Sobre o Devir Conceito

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Texto sobre o conceito de devir

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Sobre o devir dos conceitos

DANIEL W. SMITH / Departamento de Filosofia - Purdue UniversityO que para Deleuze o conceito de um conceito? Em O que Filosofia? , Deleuze e Guattari sabidamente definem filosofia como atividade que consiste em formar, inventar e fabricar conceitos. Deleuze parece ter se agarrado a essa concepo de filosofia como criao de conceitos desde o incio da sua carreira. O poder de uma filosofia , escreveu ele em seus primeiros livros, medido pelos conceitos que cria ou rejuvenesce - conceitos que impe uma nova maneira de dividir coisas e aes. Ainda quando estava no ensino mdio, ele relembra, quando foi introduzido filosofia, conceitos o tocaram com a mesma fora que personagens da literatura, com seus temperamentos e vitalidade, povoando suas prprias paisagens (ABCE). Entretanto, s mais tarde em sua vida, em O que filosofia? (1991), foi que Deleuze, trabalhando com Guattari, props sua prpria analtica dos conceitos, pegando emprestada a frase de Kant, alcanando o ponto onde pde perguntar O que tenho feito toda a minha vida?. Deleuze comparou o livro, de passagem, Crtica da Faculdade do Juzo, de Kant, e a comparao apropriada: ambos so trabalhos da idade madura, escrito quando os pensadores geralmente tem pouca coisa nova a dizer e seus sistemas j esto bem estabelecidos. Ainda que a terceira crtica de Kant seja um livro cheio de novos conceitos, forando os limites da arquitetura cuidadosamente construda por Kant, (inaugurando o perodo Romntico) e o que hoje chamamos, precisamente, de filosofia ps-kantiana. De maneira similar O que filosofia?, longe de ser o cume da auto-reflexo da carreira de Deleuze, muito mais seu legado para o futuro da filosofia, uma passada de basto; ela tambm propem uma pletora de novos conceitos e problemas que sero sem dvida destinados a serem temas do que quer que uma filosofia ps-Deleuzeana venha a ser. Nas prximas pginas, eu gostaria de explorar uma constelao de problemas que esto no corao do O que filosofia?: nomeadamente, o complexo jogo de relaes que Deleuze estabelece entre (conceitos, tempo e verdade).

O devir dos conceitos

Uma das mais bvias caractersticas da analtica dos conceitos de Deleuze reside no fato de que, numa perspectiva Deleuzeana, conceitos no tem uma identidade, mas apenas um devir. Em seu prefcio traduo italiana de Lgica dos Sentidos, por exemplo, Deleuze, ele mesmo, traa brevemente o devir de um de seus prprios conceitos: o conceito de intensidade (TRM- 65-6-??). Em Diferena e Repetio (1968), ele nota, o conceito de intensidade foi primeiramente relacionado com a dimenso de profundidade. Na Lgica do sentido (1969) o conceito de intensidade mantido, mas aparece relacionado primeiramente com a dimenso de superfcie mesmo conceito, mas diferentes componentes. No Anti-dipo (1972) o conceito encontra um terceiro devir que no est relacionado nem com profundidade nem com superfcie: crescentes e decrescentes intensidades so agora eventos que tomam lugar num corpo sem rgos. Devemos adicionar um quarto devir na lista de Deleuze: em O que Filosofia? o conceito de intensidade usado para descrever o status dos componentes dos conceitos, que so determinados como intensivos em vez de extensivos (que uma maneira pela qual Deleuze se distingue de Frege, para quem os conceitos so extensionais). Em outras palavras, o conceito de intensidade no permanece o mesmo no prprio corpus Deleuzeano; ele sofre mutaes internas.

