Sobre o Trascendental Prático e a Dialética Da Sociabilidade

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    J nas primeiras linhas de seu livro Apresentao do mundo: consideraes sobre o pensamento de Ludwig Wittgenstein, Jos Arthur Giannotti adverte que as consideraes que pretende fazer sobre a filosofia de Wittgenstein no so movidas por interesses simplesmente exegticos. O livro, diz ele, tenta ser uma monografia sobre as aventuras filosficas de Wittgenstein, mas a escolha dos temas e o prprio movimento do trabalho somente se justificam se o leitor tiver em mente que essa escavao de uma obra alheia d continuidade minha prpria investigao, por mais modesta que pretenda ser1. Modstia parte, o interesse filosfico do livro reside principalmente nisto: Giannotti propese a refletir, por sua prpria conta e risco, acerca e, principalmente, a partir dos escritos de Wittgenstein (em especial os que expem sua chamada segunda

    [*] Em 1995, quando do lanamento de Giannotti, J. A. Apresentao do mundo: consideraes sobre o pensamento de Ludwig Wittgenstein. So Paulo: Companhia das Letras, 1995, o Cebrap promoveu um debate sobre o livro, de que participei, com Bento Prado Junior, Balthazar Barbosa Filho e Joo Verglio Cuter. A transcrio desse debate foi publicada em Novos Estudos, 43, nov. 1995, pp. 20733. Este artigo uma verso bastante modificada, expandida e repensada de minha fala naquele debate.

    [1] Giannotti, J. A., op. cit., p. 11.

    RESUMO

    Ao escrever Apre sen ta o do mundo: consideraes sobre o pensa

    mento de Ludwig Wittgenstein, as intenes de Jos Arthur Giannotti no eram principalmente exegticas. Ele pretendia

    trilhar alguns caminhos abertos por Ludwig Wittgenstein no intuito de lidar com suas prprias obsesses filosficas.

    Neste artigo, mostro por que e como algumas das linhas de pensamento de Wittgenstein ajudaram Giannotti a clarear

    logicamente alguns de seus prprios temas filosficos obsessivos: o transcendental prtico e a dialtica da sociabilidade.

    PaLaVraScHaVE: Jos Arthur Giannotti; Ludwig Wittgenstein;

    transcendental prtico; dialtica da sociabilidade.

    ABSTRACT

    In writing Presentation of the World: considerations on the thought

    of Ludwig Wittgenstein, Giannottis intentions were not primarily exegetical. He aimed to follow some of Wittgensteins

    conceptual pathways in order to deal with his own philosophical obsessions. In this paper, I show why and how some

    of Wittgensteins lines of thought helped Giannotti to logically clarify a couple of his own obsessive philosophical

    themes: the practical transcendental and the dialectic of sociability.

    KEywOrDS: Jos Arthur Giannotti; Ludwig Wittgenstein; practical

    transcendental; dialectic of sociability.

    SOBRE O TRANSCENDENTAL PRTICO E A DIALTICA DA SOCIABILIDADE*

    Luiz Henrique Lopes dos Santos

    dossi J. A. giAnnotti

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  • 8 SOBrE O TraNScENDENTaL PrTIcO E a DIaLTIca Da SOcIaBILIDaDE Luiz Henrique Lopes dos Santos

    [2] Ibidem, p. 199.

    filosofia), em vista de obsesses, cismas e implicncias filosficas que so tipicamente giannottianas. Essa natureza, por assim dizer, parasitria do trabalho conceitual a que Giannotti se dedica no livro justificase por uma certa concepo das relaes entre a filosofia e a histria da filosofia, pela qual, muito por influncia do prprio Giannotti, tenho bastante simpatia. Para deixar claro o registro em que o livro deve ser lido e compreendido, vale a pena explicitla.

    Segundo essa concepo, prprio do pensamento filosfico constituirse a partir da retomada criativa dos problemas e doutrinas das filosofias do passado semear, no solo desses problemas e doutrinas, as novidades do presente. essa retomada contnua de antigos problemas e solues, que (para usar uma expresso bem ao gosto de Giannotti) se retorcem ao serem inseridos em novas circunstncias, conceituais e no conceituais, sem que com isso se perca o parentesco entre as novas formulaes e as antigas, ela o motor da novidade filosfica. Pensar filosoficamente o novo tambm, e muito, reconfigurar antigas constelaes conceituais. Novos problemas e novas solues nutremse da releitura criativa de antigos problemas e antigas solues releitura em que nem sempre o que se conserva decanta do que se reconfigura.

    luz dessa concepo, Apresentao do mundo propese como uma releitura criativa de um conjunto de problemas e solues enviesadamente pinados no cerne da segunda filosofia de Wittgenstein, em funo de obsesses filosficas que Giannotti vem cultivando de longa data. Meu propsito aqui alinhavar indicaes de por que e como alguns desses problemas e solues atendem a interesses filosficos gerados por essas obsesses.

