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    I. Introduo

    Imposturas intelectuais

    H poucos anos, um artigo em uma publicao cientfica provocou alvoroo no meio

    acadmico. Isso no seria de surpreender por si s, uma vez que at seria esperado que

    publicaes cientficas provocassem discusses acaloradas. Porm, nesse caso, tratou-se de

    um artigo, sobre a hermenutica da gravitao quntica, publicado em uma respeitvel

    revista, deliberadamente escrito para ser um engodo (SOKAL, 1996). O autor, ferrenho

    defensor de uma concepo ortodoxa do discurso cientfico, revelou sua farsa premeditada

    imediatamente aps a aceitao do artigo e de sua publicao, provocando, juntamente com a

    edio de um livro (SOKAL & BRICMONT, 2001), intenso debate sobre os padres

    intelectuais do meio acadmico dito ps-moderno. Sob o fogo do autor encontravam-se

    intelectuais, na maioria franceses, como Kristeva, Baudrillard, Deleuze, Guattari, alm de

    Jacques Lacan. A inteno de Sokal era a de denunciar, seja o abuso, por parte desses autores,

    de conceitos matemticos e cientficos, seja o relativismo epistmico segundo o qual a cincia

    moderna no seria mais que uma construo social, uma narrao ou um mito.

    Lacan de nenhum modo se enquadraria na segunda acusao. No obstante, o uso que

    o psicanalista faz no apelo que tece s mais variadas reas do saber humano, a includas as

    matemticas, e nominalmente, lgica e topologia, realmente costuma deixar aturdidos os

    seus leitores.

    Segundo Sokal, Lacan, que o primeiro na ordem do livro a receber o peso da crtica,

    abusaria do uso de conceitos matemticos e cientficos: (1) apresentando teorias sobre as

    quais teria parcos conhecimentos, dissimulando sua falta pelo uso de terminologia cientfica

    ou pseudo-cientfica sem se importar muito com o verdadeiro sentido dos termos, (2)

    importando conceitos das cincias naturais para as cincias humanas ou sociais sem prover a

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    menor justificativa conceitual, (3) mostrando uma erudio superficial, por lanar a esmo

    termos tcnicos fora de contexto, na tentativa de intimidar o leitor leigo e (4) manipulando

    frases que so, de fato, sem sentido.

    Sokal e Bricmont criticam, apresentando trechos de publicaes lacanianas,

    especificamente A topologia psicanaltica e o uso da lgica, indicando em seus

    comentrios que:

    Lacan no fornece nenhum argumento para sustentar sua peremptria assero segundo a qual o toro exatamente a estrutura do neurtico. Alm do mais, quando indagado se se trata simplesmente de uma analogia, ele nega (SOKAL & BRICMONT, 2001, p. 33).

    Devemos concordar, em primeira instncia ao menos, que a crtica dos autores

    pertinente, j que, de fato, Lacan, seja nos escritos publicados, seja nos seminrios, em sua

    transmisso oral, de fato no costuma elucidar suas referncias s matemticas, provendo as

    razes de seu fundamento, ou da pertinncia dos conceitos matemticos psicanlise.

    Lacan exibe para os no experts seus conhecimentos de lgica matemtica; porm sua explanao no original nem pedaggica do ponto de vista matemtico, e a ligao com a psicanlise no sustentada por nenhum raciocnio (ibid., p. 43).

    Em um ponto, a crtica recai sobre a definio que Lacan apresenta do conceito

    topolgico de compacidade, sobre o qual o psicanalista cometeria um erro. Em outro, os

    autores asseveram que Lacan confunde nmeros imaginrios com nmeros irracionais, mas

    por toda parte o lado obscuro, hermtico ou destitudo de sentido que Sokal e Bricmont

    criticam com mais contundente veemncia. Concluem os autores:

    Certamente, Lacan tem uma vaga idia da matemtica que ele invoca (e no muito mais). No ser com ele que um estudante aprender o que um nmero natural ou um conjunto compacto, porm suas colocaes, quando inteligveis, nem sempre so falsas. Contudo, ele se excede (se que podemos usar esta palavra) no segundo tipo de abuso relacionado em nossa introduo: suas analogias entre psicanlise e matemtica so as mais arbitrrias que se possam imaginar, e delas no oferece nenhuma justificao emprica ou conceitual (nem aqui nem em nenhum lugar de sua obra). Finalmente, como ostentao de uma erudio superficial e manipulao de sentenas sem sentido, os textos [citados anteriormente pelos autores] falam por si ss (SOKAL & BRICMONT, 2001, p. 47).

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    Com um pouco de benevolncia, podemos ler que Lacan no pretende ensinar a

    matemtica de que lana mo, o que no seria um pecado demasiado grave, e que talvez ele

    tenha mais que a vaga idia indicada, mas que seu verdadeiro excesso, segundo os autores, se

    localiza na falta de fundamentao de suas referncias lgicas e matemticas, j que a

    acusao quanto ao estilo um tanto barroco no se restringiria ao uso que Lacan faz da

    matemtica e poderia ser estendido a campos como o da prpria clnica, que tampouco, na

    escrita lacaniana, mais cristalino que suas referncias rainha das cincias.

    A comum dificuldade de se ler Lacan encontra reflexo nas acusaes de Sokal, e no

    se podendo afirmar se Lacan dominava ou no as disciplinas que importava para sua teoria,

    foroso reconhecer que o psicanalista no costumava justificar, ao menos no claramente, a

    pertinncia do material assim includo.

    No procederei a um escrutnio das respostas suscitadas, mas mencionarei uma que,

    assim me parece, reflete o parecer mais generalizado. Glynos e Stavrakakis (2002) dividem,

    em seu apoio a Lacan, a questo de Sokal em duas partes, uma referente ao estilo lacaniano, e

    outra concernente substncia do ensino de Lacan. Quanto ao estilo, o argumento central o

    de que Lacan, com efeito, no tinha, minimamente, a inteno de ser didtico e, muito ao

    contrrio, que o psicanalista impunha a seus ouvintes e leitores a responsabilidade de assumir

    o saber derivado da transmisso por ele proporcionada em um claro paralelo (tico) com o

    exerccio da clnica que apregoava. No somente com relao s matemticas que o estilo de

    Lacan pode parecer barroco a um leitor. Suas incurses na filosofia ou na literatura, seu

    constante dilogo com personagens e publicaes contemporneos, muitas vezes no

    nomeados, e mesmo suas referncias freudianas gozam das mesmas caractersticas que fazem,

    ou deveriam fazer que seus ouvintes ou leitores se remetessem, eles mesmos, s fontes

    invocadas, e que depreendessem, sozinhos, como nico mtodo eficaz, as conseqncias que

    Lacan procura apontar. O argumento em questo defende assim um efeito que o discurso

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    lacaniano buscaria alcanar; efeito de transmisso e transformao dos quais a posio de

    mestria se verificaria deslocada. Em uma referncia lacaniana, Sokal, de acordo com esses

    defensores de Lacan, em sua adotada posio de porta-voz da cincia estaria ocupando o lugar

    de sujeito-suposto-saber, lugar de engano por excelncia.

    J no que diz respeito ao contedo, o que se refere ao segundo ponto da crtica de

    Sokal, aquele da validade da importao de conceitos matemticos para as cincias ditas

    humanas, a posio de Glynos e Stavrakakis de acentuar que no so os matemticos, ou

    Sokal como seu arauto, quem deve ratificar a pertinncia de um saber supostamente estranho

    psicanlise, seno essa ltima e naquilo que as matemticas interessariam quanto aos

    problemas enfrentados na experincia clnica. Os autores sugerem que a aproximao de

    Lacan ao estruturalismo pela via da lingstica, indispensvel para o entendimento daquilo

    que Freud concebeu como o inconsciente, seria j o respaldo necessrio para as incurses de

    Lacan no domnio da matemtica, uma vez reconhecida a conexo suposta imediatamente

    existente entre estrutura e topologia.

    No obstante a consistncia dos argumentos de Glynos e Stavrakakis, a questo

    daquilo que efetivamente respaldaria o apelo de Lacan s matemticas e, nominalmente,

    topologia, , de fato, relevante. Uma coisa seria utilizar as cincias fsicas, como fez Freud, ou

    as matemticas, no caso de Lacan, com o intuito de proporcionar esquemas, aproximaes

    descritivas ou elucidativas quanto aos fenmenos em estudo. Em que pese a escolha de uma

    disciplina complexa como a topologia com tal finalidade, esse uso seria parcialmente

    justificado. Coisa diferente afirmar, como faz Lacan, que a topologia , ela mesma, a

    estrutura em questo. Aqui, os fundamentos deveriam ser mais bem explicitados. Assim,

    concordando com o argumento de que o apoio necessrio ao passo lacaniano em direo s

    matemticas viria de sua apropriao do estruturalismo lingstico, a explicitao de

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    algumas das conexes entre psicanlise e matemtica, supostas implcitas em Lacan, que aqui

    se trata de discutir.

    Os argumentos na defesa de Lacan costumam passar pela tenso, estabelecida desde o

    prprio psicanalista francs, entre a psicanlise e a cincia moderna e, explicitamente, pelo

    esforo lacaniano, via a influncia de Kojve e de Koyr, de encontrar na matematizao ou,

    mais pontualmente, na literalizao, o caminho de insero da psicanlise. Alm desses, o

    recurso s matemticas tambm encontraria lugar na preocupao referente

    transmissibilidade do saber gerado na experincia. A, a linguagem matemtica, segundo uma

    de suas vertentes e que no a nica, por ser uma linguagem puramente simblica, no sentido

    de que sua literalidade no precisa remeter a realidade alguma e assim no tem a necessidade

    de sentido, atenderia ao quesito de permitir uma formalizao que evitasse o problema das

    falsas conexes e dos mal-entendidos de que toda fala seria presa. A formalizao matemtica

    seria o paradigma da completa transmissibilidade e isso, na posio desses e de outros

    autores, justificaria o recurso de Lacan.

    O que este trabalho gostaria de propor a existncia do fundamento ausente da

    explicitao lacaniana: de que este fundamento repousa na relao que uma teoria do

    significante em Lacan apresenta com a teoria dos conjuntos em matemtica, sendo este o

    passo implicitamente tomado na adeso estruturalista do psicanalista francs.

    Creio dever cernir um pouco mais minha inteno de maneira a no gerar falsas

    expectativas em meu leitor. No pretendo refazer o percurso de Lacan ao longo de sua obra

    em busca de suas referncias matemticas, elucidando-as. H j alguns livros a respeito, ainda

    que se possa discordar de suas vises. Alm do mais, essas referncias parecem se mostrar

    abrangendo um campo to vasto da matemtica, indo da teoria dos conjuntos, lgica,

    passando por grafos, lgebra, teoria dos grupos e at teoria dos ns, somente para mencionar

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    alguns temas, que o trabalho de elucidao poderia se transformar no prprio programa de um

    curso de matemtica no trivial.

