Sobre Falar Merda Harry G. Frankfurt

download Sobre Falar Merda Harry G. Frankfurt

of 21

Transcript of Sobre Falar Merda Harry G. Frankfurt

  • 7/25/2019 Sobre Falar Merda Harry G. Frankfurt

    1/21

  • 7/25/2019 Sobre Falar Merda Harry G. Frankfurt

    2/21

    DADOS DE COPYRIGHT

    Sobre a obra:

    A presente obra disponibilizada pela equipeLe Livrose seus diversos parceiros, com o objetivo de oferecer contedo parauso parcial em pesquisas e estudos acadmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo decompra futura.

    expressamente proibida e totalmente repudivel a venda, aluguel, ou quaisquer uso comercial do presente contedo

    Sobre ns:

    OLe Livrose seus parceiros disponibilizam contedo de dominio publico e propriedade intelectual de forma totalmente gratuipor acreditar que o conhecimento e a educao devem ser acessveis e livres a toda e qualquer pessoa. Voc pode encontrarmais obras em nosso site:LeLivros.linkou em qualquer um dos sites parceiros apresentados neste link.

    "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutando por dinheiro e poder, ento nossa

    sociedade poder enfim evoluir a um novo nvel."

    http://lelivros.org/parceiros/?utm_source=Copyright&utm_medium=cover&utm_campaign=linkhttp://lelivros.link/http://lelivros.org/?utm_source=Copyright&utm_medium=cover&utm_campaign=linkhttp://lelivros.org/?utm_source=Copyright&utm_medium=cover&utm_campaign=link
  • 7/25/2019 Sobre Falar Merda Harry G. Frankfurt

    3/21

  • 7/25/2019 Sobre Falar Merda Harry G. Frankfurt

    4/21

    Para Joan, de verdade

  • 7/25/2019 Sobre Falar Merda Harry G. Frankfurt

    5/21

  • 7/25/2019 Sobre Falar Merda Harry G. Frankfurt

    6/21

    Um dos traos mais notveis de nossa cultura que se fale tanta merda. Todos sabedisso. Cada um de ns contribui com sua parte. Mas tendemos a no perceber essa situao. maioria das pessoas confia muito em sua capacidade de reconhecer quando se est falandmerda e de evitar se envolver. Assim, o fenmeno nunca despertou preocupaes especianem induziu uma investigao sistemtica.

    Por causa disso, no temos uma idia clara do que falar merda, da razo para que se fatanta ou para que serve. E nos falta tambm uma avaliao conscienciosa do que isso signifi

    para ns. Em outras palavras, no dispomos de uma teoria. Proponho iniciar desenvolvimento de uma compreenso terica do que significa falar merda, oferecendalgumas anlises experimentais e exploratrias.

    No vou considerar seus usos e abusos retricos. Meu objetivo apenas fornecer umdescrio aproximada do que falar merda e do que no ou (em outros termos) articulade uma forma mais ou menos resumida, a estrutura desse conceito.

    Qualquer sugesto sobre as condies logicamente necessrias e suficientes paconstituir o ato de falar merda est destinada a ser arbitrria. Por um lado, a expresso falmerda empregada livremente como um termo ofensivo genrico, sem um significadliteral muito especifico. Por outro, o fenmeno to vasto e amorfo que nenhuma anliconcisa e perspicaz de seu conceito consegue deixar de ser procustiana. Entretanto, deve spossvel dizer algo de til, mesmo sem muita probabilidade de que seja conclusivo At questes mais bsicas e preliminares sobre o que falar merda no apenas permanecem seresposta como nem sequer so perguntadas.