    Um bom ponto de partida pareceme ser o fato de Giannotti considerar como nuclear, no pensamento de Wittgenstein, o que rotula como o princpio da duplicao, que, no Tractatus, faz com que a verdade nasa da projeo de um fato noutro e, nas Investigaes filosficas, pedaos do mundo precisem ser empregados como meios de apresentao para que um jogo de linguagem possa ser exercido2. Trocando em midos, em termos no muito wittgensteinianos (e tambm nem sempre estritamente giannottianos), o rtulo remete ideia de que o pensamento uma ao que relaciona pedaos do mundo, instalandoos em dois planos, o dos significantes e o dos significados, e opera sobre o primeiro para instituir o segundo como alvo de atos intencionais de significao.

    Ao contrrio das chamadas filosofias da conscincia, que concebem a apreenso das significaes como uma relao binria entre uma conscincia e seus contedos, relao que, se envolve a mediao dos sinais, apenas como condio de sua instituio enquanto relao binria, e no como a introduo de elementos irredutivelmente por ela

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    [3] Giannotti, J. A. Trabalho e reflexo: ensaios para uma dialtica da sociabilidade. So Paulo: Brasiliense, 1983.

    [4] A bem da verdade, essa maneira de entender a figuratividade da proposio no consensual entre os intrpretes do Tractatus. Estou convencido de que correta e a expus em meu ensaio A essncia da proposio e a essncia do mundo, in: Wittgenstein, L. Tractatus LogicoPhilosophicus. So Paulo: Edusp, 1993, pp. 11112. No h dvida de que leva gua para o moinho de Giannotti.

    tambm relacionados, o princpio da duplicao faz dos significantes alvos oblquos, porm necessrios, dos atos intencionais significativos. Esses atos operam com os significantes no sentido em que fazem uso seletivo das potencialidades inscritas na natureza prpria desses significantes, tomados como coisas entre outras, e, nos limites fixados por essas potencialidades, conferemlhes valor de significao. Assim, esses atos apenas se apropriam das significaes que eles visam na medida em que antes visam tambm os significantes e os convertem de coisas em smbolos, de modo que os atos apenas se completam como significativos por meio da articulao bemsucedida dessa bifurcao intencional. Para bom entendedor, essa minha maneira de apresentar o princpio da duplicao deve evidenciar que a nfase posta por Giannotti no princpio representa um momento de radicalizao de seu ajuste de contas com a fenomenologia, iniciado em Trabalho e reflexo3.

    No grau de generalidade com que o formulamos, no difcil identificar a presena do princpio nas duas filosofias de Wittgenstein. No Tractatus LogicoPhilosophicus, o ncleo essencial do pensamento identificado proposio declarativa, aquela que representa o mundo de maneira verdadeira ou falsa. A representao proposicional concebida como uma operao de projeo figurativa de um fato possvel do mundo, a ser representado, em um outro fato do mundo, feito um smbolo pela aplicao, a seus elementos, de regras sintticas que convertem objetos em nomes e instituem para eles possibilidades de combinao recproca, para os fins especficos da significao proposicional. Essa operao tornase possvel por meio da correlao umaum entre os elementos sintticos do fato significante e os elementos do fato possvel a ser representado, de maneira que as possibilidades da combinao sinttica em fatos simblicos dos elementos significantes entre si reproduzam as possibilidades de combinao, em fatos possveis do mundo, dos elementos a eles correlacionados. A proposio significa na exata medida em que diz que os elementos sintticos do fato significante esto nele sintaticamente combinados da mesma forma como esto combinados, em um fato realmente existente no mundo, os elementos a eles correlacionados. Mas a operao projetiva, que visa figurativamente um fato, possivelmente inexistente no mundo, s possvel porque tambm opera sobre outro fato do mundo, convertendoo sintaticamente em smbolo proposicional, mediante a converso seletiva de possibilidades combinatrias mundanas de seus elementos em possibilidades combinatrias lgicosintticas4.