A isso, devemos acrescentar o fato de que muitos dos conceitos que Deleuze utiliza tm um longo devir na histria da filosofia, que ele retoma, se apropria, e insere em seu prprio trabalho conceitual. A distino entre quantidades extensivas e intensivas, por exemplo, data da filosofia medieval e de Plotino. O conceito Deleuzeano de multiplicidade para pegar um outro exemplo - foi primeiramente formulado matematicamente por Bernard Riemann em sua geometria no-Euclidiana, que, por sua vez, o ligou ao conceito Kantiano de mltiplo. Tanto Husserl quanto Bergson adotaram o conceito de Riemann para suas prprias propostas filosficas, e Deleuze primeiro escreveu sobre o conceito no que diz respeito distino de Bergson entre dois tipos de multiplicidade (contnua e discreta), que Deleuze desenvolveu da sua prpria maneira, e considerou uma das questes fundamentais do pensamento contemporneo. A este respeito, um dos textos fundamentais na histria da filosofia a introduo de Kant a Dialtica Transcendental, onde ele explica por que vai se apropriar do conceito de Ideia de Plato em vez de cunhar seu prprio termo, j que Plato lidava com uma problemtica similar quela que Kant queria lidar, ainda que Plato, de acordo com Kant, no tenha determinado suficientemente seu conceito. Deleuze, por sua vez, promove outra transformao quando, em Diferena e Repetio, toma a teoria de Kant sobre o conceito de Ideia e a modifica sua maneira, argumentando que Kant no tinha levado ao limite as ambies imanentes de sua prpria teoria das Ideias.

Similarmente, Deleuze parece ter pretendido inicialmente que O que filosofia?, pelo menos em parte, fosse um livro sobre o conceito de categoria, e, assim, uma releitura da analtica dos conceitos Kantiana. Na Analtica Transcendental da Crtica da Razo Pura, Kant sabidamente desenhou sua prpria lista de categorias, derivada de sua tipologia dos juzos, a qual ele tentou deduzir como as condies da experincia possvel. Em Diferena e Repetio Deleuze explicitamente distinguiu seus prprios conceitos fundamentais (problemtica, virtualidade, singularidade, e outros mais) das categorias Aristotlicas ou Kantianas. Ainda que Whitehead e Peirce tenham pensado listas de categorias muito diferentes das de Kant, e no processo tenham reinventado ou recriado o conceito de categoria. Deleuze parece ter pensado seu trabalho com o mesmo intuito:

A concluso de Mil Plats , para mim, uma lista de categorias (mas incompleta, insuficiente). No maneira de Kant, mas maneira de Whitehead. Categoria, assim ganha um novo significado, um significado bastante especial. Eu gostaria de trabalhar sobre este ponto.

Para Deleuze, o problema que gera o conceito de categoria mudou. No mais uma questo de determinar as condies de possibilidade da experincia, mas as condies da experincia real; e as condies do real seriam ao mesmo tempo as condies da produo do novo. Aqui, mais uma vez, o devir dos conceitos dentro do trabalho de Deleuze uma continuao do devir dos conceitos na histria da filosofia.

De uma forma mais reveladora, Deleuze diz que mesmo ele e Guattari nunca entenderam o corpo sem rgos da mesma maneira (TRM 238), uma revelao que talvez traga algum consolo queles que se esforam por compreender Capitalismo e Esquizofrenia. No entanto, Isso no uma questo de inteno autoral. Se considerarmos os trabalhos autorais de Deleuze e Guattari como livros que pertencem amplamente trajetria dos escritos de Deleuze, e igualmente trajetria dos escritos de Guattari, ento pode-se tomar o comentrio de Deleuze como implicando que mesmo num trabalho como o Anti-dipo, o conceito de corpo sem rgos tem um sentido diferente, um diferente devir, dependendo de que se o leia no contexto da trajetria de Deleuze ou no contexto da trajetria de Guattari. Em outras palavras, mesmo dentro de um nico projeto ou trabalho, os conceitos de Guattari e Deleuze no tem uma identidade que possa ser reduzida a uma simples definio. De fato, Deleuze insiste nesse ponto: trabalhar junto [com Guattari] nunca foi uma homogeneizao, mas uma proliferao, um acmulo de bifurcaes. (TRM 238). Mais ainda, se Deleuze entrou num devir-Guattari nos trabalhos autorais conjuntos, podemos dizer que ele fez o mesmo em suas monografias, quando entrou num devir-Espinoza, ou num devir-Leibniz (e Espinoza e Leibniz por sua vez foram forados a entrar num devir-Deleuze), de tal forma que, mesmo em seus trabalhos solo, os conceitos de Deleuze nunca perdem o status de devir. Como Deleuze disse, Eu sou quase incapaz de falar em meu prprio nome [en mon nom](TRM 65). Nesse sentido, a crtica de Deleuze identidade do self ou ego tem seu paralelo exato na crtica da identidade dos conceitos. Se a experimentao em ns mesmos nossa nica identidade (D II) , a mesma coisa vale para os conceitos: sua nica identidade est na experimentao isto , nas suas variabilidade e mutaes intrnsecas. Por essa razo, finalmente, um devir-Deleuze, afeta os seus leitores assim como aqueles que tentam escrever sobre seu trabalho. Na terminologia de Nelson Goodman, os escritos de Deleuze exemplificam o que ele expressa: seus textos so eles mesmos problemas, campos de vetores, multiplicidades, ou rizomas com cujas singularidades podem ser conectadas numa variedade de modos, assim escrever sobre os textos de Deleuze por si mesmo um devir, uma produo do novo (no simplesmente uma interpretao, como diriam os hermeneutas). Raramente encontram-se posies nos trabalhos de Deleuze (Deleuze pensa que ...); ao contrrio, ler ou escrever Deleuze traar trajetrias cujas direes no so dadas antes de sua leitura ou escrita. Mesmo os apelos ocasionais de Deleuze a vrios ismos (vitalismo, empirismo transcendental) so menos declaraes de adeso que provocaes paradoxais. Resumindo, existe um devir dos conceitos no apenas na obra de Deleuze, mas tambm em cada livro e em cada conceito, que se estende para ou se apropria da histria da filosofia, e que repetido em cada ato de leitura.