    At onde sei, pouqussimos trabalhos foram desenvolvidos sobre o assunto. Nempreendi um levantamento sobre sua literatura, em grande parte porque no saberia comfaz-lo. certo que h um lugar muito bvio para se dar uma olhada o Oxford Engli

    Dictionary. O OED tem um verbete para falao de merda, nos volumes suplementares,tambm outros para vrios usos pertinentes defalaoe de outros termos relacionados. Farconsideraes sobre alguns desses verbetes no devido momento. No consultei dicionrios doutras lnguas que no o ingls, porque no conheo as palavras para falao de merdaalaoem qualquer outro idioma. Outra fonte importante o titulo do ensaio The Prevalen

    of Jiumbug [Apredominncia da impostura], de Max Black.{1}No estou seguro quantoproximidade de significado entre a palavra imposturae a expressofalar merda. claro qessas palavras no so completa e livremente intercambiveis; so com certeza usadas dformas diferentes. Porm, essa diferena parece ter, no todo, mais a ver com questes de bomaneiras, e com alguns outros parmetros retricos, do que com as formas estritamente literade significado nas quais estou interessado. mais educado, e menos pesado, dizimpostura do que merda. No caso desta discusso, vou supor que no h nenhuma outdiferena importante entre os dois termos.

    Black sugere uma srie de sinnimos para impostura, como os seguintes: embustdeturpao, lengalenga, conversa fiada, lorota, tapeao e charlatanice.Essa lista singulde equivalentes no muito til. Entretanto, Black enfrenta mais diretamente o problema destabelecer o conceito do que impostura e oferece a seguinte definio formal:

  • 7/25/2019 Sobre Falar Merda Harry G. Frankfurt

    7/21

    IMPOSTURA: embuste enganador prximo da mentira, em especial por meio dpalavra ou ato pretensioso, em relao aos prprios pensamentos, sentimentos atitudes.{2}

    Uma formulao bastante similar poderia ser plausivelmente oferecida para enunciar

    caractersticas essenciais de falar merda.Como uma preliminar para o desenvolvimento de uma descrio independente dess

    caractersticas, vou comentar os vrios elementos da definio de Black.Embuste enganador:Isso pode soar pleonstico. Sem dvida, o que Black tem em men que a impostura pretende ou tenciona necessariamente enganar, que seu embuste no alginadvertido. Em outras palavras, trata-se de uma coisa deliberada.Assim, se, por uma questde necessidade conceitual, a inteno de enganar uma caracterstica invarivel da imposturento a qualidade de ser impostura depende, ao menos em parte, do estado de esprito de sperpetrador. Esse estado de esprito no pode, portanto, ser idntico a qualquer propriedaseja inerente ou relacional do discurso por meio do qual a impostura perpetrada.

    Sob esse aspecto, a propriedade de ser impostura semelhante da mentira, que noidntica nem falsidade nem a nenhuma das outras propriedades contidas na afirmao dmentiroso, mas que requer que ele a faa num determinado estado de esprito a saber, cominteno de enganar.

    Uma questo adicional se h alguma caracterstica essencial impostura ou mentique no dependa das intenes e das crenas da pessoa responsvel por ambas, ou se, pecontrrio, possvel que algum tipo de afirmao se torne uma vez que o falante encontre num determinado estado de esprito - um veculo para a impostura ou a mentira. Ecertas descries do ato de mentir, no existe mentira nenhuma a menos que uma declara

    falsa seja feita; em outras, o indivduo pode estar mentindo mesmo que sua afirmao severdadeira, contanto que ele acredite que a mesma inverdica e que pretenda, ao faz-lenganar. E sobre criar imposturas e falar merda? Pode alguma espcie de afirmao squalificada como impostura ou merda, desde que (por assim dizer) o estado de esprito dfalante seja o correto, ou o enunciado deve tambm ter caractersticas prprias?

    Prxima da mentira:Tem de ser parte do argumento dizer que a impostura encontra-prxima da mentira, que, embora tendo algumas de suas caractersticas eminentes, h outrque lhe faltam. Contudo, isso no pode constituir-se no todo do argumento. Afinal de contaqualquer uso da linguagem, sem exceo, revela no todos mas alguns dos tracaractersticos da mentira nem que seja ao menos o aspecto de ser um uso da linguagemEntretanto, seria certamente incorreto descrever qualquer uso da linguagem como prximo dmentira. A expresso de Black evoca a noo de algum tipo de contnuo, em que a mentira situa num certo segmento enquanto a impostura est localizada exclusivamente em posianteriores. Que contnuo poderia ser esse, ao longo do qual a impostura s fosse encontradantes da mentira? Ambas so formas de embuste. Num primeiro olhar, no fica claro comodiferena entre essas variedades de embuste poderia ser interpretada como uma diferena dgrau.