    No entanto, percebe Wittgenstein nos anos 1930, o conceito de pensamento apresentado no Tractatus ainda se nutre de pressupostos caractersticos das filosofias que o prprio livro pretende criticar. Em primeiro lugar, a representao l postulada como a funo essencial do

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    [5] Sobre a concepo da significao como eidos, v. Apresentao do mundo, op. cit., p. 58.

    pensamento, a forma da proposio declarativa constituindo a matriz de que todas as modalidades do pensamento seriam variantes.

    Em segundo lugar, ensina o Tractatus, se possvel pensar proposicionalmente o mundo, pensamento e mundo devem compartilhar uma mesma forma essencial. Apenas pode ser pensado um mundo que tenha uma estrutura essencial, necessria, definida por um conjunto de objetos simples, necessariamente existentes e necessariamente dotados de possibilidades de combinao, uns com outros, em fatos possveis. E apenas pode representlo proposicionalmente uma linguagem cuja estrutura lgica seja isomrfica do mundo, definida por um conjunto de nomes logicamente simples, dotados de possibilidades sintticas de combinao, uns com outros, em proposies com sentido. Em suma, a possibilidade de pensar o mundo requer, como condio, o postulado de uma armao transcendental absoluta comum ao pensamento e ao mundo, sua forma essencial, a partir da qual se traam os limites necessrios de tudo o que pode existir e de tudo o que pode ser dito.

    Finalmente, apesar das muitas aparncias em contrrio, o Tractatus ainda concede muito s filosofias da conscincia. Com efeito, despida de suas roupagens empricas acidentais, que o Tractatus reputa logicamente irrelevantes, a projeo figurativa em que consiste a essncia do pensamento acaba por reduzirse a um ato desmaterializado (puramente espiritual, seramos tentados a dizer, extrapolando a letra do Tractatus; um ato sublimado, dir Wittgenstein nas Investigaes filosficas) de um sujeito metafsico tambm desmaterializado um ponto sem extenso, retirado do mundo, nada mais que o ponto de fuga da projeo proposicional. A metfora do olho e seu campo visual, por meio da qual o Tractatus pretende elucidar a relao entre o sujeito metafsico e o espao do que pode logicamente ser pensado como existente, j deixa entrever que a virulncia crtica do livro em relao metafsica poupa um de seus alicerces milenares: a concepo da significao como eidos, objeto da viso de um olho sublime, que deve ser postulado como pressuposto absoluto e independente de toda facticidade contingente do mundo5.

    Ao voltar filosofia, em 1929, Wittgenstein logo reconhece o carter dogmtico desses postulados que sustentam a arquitetura do Tractatus. Em sua segunda filosofia, adota uma metodologia minimalista. Ningum duvida de que, quando pensamos, quando exprimimos e compreendemos significaes, ns agimos e reagimos com e em relao a smbolos em circunstncias dadas: fazemos coisas mediante a produo de smbolos (representamos o mundo, pedimos, ordenamos, exprimimos nossos sentimentos etc.), entendemos o que outros querem fazer quando produzem os smbolos que produzem. No curso desse processo, muitas outras coisas acontecem: mobilizamos,

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    ao menos tacitamente, nossas crenas, percepes e lembranas sobre certos fatos do mundo e certos comportamentos, nossos e de outros; formamos expectativas sobre fatos e comportamentos, nossos e de outros; exercitamos disposies para agir, simbolicamente ou no, em relao a certos objetos, fatos e comportamentos.

    A filosofia dogmtica (e nela o segundo Wittgenstein inclui o Tractatus) acredita que compreender como tudo isso possvel requer a postulao do pensamento como uma atividade etrea e misteriosa, realizada em uma esfera essencial oculta de entidades e atos etreos e misteriosos, de que tudo isso nada mais seria que a manifestao visvel e acidental. A estratgia metodolgica do segundo Wittgenstein consiste em indagar, em cada caso, se essa postulao realmente soluciona os problemas que se prope a solucionar e, mais ainda, se esses problemas so problemas filosficos reais, ou apenas falsos problemas, sequelas de confuses a respeito das regras que abertamente conferem sentido a nossas aes simblicas ordinrias, aquelas visveis a olho nu.

