Sobre o doutrinamento

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Sobre o doutrinamento. Especialmente destinado aos ateístas e aos que acham que essa função é religiosa... O doutrinamento se dá num nível muito mais profundo e cotidiano do que pensamos. Vamos examinar alguns valores presentes na nossa cultura: Há como conceber um casamento sem amor? Essa união deve ser monogâmica? Somos homens e mulheres ou machos e fêmeas? Voltemos à Idade Média. Como eram feitos os casamentos no ocidente? O patriarca de uma família prometia sua filha, ainda menina, ao futuro filho do patriarca de outra família conhecida, com uma certa antecedência. Não havia, destarte, o amor no casamento. Ele poderia se dar numa relação construída no casamento, ou, na maioria das vezes, poderia nem vir a se consolidar. Essa tradição começou a ser questionada em versos dos cancioneiros, nas cantigas de amor e de amigo, ainda na Idade Média, no século XII. Nessas cantigas havia, no entanto, a idealização do amor, algo inalcançável, seja porque o sentimento era por uma mulher de outra classe social, no caso da cantiga de amor, ou porque o amado estava no fossado, uma espécie de serviço militar obrigatório, quando se tratava da cantiga de amigo. Daí vem a expressão estar na fossa. Lembremo-nos de que mesmo as cantiga de amor tendo Eu lírico feminino, eram escritas por um poeta. As mulheres não eram letradas nessa época. A obra que foi um marco para a tradição romântica foi Tristão e Isolda. Tristão ficou encarregado de buscar Isolda, que havia sido prometida ao seu tio. Havia sido preparada uma bebida, a qual tinha poder de fazer com que o casal que a consumisse se apaixonasse. Tristão tratou de bebê-la com Isolda. Os dois se apaixonaram perdidamente. Lembraram a Tristão que ele seria condenado ao inferno por adultério. Nessa época, as pessoas acreditavam de fato nessa danação. E então Tristão disse: “Se por isso eu tenha de ser condenado ao fogo eterno do inferno, então que assim seja!” Esse amor também passou a ser afirmado, sobretudo no Iluminismo, passando a ser um valor inscrito na nossa autonomia na busca da

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Sobre o doutrinamento. Especialmente destinado aos ateístas e aos que acham que essa função é religiosa...

O doutrinamento se dá num nível muito mais profundo e cotidiano do que pensamos. Vamos examinar alguns valores presentes na nossa cultura:

Há como conceber um casamento sem amor? Essa união deve ser monogâmica? Somos homens e mulheres ou machos e fêmeas?

Voltemos à Idade Média. Como eram feitos os casamentos no ocidente? O patriarca de uma família prometia sua filha, ainda menina, ao futuro filho do patriarca de outra família conhecida, com uma certa antecedência. Não havia, destarte, o amor no casamento. Ele poderia se dar numa relação construída no casamento, ou, na maioria das vezes, poderia nem vir a se consolidar. Essa tradição começou a ser questionada em versos dos cancioneiros, nas cantigas de amor e de amigo, ainda na Idade Média, no século XII. Nessas cantigas havia, no entanto, a idealização do amor, algo inalcançável, seja porque o sentimento era por uma mulher de outra classe social, no caso da cantiga de amor, ou porque o amado estava no fossado, uma espécie de serviço militar obrigatório, quando se tratava da cantiga de amigo. Daí vem a expressão estar na fossa. Lembremo-nos de que mesmo as cantiga de amor tendo Eu lírico feminino, eram escritas por um poeta. As mulheres não eram letradas nessa época. A obra que foi um marco para a tradição romântica foi Tristão e Isolda. Tristão ficou encarregado de buscar Isolda, que havia sido prometida ao seu tio. Havia sido preparada uma bebida, a qual tinha poder de fazer com que o casal que a consumisse se apaixonasse. Tristão tratou de bebê-la com Isolda. Os dois se apaixonaram perdidamente. Lembraram a Tristão que ele seria condenado ao inferno por adultério. Nessa época, as pessoas acreditavam de fato nessa danação. E então Tristão disse: “Se por isso eu tenha de ser condenado ao fogo eterno do inferno, então que assim seja!”