    Em especial por meio de palavra ou ato pretensioso: Existem dois pontos a sere

  • 7/25/2019 Sobre Falar Merda Harry G. Frankfurt

    8/21

  • 7/25/2019 Sobre Falar Merda Harry G. Frankfurt

    9/21

    mentir, estou enganando os outros com relao ao que se passa em meu esprito, mesmo quno esteja na verdade mentindo sobre isso. Visto sob esse aspecto, no parece artificial oimprprio considerar que estou deturpando minhas crenas de uma forma que prxima dmentira.

    fcil pensar em situaes familiares pelas quais a descrio de Black sobre a impostuparece confirmar-se sem problemas. Imagine um orador do Quatro de Julho que discurbombsticamente sobre nosso grande e abenoado pas, cujos fundadores, sob orienta

    divina, criaram um novo comeo para a humanidade. com certeza uma impostura. Comodescrio de Black sugere, o orador no est mentindo. Ele s estaria fazendo isso se tivesseinteno de provocar na platia crenas que considerasse falsas, a respeito de questes comse nosso pas grande, se abenoado, se os fundadores receberam orientao divina e seque eles fizeram foi de fato criar um novo comeo para a humanidade. Contudo, o orador nse importa na verdade com o que a platia pensa sobre os fundadores ou sobre o papel ddivindade na histria de nosso pas ou algo equivalente. O que motiva seu discurso no interesse no que qualquer um pensa sobre essas questes.

    O que torna o discurso do Quatro de Julho uma impostura no que o orador considesuas afirmaes falsas. Pelo contrrio, como sugere a descrio de Black, o orador pretendque essas afirmaes transmitam uma certa impresso dele. Ele no est tentando enganningum sobre a histria americana. A opinio das pessoas sobre ele que o preocupa. Equer ser considerado um patriota, algum com idias e sentimentos profundos sobre as origene a misso de nosso pais, algum que aprecia a importncia da religio, que sensvelgrandeza de nossa histria, cujo orgulho dessa histria combina com a humildade peranDeus, e assim por diante.

    A descrio que Black faz da impostura parece, assim, adaptar-se confortavelmente

    certos paradigmas. Entretanto, no creio que apreenda de modo adequado ou com precisocarter essencial do falar merda. Como ele diz sobre a impostura, correto afirmar que falmerda encontra-se prximo da mentira e que aqueles que falam esto, de certo moddeturpando-se. Contudo, a descrio feita por Black desses dois aspectos encontra-significativamente longe da verdade. Tentarei fazer agora, analisando um material biogrficreferente a Ludwig Wittgenstein, uma avaliao preliminar, porm de foco mais preciso, dcaractersticas fundamentais do falar merda.

    Wittgenstein disse uma vez que o fragmento de verso a seguir, de Longfellow, poderservir-lhe de mote.{3}

    Nos tempos antigos da arteOs construtores com todo cuidado trabalhavamCada minscula e invisvel parte,Pois os deuses em todo lugar se encontravam.

    O significado dessas linhas claro. Antigamente, os profissionais no se poupava

    trabalho. Labutavam com ateno e tinham cuidado com os menores aspectos de sua lid

    Todas as partes do produto eram consideradas, e cada uma delas projetada e feita para ser t

  • 7/25/2019 Sobre Falar Merda Harry G. Frankfurt

    10/21

    como deveria. Esses profissionais no relaxavam em sua zelosa autodisciplina, mesmo erelao queles detalhes de sua ocupao que no eram comumente visveis, Embora ningufosse reparar se eles no estivessem precisamente corretos, os artfices seriam incomodadpor suas conscincias. Dessa forma, no se varria nada para baixo do tapete. Ou, pode-tambm dizer, no se fazia merda.

    fcil produzir artigos feitos sem cuidado, de qualidade inferior, que revelasemelhanas, at certo ponto, com o falar merda. Mas de que modo? Ser essa semelhana

    de que falar merda sempre ocorre de maneira descuidada ou comodista, de que jamais umenunciao elegante, que em sua expresso nunca h aquele delicado e atencioso desvelo coos detalhes ao qual Longfellow alude? Ser o falador de merda, pela prpria natureza, uidiota desmiolado? Ser o seu produto necessariamente sujo ou grosseiro? A palavra merdcom certeza sugere isso. O excremento no de modo algum projetado ou elaborado; apenemitido ou descarregado. Pode ter uma forma mais ou menos coesa ou no, mas no decertrabalhado.