    Ao pr em prtica, nas Investigaes filosficas, sua estratgia crtica minimalista, Wittgenstein traz a noo de pensamento de volta ao mundo cotidiano, esfera das coisas, fatos e comportamentos que constituem nosso entorno corriqueiro. No Tractatus, o modelo para a compreenso da natureza lgica essencial do pensamento recorria tacitamente noo de clculo, como objeto de comparao. Pensar proposicionalmente era operar com smbolos segundo um conjunto precisamente determinado de regras sintticas e semnticas logicamente necessrias e precisamente definidas. Essa operao era caracterizada como um processo enormemente complicado (Tractatus LogicoPhilosophicus, aforismo 4.002), de que os sujeitos concretos de pensamento no tinham notcia consciente e que apenas uma rdua anlise lgica poderia discernir, subjacente ao plano visvel das aes significativas cotidianas desses sujeitos. Nas Investigaes filosficas, esse modelo substitudo por outro, que se serve de outro objeto de comparao: a noo de jogo.

    Pensar, diz o segundo Wittgenstein, parecido com jogar: exercitar tcnicas de agir com smbolos e reagir a smbolos segundo regras, em vista de intenes cuja definio no prescinde de referncia s prprias regras do jogo que se joga. Essas aes e reaes nada tm de etreo ou misterioso, so precisamente aquelas que ningum duvida que aconteam quando ordinariamente dizemos que pensamos, exprimimos e compreendemos significaes: tudo o que manifestamente fazemos quando dizemos o que existe ou no existe, acontece ou no acontece, no mundo; quando pedimos, ordenamos, exprimimos nossos sentimentos etc. E tudo o que manifestamente fazemos quando, no curso dessas atividades, mobilizamos, ao menos tacitamente,

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    [6] Giannotti, J. A. John Stuart Mill: o psicologismo e a fundamentao da lgica. So Paulo: tese de doutorado, usp, 1960.

    [7] Giannotti, J. A. Origens da dialtica do trabalho. So Paulo: Difuso Europeia do Livro, 1966.

    nossas crenas, percepes e lembranas sobre certos fatos do mundo e certos comportamentos, nossos e de outros; quando formamos expectativas sobre fatos e comportamentos, nossos e de outros; quando exercitamos disposies para agir, simbolicamente ou no, em relao a certos objetos, fatos e comportamentos.

    Diferentemente do Tractatus, que apresentava o pensamento como um clculo segundo regras que associariam smbolos a fatos possveis do mundo, a serem assim representados, as Investigaes filosficas diversificam o pensamento em uma pluralidade de atividades simblicas mutuamente imbricadas, das quais a atividade representativa uma entre outras, uma pluralidade de jogos de linguagem, cujas regras concernem aos diferentes usos que fazemos dos smbolos nos diferentes contextos de nossas prticas, simblicas e tambm no simblicas, para as quais esses usos so relevantes. Diferentemente do Tractatus, em que as regras sintticas e semnticas da linguagem se apresentam como necessrias, univocamente determinadas pela forma essencial comum ao pensamento e ao mundo, as Investigaes filosficas liberam o pensamento de qualquer compromisso com essncias, vinculandoo apenas a regras institudas e arbitrrias, no sentido absoluto dessa palavra, regras justificveis apenas pelas intenes e propsitos constitutivos dos diferentes jogos de linguagem que contingentemente nos dispomos a jogar.

    Quem acompanha a trajetria filosfica de Giannotti, desde sua tese de doutorado sobre Stuart Mill6 at Apresentao do mundo, passando por Origens da dialtica do trabalho7 e Trabalho e reflexo, no tem dificuldade em perceber que o conceito de jogo de linguagem, tal como desenvolvido por Wittgenstein nas Investigaes filosficas, caiulhe do cu. Em primeiro lugar, esse conceito permitelhe pavimentar, com esmero lgico, a sonhada terceira via entre o naturalismo e a filosofia da conscincia.

    Contra a filosofia da conscincia, as Investigaes filosficas oferecem uma concepo prtica, no representativista e no essencialista da significao e do pensamento. Segundo essa concepo, o que um smbolo significa, em um dado jogo de linguagem e uma dada situao, seu valor de uso naquela situao, determinado pelas regras do jogo, que governam as relaes entre atos de usar o smbolo e outras prticas, simblicas e no simblicas, objetos e fatos do mundo, crenas, intenes, expectativas, disposies dos falantes e ouvintes, e tudo o mais que, no jogo, definido como relevante para a significao. E essas regras no tm sua margem de manobra limitada por nenhuma suposta estrutura a priori, essencial e absoluta do pensamento, que delimitaria absolutamente o que pode ser significado e como. Por outro lado, contra o naturalismo, as Investigaes filosficas ao mesmo tempo que recusam a oposio absoluta entre o a priori e o a posteriori,

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    o transcendental e o emprico no abrem mo dessas oposies, agora reformuladas como relativas e funcionais.