Filosofia como criao

Isto, entretanto, o que se pode esperar tanto terica quanto praticamente de um filsofo como Deleuze. Se a filosofia de Deleuze uma filosofia da diferena, ento este status diferencial deve estar refletido em seus prprios conceitos, os quais no podem ter uma identidade prpria sem comprometer toda a natureza do seu projeto. Mas como, ento, podemos compreender este devir dos conceitos? Como aproximao inicial dessa questo, podemos dizer que a concepo Deleuzeana da filosofia como criao de conceitos tem vrias consequncias inter-relacionadas. Primeiramente, isto define filosofia como uma atividade que tem tradicionalmente se alinhado com a arte: especialmente, a atividade da criao. Para Deleuze, os filsofos so to criativos quanto os artistas, a diferena est no fato de que o que eles criam so conceitos, e no pinturas, esculturas, filmes ou romances. Na linguagem de Deleuze, filsofos criam conceitos, enquanto artistas criam agregados sensveis de perceptos ou afectos, e cientistas criam funes. A abordagem de Deleuze questo O que filosofia? tem a vantagem de caracterizar a filosofia em termos de uma bem definida ocupao ou uma atividade precisa, mais que simplesmente uma atitude por exemplo, conhecer a si mesmo, perguntar porque existe algo em vez de nada, ou no tomar nada como sendo auto evidente. Criar conceitos, Deleuze escreve, , no mnimo, fazer alguma coisa (WP 7). Mais ainda, assim como trabalhos artsticos carregam a assinatura do artista, a criao conceitual carrega a assinatura do filsofo que a criou. Na pintura, falamos dos girassis de Van Gogh ou das bandeiras de Jasper John, assim como na filosofia falamos no cogito Cartesiano, ou nas mnadas de Leibniz, ou na vontade de potncia em Nietzsche. Na medicina, similarmente, falamos da doena de Alzheimer e Parkinson; na matemtica, do teorema de Pitgoras ou dos nmeros Hamiltonianos; e em cincia do efeito Doppler ou o efeito Kelvin (LS 70). Em todos esses casos, o nome prprio refere-se menos pessoa do que ao trabalho de arte ou conceito por ele concebido. O nome prprio aqui usado para indicar um modo-de-individuao-no-pessoal. Nesse sentido, seria possvel fazer uma histria da filosofia seguindo as linhas de uma histria da arte: isto , em termos de suas grandes produes ou obras-primas. Sonhamos s vezes com uma histria da filosofia que listasse apenas os novos conceitos criados por um grande filsofo sua contribuio mais essencial e criativa (ES ix). De fato, Deleuze, em outro lugar, pondera que poderamos quantificar a filosofia, atribuindo a cada filsofo uma espcie de nmero mgico correspondendo ao nmero de conceitos que ele criou ou transformou (um anlogo filosfico, talvez, aos nmeros Erds em matemtica) (ABC H). Deste ponto de vista, o cogito de Descartes e a Ideia de Plato seriam paralelos filosficos Monalisa de Da Vinci ou o Juzo Final de Michelangelo grandes obras primas da filosofia assinadas por seus criadores.