    Minha inteno mais genrica e pretende apenas justificar o emprego da matemtica

    em psicanlise por Lacan. claro que isso parece pouco, mas os meandros do problema,

    como espero que meu leitor tambm observe, levam a caminhos importantes em uma

    discusso psicanaltica.

    Para comear, proponho que o leitor aceite o recorte que faz da teoria dos conjuntos e

    da lgica os dois pilares principais da matemtica. O movimento que pretendo seguir, nessa

    linha, procurar relacionar o significante, de acordo com Lacan, tanto a um quanto ao outro

    campo basilar da matemtica.

    Devo admitir, entretanto, que enfrento um duplo problema de exposio. De um lado,

    a relao entre a lgica e a teoria dos conjuntos e, por extenso, como interessaria mostrar,

    entre o significante e os dois primeiros, se d de uma forma macia. Apesar de o leigo poder

    crer que os matemticos no teriam razo para discordncias, por ser a matemtica,

    supostamente, uma cincia exata, essa, de fato, se divide internamente em diferentes

    correntes, dentre as quais distinguiramos aqui especialmente o logicismo e o formalismo1, o

    que aparentemente remeteria meu esforo a um alinhamento mais prximo segunda

    tendncia. No entanto, a forma como procurarei tratar nossa questo quanto possibilidade de

    formalizao, e seu interesse para a psicanlise, acaba por reunir mais de uma das formas de

    pensamento matemtico.

    Resumidamente, o logicismo, cujo expoente foi Bertand Russell (1873-1970), resume,

    em sua tese fundamental, a matemtica lgica, buscando promover uma identidade entre

    ambas:

    1 Ver, a respeito, COSTA, Newton Carneiro Afonso da,. Introduo aos fundamentos da matemtica. So Paulo: Hucitec, 2008.

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    A Matemtica e a Lgica foram, historicamente falando, estudos inteiramente distintos. A Matemtica esteve relacionada com a cincia e a Lgica, com o idioma grego. Mas ambas se desenvolveram nos tempos modernos e a Lgica tornou-se mais Matemtica e a Matemtica tornou-se mais Lgica. A conseqncia que se tornou agora inteiramente impossvel traar uma linha entre as duas; de fato, as duas so uma. (RUSSELL, 1974, p. 185).

    Segundo o logicismo, toda idia matemtica poderia ser definida atravs de conceitos

    lgicos, como o prprio conceito de conjunto ou aquele de relao, mas, alm disso, todo

    enunciado matemtico s poderia ser considerado verdadeiro mediante sua demonstrao por

    procedimentos e princpios puramente lgicos, estabelecendo a lgica como pilar de toda a

    matemtica.

    Por outro lado, a corrente formalista, cujo principal representante foi David Hilbert

    (1862-1943), nega que os conceitos matemticos possam ser reduzidos queles da lgica,

    vendo a matemtica como a cincia da estrutura dos objetos. O matemtico estudaria as

    propriedades de seus objetos to somente atravs de um sistema apropriado de smbolos

    relevando os aspectos destitudos de importncia dos sinais que emprega. Desde que disponha

    de um sistema adequado, o matemtico no precisaria mais se preocupar com seu significado

    mundano, pois ele poderia verificar, nos prprios smbolos, as propriedades sob estudo.

    Rompe-se uma relao de correspondncia entre o significado e mundo, acentuando-se to

    somente o aspecto de consistncia que a teoria em apreo deve apresentar, no que, h que se

    destacar, essa corrente adota uma posio epistemolgica radicalmente distante do empirismo.

    A corrente formalista, portanto, acentua as caractersticas formais da linguagem empregada,

    supostamente independente dos significados que se possa atribuir aos smbolos matemticos.

    Da a acusao comum sofrida pelos formalistas de transformar a matemtica em um mero

    jogo de smbolos sem sentido, da qual os formalistas se defendem afirmando que o

    matemtico apenas no leva em considerao as significaes envolvidas, permitindo-lhe

    elaborar estruturas puramente abstratas cuja convenincia seria a de poder estudar qualquer

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    sistema simblico, ampliando as fronteiras da matemtica; o que, de fato, a corrente

    formalista alcanou.

    Na Frana, a corrente formalista ligada ao nome de Bourbaki, pseudnimo coletivo

    de um grupo de matemticos que, descontentes com a literatura matemtica francesa

    disponvel, e particularmente em face dos grandes avanos da escola alem, decidiu editar, a

    partir de 1935, um compndio de matemtica conhecido como lments de mathmatique,

    que buscava, ao mesmo tempo, rigor e simplicidade. O esforo bourbakiano ligava-se

    fundamentao da matemtica na teoria dos conjuntos e sabe-se (ROUDINESCO, 1994) que

    Lacan no era alheio a esse esforo.

    O intuicionismo, a terceira corrente presente na matemtica, tem no nome de Luitzen

    Egbertus Jan Brouwer (1881-1966) seu fundador. Sinteticamente, a matemtica proposta por

    Brouwer, em oposio direta com o logicismo de Russell e o formalismo de Hilbert, tem

    como princpio o argumento de que a matemtica no se compe de verdades eternas,

    relativas a objetos intemporais e metafsicos. De acordo com Brouwer, o matemtico no

    descobre, mas cria as entidades que estuda, de modo que asseres de existncia somente

    teriam sentido em matemtica se associadas sua efetiva construo. Porm, se a existncia

    vinculada possibilidade de construo tambm se apresenta, por exemplo, em uma vertente

    do formalismo, uma divergncia de base verificada quanto aos modos de demonstrao

    aceitos pelo intuicionismo. A pressuposio de uma no demonstrabilidade de um mundo

    transcendental onde os nmeros, como objetos matemticos, existiriam desde e para todo o

    sempre, leva o intuicionismo a aceitar to somente provas positivas de demonstrao,

    rejeitando as demonstraes de existncia pelo absurdo. Nessas, para se provar uma

    proposio x, pode-se, negando x, chegar a uma contradio, o que levaria concluso da

    veracidade de x. Isso, no entanto, decorre de um postulado fundamental da lgica clssica, o

    do terceiro excludo, segundo o qual, sobre uma proposio, h somente duas opes, a de que

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    seja verdadeira ou a de que seja falsa (p p). Porm, justamente esse princpio do tertium

    non datur rejeitado pelo intuicionismo. No aceitvel a prova de uma proposio p pela

    eventual rejeio de sua negao, com o que o intuicionismo tambm se ope a outro

    princpio lgico fundamental, o princpio da dupla negao (p p). Essas consideraes

    levaram ao desenvolvimento de uma nova lgica, por Arend Heyting (1898-1980), discpulo

    de Brouwer, a lgica intuicionista, cujo papel ainda veremos no desenvolvimento deste

    trabalho.

    De fato, a matemtica intuicionista, que no deve ser confundida com a lgica de

    mesmo nome, ainda mais rigorosa que suas concorrentes, tornando extremamente difcil seu

    desenvolvimento, sendo essa uma das razes de sua pouca aceitao. No obstante, a dura

    crtica de Brouwer, especialmente a Hilbert e aos formalistas, tambm considerada uma

    fonte primria do desenvolvimento do formalismo que, levando-as a srio promoveu avanos

    significativos em seu campo.

    Na outra direo, a crtica intuicionista ao logicismo leva ao afastamento entre a

    matemtica e a linguagem, ao ponto mesmo de Brouwer sustentar que a atividade matemtica

    independe da linguagem em que se expressam suas proposies. A intuio, mesmo

    considerada em um carter essencialmente racional, capaz de apreender os nmeros naturais,

    levada a um extremo to grande por Brouwer que a matemtica intuicionista corre o risco de

    ser subjetiva, na acepo pior dessa palavra.

    Em nosso caso, no me parece que seja necessrio que se adote uma posio quanto s

    diferentes escolas, mas que se reconhea que entre a lgica dos logicistas e a axiomtica dos

    formalistas, com a teoria dos conjuntos figurando em ambas as escolas, situa-se a raiz da

    matemtica, seu fundamento, em que nos baseamos neste trabalho. Parece que devemos, no

    entanto, nos afastar do intuicionismo, e mais nominalmente de sua posio em relao

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    linguagem, mas sua sombra e crtica, como tambm a lgica que dele se derivou devero nos

    manter animados em nosso percurso.

    De qualquer modo, ocorre que a relao entre a lgica e a teoria dos conjuntos

    axiomatizada macia, dificultando sobremaneira esta exposio, voltada primordialmente a

    afeitos psicanlise, e no forosamente doutos nas matemticas. Uma opo seria a de

    introduzir alguns conceitos bsicos de ambas as disciplinas, de modo a estabelecer um solo

    comum, de onde partiramos. Essa possibilidade apresenta o inconveniente de manter, por um

    tempo ao menos, um nvel de abstrao tal que rapidamente promoveria o desinteresse de meu

    leitor, assim o imagino. Alm do mais, alguns dos conceitos a que pretendo me referir no so

    de maneira alguma bsicos, fazendo com que os prembulos necessrios sejam demasiado

    extensos. Tal perspectiva, ainda, tomaria parte importante deste trabalho, transformando-o em

    um mini-curso de matemtica, ao que no estou propriamente habilitado. No obstante, faz-se

    necessrio discorrer minimamente sobre os conceitos envolvidos, que so, de fato, o estofo

    deste trabalho, uma vez que minha inteno permanece sendo a de inquirir e talvez mostrar a

    existncia dos fundamentos para o emprego da matemtica em psicanlise.

    Sob outro enfoque, metodolgico agora, devo manter a perspectiva de que no a

    psicanlise que deve oferecer uma interpretao matemtica, encontrando nela seus

    referentes, mas, bem ao contrrio, a matemtica quem deve se apresentar como interpretante

    e, para tanto, os conceitos envolvidos devem se apresentar de modo claro ao leitor.

    Certo, infelizmente, de no poder atender a solicitaes opostas, vou tentar, esperando

    minimizar os prejuzos, me ater to somente aos conceitos aqui pertinentes, deixando lacunas

    naturalmente importantes no que toca a matemtica. Contando com a indulgncia do leitor,

    espero, mesmo assim, promover seu interesse e, to importante, expor minha tese.

    De maneira extremamente sucinta, eis as grandes vias pelas quais convido-o a me

    acompanhar:

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    No prximo captulo, minha inteno apresentar uma discusso epistmico-

    metodolgica que aborde alguns dos problemas que considero essenciais para o

    desenvolvimento de minhas afirmaes quanto ao significante e a matemtica, ou a uma parte

    dela. No creio que minha posio seja a nica e como aqui me exponho crtica de quem

    assim o quiser, tambm exponho a minha com relao a algumas posies consideradas

    lacanianas. Enfrentarei a seguir algumas objees epistemolgicas na tentativa de propor

    sadas dentro mesmo do campo da matemtica, referindo o caminho a ser trilhado teoria dos

    conjuntos, de onde emerge a topologia, e lgica, alm da teoria dos modelos, sem ignorar

    que tambm a epistemologia capaz de oferecer seus argumentos em favor de minha

    iniciativa.