    Em segundo lugar, a concepo prtica da significao implicada pela noo de jogo de linguagem impede que se tracem limites rgidos entre atividades significativas verbais e no verbais, permitindo o livre trnsito entre elas. Nessa medida, oferece a Giannotti instrumentos preciosos para proceder lapidao lgica do conceito que articulava, em Trabalho e reflexo, seus esforos para elucidar os aspectos lgicos e ontolgicos da dialtica da sociabilidade capitalista: o conceito de esquema operatrio. Vejamos tudo isso um pouco mais de perto.

    Dito curto e grosso: ao conceber o pensamento e a significao como prticas regradas de uso de smbolos, o segundo Wittgenstein abre uma via lgica para Giannotti alcanar algo com que tambm sempre sonhou, o transcendental prtico. Com efeito, a concepo prtica do pensamento e da significao conduz Wittgenstein e Giannotti, em sua esteira a uma concepo prtica do conceito. As condies de aplicao, seja verdadeira ou falsa, de um conceito em uma situao dada que, na terminologia do primeiro Wittgenstein, seriam chamadas de condies de sentido de um termo conceitual so definidas, pelo segundo Wittgenstein, como condies prticas de aplicao das regras de uso do termo conceitual correspondente. Isso significa dizer que a forma e o contedo de um conceito se definem na base das condies de possibilidade de uma certa prtica, precisamente a prtica de usar o termo conceitual correspondente segundo as regras particulares que lhe concernem.

    A essa ideia, as Investigaes filosficas aliam uma concepo no intelectualista do que seja uma regra e do que seja aplicar, correta ou incorretamente, uma regra. Ela consiste em definir o conhecimento de uma regra em termos da prtica de seguila em seus diferentes casos particulares de aplicao possvel. A regra no um contedo a ser antes apreendido intelectualmente, como representao universal de todos os seus casos de aplicao correta, e depois aplicado na regulao de uma atividade. Conhecer uma regra no nada mais nada menos que dominar praticamente a tcnica de sua aplicao em casos particulares. Se assim se o conceito e a significao devem ser entendidos no segundo o paradigma da apreenso pelo olho do esprito, mas segundo o paradigma da prtica regrada fica aberto o caminho para a modelagem de noes de a priori e transcendental que dispensem qualquer apelo a uma ou mais conscincias, fica aberto o caminho para a constituio de uma filosofia transcendental que no seja, por isso, uma filosofia da conscincia. Seno vejamos.

    A substituio da conscincia pela prtica, como esfera originria do pensamento e da significao, complementada, nas Investigaes filosficas, pela recusa intransigente da ideia de que possa haver algum

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    [8] Ver tambm Giannotti, J. A. Apresentao do mundo, op. cit., p. 71, e tambm p. 226.

    ponto de vista absoluto do qual seja possvel descrever as condies de possibilidade do uso significativo dos smbolos. Um dos mritos filosficos da elucidao, pelo segundo Wittgenstein, do conceito de seguir uma regra, precisamente o de evidenciar que as condies fatuais e mundanas que possibilitam a configurao dos conceitos e significaes, na medida em que possibilitam a prtica regrada dos smbolos correspondentes, no podem ser tomados como fundamentos, ou seja, como algo cuja descrio pudesse valer como o traado da gnese das significaes a partir de um solo ltimo, anterior a toda espcie de operao significativa com smbolos.

    Se, por um lado, a regra definida pela tcnica de sua aplicao em casos particulares, por outro lado, a identificao dos casos como casos de aplicao correta da regra no independente da prpria regra. Digo que apliquei corretamente uma regra em diferentes casos particulares porque, em todos eles, o que fiz foi a mesma coisa; e digo que fiz a mesma coisa nas diferentes aplicaes da regra porque todas foram aplicaes corretas da mesma regra. A identidade da regra e a identidade do que fao em todos os casos de sua aplicao correta constituemse reciprocamente, por meio de um crculo virtuoso, no curso das aplicaes reiteradas de nossas tcnicas de aplicar regras. um grande mito filosfico, que Giannotti encontra na base da fenomenologia pshusserliana, postular que a resposta pergunta pelas condies de uso significativo de smbolos deva desvendar um domnio de elementos que esteja fora, aqum da esfera do uso significativo dos smbolos.

