sua posio: no misturar as duas esferas.

    Ora, semelhante modo de agir, praticamente dominante entre os crticos bemintencionados, se baseia possivelmente num equvoco. Equvoco que talvez seja fata-lidade do momento e nos leve situao de verdadeiro desespero cultural, com odesfibramento progressivo da crtica literria.

    Apesar do nosso esforo de totalizar a experincia humana, vamos nos reve-lando, cada vez mais, homens dilacerados, cavalgando, ao mesmo tempo, quatro ca-valos que podero dum momento para outro, tomar caminhos diversos e destruir aprecria unidade do nosso esprito, filho da crise. Do momento em que separamos anossa esttica da nossa moral e da nossa poltica, vamos descendo, lentamente, da-quele alto pedestal em que se punham, os crticos de outrora, homens mergulhadosna vida com pensamento uno, nos quais tudo se compenetrava e no apenas coexis-tia. Entre a religio, a poltica, a moral e a esttica de Boileau, havia uma solidariedadeinextricvel e soberba. A filosofia, a histria e a poltica de Taine se articulavam har-

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    moniosamente com a sua esttica, a expresso de qualquer uma delas revelando oque lhe correspondia nas outras. Hoje, as conexes so sobremodo difceis de esta-belecer, porque no temos ideais que predominem com universalidade e segurana.Exagerando bastante, digamos que um marxista, um catlico, um liberal, um espritapoderiam assinar muitos dos ensaios literrios do Sr. lvaro Lins, no s dele quantoda maioria dos nossos crticos - tal a separao entre esttica e ideologia. Eles tmuma validade que transcende as opinies no literrias, porque o seu alvo , justa-mente, estabelecer critrios puramente, isentamente literrios. O mesmo no se podedizer do Sr. Tristo de Atade atual, mas, em compensao, a sua crtica no mais oque foi. Raramente se desprende de uma subordinao a pontos de vista doutra or-dem.

    Literariamente, isto um bem, porque significa mecanismo de defesa da lite-ratura numa fase de confuso de valores. Quando tudo se confunde, o esprito im-parcial levado a distinguir, e justamente o que faz a crtica moderna, espcie deeczema de defesa. Para readquirirmos a unidade dos velhos crticos, precisamos deuma sociedade em que haja padres estveis. At l, a crtica continuar a se destacarcada vez mais das ideologias, ganhando o encanto das flores de estufa e perdendo aenfibratura que d acesso s vises slidas da vida. Quem sabe os crticos profissio-nais perdero, por uns tempos, a sua razo de ser, j que a literatura criadora se tornacada vez mais cheia de crtica?

    De qualquer modo, enquanto vivermos no mundo em que vivemos, a maiortarefa, em crtica, ainda ser a de preservar a imparcialidade e a pureza da literatura,opondo um dique ao seu aproveitamento ilcito. O dique do Sr. lvaro Lins dosmais eficientes que conheo. Do lado de dentro - o lado da literatura - j o estudeipor duas vezes, quando saram a 1 e a 2 srie do Jornal de crtica. Agora, quero exa-min-lo do lado de fora, procurando comentar e situar as suas idias polticas e soci-ais.

    IV

    Atravs dos artigos da 4 srie do Jornal de crtica, o Sr. lvaro Lins firma eamplia a sua posio de democrata catlico. Que o era, sabamos desde a 1 srie;agora, porm, vemos que se manifesta com mais radicalismo, chegando a proposi-es ainda h bem pouco tempo inconcebveis sob a pena de um catlico. Durante a

    guerra muitos intelectuais catlicos brasileiros chegaram a certo inconformismo, bas-tante acentuado no terreno poltico. Ao lado da influncia de Jacques Maritain e daguerra espanhola, da penetrao do socialismo na democracia crist, do pensamentosocial dos dominicanos, puderam conviver com Georges Bernanos, sentir a sua aode presena, ler semanalmente os seus artigos inflamados, por vezes terrveis. Quecaminho no percorreu um homem como o Sr. Tristo de Atade, desde a aprovaoda revolta de Franco e da simpatia pelo integralismo at a sua recente atitude, ao ladode Maritain, a ponto de ser combatido pelos ultramontanos! O pensamento do Sr.lvaro Lins me parece ainda mais avanado, tanto na sua rebeldia diplomacia ecle-

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    sistica (no nos esqueamos que tem velhas contas com os padres jesutas) quantona sua posio terica, em face do capitalismo e da burguesia. De modo geral, creioque ele endossaria a frase com que certo padre se apresentou, no faz muito tempo, aum amigo meu: Sou, anti-fascista. anti-comunista, e anti-clerical...