    No captulo III tentarei mostrar que a teoria do significante que Lacan constri,

    baseada no estruturalismo saussuriano, e a teoria dos conjuntos, desenvolvida no final do

    sculo XIX, apresentam similaridades to importantes que poderamos dizer que ambos os

    conceitos tratam do mesmo assunto. Aos axiomas da teoria dos conjuntos podem-se fazer

    equivaler problemas homlogos na psicanlise, na medida em que o significante a referido.

    Porm, tambm l onde a axiomtica claudica que procuraremos nos deter, apontando a

    emergncia da subjetividade onde talvez no fosse esperada. Assim, tambm nos deteremos

    sobre aspectos que rompem com a estrutura, apontando, com o conceito de evento e em suas

    conseqncias a localizao daquilo que propriamente subjetivo.

    No captulo IV procurarei abordar as relaes entre o significante e o segundo domnio

    matemtico considerado essencial, a lgica, mostrando como certas relaes de significao,

    tidas como relaes entre significantes, so capazes de se apresentar em termos lgicos e

    mesmo passveis de formalizao. Figuras de linguagem e operaes logicamente definidas

    no seriam estranhas umas s outras nessa proposta de aproximao. Porm, a questo da

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    subjetividade e daquilo que irrompe subvertendo a lgica tambm nos interessar, na

    perspectiva matemtica do sentido dessa abordagem.

    No captulo V, supostamente o ltimo captulo terico da tese, meu propsito

    apresentar uma forma de reunio dos conceitos apresentados anteriormente. nesse captulo

    que a topologia lacaniana dever fazer mais propriamente a sua apario e minha tentativa a

    ser a de justific-la, ou, ao menos, algumas de suas ocorrncias. o conceito de modelo que

    dever sustentar essa parte do trabalho e as conseqncias do emprego desse conceito no so

    andinas a um psicanalista de extrao lacaniana, pelas reverberaes que causa em temas

    como o da metalinguagem e da verdade, costumeiramente caros ao leitor de Lacan, porque

    sempre polmicos na lngua do psicanalista francs.

    Finalmente, em minha concluso, no resumo os desenvolvimentos que este trabalho

    percorreu, mas sigo, a partir deles, com elaboraes so essas as concluses que

    mereceriam aprofundamento em uma pesquisa, ou em um programa de pesquisa que esta tese

    deveria provocar. Porm, espero naquele momento haver sustentado suficientemente a

    possibilidade de emprego da matemtica, e mais especificamente, mas no somente, da

    topologia, em sua raiz na teoria dos conjuntos, e da lgica, que dela no se desvincula, pela

    psicanlise, contrariando a acusao de Sokal da falta de seu fundamento e de uma eventual

    impostura, da qual parti.

    Na escrita e leitura deste trabalho, algumas vezes tive a impresso de que minha

    exposio parecia se encontrar um pouco deriva, sendo conduzida por argumentos pontuais

    ou circunstanciais que, no entanto, no momento pareciam importantes, sem que sua conexo

    com o conjunto ficasse totalmente explcita. Creio que o convvio com o mtodo psicanaltico

    promove um desses tipos de deformao profissional fazendo com que alguma livre

    associao se encontre freqentemente presente em minhas elaboraes. Espero que o leitor

    possa, mesmo assim, me acompanhar, aceitando meus desvios de trilha mais ou menos

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    eventuais, e reconhecer, ao final, a coerncia que mesmo essas divagaes aparentemente

    esprias ajudam a construir. Sei que o mtodo no parece demais promissor e que incorro no

    risco temerrio de que seja o leitor que, assim, seja incitado a associar livremente,

    ausentando-se da linha que percorro. Esse um risco que devo assumir.

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    II. Objees e sugestes quanto ao uso da matemtica em psicanlise

    Neste captulo, procuro apresentar uma discusso epistmico-metodolgica com

    referncia aos problemas que este trabalho pretende enfrentar.

    Como vimos, a partir da objeo primeira apresentada na introduo, a oposio ao

    emprego da matemtica em Lacan repousa fundamentalmente em uma suposta falta de rigor e

    de fundamento desse apelo. Tais crticas, que podem ser acatadas, supem corretamente a

    vontade da psicanlise em seus dois protagonistas em questo, Freud e Lacan, de se enquadrar

    no rol das cincias. No se tratando de discutir aprofundadamente essa aspirao, ou dos

    meandros do problema da incluso, excluso, ou de outra relao que a psicanlise teria com a

    cincia, simplesmente se apresenta que tal vontade existe na pena de um e de outro dos

    psicanalistas. E, como cincia, alguma relao com a matemtica parece se apresentar.

    O emprego da matemtica por parte das cincias, no entanto, no homogneo e a

    prpria possibilidade de formalizao nas disciplinas ditas humanas freqentemente alvo de

    crtica de algumas posies mais radicais. Pretendo expor essa crtica, a partir de uma vertente

    da epistemologia e, sugerindo algumas respostas, apresentar o caminho que os captulos

    seguintes devero trilhar.

    Minha tese neste captulo de que o recurso matemtica pode ser epistemolgica e

    metodologicamente pertinente, sustentando assim a tese mais geral de que a partir do

    significante, abordado como conjunto e em suas conseqncias matemticas, que se justifica e

    se fundamenta o apelo que Lacan faz rainha das cincias.

    Como primeiro movimento, gostaria de fazer uma breve crtica aos lacanianos, ou ao

    menos a alguns, importantes, vez que figuram como referncia comum cada vez que se trata

    de relacionar topologia e psicanlise. Meu ponto que, de fato, a ausncia apontada por Sokal

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    quanto s razes para uma apropriao da matemtica pela psicanlise no so propriamente

    enfrentadas, e que, alm disso, algumas concepes equvocas da decorrem.

    II.1. Topologia, entre lacanianos

    A idia desta seo comentar a opinio de alguns autores lacanianos relevantes,

    usualmente citados e tidos como referncia. Tenta-se mostrar que mesmo entre aqueles, que

    so a maioria, que dizem suportar a tese de Lacan de que a topologia a estrutura, o uso

    feito desse ramo da matemtica mais predominantemente metafrico ou alegrico. Isto ,

    costuma primar pela ausncia, pela omisso, ou pelo no desenvolvimento, nos casos em que

    ele apontado, daquilo que proveria o fundamento do recurso topologia. Uma maneira

    alternativa de diz-lo que os autores tm o procedimento de interpretar a topologia a partir

    da psicanlise, ao passo que o que se prope aqui seria o caminho inverso, isto , de que a

    psicanlise que interpretada luz da topologia.

    No se pode dizer que o uso da topologia encontre, entre lacanianos, um consenso

    geral. H defensores mais estritos ou mais flexveis, mas todos supostamente afirmando-se a

    partir de Lacan, desde aqueles que a empregam como um suporte explicativo, seno

    descritivo, dos principais articuladores tericos lacanianos e de suas relaes, at, em outro

    plo, os que consideram as formulaes topolgicas do psicanalista como parte essencial e

    inextricvel de seu projeto de formalizao da psicanlise. Ao passo que alguns, por seu uso,

    fazem crer que se trata to somente de uma nova maneira de tratar os conceitos, quase

    alegrica, ou que opinam que a topologia, em Lacan, cumpre a funo de um substrato

    analgico, h tambm os que defendem que a topologia tem, em Lacan, uma funo essencial,

    postulando uma relao, no direi ainda se de homeomorfismo, isomorfismo, ou ainda de

    estrita identidade entre os espaos e as estruturas da depreendidas e o sujeito da psicanlise.

  • 16

    Quanto s primeiras posies, de que a invocao topolgica seria meramente

    alegrica ou metafrica, pouco tenho a dizer. Poderia ser fcil recriminar uma escolha que se

    pretenda retrica a ttulo de que ela no chega a transmitir muito bem aquilo que se prope a

    dizer, por ser, possivelmente, em larga medida, inacessvel a psicanalistas, que pouca

    familiaridade tm com as matemticas. Porm, poderia ser igualmente fcil elogi-la, pela

    acuidade do sentido gerado, pela fora que as imagens das figuras espaciais poderiam

    proporcionar na compreenso de determinados fenmenos. Por suposto, pode-se formular a

    hiptese conciliatria de que o recurso topologia, e s matemticas em geral, ocupa um

    lugar mltiplo dentro das formulaes lacanianas, ora mais metafrica, ora mais menos, mas,

    nesse ltimo caso, que o que me agita, ainda haveria de se fundamentar seu emprego2.

    Jeanne Granon-Lafont (1990), uma autora freqentemente citada por seu trabalho a

    respeito da topologia em Lacan, parece, por exemplo, apresentar uma posio hbrida. Seu

    propsito, em A topologia de Jacques Lacan, o de estudar, a partir da psicanlise e dos

    avanos de Jacques Lacan neste domnio, as principais estruturas topolgicas (ibid., p. 8),

    afirmao na qual j se declara uma chave de leitura da topologia em Lacan: trata-se de ler a

    topologia a partir da psicanlise. Assim, quando a questo surge de verificar a relao entre a

    psicanlise e a topologia, nesses termos que a autora a formula a questo: A relao que se

    expe deste modo entre a topologia e a psicanlise ainda metafrica, ou trata-se de um

    suporte intuitivo?(ibid., p. 37)

    Granon-Lafont descarta veementemente a hiptese metafrica, mesmo de cunho

    didtico: parece-me inaceitvel, restando entre as opes apresentadas aquela de suporte

    intuitivo. Porm, diz a autora, entre a topologia e a experincia analtica estabelecem-se

    2 Nominalmente, movidos pela exortao lacaniana de que no se trata de compreender, nem os analisantes, nem a prpria teoria, vez que compreender, por se situar no campo do sentido, remeteria ao registro do imaginrio e, portanto, do engano. Recuperando uma dicotomia cara epistemologia, na suposta oposio entre as cincias do homem e aquelas da natureza, segundo a qual nas primeiras a compreenso seria privilegiada, ao passo que nas segundas, o que se busca seria menos a compreenso do que a explicao, arrisco-me a dizer que se a meno topologia em um apelo rigoroso faz sentido, ento estamos no campo da explicao: trata-se de saber por qu?

  • 17

    relaes que as palavras suporte intuitivo no definem (ibid., p. 38). Ainda assim, a porta

    da intuio permanece aberta para Granon-Lafont, que, a propsito, invoca Lacan:

    A intuio, sob a pena de Lacan, remete s qualidades prprias da topologia na medida em que ela trata da apreenso global do espao. A psicanlise, como esclarecimento da estrutura do falesser, pe em cena o prprio espao no qual a topologia encadeia seus fenmenos (GRANON-LAFONT, 1990, p. 38).

    No metfora, no que se apia tambm em Lacan, mas aqui, suporte intuitivo, na

    medida mesma em que a estrutura do sujeito, apresentada como estrutura do parltre, seria

    colocada em cena pela topologia. Sem, no entanto, apresentar fundamentos maiores que a

    prpria intuio, o que reflete fielmente o tom da apresentao da autora ao longo de sua

    explorao da topologia em Lacan.