    Nossa aptido para seguir regras em geral, assim como modalidades particulares de regras, depende, insiste Wittgenstein, de um conjunto de aptides, natural e culturalmente arraigadas, para identificar casos presentes e futuros de aplicao correta de regras na base dos ca sos passados conhecidos de sua aplicao correta. Ela tambm depende, muitas vezes, da existncia de objetos apropriados para servir como objetos de comparao nesse processo de generalizao, como critrios prticos do uso correto dos smbolos, e depende ainda da realidade de fatos naturais e culturais muito gerais, sem o que as prticas envolvidas nesse processo seriam inviveis. Uma regra requer necessariamente certas condies materiais e mentais para ser seguida.8 Quando se trata das regras que definem um jogo de linguagem, essas aptides, objetos e fatos, em si mesmos contingentes, funcionam como pressupostos ltimos da significatividade dos lances simblicos que o jogo autoriza. Assim, funcionam, em relao ao jogo, como condies necessrias de seu exerccio (portanto, como um a priori relativo) e determinam a forma do que nele pode ser significado (constituindo, portanto, um transcendental relativo).

    O conceito de que Giannotti se serve para caracterizar a relatividade e a funcionalidade do transcendental prtico precisamen

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    [9] Ibidem, p. 104.

    te o conceito de apresentao (Darstellung). Para que algo possa ser significado de uma certa perspectiva prtica, preciso que o espao das possibilidades de significao que essa perspectiva delimita seja apresentado por meio da armao transcendental que a sustenta. Em particular, para que o mundo possa ser representado de uma certa perspectiva prtica, preciso que o espao das possibilidades fatuais que essa perspectiva delimita seja apresentado por meio da armao transcendental que a sustenta, constituda por coisas e fatos extrados do prprio mundo; sem ela, um conceito, ou mesmo um sistema de conceitos, patina e no se engrena com seus casos9. filosofia, cumpre focalizar essa armao de um ponto de vista no representativo, elucidar sua funo apresentativa em relao ao que se pode representar por meio dela. No entanto, isso no nos autoriza a opor o discurso fatual ao filosfico como o ordinrio ao extraordinrio. Reconhecer a relatividade e a funcionalidade da distino entre o transcendental e o emprico implica reconhecer que os pontos de vista apresentativo e representativo podem se engrenar no interior de uma mesma prtica simblica, j que so as mesmas coisas e os mesmos fatos que podem ser descritos de um ponto de vista representativo e podem ser apresentados como pressupostos das regras de sentido que constituem esse mesmo ponto de vista.

    Tudo isso explica por que Giannotti d tanta importncia, na economia de Apresentao do mundo, s observaes de Wittgenstein sobre o que significa ver algo como algo. Em primeiro lugar, elas conduzem ideia de que o contato sensvel com as coisas s passa a valer como modo de conhecimento do mundo depois de inserirse na trama regrada de nossas prticas simblicas. Muito do que julgamos existir ou acontecer no mundo depende, sem dvida, do que vemos existir ou acontecer no mundo. No entanto, no se trata aqui de vincular a correo de nossos juzos ao suposto conhecimento de uma suposta esfera de elementos antepredicativos, e sim de vincular as condies de sentido de proposies que enunciam a ocorrncia de fatos no mundo s condies de sentido de proposies da forma Vejo X ou da forma Vejo X como Y. Ter sensaes visuais um fenmeno fsico, ver algo e ver algo como algo exercitar tcnicas particulares de comrcio simblico com o mundo.

    Com efeito, a conexo entre ver algo e ver algo como algo j exemplifica, segundo Giannotti, a engrenagem entre tcnicas de representao e tcnicas de apresentao em nossos jogos de linguagem representativos, de uma maneira que subverte a concepo filosfica tradicional das relaes entre entendimento e sensibilidade, entre os aspectos conceituais e no conceituais de nossas aes significativas. Por ocasio das sensaes visuais produzidas em mim por uma folha de papel em que esto traadas certas li