Em segundo lugar, a definio de Deleuze para a filosofia como criao de conceitos no implica apenas que os filsofos so to criativos quanto os artistas; mais importante, talvez, o fato de que isso tambm implica que artistas sejam to pensadores quanto os filsofos eles simplesmente pensam em termos de perceptos e afectos em vez de conceitos; pintores pensam em termos de linhas e cores, assim como msicos pensam em sons, escritores pensam em palavras e cineastas pensam em imagens e assim por diante. Jean-Luc Godard, por exemplo, uma vez disse que, numa filmagem, a deciso de usar um plano sequncia em vez de uma panormica uma profunda atividade de pensamento, j que cada tipo de plano produz um tipo diferente de espao; tomadas panormicas so abrangentes, nos do uma viso global, como numa geometria projetiva, enquanto que planos sequncia constroem uma linha, e ligam espaos locais e vizinhanas que por eles mesmos podem permanecer fragmentados e desconectados, mais como na geometria Riemanniana (N 58). A ideia de que o pensamento necessariamente proposicional, representacional, ou lingustico, ou mesmo conceitual completamente estranha Deleuze. Existem outros modos de pensamento e criao, outros modos de ideao que, como no pensamento cientfico, no tem que passar por conceitos (WP 8). Quando escultores moldam uma pea de barro, ou pintores aplicam cores ou linhas em uma tela, ou cineastas gravam uma cena, h um processo de pensamento envolvido; mas esse processo de pensamento no tem lugar num meio conceitual, nem mesmo atravs da aplicao de conceitos a um meio sensvel (Kant). Ao contrrio, um tipo de pensamento que se d diretamente e atravs do meio sensvel.

Uma terceira consequncia se segue a isso. Nenhuma dessas atividades arte ou filosofia tem qualquer prioridade em relao outra. Criar um conceito no mais difcil nem mais abstrato do que criar novos perceptos e afectos em arte; reciprocamente, no mais fcil compreender uma imagem, pintura ou romance do que compreender um conceito. Filosofia, para Deleuze, no pode nunca pode ser produzida independentemente da arte (ou da cincia, da poltica, da medicina, e assim por diante), e est constantemente formando relaes de mtua ressonncia e troca com essas outras reas de pensamento. Filsofos podem criar conceitos sobre arte, assim como artistas e autores podem criar a partir de conceitos da filosofia como, por exemplo, na assim chamada arte conceitual. por isso que Deleuze pde constantemente insistir que, quando ele escreveu sobre arte, ou cincia, ou medicina, ou psiquiatria, ele o fez como filsofo, e que seus escritos em todos esses domnios devem ser lidos como trabalhos de filosofia, nada alm de filosofia, no sentido tradicional da palavra. Nos seus estudos das artes, o que Deleuze intencionava como filsofo era criar conceitos que correspondessem aos agregados sensveis criados pelos artistas e autores. Em seu livro Francis Bacon: Lgica da Sensao, Deleuze cria uma srie de conceitos filosficos, cada qual, ele disse, relacionado a um aspecto particular da pintura de Bacon, mas que tambm tem um lugar na lgica geral da sensao. De maneira similar, Deleuze insiste que seus dois volumes Cinema podem ser lidos como um livro de lgica, a lgica do cinema que se prope a isolar certos conceitos cinematogrficos, conceitos que so especficos do cinema mas que s podem ser elaborados filosoficamente. (MI ix; N 47).