    Nasio (1987), que apresenta uma posio aparentemente semelhante, chega a afirmar

    que efetivamente, com a topologia, no se trata de eliminar a intuio em benefcio de um

    suposto formalismo, seno de transform-la mesmo, fazendo com que o exerccio da

    topologia permita abrir o campo de um novo imaginrio, ligado experincia do

    inconsciente (ibid., p. 132). A idia de Nasio, portanto, a de que a topologia lacaniana seria

    uma tentativa de apreenso do real atravs de recursos imaginrios, ou mais bem,

    fantasmticos (ibid., p. 123). O prprio termo, que mantive h pouco de uma topologia

    propriamente lacaniana, distinta, portanto da topologia matemtica em senso estrito, leva

    Nasio proposta de re-nomeao da disciplina, como resultado de sua apropriao por Lacan:

    topologera. A topologia lacaniana no se interessaria por clculos, mas por relaes com o

    desenho, nem se interessaria por demonstraes, mas seria uma mostrao, supostamente

    contrariando a tendncia de assimilar o emprego da matemtica a um fazer cincia. Em lugar,

    por exemplo, de se tentar uma definio do sujeito, mostra-se.

    No se dir que o conceito do sujeito ilustrado pela banda de Mbius, seno, insisto, se mostrar a banda e, cortando-a pelo meio, se dir: este o sujeito (NASIO, 1987, p. 131).

  • 18

    Bem entendido, Nasio no ignora que os objetos topolgicos com que o psicanalista

    trabalharia, segundo a indicao de Lacan, de fato no existem seno imersos em nosso

    espao tri-dimensional, razo pela qual o autor reitera que os psicanalistas no trabalham com

    a topologia geral, nem mesmo com a topologia algbrica, mas com uma topologia

    particularssima, mostrativa e fantasmtica: No trabalhamos com equaes, nmeros e

    letras, seno com tesouras e borracha (ibidem). Os objetos topolgicos de Lacan seriam uma

    espcie de dramatizao dos paradoxos, ou dos contrastes conceituais entre demanda e desejo,

    no toro, entre o sujeito dividido e seu dizer, na banda de Mbius, ou entre o sujeito e sua

    relao com o objeto do fantasma, no plano projetivo.

    A despeito de meu apreo pelas formulaes de Nasio, em outros textos, aqui no

    posso seno discordar. Se for necessrio redefinir o nome da disciplina, ento no se trata de

    topologia, podemos conjuntamente reconhecer. Porm, se a topologia est de alguma forma

    envolvida, a nica forma que tenho de entender o autor pelo efeito de interpretao que a

    topologia oferece psicanlise, e no no sentido inverso como quer Granon-Lafont. Nasio,

    parece-me, apresenta-a nessa curiosa dramatizao que culmina com um psicanalista, uma

    banda de Mbius partida em uma das mos, tesoura na outra, a dizer este o sujeito! Se o

    efeito imaginrio no pode ser removido, pelo prprio uso da linguagem, e mesmo daquela

    matemtica, concedamos, porque tambm nessa ltima procedemos a interpretaes, sem o

    que de nada serviria o manejo dos nmeros, letras, tesoura ou borracha. Se o desenvolvimento

    de um novo imaginrio como representao topolgica de um real psquico est no

    horizonte, no creio ser necessrio que isso se d em detrimento de um fundamento material,

    ou que a topologia, em Lacan, a esse imaginrio se reduza. No obstante, a idia de que a

    topologia que interpreta a psicanlise merece ser retida.

    Jacques-Alain Miller (1996), por sua vez, apresenta-se como um defensor da corrente

    mais rigorosa, e seu argumento inicial parte da afirmao que a topologia no pode ser

  • 19

    extrada do ensino de Lacan (p. 73), no porque ela seria demasiado rida, desinteressante ou

    supostamente desvinculada da experincia psicanaltica, mas simplesmente porque sua

    referncia aparece no ensino de Lacan desde seus primrdios, que Miller localiza em 1953,

    com o Discurso de Roma. O resgate de Miller vincula a existncia de uma topologia, seja de

    uma topologia do significante, seja de uma topologia do sujeito, s relaes entre o

    significante e a morte, funo que seria instalada no cerne da experincia da palavra (ibid.,

    p. 74). Que se afirme a partir da que nada se pode atingir do sujeito antes da palavra a no

    ser, precisamente, sua morte, sua mortificao significante (ibidem), atravs do que

    expresses espaciais que j se tornaram lugar comum entre lacanianos parecem tomar

    consistncia, como a de excluso interna, ou de um centro exterior, ainda no permite, no

    entanto, localizar plenamente a topologia como mais que uma metfora, a despeito da

    afirmao do autor, dentro do mesmo argumento, de que: o que verdadeiramente especfico

    de Lacan o fato de no se contentar com o que aqui faz metfora, e assim implicar a

    estrutura que funda essa disposio espacial (ibidem). E Miller perde, nessa passagem o

    recurso palavra e ao significante, que ele no deixa de indicar.

    Que a topologia, para Lacan, no seja uma metfora, que ela represente a estrutura

    (ibid., p. 78), ou que ela seja de certo modo o real mesmo em jogo na experincia, que seja a

    coisa mesma, fundamenta-se, segundo Miller, no fato de que a topologia de Lacan ele

    prprio insistiu nisso integralmente redutvel a uma combinatria (ibidem).

    Isso faz parte do mesmo captulo concernente a tpica do significante. O grafo elementar, o esquema Z, o esquema das letras alfa e beta, o grafo em dois nveis so combinatrios e fazem parte da mesma srie, sem esquecer a combinatria dos quatro discursos. Todos esses exerccios podem ser subsumidos pelo termo combinatria, o que permite observar que a topologia no isolvel no ensino de Lacan (MILLER, 1996, p. 79).

    Que todos os modelos, esquemas, grafos e matemas lacanianos, incluindo-se ou no

    tambm o ns borromeanos, faam parte do mesmo, ou de outro, captulo da aventura

    topolgica lacaniana uma afirmao um tanto abrangente, e que no recebe aceitao geral.

  • 20

    Eidelsztein (1992), por exemplo, traa uma distino entre aquilo que ele considera

    modelos, em certa acepo, e os esquemas e grafos de Lacan. Para esse autor, os modelos,

    como o modelo tico, do buqu invertido, que surge poca do Seminrio I, sobre Os escritos

    tcnicos de Freud (LACAN, 1953-1954 [1979]), e que Lacan utiliza diversas vezes ao longo

    de seu ensino, no seriam propriamente topolgicos, mas essencialmente analgicos

    (EIDELSZTEIN, 1992, p. 28), ao passo que os esquemas, como o esquema L, do Seminrio

    II, O eu na teoria de Freud e na tcnica da psicanlise (LACAN, 1954-1955 [1985]), os

    esquemas Z, R e I, todos do escrito De uma questo preliminar a todo tratamento possvel da

    psicose (LACAN, 1957a [1998]), esses seriam topolgicos, j que so geometrizaes

    topolgicas, qualitativas e no numricas, de noes psicanalticas expressas como pontos e

    suas relaes como segmentos ou vetores (EIDELSZTEIN, 1992, p. 29). Porm, comenta

    Eidelsztein, h ainda que diferenciar os dois primeiros esquemas, o L e o Z, dos dois outros, o

    R e o I, j que esses ltimos implicam em superfcies, ao passo que os dois primeiros no.

    Assim, entre os esquemas, haveria aqueles propriamente topolgicos e aqueles nem to

    topolgicos assim, sendo a delimitao de superfcies seu crivo. Enfim, os grafos lacanianos

    seriam indubitavelmente topolgicos, entre outras razes por sua implicao na concepo

    de lugar ou espao.

    Concordando com Eidelsztein de que dificilmente todos os modelos, esquemas, grafos

    e matemas poderiam ser enquadrados sob a mesma rubrica topolgica, no creio, entretanto,

    que a classificao proposta incida definitivamente sobre a questo. Mostrar que o grafo do

    desejo de Lacan no planar, ou que ele apresente a estrutura para no dizer meramente a

    forma de um oito interior, ainda que interessante, no sustenta, por si s, a meu ver, a

    necessidade da topologia ou sua pertinncia psicanlise. Em uma frase, falta o porqu.

    Reportando-nos aos matemas dos discursos, como um exemplo que Eidelsztein no

    inclui em sua classificao, costuma-se comentar que eles so montados a partir de uma

  • 21

    estrutura derivada de um grupo de Klein, um subgrupo dele, com efeito, e que a teoria dos

    grupos teria algo a ver com uma lgebra e esta, por sua vez, com uma topologia, mas o

    parentesco, como se v, no imediato. No posso discordar de que possivelmente haja uma

    relao topolgica em jogo nos matemas dos quatro discursos, como exemplo, mas ela no

    imediata pela mera referncia ao uso da teoria dos grupos em matemtica, e dele no se extrai

    imediatamente que os discursos sejam topolgicos ou que a topologia seja essencial

    psicanlise.

    O argumento de Miller, no obstante, a meu ver, se fortalece com a afirmao de que

    a topologia se sustenta no significante (MILLER, 1996, p. 79). Com a ressalva, includa por

    Miller, de que no devemos supor que todo o campo da psicanlise se restrinja ao que

    significante, e que h solidria, mas distinta, e ainda por se articular em termos topolgicos, a

    teoria das pulses, a afirmao de que a sustentao da topologia, em psicanlise, acontece

    por meio do significante vai mais diretamente ao ponto central. Seno por outros motivos,

    porque a teoria do significante que sustenta, em larga medida, para Lacan, a teoria do sujeito

    e, com ela, a prxis psicanaltica.

    No entanto, a seqncia de Miller no faz jus a essa linha e o que se formula em

    seguida que o que h de comum entre a combinatria, a topologia e at a teoria dos

    conjuntos que tudo isso se sustenta em duas dimenses, s tem a necessidade de duas

    dimenses para funcionar (ibidem). Essa afirmao perece-me desprovida de cabimento e

    no se sabe de onde Miller teria extrado, se que essa era a sua inteno, a idia de que a

    teoria dos conjuntos, ou de que a topologia se sustentaria em apenas duas dimenses, quando,

    bem ao contrrio, com a possibilidade de espaos multidimensionais que a topologia

    trabalha. E basta abrir uma livro de topologia para constat-lo, por exemplo, na insistente a

    apario do smbolo n, que, no expoente, diretamente remete ordem das coisas envolvidas.

  • 22

    Porm, se como quer Lacan com suas superfcies, efetivamente se trata de espaos bi-

    dimensionais, isso resta a fundamentar.