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    nhas, vejo ora o desenho de um pato, ora o desenho de uma lebre, e vejo sempre linhas traadas em uma folha de papel. Digo que vejo um desenho de pato no mesmo sentido que vejo, no momento seguinte, um desenho de lebre, mas no no mesmo sentido em que digo, em todos os momentos, que vejo as linhas. Quando vejo um desenho de pato, no vejo um de lebre, mas, se vejo um ou outro, vejo tambm as linhas. Se vejo as linhas como desenho de pato ou como desenho de lebre, porque, antes de mais nada, vejo as linhas. Ao ver as linhas como desenho de pato ou como desenho de lebre, as mesmas linhas que so objetos de minha viso se apresentam tambm como meios de representao visual de pato ou lebre. E, se isso acontece, porque, na configurao espacial das linhas, para usar uma expresso de Wittgenstein, ecoa o conceito de lebre ou o conceito de pato, cujas tcnicas de aplicao eu domino. Ver algo como algo no pensar, mas a j ecoa um pensamento.

    Assim que a anlise wittgensteiniana do fenmeno do ver como oferece a Giannotti instrumentos lgicos apropriados para dar conta do que, em sua caracterizao da dialtica da sociabilidade capitalista, em Trabalho e reflexo, procurou elaborar teoricamente com seu conceito de esquema operatrio. Na tica de Apresentao do mundo, o que Giannotti chamava de esquema operatrio pode ser agora qualificado como um jogo de linguagem no verbal, no qual os agentes discriminam praticamente, em virtude do modo como agem em relao a coisas e fatos do mundo, propriedades dessas coisas e fatos e relaes entre eles, ao incorporlos em suas atividades intencionalmente orientadas. No interior desse jogo prverbal, mas em que ecoa um pensamento, coisas e fatos brutos da natureza perdem sua individualidade em si e convertemse em coisas e fatos para os agentes, cuja intencionalidade prtica os perpassa e faz deles coisas e fatos praticamente significativos.

    Segundo a anlise de Giannotti, em Trabalho e reflexo, com o esquema operatrio caracterstico da sociabilidade capitalista articulase o que agora podemos chamar de um jogo de linguagem verbal, por meio do qual os agentes discriminam, no registro conceitual, aquelas mesmas coisas e aqueles mesmos fatos que discriminavam no conceitualmente no mbito do esquema operatrio. Ocorre, porm, que os dois planos de discriminao se mostram contraditrios, a conceitualizao dos agentes mostrandose ilusria com respeito s significaes praticamente constitudas no plano do esquema operatrio. Mais ainda, e nisso consiste o fulcro da dialtica da sociabilidade capitalista, as iluses conceituais dos agentes revelamse como iluses necessrias para o funcionamento regular do esquema operatrio, criandose, pois, um circuito dialtico entre os planos interdependentes das discriminaes prticas e conceituais.

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    [10] Ibidem, pp. 12 s.

    [11] Ibidem, p. 202.

    Ora, a lgica dessa interdependncia dialtica, confessa Giannotti nas Consideraes iniciais de Apresentao do mundo10, os instrumentos de inspirao fenomenolgica empregados em Trabalho e reflexo ainda comprometidos com a ideia de que as significaes conceituais so sedimentaes de significaes antepredicativas, entendidas como seus fundamentos no eram capazes de captar. precisamente um modelo para a elucidao dessa lgica que Giannotti pretende encontrar nas anlises wittgensteinianas do ver como.

    Finalmente, a alternncia de perspectivas e tcnicas simblicas que, segundo Wittgenstein, a chave para a compreenso do fenmeno do ver como tomada por Giannotti como um paradigma para a compreenso de nossas prticas simblicas reflexivas em geral, de que a filosofia o exemplo mais radical. Na verdade, a pergunta filosfica pelos pressupostos de nossa relao significativa com o mundo no faz mais que aprofundar um movimento reflexivo que tem sua origem j no uso ordinrio da linguagem, movimento que jogos mais sofisticados admitem ordinariamente. No interior desses jogos, engreno, a um lance do jogo que me parece deslocado em relao s condies de sentido dos smbolos utilizados, um outro lance, a pergunta: mas, afinal, o que voc pode querer dizer com isso?.