Essas trs rubricas juntam, de forma sumria, a caracterizao Deleuzeana da relao entre filosofia e arte ou, mais genericamente, entre filosofia e ato de criao: filsofos so to criativos quanto artistas ( filsofos criam conceitos); artistas e autores so to pensadores quanto os filsofos (eles simplesmente pensam com materiais ou matrias no conceituais); e nenhuma atividade de criao tem qualquer prioridade sobre a outra. Alguns leitores do O que Filosofia? , no entanto, expressaram surpresa com a maneira um pouco rpida com que Deleuze separa as tarefas da filosofia (criar conceitos), da arte (criar afetos e perceptos) e da cincia (criar funes). Mas Deleuze aqui est seguindo o mesmo procedimento semi-Bergsoniano que ele adotou em seus primeiros trabalhos. Em Matria e Memria, Bergson procura analisar o que chamou de pura percepo e pura memria, embora a experincia sempre nos apresente misturas das duas; os conceitos nos permitem isolar tendncias que permanecem misturadas na experincia. Assim como, quando Deleuze faz a distino entre modos de existncia ativos e reativos em Nietzsche e a Filosofia, ou diferentes formaes sociais (sociedades primitivas, estados, capitalismo) no Anti-dipo, ou diferentes tipos de imagem no Cinema, ele sempre os apresenta como tipos isolveis que podem ser usados para desembaraar as misturas apresentadas na experincia.

Extrair os conceitos que correspondem a uma multiplicidade traar as linhas com as quais ela feita, determinar a natureza dessas linhas, ver como elas se tornam embaraadas, conectadas, bifurcadas ... o que ns chamamos um mapa, ou as vezes um diagrama num conjunto de linhas que interagem. (D viii; N 33).

Deleuze utiliza a mesma aproximao em O que Filosofia? O significado das distines que Deleuze estabelece entre filosofia, arte e cincia, primeiramente que elas fornecem um ponto de referncia a partir do qual se pode acessar as ressonncias e trocas os devires que acontecem entre esses trs domnios (assim como a medicina, poltica, psiquiatria, e assim por diante). Conceitos, por exemplo, so necessariamente inseparveis de afectos e perceptos; eles nos fazem perceber as coisas de maneiras diferentes (perceptos), nos inspiram novos modos de sentir (afectos), assim modificando, como diria Spinoza, nosso poder de existir (13 Dec 1983). Um conceito que fosse somente inteligvel, e no produzisse novos afectos e perceptos, seria um conceito vazio. Por outro lado, Deleuze estava ciente dos perigos de citar proposies cientficas fora de sua prpria esfera, que so o perigo de aplicar conceitos cientficos em outros domnios, ou mesmo utiliz-los de forma metafrica e por isso arbitrria. Mas talvez esses perigos possam ser evitados, Deleuze conclui, se ns nos restringirmos a tomar dos operadores cientficos uma caracterstica particularmente conceitualizvel, que se refira ela-mesma a reas no-cientficas, e convirjam com a cincia sem aplic-la ou fazer dela uma metfora . Em ambas instncias Deleuze est explorando a natureza das inter-relaes entre domnios separveis; como sempre, a as anlises de Deleuze so focadas primariamente na diferena no entre, no meio, o relacional, o intersticial.

Criao de conceitos e filosofia: conceitos vitais como singularidades

Deleuze parece ter pretendido que sua teoria de conceitos se aplicasse especificamente a conceitos filosficos conceitos criados por filsofos mais do que conceitos cotidianos de recognio (identificao), tais como cadeiras ou prolas. Como Michaux disse, o que basta para ideias correntes no suficiente para ideias vitais aquelas que precisam ser criadas (WP 207). Um exemplo de conceito vital um conceito que teve que ser criado o conceito de Barroco, cujos componentes Deleuze analisa em A dobra: Leibniz e o Barroco.

estranho negar a existncia do Barroco da mesma maneira com que se nega unicrnios ou elefantes cor de rosa [Deleuze escreve], porque nesses casos o conceito dado, ao passo que no caso do Barroco uma questo de saber se se pode inventar um conceito capaz (ou no) de lhe dar existncia. Existem prolas irregulares, mas o Barroco no tem razo para existir sem um conceito que forme essa mesma razo. (FLB 33)

Em outras palavras, conceitos vitais como o Barroco criam seu objeto correspondente, uma vez que o objeto no pr-existe formao do conceito. Ao ser criado, um conceito dispe a si mesmo e dispe seu objeto, ao mesmo tempo; o conceito, em outras palavras, auto referencial (WP 22). Isso no verdade para os conceitos da linguagem ordinria, que so usados para denotar objetos ou classes de objetos j constitudas (Russell). Por isso Deleuze considera conceitos como multiplicidades ou mltiplos: espaos metrificados so determinados por coordenadas externas ao espao, assim como as coordenadas Cartesianas, enquanto que espaos no-metricos tem uma mtrica interna, que marca suas transformaes internas, mutaes e passagens (no sentido de Whithead para uma passagem de natureza).