Esse amor também passou a ser afirmado, sobretudo no Iluminismo, passando a ser um valor inscrito na nossa autonomia na busca da felicidade. No entanto, vemos cada vez mais os casamentos ruírem. É o amor o valor fundamental na união de duas pessoas? Ainda podemos nos remeter à poligamia nos países islâmicos e na poliandria, que ocorre na África e na Polinésia. Essas pessoas se realizam melhor ou pior do que nós monogâmicos? A sexualidade é um valor construído culturalmente: homem que é homem não chora, é durão, é firme, trabalha fora, é mantenedor da família, é a voz de autoridade no seu lar. A mulher é meiga, delicada, boa mãe, deve cozinhar bem, cuidar do lar e de seus filhos, entre outros atributos. Sabemos que esse modelo já vem ruindo há algum tempo, sobretudo com o início da emancipação da mulher, que se intensificou com os movimentos feministas da década de 60. No entanto, sabemos que, à mulher, ainda cabe o papel de cuidar do lar, apesar de estar, cada vez mais, lado a lado com o homem no trabalho extradomético. A grande maioria de nós, homens, não reconhece valor no trabalho doméstico, que subsidia e possibilita o trabalho do homem, permanecendo marginal a ele. Estamos observando, cada vez mais, que a fraqueza, fragilidade, ternura, fortaleza e tenacidade são valores humanos, inerentes a ambos os sexos.

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À criança sempre foram reservados os cuidados que temos e conhecemos? E a ideia de maternidade e de amor materno, sempre foi visceral, tal qual como conhecemos?

O Iluminismo, que também idealizou uma nova estética para a humanidade_ a da racionalidade, inventou a ideia de infância. Olhemos para um conhecido e deturpado conto da Idade Média: João e Maria. Essas crianças foram abandonadas na floresta porque seus pais não tinham condições de alimentá-las. No entanto, acharam o caminho de casa. Tornaram a ser abandonadas na floresta. Foram encontradas por uma bruxa, cheia de pedras preciosas. A velha queria abusar dos meninos, que conseguiram matá-la queimada e fugir com suas riquezas. Os pais as receberam de braços abertos. E foram felizes para sempre. Aos nossos olhos, isso é admissível? Por quê?

No advento da colonização, quiseram impor os valores europeus aos dos esquimós. Observaram os seus hábitos alimentares: primeiramente comia o pai, depois o filho mais velho, e, por último, as crianças. Você também está achando essa ordem absurda? Foi assim que viram os bons católicos. Trataram de subverter essa ordem: primeiramente comem as crianças, depois a mãe, os irmãos mais velhos e, finalmente, o pai. Resultado. Quase dizimaram esse povo. O pai esquimó e os filhos mais velhos caçam. São responsáveis pela obtenção do alimento. Como farão isso sem energia? A mãe é responsável por preparar o alimento e por produzir abrigos feitos com as peles dos bichos (usam os dentes para costurar as peles, por isso são banguelas). As crianças, sem essa ordem, morrem de fome e de frio...

Com relação aos valores religiosos, já foram mais importantes, quando ainda havia o medo da danação do inferno. O historiador Leandro Karnal nos lembra, em uma de suas palestras, que o Papa Pio XII afirma: O homem perdeu a noção de pecado. Karnal nos lembra que a luxúria, que era um dos principais pecados, hoje é uma virtude. Precisamos ser desejáveis, não importa como. Isso é um dogma religioso? As religiões neopentecostais vendem a imagem de um Jesus bem-sucedido. A fé está na perseverança em busca de obter bens materiais. Isso é dogma religioso? Algumas pistas podem ser encontradas na predestinação calvinista e a justificação pela fé e na obra capital de Max Weber, a Ética protestante.