    Para o Sr. lvaro Lins, a burguesia faliu moralmente e est beira de falirmaterialmente. Aceitando vrios pontos da crtica marxista, assinala a concentraoprogressiva dos capitais, com o aumento dos antagonismos de classe, e espera doEstado medidas para liquidar a crise. Uma interveno que, segundo ele, longe designificar diminuio de liberdade defender o verdadeiro sentido da democracia. Oideal seria a interveno do Estado na ordem econmica, mas a no interveno naordem espiritual. Interveno econmica do Estado que no seria arbitrria, mas feita

    atravs da legislao regular.O Sr. lvaro Lins lana apenas uma idia cujas dificuldades no aprofunda enem mesmo aborda. At o presente a justia, tem sido to mal ajustada liberdade,tem-se mutilado to cruelmente uma em benefcio de outra, que o problema da suacoexistncia (desde que no se trate de aparncias nem meias medidas) surge, noraro, nossa frente, como o da quadratura do crculo. Ser sempre possvel dar umpouquinho de justia a troco de bastante liberdade, como acontece nas chamadasdemocracias ocidentais, ou um pouquinho de liberdade a troco de bastante justia, maneira do que acontece na U.R.S.S. O problema dos homens de boa vontade ,contudo, melhorar a proporo, at tornar iguais aos dois termos. Creio, sem hesitar,que os catlicos do, tipo do Sr. lvaro Lins vivem este problema com toda a hones-tidade e sinceridade. Apenas tenho a impresso de que, mais cedo ou mais tarde, seelevar no seu caminho o drama da ortodoxia e da heresia. Para eles, a quadratura docrculo, mencionada acima, se resolve menos em termos econmicos e polticos doque pela revivescncia do prprio esprito cristo, e me parece que a marcha nestesentido provoca vertigens heterodoxas. Chegar o momento da Igreja dar o toque derecolher e ensarilhar - o toque cujas conseqncias podem ir at o que se conta naterrvel histria de Ivan Karamasov e a cujo som bem poucos ousaro desatender.

    Nos ensaios Cristianismo e Poltica e A questo Maritain, o Sr. lvaroLins deixa bem claro que, para ele, o verdadeiro sentido, cristo de democracia e depoltica, em geral, implica uma atitude radical e inconformada. Reivindica o direito dediscordar e, mesmo, ir contra a poltica e as convenincias da Igreja, excetuadas asquestes, de dogma. Abre caminho, assim, para atitudes to irregulares (do ponto,

    de vista da diplomacia do Vaticano) quanto s de Maritain e Bernanos por ocasio daguerra civil espanhola e a do ltimo na sua crtica ao Papa - o Marqus Pacelli dacondescendncia com o fascismo.

    Ora - e a comea a minha crtica - penso que o atual, digamos, soci-al-cristianismo no poder avanar mais do que uns poucos e cautelosos passos na-quele caminho da completa justia social de que falam os seus mais generosos segui-dores. A poltica eclesistica lhes deixar liberdade suficiente para arrojos de pensa-mento, mas haver de cham-los ordem na hora dos arrojos da revoluo, indican-do-lhes a sua linha oficial. Assim, enquanto dominicanos e maritainistas falam vigo-

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    rosamente contra o fascismo, pela democracia social e pela co-propriedade, a linhajusta da Igreja pe para a frente jesutas e deputados bem-pensantes, a falarem mo-deradamente, embora com muito maior espalhafato e demagogia, de ordem, famlia e(bem de leve) participao nos lucros. A ligao amistosa e crescente entre a Igreja eos Estados Unidos; a transferncia do radicalismo pequeno-burgus anti-clerical, empases como a Frana e a Itlia, para a democracia crist; o patrocnio discreto, masfirme, dos regimes ibricos pelo Vaticano - parecem indicar o incio de uma larga fasede identificao entre o catolicismo, os governos ocidentais e a resistncia sociali-zao. Quando esta tendncia levar os agrupamentos socialistas e, talvez, comunistas,a intensificar as reivindicaes, possvel que a atual democracia crist reaja, por suavez, no sentido da direita, deixando no abandono duma terra-de-ningum os mais

    conseqentes dos seus adeptos. A, sero poucos os Lamennais e muitos os que en-guliro em seco, para justificar sua retirada, sofismas como alguns de Fulton Shean.Aquele, por exemplo, em que caracteriza o capitalismo como posse egosta, a so-luo catlica como propriedade difundida e a comunista como egosmo coleti-vo, (sic!)...