Mas isso parece implicar que a filosofia no o nico meio de criao de conceitos. O quebra-cabeas que Heinrich Wlfflin apresenta nos seus Princpios da Histria da Arte, por exemplo, o fato de que todos os trabalhos de arte produzidos durante o perodo Barroco parecem... obras de arte barrocas. Mas o Barroco, como estilo, no existe fora de seu conceito, e o que Wfflin tentou fazer com sua histria da arte sem nomes (contra Vasari) foi isolar os componentes dos conceitos de arte clssica e de arte barroca a servio de uma histria mais ampla dos modos de viso: o linear versus o pictrico, o plano versus o curvo, forma fechada versus forma aberta, claridade versus chiaroescuro, e multiplicidade versus unidade. Embora Deleuze rompa com aspectos da anlise de Wlfflin notadamente ao insistir que a dobra um componente fundamental do conceito de Barroco no podemos deixar de ver no trabalho pioneiro de Wlfflin um considervel esforo na criao de conceito. Uma criao de conceitos similar tem lugar na medicina. Se condies tais como a doena de Parkinson ou a sndrome de Asperger ganham os nomes dos mdicos e no dos pacientes, porque os mdicos puderam isolar a doena construindo um conceito clnico original para isso. Os componentes do conceito so os sintomas, os sinais da doena, e o conceito se torna o nome da sndrome, o que indica o ponto de encontro dos sintomas, seu ponto de coincidncia ou convergncia. (M 15-16).

Eu nunca teria me permitido escrever sobre psicanlise ou psiquiatria [Deleuze uma vez admitiu], se no estivesse lidando com problemas de sintomatologia. Sintomatologia se situa quase fora da medicina, em um ponto neutro, um ponto zero, onde artistas e filsofos e mdicos e pacientes podem se encontrar. (DI 134)

Nesse contexto, Arnold Davidson, eu seu trabalho sobre a emergncia do conceito de sexualidade, mostrou que, estritamente falando, no existiam pervertidos ou homossexuais antes do sculo XIX diferente, digamos, de pederastas e sodomitas precisamente porque seus conceitos ainda no tinham sido formulados. Da mesma forma, Ian Hacking mostrou como, particularmente nas cincias humanas, a criao de conceitos como personalidade mltipla pode ter o efeito de criar pessoas, criar fenmenos, ou tornar possvel novos modos de existncia. A criao de conceitos, resumindo, no parece ser dada exclusivamente pela filosofia. Apesar de Deleuze ocasionalmente falar desta maneira, ele, no entanto, escreve, desde que haja um tempo e lugar para criar conceitos, a operao que se d ser sempre chamada de filosofia, ou ser indistinguvel da filosofia mesmo se for chamada de outra coisa. (WP 9).

O que importante na criao de conceitos, em outras palavras, menos sua relao especfica com a filosofia do que o fato de que os conceitos criados conceitos vitais em qualquer domnio em que sejam criados, devem ser entendidos como singularidades (ou melhor, como conjuntos de singularidades ou multiplicidades).

Existem dois tipos de conceitos [nota Deleuze], universais e singulares... O primeiro princpio da filosofia que conceitos universais no explicam nada, mas precisam, eles mesmos, ser explicados... Conceitos no so universais, mas conjuntos de singularidades que se estendem vizinhana de outras singularidades. (N 156-157; WP 7).