    Dizer, com suposto fundamento topolgico, que no h interioridade ou profundidade

    quando se trata do inconsciente, por ser esse bidimensional, criticar a metfora do

    inconsciente como interior, ou profundo. Porm, argumentar, com o apelo ao toro, como

    lembra Miller, que a exterioridade perifrica e a exterioridade central constituem uma nica e

    mesma regio, supostamente fundamentando assim a excluso interna, corrompe a idia

    topolgica do toro como superfcie, como espao bi-dimensional3, ao qual no h nada que se

    possa dizer que seja exterior. A figura do toro, a, no seria seno uma ilustrao. Um espao

    definido por aquilo que contm; no h o fora-do-espao. Se um toro tem a forma que tem,

    por exemplo, a de um pneu, e se o vemos assim, porque ns o submergimos em um espao

    como aquele com o qual estamos acostumados, o de trs dimenses, e nele um toro se parece

    com um pneu. Como espao prprio, o toro no tem exterior, sua superfcie sendo a nica

    coisa definida em seu espao. Se for necessrio recorrer ao espao tri-dimensional para

    qualquer referncia que se queira forma trica, j no se trata mais do espao do toro, mas

    de outro, no mais bidimensional. Assim, falar do toro, como topologia, aludindo-se a seu

    exterior deixa de ter sentido em sentido topolgico estrito. Nada impede que se desprenda um

    sentido interpretativo, entretanto, como faz Nasio, e mesmo que isso transmita algo. Ocorre,

    vale dizer, que a Lacan (1953 [1998]) no foi descuidado, aludindo especificamente forma

    tridimensional do toro (p. 322) e no, portanto, ao toro como superfcie. Mesmo assim,

    podemos conceder que se no uso figurativo, esse espao de excluso interna faz meno a um

    lugar ocupado pelo objeto a, sua verso estritamente topolgica, bi-dimensional, em que esse

    espao interno-externo do pneu simplesmente no existe, pode ainda preservar a meno ao

    3 A alternativa propriamente topolgica do toro como um espao bi-dimensional aparece no toro como um espao de dimenso quatro, formado, como costuma ser sua construo, pelo produto de dois espaos de duas dimenses

  • 23

    objeto a, no mais como um lugar, mas como a prpria causa da deformao que faz da

    superfcie um toro. Dito de outra maneira, se o uso imagtico mostra o toro como essa rosca

    cujo furo eis suas caractersticas - seria ocupada pelo objeto a, o uso estritamente topolgico

    do toro dir que o objeto a seria a causa da deformao da superfcie. H lugar para as duas

    formulaes que, no entanto, no devem ser confundidas do ponto de vista formal.

    Malgrado o passo rpido, no se pode discordar de Miller quanto topologia como

    espao de combinatrias, um espao simblico onde se articulam significantes, onde eles se

    desenvolvem em suas cadeias e que, efetivamente, nada tem a ver com nenhum espao da

    intuio (MILLER, 1996, p. 82), em que a relao entre a topologia e o significante aparece

    com proeminncia, mais alm de sua composio combinatria.

    Outra maneira de afirmar que a topologia se sustenta no significante, tambm indireta,

    ocorre na tese de que:

    O significante sempre composto segundo leis de uma ordem fechada, isto , as unidades significantes invadem umas s outras h tambm relaes de envolvimento e preciso para tudo isso um substrato topolgico que a cadeia significante de anis cujo colar se fecha em outro colar, etc. (MILLER, 1996, p. 86).

    Quanto ao emprego da topologia, ainda segundo Miller, pode-se recolher seu

    comentrio de que ela no constitui, em Lacan, uma disciplina parte da teoria psicanaltica,

    isto , a topologia de Lacan s tem utilidade imersa em seu ensino, no uma disciplina sui

    generis (ibid, p. 77). O argumento milleriano traz a comparao com a psicanlise aplicada e

    a lembrana de que Freud (1913), ao escrever Totem e tabu, por exemplo, no escreve um

    artigo sobre antropologia ou etnologia, mas aborda a questo do pai na anlise, que o obriga,

    por algumas razes de estrutura, a recorrer a uma elaborao mtica (MILLER, 1996, p. 77).

    Se so razes de estrutura o que determina a escolha do mito do pai primevo, porque o

    mito que interpreta a teoria, o que quer dizer que o mito que apresenta a estrutura, a qual

    realiza a teoria que Freud prope. caso homlogo ao do artigo sobre Leonardo (FREUD,

  • 24

    1910), ou do Moiss, de Michelangelo (FREUD, 1914), que tantas crticas contumazes

    receberam, por haverem sido compreendidos como uma interpretao psicanaltica de um

    artista, ou de uma obra, quando, no sentido inverso, mais bem se prestam a ser a interpretao,

    singular em cada caso, da teoria freudiana. Fazendo-se o caminho contrrio, isto , aquele que

    leva psicanlise como interpretante, estaramos perigosamente inclinados a aplicar a

    psicanlise a toda uma srie de fatos humanos, e talvez aos outros tambm, o que faria da

    teoria freudiana uma Weltanschauung, uma chave para a interpretao do mundo, o que ela

    no (FREUD, 1933).

    Concordemos com Miller, ainda, que no obstante a afirmao de Lacan quanto

    topologia de que no uma metfora, tampouco se trata, em seu esforo de formalizao, de

    que a topologia possa recobrir toda a experincia psicanaltica:

    Evidentemente, ningum sustenta que tudo na experincia psicanaltica possa simplesmente ser matematizado. O que constitui o avano espantoso do ensino de Lacan o esforo constante de obter matemas a partir dessa experincia efetivamente no toda matematizvel. (...) A topologia de Lacan participa, portanto, por escolha, desse esforo de matematizao, isto , do esforo em destacar as relaes que esto em causa entre os termos que participam da experincia psicanaltica (MILLER, 1996, p. 77).

    Desse modo, novamente em concordncia, trata-se, ao se falar da topologia em Lacan,

    tambm de delimitar seu escopo, ou, dentro do esforo de formalizao no empreendimento

    lacaniano, de perscrutar seus limites.

    Outro representante da corrente que postula a topologia como essencial ao ensino

    lacaniano Marc Darmon (1994). A posio de Darmon, no entanto, difere daquela de Miller

    quanto coerncia ou homogeneidade de sua presena em Lacan. Referindo-se a seu prprio

    livro, diz seu autor, revelando sua posio:

    Estes ensaios abordam um certo nmero de modelos, de estruturas formais e de dispositivos topolgicos, desfazendo (sic) laos, isomorfismos ou ressonncias, sem que tudo isso se constitua num sistema. O prprio Lacan enfatizou, na medida do possvel, as ligaes entre suas escrituras formais e sua topologia. No se trata de um sistema, pois o pensamento de Lacan vivente, as vias mltiplas; no se trata igualmente de uma montagem de teses universitrias encadeando-se uma na outra

  • 25

    sem contradio. Lacan passa incessantemente de uma elaborao formal outra, livre para voltar atrs (DARMON, 1994, p. 8)

    No obstante, e mesmo sem que os mltiplos empregos de estruturas matemticas

    formem, segundo Darmon, sistema, seu esforo resulta em um compndio, expresso em uma

    srie de ensaios, de um significante conjunto, reunido, conforme o autor, por um fio, que seria

    a prpria estrutura topolgica em Lacan. Ensaios sobre a topologia lacaniana uma obra de

    referncia sobre a topologia em Lacan. Nele, como se esperava, vemos as duas vertentes,

    metafrica e no metafrica da topologia no ensino lacaniano. Se, como exemplo, seu

    primeiro captulo abre o livro com a Topologia do significante, supondo, na materialidade

    desse e em sua centralidade para a teoria lacaniana, a exposio no metafrica dessa

    topologia, o que se verifica o retorno do argumento topolgico saussuriano da folha de

    papel, com significante de um lado e significado do outro, solidrios. E analogamente no

    restante do livro, inestimvel como coletnea sobre a topologia em Lacan, mais que lacaniana

    como o ttulo sugere, no qual o uso metafrico sistematicamente reaparece, mesclado com seu

    emprego mais rigoroso, se posso assim me referir ao uso no metafrico.

    O que no quer dizer que o autor no reconhea a provenincia do fundamento. O

    mesmo Darmon, no prefcio nova edio dos Essais sur la Topologie lacanienne, de 2004,

    lembra:

    A topologia de Lacan surpreende por sua ausncia de justificao clnica, mas essa justificao, forosamente a partir do significante4, nos faria recair no impasse precedente introduo da topologia. Ora, a topologia nos deixa a liberdade de vir decifrar uma ordem ligada a uma geometria, e no mais ao sentido ou significao (DARMON, 2004).

    Reconhecendo a justificao, e a justificao clnica do uso da topologia, a partir do

    significante, Darmon, no entanto supe que essa nos faria, por remeter ao significante, recair

    nos impasses do sentido e da significao.

    4 Grifo meu

  • 26

    Mesmo assim, em mais de um momento do livro, Darmon recorre a um uso no

    metafrico da matemtica em relao ao significante. No captulo sobre as Pulses, como

    exemplo, h a interessante discusso, mesmo que passageira, sobre o significante

    conformando ou no um espao discreto, de acordo com suas propriedades, ou sua lgica.

    Ope-se freqentemente topologia lacaniana o fato de que a topologia se ocupa do contnuo, enquanto que os significantes nos colocam na presena de um espao discreto, onde os pontos so separados. Mas trata-se a de uma crtica um pouco rpida, que no d conta das particularidades dos significantes; estes no so absolutamente assimilveis a pontos separados, como num espao discreto (DARMON, 1994, p. 163).

    Com efeito, uma dupla precipitao dizer que o espao conformado por significantes

    escaparia topologia, e no somente pelo argumento de Darmon, de que no est

    imediatamente implicado que os conjuntos significantes formariam uma topologia discreta,

    como ainda na crtica de que topologia interesse to somente o domnio do contnuo. Se,

    deveras, espaos contnuos gozam de muitas propriedades, no por ser eventualmente

    discreto que um espao no seja topolgico ou que desinteresse topologia.

    O autor prossegue:

    (...) efetivamente, os significantes so puras diferenas, e a diferena entre dois significantes um significante, se bem que seria preciso conceber um espao onde os pontos no so idnticos a eles mesmos, e, por outro lado, dar conta do fato de que, entre dois desses pontos, h sempre outros pontos. a caracterstica totalmente estranha e paradoxal do significante apresentar manifestamente unidades, mas essas unidades so impossveis de se apresentar como tais (DARMON, 1994, p. 163).

    Em que se pode ler, e no metaforicamente, determinadas condies de conformao

    topolgica, no necessariamente discreta.

    Do mesmo modo, a apresentao de Darmon quanto construo do esquema R de

    Lacan tambm faz referncia estrutura significante de uma maneira que se poderia dizer

    material. O prprio autor chama a ateno, ao comentar o uso da topologia por Lacan (1972

    [2003]) em Ltourdit, para o fato de que Lacan no se utiliza de figuras em sua descrio

    topolgica do caminho de uma cura.

  • 27

    Concebemos que uma tal abordagem fsica da topologia seja espantosa, e mesmo dificilmente aceitvel por um leitor de Lacan habituado a um percurso at ento mais metonmico, e valendo-se da riqueza da linguagem potica (DARMON, 1994, p. 145).