    Giannotti salienta a ideia, que as Investigaes filosficas no se cansam de enfatizar, de que perguntas pelas condies de sentido s tm, elas prprias, sentido se forem feitas como lances ordinrios de jogos de linguagem, segundo as regras que ordinariamente governam as palavras utilizadas. Isso significa que a distino entre uma investigao transcendental, filosfica, que se volta para as condies de sentido dos smbolos utilizados em um contexto dado, e uma investigao fatual, que se prope a responder a perguntas cujas condies de sentido j se pressupem garantidas, deve tambm ser concebida como relativa e funcional. A mesma coisa ou o mesmo fato que, numa investigao fatual, funciona tacitamente como meio de apresentao do sentido da questo a ser investigada pode passar a funcionar, no mbito de uma investigao transcendental, como objeto explcito de investigao reflexiva.

    Entendese, ento, por que o erro metafsico um risco permanente, uma iluso natural, um risco que corre no apenas o filsofo, mas todos que, no interior de um jogo de linguagem, fazem das condies de sentido dos smbolos objetos de indagaes reflexivas. O erro metafsico por excelncia consiste em tratar, como se fosse fatual, uma questo que, na realidade, transcendental, atribuir ao meio de apresentao o mesmo tipo de existncia daquilo que passvel de ser expresso por um lance do jogo de linguagem11. Ora, o transcendental tambm uma coisa ou um fato, uma coisa e um fato transcendentalizados. Questes fatuais concernem descrio de coisas e fatos exis

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  • 18 SOBrE O TraNScENDENTaL PrTIcO E a DIaLTIca Da SOcIaBILIDaDE Luiz Henrique Lopes dos Santos

    [12] Giannotti, J. A. Contra Althusser. Teoria e Prtica, 3, abr. 1968, pp. 6682.

    tentes. Questes transcendentais tambm concernem a coisas e fatos, mas nada tm a ver com sua descrio ou com sua existncia. Nelas, tudo o que importa o modo como esses fatos e coisas desempenham suas funes transcendentais na conformao das prticas simblicas por meio das quais pensamos o mundo.

    Quando se introduz a refl exividade no interior dos jogos de linguagem, quando se admite que algo que se pode constituir, de um ponto de vista, como objeto de aes signifi cativas tambm se pode apresentar, de outro ponto de vista, no curso de outras aes signifi cativas, como pressuposto transcendental de suas signifi caes, resulta tentadora a ideia de que os prprios agentes possam cometer erros metafsicos em suas prticas simblicas, tratando como coisas ou fatos signifi cados o que deveriam apresentar como pressupostos da signifi cao dessas prticas. E resulta tambm tentadora a ideia de que a superao desses erros metafsicos muitos deles, quem sabe, iluses necessrias para o funcionamento regular do jogo seria o reencontro dos agentes com o sentido de suas prprias aes, a superao da alienao de si, a conquista da autenticidade. No de estranhar que o autor de Origens da dialtica do trabalho e Contra Althusser12 no tenha resistido a essas tentaes.

    Quando as prticas simblicas e no simblicas, conceituais e no conceituais, que defi nem nossas formas de sociabilidade so concebidas segundo o modelo dos jogos de linguagem e quando se admite que elas podem comportar regularmente contradies e iluses necessrias, fi losofi a podese atribuir mais que a tarefa de nos livrar das inquietudes intelectuais produzidas por nossas confuses metafsicas. Se no cabe fi losofi a transformar o mundo, mas apenas elucidar a lgica (a gramtica, diria Wittgenstein) de nossos jogos de linguagem, nem por isso, conclui Giannotti, ela desprovida de qualquer relevncia moral e poltica. Cabe, sim, fi losofi a, ao elucidar a lgica da dialtica da sociabilidade, trazer luz, em cada situao, as contradies e iluses em que se enrazam nossas formas caractersticas de alienao. Se, como pensa Wittgenstein, a fi losofi a deixa tudo como est, ela pode ao menos indicarnos caminhos a serem seguidos em nossa busca, talvez infi nita, por uma vida moral e politicamente autntica.

    No h dvida de que, ao instrumentalizar achados fi losfi cos de Wittgenstein, especialmente o transcendental prtico e o paradigma do ver como, em benefcio de seus propsitos fi losfi cos prprios, Giannotti distanciase bastante da letra e suspeito que, a partir de um certo momento, tambm do esprito dos textos de Wittgenstein. No entanto, de que serviria alimentarse fi losofi camente do pensamento de um fi lsofo, se no fosse para, em algum momento, abandonlo?

    Luiz Henrique Lopes dos Santos professor do departamento de filosofia da fflch-usp e

    pesquisador do cnpq.

    Rece bido para publi ca o em 13 de junho de 2011.

    NOVOS ESTUDOScEBraP

    90, julho 2011pp. 718

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