Mas o que significa considerar um conceito como um conjunto de singularidades? Deleuze frequentemente apela para a distino feita por Levi-Strauss entre dois tipos de proposio: apenas coisas similares podem diferir umas das outras; e apenas diferenas podem se assemelhar umas s outras. Na primeira, a semelhana entre coisas primria; na segunda, as coisas mesmas diferem, e diferem antes de tudo de si mesmas (diferena interna). A primeira proposio coloca semelhana como uma condio da diferena, e requer a postulao de um conceito idntico ou universal (como vermelhido) para duas coisas que diferem uma da outra. De acordo com a segunda proposio, semelhana ou mesmo identidade o efeito de uma diferena primria ou de um sistema de diferenas. O conceito de linha reta um universal, porque toda linha reta se parece com outra, e o conceito pode ser definido axiomaticamente, como em Euclides. O conceito de dobra, ao contrrio, uma singularidade, porque as dobras variam, e cada dobra diferente; todo dobrar-se procede por diferenciao. No h duas coisas que possam ser dobradas da mesma maneira nem duas pedras, nem dois pedaos de papel como no existe uma regra geral que diga que a mesma coisa ir dobrar-se sempre da mesma maneira. Nesse sentido, h dobras por todo lado, mas a dobra no um universal; em vez disso, um diferenciador, um diferencial. Como Deleuze escreve, no se trata de juntar coisas sob um e mesmo conceito [universal], mas de relacionar cada conceito s variveis que determinam suas mutaes [singularidades](N31). Ou ainda, escrevendo sobre sua prpria criao conceitual: O que interessante sobre conceitos como desejo, mquina ou conjunto que eles s tem valor em suas variaes e no mximo de variveis que eles permitirem (D144). O que importante em um conceito vital ou criado no sua universalidade mas suas singularidades internas os pontos singulares que ele conecta, os componentes intensivos que ele condensa, os devires e mutaes em que ele entra. por isso que o conceito de dobra est ligado segunda proposio de Lvi-Strauss: todas as dobras diferem, e esta diferena primria, mas elas so, secundariamente, feitas para assemelhar-se umas s outras no conceito. O conceito de dobra uma singularidade ou, mais precisamente, uma multiplicidade que marca a convergncia de um conjunto de singularidades, as quais formam os componentes do conceito e o conceito pode somente ganhar terreno por variar dentro de si mesmo, bifurcando-se, metamorfoseando-se.

Basta compreender-se montanhas e sobretudo ver e tocar montanhas do ponto de vista de suas dobras para que elas percam sua solidez, e para que seus milnios tornem-se novamente o que so: no permanncias, mas tempo no estado puro. (N 157)

Com esta compreenso de que conceitos so conjuntos de singularidades (ou multiplicidades), chegamos razo para o incessante devir dos conceitos de Deleuze: a inteno da analtica conceitual de Deleuze introduzir a forma pura do tempo nos conceitos, na forma do que ele chama de variao contnua ou pura variabilidade. O objetivo no redescobrir o eterno ou o universal, mas encontrar as condies sob as quais algo novo produzido (criatividade) (D vii).