    A noo de se falar merda com cuidadoso apuro envolve, assim, um certo esforo interioUma ateno ponderada aos detalhes requer disciplina e objetividade. Ela acarreta aceitao de padres e limites que probem a tolerncia com impulsos e caprichos. esabnegao, em relao a falar merda, que nos parece inadequada. Ela no est, entretanto, fode questo. A rea da propaganda e das relaes pblicas e, hoje em dia, a intimamente ligarea da poltica esto repletas de exemplos to consumados de falar merda que podem servcomo os paradigmas mais inquestionveis e clssicos do conceito. E, nessas reas, existeprofissionais extremamente sofisticados que com o auxilio de tcnicas avanadas requisitadas de pesquisa de mercado, de levantamentos da opinio pblica, de testpsicolgicos e por a afora se dedicam de forma incansvel a usar cada palavra e image

    que produzem da maneira mais correta.Entretanto, h algo mais a se dizer sobre isso. Embora o falador de merda se conduza dforma mais estudada e conscienciosa possvel, continua sendo verdade que est tentando levalguma coisa. H com certeza em seu trabalho, como no do profissional relapso, um tipo drelaxamento que resiste ou engana as exigncias de uma disciplina desinteressada e austera. modo pertinente de relaxamento no pode ser comparado, evidentemente, simplnegligncia ou desateno com os detalhes. Tentarei no momento oportuno localizar isso comais exatido.

    Wittgenstein dedicou grande parte de suas energias filosficas a identificar e combaterque via como formas insidiosamente nocivas de contra-senso. Ao que tudo indica, ele eassim na vida pessoal tambm. Isso demonstrado num caso relatado por Fania Pascal, queconheceu em Cambridge na dcada de 1930:

    Fiz uma operao para retirar as amgdalas e estava na Casa de Enfermagem Evelysentindo-me triste. Wittgenstein fez-me uma visita. Eu resmunguei Sinto-me como ucachorro atropelado. Ele ficou contrariado: Voc no sabe como um cachoratropelado se sente.{4}

  • 7/25/2019 Sobre Falar Merda Harry G. Frankfurt

    11/21

    Ora, quem sabe o que aconteceu na verdade? Parece extraordinrio, quase inacreditvque algum possa fazer objees a srio ao que Pascal relata ter dito. Essa caracterizao dseus sentimentos to inocentemente prxima expresso mais que corriqueira cachordoente no provocativa o bastante para despertar uma reao to vvida ou intensa coma contrariedade. Se a comparao de Pascal ofensiva, ento que usos figurativos ou alusivda lngua no o seriam?

    Talvez isso no tenha de fato ocorrido da forma como Pascal diz. Pode ser qu

    Wittgenstein estivesse tentando fazer uma pequena piada, e esta no tenha funcionado. Eestaria apenas fingindo repreender Pascal, s pelo prazer de uma hiprbole; e ecompreendeu seu tom e inteno de forma errada, achando que Wittgenstein ficou contrariadcom sua observao, quando na verdade ele s estava tentando reanim-la com uma critica obrincadeira jocosamente exagerada. Nesse caso, o incidente no nem um pouco incrvel estranho.

    Mas, se Pascal no conseguiu reconhecer que Wittgenstein estava apenas provocandtalvez ento a possibilidade de que ele estivesse falando srio no fosse to fora de propsitEla o conhecia e sabia o que esperar dele; sabia como ele a fazia sentir-se. O modo entender ou no a observao dele tinha, assim, grandes probabilidades de no ser de todincompatvel com sua opinio de como ele era. Podemos at supor que, mesmo se seu relado incidente no for absolutamente fiel inteno de Wittgenstein, ele fiel o bastante idde Pascal sobre Wittgenstein a ponto de ter feito sentido para ela. Para os propsitos desdiscusso, aceitarei o relato de Pascal literalmente, supondo que, quando se tratou de usar umlinguagem alusiva ou figurativa, Wittgenstein foi na verdade to despropositado como eladescreve.