    Porm, por mais espantosa que possa parecer, essa abordagem fsica, realista, de

    Lacan, ela no faz seno suportar a afirmao da topologia como estrutura ela mesma, e,

    portanto, fundamentada, tambm materialmente. Dado que o nico suporte material de um

    tratamento psicanaltico se encontra na palavra, seja o significante, a concluso se impe de

    que este que respalda a hiptese topolgica em Lacan. No obstante, ainda que apontada em

    diversos momentos, faz falta uma mais contundente justificao do significante como suporte

    para a topologia.

    Eidelsztein (2006), em La topologa en la clnica psicoanaltica, como mais um

    exemplo do desenvolvimento das relaes entre os dois campos, mostra uma viso

    interessante que, e somente a ttulo de apresentao, poderamos denominar de pragmtica,

    independentemente de o prprio autor design-la como tica. Declarando que seu exerccio da

    psicanlise tem uma forte vertente teraputica, sem que nos atenhamos ao sentido exato do

    termo, e apenas resgatando sua conexo com o exerccio clnico, Eidelsztein afirma que a

    pertinncia da topologia psicanlise somente se justifica na perspectiva clnica. Seu desafio

    o de verificar se a topologia contribui, no para uma teoria mais sofisticada ou mais bem

    apresentvel nos crculos intelectuais da psicanlise, seno para os resultados clnicos que se

    poderia obter a partir de sua incluso em nossas conceitualizaes; se as curas seriam, a partir

    de ento, mais exitosas e se produziriam efeitos mais radicais (ibid., p. 12). Ou ento:

    Verificar se mediante a anlise da relao entre a psicanlise e a topologia logramos obter respostas satisfatrias exigncia racional para os problemas que nos so colocados na prtica da psicanlise (EIDELSZTEIN, 2006, p. 11).

    O que, parece-me, uma justificao legtima para seu interesse, que igualmente o

    meu.

  • 28

    No obstante, j no incio do livro, que a transcrio revisada de um curso proferido,

    o autor, ao se colocar a pergunta: Por que topologia?, sugere que a resposta deva ser:

    porque imprescindvel. Porque a nica via de que dispomos para aceder estrutura real

    do espao. A intuio no nos serve por muitssimos motivos (ibid., p. 22). Assim, criticando

    nossa intuio espacial, Eidelsztein, prope fundamentar a escolha da topologia em nossos

    enganos perceptivos quanto ao espao. Com a tautologia de que a estrutura do espao

    topolgica, se quisermos ter acesso ao real dessa estrutura, e, uma vez que a topologia a

    cincia que estuda o espao, devemos estudar topologia (!).

    E, prosseguindo com a crtica da noo de intuio espacial de Kant, atacando a

    idia kantiana do espao como um a priori, Eidelsztein afirma:

    Se no aceitamos a intuio transcendental do espao, tal como coloca Kant, temos de nos perguntar qual ento o acesso estrutura real do espao. Qual ? O da topologia (EIDELSZTEIN, 2006, p. 25).

    Parece provado que devemos estudar topologia se queremos entender do espao. O

    que no era nem necessrio demonstrar. O que no me parece claro na argumentao porque

    se deve estudar topologia sendo psicanalista, ou qual seu relevo para a psicanlise, ou o

    fundamento, se que h algum, na aproximao entre os dois. Surpreender-nos com o tempo

    que demoramos em nos interessarmos ou nos iniciarmos no estudo da estrutura do espao em

    que nos desenvolvemos (ibid., p. 19), sugerindo que o espao em que vivemos tem algo a ver

    com a psicanlise, por sua relao com nossa referncia realidade, no me parece indicar a

    razo prpria para um parentesco entre aquela e a topologia.

    No obstante, segue o autor, retomando a declarao de intenes inicial, a idia do

    livro no a de trabalhar sobre a estrutura real do espao; o objetivo a clnica psicanaltica e

    a eficcia de nossas intervenes: Vou tentar, na medida do possvel, aplicar isso clnica

    (ibid., p. 25) diz o autor.

  • 29

    No se pode dizer, claro, que o fundamento para o recurso topolgico esteja

    completamente ausente, e j no segundo captulo, Eidelsztein traz que:

    Para sustentar o argumento do sujeito do inconsciente como bidimensional, vamos utilizar a estrutura em rede da palavra, como metfora e metonmia que bidimensional. O suporte espacial mediante o qual vamos conceb-lo ser a topologia, porque a topologia opera com superfcies bidimensionais, deformando-as e cortando-as (EIDELSZTEIN, 2006, p. 29).

    Ignorando o comentrio de que o suporte espacial utilizado dever ser o da topologia

    porque essa opera com superfcies bidimensionais, o que, na parte que no tautolgica, um

    equvoco j apontado, assinalar a bi dimensionalidade a partir das vertentes da metfora e da

    metonmia, parece-me, vai direto ao ponto. Pena que o autor no desenvolve o fundamento

    dessa afirmao, talvez por j lhe ser bvia, dada a velocidade com que passa pela afirmao

    de que bidimensional.

    Podemos nos confessar frustrados, se nossa expectativa tiver sido a de encontrar uma

    resposta satisfatria pergunta por que a topologia para a clnica psicanaltica?. Ainda

    assim, o desenvolvimento ulterior de Eidelsztein profcuo. E, mesmo sem o fundamento, o

    autor desenvolve inmeros comentrios sobre a psicanlise luz da topologia, mas tambm

    da segunda luz da primeira. Est a, a meu ver, e particularmente no primeiro sentido, o

    grande mrito de seu trabalho.

    Victor Korman (2004), com El espacio psicoanaltico, por sua vez, reconhecendo a

    dificuldade de abarcar todos os aspectos topolgicos do ensino de Lacan, procura destacar,

    com relao topologia, as referncias ao sujeito: em conseqncia, se privilegiaro aqueles

    aspectos da topologia lacaniana que melhor ilustram5 a estrutura(o) deste (ibid., p. 49). A

    topologia seria, portanto, ilustrao da estrutura ou dos caminhos de estruturao subjetiva,

    baseada na capacidade que possuem os objetos topolgicos de evidenciar a estrutura

    (ibidem). Entretanto, dizer que uma ilustrao leva a topologia condio de metfora, e

    5 Grifo meu

  • 30

    no mais estrutura ela mesma, como quer Lacan. Na outra via, fica obscura a razo pela qual

    ela apresentaria a boa capacidade de evidenciar a estrutura subjetiva.

    No digo, com isso, que haja um desconhecimento do que poderia se apresentar como

    suporte para essa relao, suposta essencial, entre a topologia e a psicanlise. Korman

    tambm reconhece que:

    (...) a lingstica saussureana um dos pontos de partida de Lacan -, ao se fundamentar no jogo das diferenas e dos lugares mais especificamente, das diferenas em funo dos lugares -, est imersa, de maneira plena, em princpios topolgicos (KORMAN, 2004, p. 282).

    O autor lembra que a topologia trata de aspectos qualitativos do espao, destacando as

    relaes de vizinhana, continuidade, conexidade, assim como seus contrrios, isto , a

    separao, as fronteiras e os buracos, e procura, atravs disso, estabelecer a relao imediata

    que a rene lingstica de Saussure. Sempre invocada, a imagem da folha de papel que

    rene, ou separa, significante e significado como seu verso e reverso parece ser suficiente, ou

    ao menos indicada como podendo ser:

    (...) alguns dos mltiplos elementos que permitem sustentar a existncia de um nexo conceitual compartilhado entre as duas disciplinas, e imaginar que Lacan depois de haver introduzido suas prprias inflexes nos conceitos importados da lingstica tenha sido levada por essa topologia (KORMAN, 2004, np. 311).

    O que esses autores parecem deixar passar, no entanto, que a topologia, antes de ser

    uma cincia dos espaos, o que qualquer livro de matemtica que aborde o tema no faz seno

    destacar, tem seu fundamento na teoria dos conjuntos. Apresentar, ou no, uma topologia

    uma propriedade de uma coleo de conjuntos. Assim, se forosamente a partir do

    significante, como diz Darmon, que a topologia se justifica, ou, seguindo Miller, se a

    topologia se sustenta no significante, ou ainda, como quer Korman, que a relao se d pela

    entrada da lingstica saussuriana, o fundamento do emprego da topologia deve residir no

    enquadre do significante na teoria dos conjuntos. Esse, parece-me, o passo elidido por todos

    os autores mencionados. Seria possvel que esse aspecto seja to auto-evidente que nem

  • 31

    sequer se justifique sua meno? Fao a aposta de que a obviedade da origem dessa relao

    entre psicanlise e topologia ainda merece alguma ateno.

    Sob outra perspectiva, percebe-se tambm uma disparidade quanto concepo da

    relao entre psicanlise e topologia. O que este trabalho tenta sustentar que se o

    significante, por apresentar a prpria estrutura de conjunto, que d o fundamento para essa

    relao, ento a topologia modelo, no sentido matemtico do termo. Dito de outra maneira, a

    topologia interpreta a psicanlise, o que vai em sentido estritamente oposto queles que

    tentam interpretar a topologia mesmo se for necessrio dizer que se trata de uma topologia

    lacaniana a partir da psicanlise. Essa diferena, como sugeri, da mesma ordem que aquela

    suposta entre a psicanlise como clnica e aquela dita aplicada. No difcil reconhecer que

    ao utilizar uma teoria qualquer, mesmo a psicanaltica, como chave de compreenso, acaba-se

    reconhecendo por todas as partes, reencontrando em todos os lugares, aquilo que j se tinha

    em vista desde o incio. Como diz um adgio popular, para quem tem um martelo na mo,

    tudo prego.

    Interpretar a psicanlise pela topologia no encontrar no toro as voltas contnuas da

    demanda, mas, ao contrrio, encontrar na demanda a repetio das voltas que desenhariam um

    espao trico. No tampouco encontrar na banda de Mbius todos os aparentes paradoxos

    que renem e separam saber e verdade, dentro e fora, sujeito e objeto, mas seguir o sentido

    inverso e verificar, mas no necessariamente, e est a o potencial do emprego da topologia,

    se a banda uniltera mbiana efetivamente realiza o que a teoria preconiza, isto , se ela

    realmente sua estrutura.

  • 32

    II.2. Genealogias

    Na busca dos fundamentos que garantiriam o uso da topologia pela psicanlise, por

    parte de Lacan, outros autores procuram oferecer argumentos. Burgoyne (2002), por exemplo,

    refaz o traado de influncias dos mestres e contemporneos de Lacan e de Freud6 para

    mostrar que, nesses, no somente a metfora do espao j estava presente nas formulaes

    sobre o psiquismo, como ainda ter sido atravs do questionamento dos prprios fundamentos

    da matemtica que os tericos em questo chegaram s proposies que aproximaram os dois

    campos aparentemente to dspares. Burgoyne aponta como tanto Lacan, na Frana, como

    Imre Hermann, na Hungria, dois psicanalistas contemporneos que se esforaram em

    aprofundar as relaes entre a psicanlise e a matemtica, sofreram, em sua formao, as

    influncias dos psiquiatras Minkowski e Biswanger e como esses, ambos, tm no espao uma

    referncia fundamental7. A despeito de terem, ambos, excludo a matemtica, ou as

    consideraes propriamente matemticas, de suas proposies, mantendo o espao como

    metfora, a abordagem fenomenolgica que os levou a trazer a terminologia topolgica,

    presente em termos no somente como interior e exterior, por demais corriqueiros, mas

    aqueles de continuidade, conectividade e ordem, mais especficos, poderia indicar, caso se

    aceite a proposta fenomenolgica, a estrutura mesma de que se trata.