Do tempo originrio ao tempo ordinrio

Mas o que significa introduzir o tempo nos conceitos? Para responder a isso, devemos fazer um pequeno desvio atravs da filosofia do tempo de Deleuze. Mais especificamente, precisamos entender o que Deleuze quer dizer quando refere-se forma pura e vazia do tempo uma frase recorrente em seus escritos. De acordo com Deleuze, a mutao moderna na nossa concepo de tempo ocorreu com Kant; no trabalho de Kant o tempo assumiu sua prpria independncia e autonomia pela primeira vez. Antes disso, da antiguidade at o sculo XVII, o tempo esteve subordinado ao movimento; o tempo era a medida ou o nmero do movimento. Como a pluralidade dos movimentos implicava uma pluralidade de tempos, os antigos eram levados a perguntar: existe alguma coisa imvel, fora do movimento - ou, ao menos, um movimento mais perfeito a partir do qual todos os movimentos possam ser medidos, um grande esquema celestial, ou o que Leibniz chamaria de mestaesquematismo? Existir um movimento dos movimentos em relao ao qual todos os outros movimentos possam ser coordenados? Como havia dois tipos maiores de movimento o movimento extensivo do cosmos, e o movimento intensivo da alma esta questo acabou sendo respondida de duas maneiras diferentes. No Timeu, por exemplo, Plato tentou incorporar os movimentos do cosmos viso de um planetarium composto por oito globos, com a terra imvel como centro, cercado por uma esfera dos fixos (as estrelas) girando em seu eixo, com sete globos entre eles (os planetas) girando na direo inversa. Estes globos girantes partem de uma posio inicial, e eventualmente voltam mesma posio: um grande ano ou circuito do eterno retorno, que em alguns clculos, chegava a durar dez mil anos. Era precisamente este movimento dos movimentos que ofereceria um ponto de referencia pelo qual todos os outros movimentos podiam ser medidos: um invariante, uma permanncia. O tempo, desta maneira, era subordinado eternidade, ao no-temporal, ao no-tensionado; na frmula de Plato, o tempo era a imagem mvel da eternidade. De modo similar, Plotino incorporou o movimento intensivo da alma ao movimento do Uno, com seus processos emanativos de processo e converso. Em ambos os casos, o resultado foi a hierarquizao dos movimentos dependendo de sua proximidade ou distancia do eterno: um tempo originrio marcado por posies privilegiadas no cosmos ou momentos privilegiados na alma. A descoberta deste invariante foi a descoberta do verdadeiro; a forma do verdadeiro era o que universal e necessrio, em todos os tempos e em todos os lugares. Esta concepo do tempo como medida do movimento mantem-se disfarada em nosso tempo cronolgico do relgio: dias, meses, e anos medem os movimentos terrestres, lunares e solares, enquanto semanas e horas so primariamente determinaes religiosas da alma (Deus descansou no stimo dia); e nossos relgios mantm-se dependentes do movimento, seja de um pndulo ou de um cristal de quartzo. A modernidade, no menos que a antiguidade mantem-se engajada em grande esforo para tornar tempo e movimento homogneos e uniformes (horrios, zonas de fusos horrios, GPSs).

Apesar de tudo, a revoluo Kantiana estava preparada para isso, pelo fato de que ambos os domnios o cosmos e a alma - eram ameaados por aberraes fundamentais do movimento, onde um tempo derivado tendia crescentemente a libertar-se do tempo originrio. Quanto mais perto se chegava da terra ( o sublunar), mais os movimentos do cosmos tendiam a se tornar anmalos: a imprevisibilidade dos movimentos meteorolgicos, o movimento de tudo que ocorre e termina. (Como nota Michel Serres, os cientistas podem prever o tempo de um eclipse, mas no podem prever se sero capazes de observ-lo. No por acaso que em francs e muitas lnguas latinas, a mesma palavra usada para o tempo (cronolgico) e o tempo (meteorolgico) le temps com seus vrios cognatos: temperatura, tempestade, temperado, temperamento, intemperado). O mundo sublunar obedece o metaesquematismo, com suas regras proporcionais, ou independente dele com seus prprios movimentos anmalos e desarmonias? A descoberta pitagrica dos nmeros irracionais j apontara para uma fundamental incomensurabilidade entre a velocidade e a posio das vrias esferas csmicas. Em sntese, o invariante fornecido pelo movimento dos movimentos era ameaado por crises em que o movimento tornava-se crescentemente aberrante. De modo comparvel, o movimento intensivo da alma era marcado pelo medo de que seus movimentos inquietos no tempo derivado ganhassem uma independncia e cessassem de se submeter ao tempo originrio do Uno ou Deus (a Queda). A busca dos universais na filosofia , em certo sentido, remanescente deste medo; o termo mesmo derivado da palavra latina universus, quer dizer dirigido para o Uno (uni um + versus dirigido a, o particpio passado de vertere).

No entanto, esses movimentos aberrantes ou derivados marcados pelas contingncias meteorolgicas, terrestres e espirituais mantinham uma tendncia descendente que ainda dependia das aventuras do movimento. Tambm eles colocavam um problema, uma escolha: ou se tentava salvar a primazia do movimento (salvando as aparncias), ou se podia no s aceitar mas desejar a liberao do tempo em relao ao movimento. Havia dois modos pelos quais o movimento podia ser salvo. A harmonia extensiva do mundo podia ser salva por um apelo aos ritmos do tempo rural, com as estaes e colheitas como pontos de referencia privilegiados no tempo originrio da Natureza. A harmonia intensiva da alma podia ser salva por um apelo ao tempo monstico, com seus momentos privilegiados das oraes e vsperas; ou mais geralmente, por um apelo vida espiritual originria da interioridade (Lutero).