    O Sr. lvaro Lins, que no socialista, mas democrata, parece basear as suasconvices, no apenas na anlise do verdadeiro espirito cristo e no ensinamentodos pensadores catlicos, mas, tambm, no estudo da histria do capitalismo, noanti-fascismo decidido e em muitos pontos da crtica marxista, como assinalei hpouco. Talvez esta abertura de espirito d mais firmeza ao seu radicalismo no mo-mento do refluxo. Por enquanto, apraz-me verificar o humanismo da sua atitude,porque este humanismo a base comum em que se entendem os homens de boavontade. No sou sectrio, ou por outra, no sou sectrio neste momento, porque setrata, agora, de aplaudir quaisquer atitudes que fortaleam realmente a democracia esejam pela liquidao do capitalismo burgus. H o momento em que o sectarismo prejudicial e h outro em que a soluo mais nobre e eficaz. Estamos no primeiro,no que respeita ao debate de idias. Vivemos um momento terrvel; o mais terrvel daidade contempornea, porque somos incapazes de acreditar com f e otimismo napaz e na justia social com que nos acenam capciosamente os trs ou quatro donosdo mundo. Sentimos que devemos, temos obrigao de crer, mas no podemos.O sentimento de catstrofe mais forte do que a nossa vontade, e nos resta apenastrabalhar dentro do desespero e apesar dele, como o homem de Pascal, que cherche engmissant.

    Ora, estes so os momentos em que os homens se atiram nos braos da f,cega e sem discusso. Por contra-golpe, h entre os que abandonaram a ortodoxiapartidria da esquerda e os que abandonaram a ortodoxia eclesistica, um ponto co-mum, uma semelhana de homens que recusam dobrar-se ante os argumentos datradio, mais ou menos remota, e procuram revitalizar as suas ideologias luz de umhumanismo novo, liberto dos doutores e ministros que a desfiguraram. Talvez porisso eu me sinta bem disposto em relao a muitos pontos do pensamento do Sr.lvaro Lins, discordando embora do seu ponto de partida e do seu ponto de chega-da. Talvez por isso ele aceite certas posies marxistas, reconhecendo aos socialistas

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    em geral, e a Marx em particular, a glria incontestvel de haver tornado vivo e irre-futvel o problema social, influindo deste modo na prpria orientao, da Igreja deRoma.

    Quero dar como exemplo deste ponto de encontro um trecho de Maritain,que nenhum homem bem intencionado pode rejeitar e que lembra pelo seu trans-cendente humanismo, certos trechos de Marx ou Engels:

    Para a republica (cit) verdadeira dos direitos humanos a fraternidade no umprivilgio da natureza que decorre da bondade natural do homem ou que basta aoEstado proclamar: o termo de uma conquista lenta e difcil. que exige a virtude, osacrifcio e uma vitria perptua do homem sobre si mesmo; neste sentido, po-de-se dizer que o ideal herico para o qual tende a verdadeira emancipao poltica

    a instaurao de uma repblica (cit) fraternal.

    Acentuada a comunho que nos pode a ns socialistas independentes de ten-dncia marxista, aos catlicos radicais (a mim, em particular, ao Sr. lvaro Lins), noposso deixar de dizer o que nos separa. Para eles, o problema se coloca, antes demais nada, em termos de destino pessoal e se resolve, se me permitem, com medidasde pedagogia: mudar o homem, para que mude a sua existncia. Para ns, o destinopessoal, no se prolongando em perspectivas metafsicas, deve ser resolvido commedidas de social: mudar a existncia para que o homem mude. Praticamente, estadivergncia pode levar o catlico radical a rejeitar medidas drsticas e intervenesbruscas, mas decisivas, preferindo refugiar-se nas atitudes de conscincia. Por isso

    mesmo, acho perigosa certa tendncia de muitos socialistas modernos: o repudio aoscaminhos atuais da soluo russa os leva a acentuar com tamanha nfase o funda-mento tico, o contedo espiritual, o respeito pessoa, (pressupostos do verdadeirosocialismo), que podem ser conduzidos a desprezar outras verdades no menos fun-damentais, embora mais contingentes, de ordem econmica e revolucionria. O re-sultado ser uma involuo (de conseqncias imprevisveis se as massas forem atin-gidas) at o velho socialismo utpico, totalmente sem sentido nas atuais condiesdo problema social.

    Mas no esta a ocasio de aprofundarmos a matria. Se o leitor recorda oponto de partida, h de lembrar-se que fiz questo de analisar as idias polticas doSr. lvaro Lins no intuito de mostrar como elas enriqueciam e completavam o seupensamento. Creio ter indicado, pelo menos, as linhas gerais do assunto para poderconcluir, dizendo que a sua crtica e a sua poltica, embora autnomas, convergemnuma atitude largamente humanista cujo significado no pode deixar de ser grande,dada a qualidade excepcional da sua produo literria. O leitor habituado a ler esterodap h de reconhecer que procurei ser objetivo, pois perceber quanto me separado Sr. lvaro Lins em matria literria e, sobretudo poltica. Reconhecendo este es-foro, reconhecer o meu alvo, isto , mostrar que h entre os homens, apesar desuas oposies, um substrato comum que nosso dever pesquisar e, uma vez encon-trado, nele fundamentar o nosso esforo de compreenso e tolerncia.

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    Notas

    1 lvaro Lins.Jornal de crtica. 2 srie. R.J. Jos Olympio. 1943.2Op. cit., p. 22.3 lvaro Lins.Jornal de crtica. 4 srie. R.J. Jos Olympio. 1946.