    Segundo o autor, tanto Hermann, quanto Lacan teriam resgatado essa referncia

    espacial e procurado restaurar sua matematicidade. Hermann, por seu lado, formulou a tese de

    um estrito paralelismo entre as estruturas nos domnios do amor e da matemtica,

    6 No deixa de ser interessante a lembrana proporcionada por PRIBRAM (1998, p. 14) de que Helmholtz, tido em alta estima por Freud, haveria escrito a Poincar perguntando-lhe Como percebemos os objetos e que tipo de tratamento matemtico poderamos supor?, ao que o matemtico teria respondido Use a teoria de grupos. Ento, Lie, outro matemtico, teria escrito a Poincar com o seguinte comentrio: O que voc disse ao Helmholtz sobre teoria de grupos? Ele usou a teoria de grupos errada... isso no vai funcionar. Ele usou grupos descontnuos e deve-se ter grupos contnuos para formar a percepo de objetos. Inventei a teoria de grupos contnuos justamente para solucionar esse problema. O que se ressalta , naturalmente, a presena das matemticas na discusso com a neurologia em poca de intensa discusso interdisciplinar. 7 importante mencionar, no entanto, que no s a psicanlise lacaniana que faz apelo s matemticas, nominalmente topologia no estudo e teorizao dos fenmenos mentais. Sirag (1996), por exemplo, sugere um complexo modelo que se relacionaria conscincia utilizando matemtica, topologia e teoria quntica.

  • 33

    fundamentando-se no discurso psictico e propondo que nesse estavam em operao

    estruturas da teoria dos conjuntos tais como desenvolvidas nos trabalhos do matemtico

    Cantor. Esse, por sua vez, sofria de episdios psicticos, nominalmente durante a construo

    de sua teoria inovadora, e a inteno de Hermann era a de encontrar a base da estrutura da

    psicose manaco-depressiva e aplicar tais achados na compreenso do trabalho de Cantor em

    matemtica.

    Lacan, por sua vez, tendo entrado no domnio das matemticas pelo vis do

    estruturalismo, tambm passou a valorizar as estruturas espaciais, no sem fazer um uso

    pouco ortodoxo da matemtica, desvinculando-a no somente de todo clculo, como

    inclusive, de toda demonstrao. Burgoyne, no traado genealgico das influncias

    lacanianas, lembra ainda que Koyr, com quem Lacan assumidamente tinha familiaridade,

    estudara em Gttingen, e com ningum menos que Hilbert (1862-1943), essencialmente

    preocupado em estabelecer os fundamentos da matemtica e profundo admirador de Cantor:

    Ningum nos expulsar do paraso que Cantor criou para ns (BOYER, 1974, p. 417), teria

    dito Hilbert. Cantor, por sua vez, o criador da teoria dos conjuntos, freqentemente citado

    por Lacan. Hilbert, um dos maiores matemticos da passagem do sculo XIX ao sculo XX,

    cujo nome costuma ser lembrado como ligado ao ambicioso projeto de axiomatizao da

    matemtica, e particularmente da geometria, se interessava por todos os seus ramos, e trouxe

    tambm importantes contribuies teoria dos nmeros, lgica matemtica e topologia,

    que Koyr no devia ignorar.

    Ao fim e ao cabo, o percurso que Burgoyne restabelece percorre duas linhas que se

    entrecruzam: a questo da linguagem e o questionamento dos fundamentos da matemtica.

    Em particular, o autor assinala como o trabalho sobre a primeira, quando retomado por

    matemticos, aponta na direo da segunda, com a criao de uma nova concepo da

    matemtica.

  • 34

    Outra genealogia traada por Burgoyne, e que dessa vez refere-se a Freud, parte de um

    filsofo escocs, Dugald Stewart, comentado, por sua vez, por John Stuart Mill. Freud, em

    seu Estudo sobre as afasias (1891), prope uma estrutura concernente linguagem,

    posteriormente aproveitada em seu Projeto para uma psicologia cientfica (1895), na qual

    uma palavra seria uma apresentao complexa, ou que palavra corresponderia um

    complicado processo associativo no qual se renem elementos de origem visual, acstica e

    sinestsica. Uma palavra adquiriria seu significado ligando-se a uma apresentao do objeto.

    A prpria apresentao do objeto , mais uma vez, um complexo de associaes formado por uma grande variedade de apresentaes visuais, acsticas, tteis, cenestsicas e outras. A filosofia nos diz que uma apresentao do objeto consiste simplesmente nisso que a aparncia de haver uma coisa de cujos vrios atributos essas impresses dos sentidos do testemunho, deve-se meramente ao fato de que, ao enumerarmos as impresses sensoriais que recebemos de um objeto, pressupomos a possibilidade de haver grande nmero de outras impresses na mesma cadeia de associaes (J.S. Mill). Assim, a apresentao do objeto vista como uma apresentao que no fechada e quase como uma que no pode ser fechada, enquanto que a apresentao da palavra vista como algo fechado, muito embora capaz de extenso (FREUD, 1915b, pp. 221-222)

    A referncia topolgica de Freud explcita e a idia pode ser rastreada at John

    Stuart Mill, que Freud traduziu para o alemo. A idia de que haveria um complexo aberto

    que se ligaria a outro, fechado, e que as conexes entre os complexos abertos promoveriam a

    possibilidade do deslizamento de sentido, que Freud retira de Mill, o qual, por sua vez credita

    a Stewart, chegou, por outras vias, a William Hamilton (1805-1865), famoso matemtico

    irlands, tambm preocupado com os fundamentos da matemtica. Hamilton, segundo

    Burgoyne, que tambm se interessava por estudos sobre lingstica, utilizou as idias de

  • 35

    Stewart sobre o deslizamento do sentido dentro da matemtica, que ele denominou

    transferncia, para promover uma notvel reformulao na lgebra. de Hamilton a

    formulao moderna da lgebra dos nmeros complexos e a criao dos quaternions, que, a

    exemplo das geometrias no euclidianas, tambm abandonava um dos postulados

    fundamentais da multiplicao algbrica. No entraremos nos meandros das formulaes de

    Hamilton, que Burgoyne sugere serem ainda mais prximas do interesse psicanaltico,

    sustentando a idia de que o paralelismo entre as estruturas matemticas e aquelas

    supostamente existentes no domnio do amor, defendido por Hermann, encontram em

    Hamilton sua sustentao. Menos ambiciosos, tenhamos em mente, to somente, que as

    elaboraes lingsticas e as matemticas, nos fundamentos mesmo dessa ltima, encontram-

    se relacionadas em mais de uma das possveis genealogias que renem psicanlise e

    matemtica.

    Mais uma vez, dessa maneira que se sugere que o fundamento para o emprego da

    matemtica e, nominalmente, da topologia, em psicanlise deve ser buscado na relao do

    significante com as matemticas. Porm, adianta-se, no nas matemticas tradicionais, seno

    nos desenvolvimentos surgidos a partir dos questionadores de seus prprios fundamentos, que

    levaram Cantor, Hilbert ou Hamilton, para citar apenas aqueles surgidos at aqui, a propor

    inovaes que, desde ento, revolucionaram seu campo.

    II.3. Vontade de cincia

    Com relao ao projeto de formalizao da psicanlise por Lacan, um dos argumentos

    mais freqentemente utilizado por seus defensores toca a relao que a psicanlise teria com a

    cincia.

    pergunta de ser a psicanlise uma cincia, uma das respostas mais comuns costuma

    ser a exposio da prpria cincia a seus crticos, mostrando que os critrios de definio de

  • 36

    uma cincia tampouco so to unvocos como se esperaria, ou como se desejaria,

    impossibilitando a noo de cincia como uma unidade. Nessa vertente, correntes como o

    inducionismo, o verificacionismo, o racionalismo crtico, a fenomenologia, a hermenutica e a

    hermenutica crtica apresentam verses do que se poderia chamar de cincia. Verses

    reconhecidas entre seus pares, mas que retiram a iluso de uma unidade da cincia. A

    desvantagem do apelo a qualquer uma dessas, no entanto, que a epistemologia da

    psicanlise permanece sob crtica.

    Outra possvel abordagem, comum nos meios lacanianos, a de apresentar a tenso

    existente entre a psicanlise e a cincia (GLYNOS, 2002). Aqui, a questo deslocada da

    inicial, a de ser a psicanlise uma cincia e, portanto, de a qual ideal de cincia se prende ou

    de qual o seu modelo ideal, para outra, que indaga sob que condies a cincia seria capaz de

    incluir a psicanlise. Segundo esta perspectiva, o que caracterizaria a prtica da cincia no

    seriam seus mtodos ou seus objetos, ainda que a teoria, e essencialmente sua prtica estejam

    em destaque, mas a posio subjetiva, ou sua causa, no exerccio do trabalho cientfico.

    nesses termos que Lacan retoma Descartes para fundamentar a atitude de Freud frente aos

    impasses de seu trabalho e o mtodo cartesiano da cincia moderna para sua possvel soluo,

    propondo que a cincia moderna condio para a psicanlise, por um lado, mas que Freud,

    na contramo daquela, reinseriu o sujeito rejeitado no passo do filsofo.

    E se psicanlise , simultaneamente, o procedimento de investigao (a pesquisa

    cientfica), o conjunto de saberes (a nova cincia) e o mtodo de tratamento (sua prtica), essa

    reunio acontece no somente sob a gide da manuteno da subjetividade daquele que se

    analisa, mas, e o que seria particular psicanlise, sob a posio daquele que a pratica como

    analista, ou seja, sob transferncia, imiscuindo definitivamente uma posio prtica tica do

    praticante/pesquisador.

  • 37

    a partir dessa posio que Lacan (1965) postula que o sujeito sobre o qual

    operamos em psicanlise s pode ser o sujeito da cincia. Porm, como comenta Milner

    (1996), afirmar que um sujeito moderno difere de outro, anterior, independentemente do

    indivduo empiricamente observvel, e que o advento da moderna cincia seria o responsvel

    por esse corte, sustentar, ao mesmo tempo, que o sujeito efeito de um discurso o sujeito

    moderno efeito do discurso institudo pela modernidade, isto , pela forma de pensar trazida

    por Descartes , mas tambm que h um corte epistemolgico entre o antes e o depois de

    Descartes; que entre os lados do corte no h sinonmia, seno meramente homonmia.

    Porm, como acentua Milner (1996, p. 69), a presena de cortes implica a existncia de um

    conjunto de realidades que permanecem imunes aos cortes. Se a lngua aquela apontada

    como imune aos cortes que fazem histria, na condio, ainda seguindo Milner, da lngua

    como forma que esta permaneceria refratria aos cortes.

    Ora, se a cincia foi passvel de cortes significativos, segundo o autor, o mesmo no se

    pode dizer quanto s matemticas. A fsica, tomando o modelo da cincia ideal como

    exemplo, ao longo de sua histria sofreu profundas transformaes em sua forma, mas no h,

    segundo a maioria das autoridades, ruptura absoluta entre a matemtica grega e a matemtica

    cartesiana ou cantoriana; h diferenas, por certo, mas nada que se compare quela que se

    verifica na fsica antes e depois de Galileu. Dessa forma, seria a matemtica como referente

    exterior s transformaes verificadas na cincia o que permitira medir o alcance e funcionar

    como baliza de cada corte. V-se, ento, que a matemtica tem estritamente o status de uma

    lngua (MILNER, 1996, p. 71), o que, reala o autor, no somente se tornou prevalecente

    entre os modernos, mas j estava presente em Galileu, que queria a matemtica como alfabeto

    do universo.

    Essa diferena em sua temporalidade faz com que cincia e matemtica, portanto, no

    se confundam, e a utilizao da segunda pela primeira no as reduz uma a outra. A separao

  • 38

    que organiza cincia e matemtica aquela que igualmente separa um discurso de uma

    linguagem. Teria sido por essa via que Lacan haveria se interessado pela linguagem para,

    segundo Milner (1996, p. 73) abandon-la logo no instante em que nela se detm, buscando,

    a partir da o ponto de referncia absoluto, o qual no seria nem a linguagem em si, nem as

    lnguas nas quais se polimeriza, mas aquilo de que a linguagem, reduzida a seu real, o

    substituto. Isto , o sujeito (ibidem).

    De maneira estritamente anloga, teria sido por esta via que Lacan, em uma franca

    declarao de adeso cincia assim concebida, haveria feito sua opo pelo estruturalismo,

    como aquele capaz de abraar o doutrinal da cincia.

    Projeto antigo, podemos situ-lo j no incio de seu ensino, poca de Funo e

    campo da fala e da linguagem em psicanlise (LACAN, 1953 [1998]). Ali, o entusiasmo de

    Lacan pelo estruturalismo ntido e ao identificar o psicanalista a um praticante da funo

    simblica, diz o autor, nos situa no cerne do movimento que instaura uma nova ordem das

    cincias (ibid, p. 285). Para introduzir as contribuies do estruturalismo, o qual responderia

    aos anseios de cientificidade por parte das cincias humanas, o autor dessas linhas ainda

    comenta:

    Mas, hoje em dia, vindo as cincias conjecturais resgatar a noo de cincia de sempre, elas nos obrigam a rever a classificao das cincias que herdamos do sculo XIX (LACAN, 1953 [1998], p. 285).

    Porque, se por um lado, Lacan desabona a separao entre as cincias humanas e

    aquelas naturais, preferindo denominar as primeiras cincias conjecturais, mesmo esse termo,

    posteriormente, posto sob suspeita:

    Aqui, j no parece aceitvel a oposio que se traaria entre as cincias exatas e aquelas para as quais no h por que declinar da denominao de conjecturais, por falta de fundamento para essa oposio (LACAN 1953 [1998], p. 287).

  • 39

    Aquilo com que Lacan dessa maneira apresenta a discordncia uma diviso

    hierrquica das cincias, as naturais, por apresentarem uma relao mais direta com as

    matemticas, recebendo um privilgio em relao s cincias conjecturais, ditas humanas.

    Pois a exatido se distingue da verdade e a conjectura no impede o rigor. E se a cincia experimental herda das matemticas sua exatido, nem por isso sua relao com a natureza menos problemtica. (...). Pois a cincia experimental no se define tanto pela quantidade a que efetivamente se aplica, mas pela medida que introduz no real (LACAN, 1953 [1998], pp. 287-288).

    Seguindo Milner, se j o pensamento grego indica que a matemtica a cincia do

    eterno, imune aos cortes, no tanto por conclamar o nmero em sua suposta perfeio, mas

    porque capaz de literalizar seu objeto, de operar com as letras que designam suas

    propriedades. Lembremo-nos de que o nmero, o arbico, tal como o empregamos hoje, teve

    sua entrada bastante tardia nas matemticas ocidentais, com Fibonacci entre seus difusores, na

    passagem do sculo XII ao sculo XIII. A geometria grega, com efeito, no tratava de

    nmeros, mas de medidas, e os teoremas euclidianos, referindo-se genericamente a segmentos

    e arcos j poderia ser dita literal.

    sob esse prisma que Lacan adotou o estruturalismo, subvertendo-o, ao mesmo

    tempo, pela prpria introduo da categoria de sujeito ali onde ela no estava. O

    estruturalismo tambm propunha, tendo o homem como objeto, a reduo das qualidades

    sensveis, prestando-se, portanto, ao ensejo de re-incluir o sujeito no reino da cincia, j que a

    destituio das qualidades sua condio de possibilidade (o passo cartesiano).

    Adicionalmente, o estruturalismo lhe oferecia uma segunda vantagem, a possibilidade de

    matematizao que, adequadamente considerada, parecia suprir as necessidades de que Lacan

    carecia para conceder psicanlise um lugar junto cincia moderna. A matematizao, na

    psicanlise de Lacan, como no estruturalismo, entenda-se, no implica na quantificao ou na

    mensurao, seno na possibilidade de literalizao, passo realizado pelo estruturalismo com

    sucesso e rigor.

  • 40

    Nesta perspectiva, aventuro-me a dizer que no se deve falar propriamente de um

    projeto de formalizao da psicanlise por parte de Lacan, como se formalizao e psicanlise

    andassem por vias diferentes. Na viso de Lacan que daqui depreendemos, psicanlise e

    cincia se encontram pelo estruturalismo, tendo a matemtica como solo comum. A

    formalizao no estranha psicanlise tanto quanto no estranha prpria matemtica, a

    qual, com Hilbert e outros sofreu sua prpria experincia, provocando reformulaes

    essenciais quanto a seus prprios fundamentos, o que lhe propiciou avanos tambm

    significativos.

    No obstante, e antes de passarmos ao tpico seguinte, dois comentrios ainda devem

    ser feitos.

    Corfield (2002) lembra, e tambm de acordo com a crtica lacaniana da separao

    injustificada entre as cincias da natureza e as humanas, que tal distino tem sida minorada

    em vista da travessia da linha que dividiria a predio, supostamente caracterstica das

    cincias da natureza, mas existente em ramos das humanidades, como na economia, da mera

    descrio, tida como especfica s cincias humanas, mas presente, por exemplo, na

    paleontologia, cincia tida como natural. O autor marca ainda que a matemtica a que aspira

    todo ramo que se pretende cientfico no se apresenta da mesma forma no exerccio, variando

    desde o uso da estatstica, como o ponto mais baixo da adeso matemtica, na psicologia que

    se pretende cientfica, por exemplo, passando pela modelagem atravs do uso de equaes

    diferenciais, na economia, para se indicar um caso, at o emprego da geometria algbrica e da

    topologia, em fsica terica, como ponto mais alto. O autor ento critica Lacan pela tentativa

    de furar a fila, como se o emprego da matemtica devesse, em cada caso, subir os degraus

    da hierarquia proposta.

    Porm, mais contundentemente, Corfield aponta que o sucesso da matematizao da

    cincia fsica, por exemplo, deve-se possibilidade de se fazer o caminho inverso daquele que

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    leva da experincia formalizao, isto capacidade preditiva que o emprego matemtico

    possibilitaria, e no somente por intermdio dos clculos que antecipam comportamentos, mas

    nas descobertas que a prpria matemtica envolvida permite antecipar. O autor lembra a

    descoberta de Netuno, fruto da observao do comportamento no previsto da rbita de

    Urano, e que foi encontrado a poucos graus de desvio do lugar que os clculos antecipatrios

    lhe haviam designado. Mas lembra tambm a descoberta de Dirac, na fsica, em que a

    existncia de razes negativas para as equaes de campo, supostas a descreverem o

    comportamento dos eltrons, levou postulao da existncia de novos tipos de partculas, os

    psitrons, que efetivamente foram confirmados pouco depois. Trata-se, assim, da

    possibilidade no somente de modelar, em sentido comum, o comportamento, como de se

    efetuar descobertas a partir do prprio modelo, nem mesmo conjecturadas antes da

    modelagem.

    Nessa linha, a matematizao proposta por Lacan estaria longe de apresentar alguma

    justificativa, e as nicas perspectivas de um suporte ao esforo lacaniano poderia ainda vir da

    confirmao clnica ou da oferta de uma significativa coerncia terica, ambas se defrontando

    com dificuldades prprias.

    Tambm Milner (1996) parece apontar para um fracasso na tentativa de topologizar a

    psicanlise, ou de matematiz-la. De acordo com esse autor, a passagem das figuras

    topolgicas, como a banda de Mbius e o cross-cap, para aquelas dos ns borromeanos

    marcaria o fim do que o autor considera o segundo classicismo lacaniano, tendo sido o

    primeiro a sua adeso estruturalista. Os ns, ainda sendo objetos da matemtica, carecem, ou

    careciam at muito recentemente, da mesma formalizao atingida pelas figuras topolgicas e

    parecem ter sido escolhidos tambm por esse motivo, incluindo na formalizao aquilo de que

    no se fala nem mesmo com a letra matemtica e que somente se mostra tal qual.

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    Haveria, pois um campo matematizvel e passvel de completa transmisso, o dos

    matemas e da topologia, e outro cuja transmissibilidade seria prejudicada, por uma verdade

    oclusa, sua causa, e sobre a qual apenas conjecturas poderiam ser oferecidas configurando um

    campo heterogneo e no totalmente transmissvel (LEUPIN, 1991).

    No obstante, e considerando, ao menos subsidiariamente que o problema da

    transmissibilidade no esgota e nem se superpe totalmente quele do manejo clnico, o

    interesse pela topologia tem permanecido dentro do lacanismo.

    II.4. A oposio formalizao

    Considerando-se a presena de um projeto de formalizao da psicanlise por parte de

    Lacan, independentemente de sua razo, e a despeito mesmo da discutvel distino

    epistemolgica entre as cincias naturais e as humanas, a necessidade, seno mesmo a

    possibilidade da uma formalizao das ltimas freqentemente criticada, seja pelos

    cientistas do primeiro grupo, seja pelos do segundo. Seu principal argumento, como lembra

    Gilles-Gaston Granger, repousa na oposio entre quantidade, prevalente nos estudos

    naturais, e qualidade, considerada essencial nos fenmenos humanos.

    Por detrs da maioria das crticas que se opem aos defensores de uma cincia rigorosa do homem, reencontra-se a objeo da qualidade. Teme-se sempre que um conhecimento cientfico deixe escapar aquilo que, no ser humano e em suas obras, parece ser o mais significativo, o mais especfico, o mais irredutvel s esquematizaes de qualqu