    Ento, o que o Wittgenstein do relato dela considera to censurvel? Vamos supor que e

    esteja correto sobre os fatos: ou seja, Pascal no sabe de fato como um cachorro atropelado sente. Mesmo assim, quando diz o que pensa, ela claramente no est mentindo.Mentiria sao fazer sua afirmao, estivesse na verdade passando muito bem. Pois, por menos que esoubesse sobre a vida dos cachorros, deveria com certeza estar claro para Pascal que, quandeles so atropelados, no se sentem bem. Assim, se ela estivesse de fato passando bem, tersido uma mentira afirmar que se sentia como um cachorro atropelado.

    O Wittgenstein de Pascal pretende acus-la no de mentir, mas de outro tipo deturpao. Ela caracteriza seu sentimento como a sensao de um cachorro atropelado. Eno est na verdade familiarizada com o sentimento ao qual essa frase se refere. Naturalmenque a frase est longe de significar para ela um contra-senso absoluto; Pascal no est falanddisparates. O que diz tem uma conotao inteligvel, que ela com certeza entende. Alm dissPascal de fato sabe alguma coisa sobre a natureza da sensao a que a frase se refere: sabe menos que ela indesejvel e desagradvel, uma sensao ruim. O problema com suafirmao que ela pretende transmitir algo mais que o simples no estar bem. Sucaracterizao do sentimento muito especfica; excessivamente particular. O que eexperimenta no uma sensao ruim qualquer, mas, de acordo com seu relato, o tipinconfundvel de sensao ruim que um cachorro tem quando atropelado. Para o Wittgenste

    da histria de Pascal, a julgar por sua resposta, isso falar merda.

  • 7/25/2019 Sobre Falar Merda Harry G. Frankfurt

    12/21

    Ora, supondo-se que Wittgenstein considera, de fato, que a caracterizao de Pascal sobcomo se sente um exemplo de falar merda, por que isso o impressiona dessa forma? resposta, acredito eu, que ele percebe uma falta de preocupao, digamos assim, comverdade no discurso de Pascal. Sua afirmao no est ligada iniciativa de descrever realidade. Ela nem sequer pensa que sabe, a no ser de uma maneira muito vaga, como ucachorro atropelado se sente. Sua descrio desse sentimento , portanto, algo que ela essimplesmente inventando.

    Pascal cria isso do nada; ou, se o ouviu de algum, repete-o de forma displicente e semmenor considerao pelas coisas como realmente so.E por essa displicncia que o Wittgenstein de Pascal a censura. O que o deixa contrariad

    o fato de ela nem sequer se preocupar se sua afirmao est ou no correta. Existe umgrande probabilidade, claro, de que ela esteja dizendo o que diz apenas como um esfordesajeitado para falar com vivacidade, ou de parecer jovial e bem-humorada; e no h dvidde que a reao de Wittgenstein do modo como ela v absurdamente intolerante. Secomo for, seu significado parece claro. Ele reage como se percebesse que Pascal fala sepensar, sem dedicar uma ateno conscienciosa aos fatos pertinentes. Sua afirmao no veelaborada com todo o esmero. Ela a enuncia sem nem sequer preocupar-se em levar econta sua exatido.

    A circunstncia que aborrece Wittgenstein no que Pascal tenha errado em sua descride como se sente. Nem que ela tenha cometido esse erro por descuido. Seu desleixo, ou falde cuidado, no foi ter permitido que um erro escapasse em sua fala por causa de um lapsnegligente, inadvertido ou momentneo da ateno que dedicava a entender as coisas dmaneira certa. Pelo contrrio, a questo que, at onde Wittgenstein pode perceber. Pascoferece a descrio de um certo estado de coisas sem se submeter s restries que a tentati

    de fornecer uma representao precisa da realidade impe. Seu erro no que ela no tenhconseguido entender as coisas, mas que nem ao menos tentasse faz-lo.Isso importante para Wittgenstein porque, justificadamente ou no, ele toma o que Pasc

    diz a srio, como uma declarao que pretende dar uma descrio informativa de como ela sente. Ele a v envolvida numa atividade para a qual a distino entre verdadeiro e falsocrucial e, no entanto, como se no se importasse se o que diz verdadeiro ou falso. nessentido que a afirmao de Pascal no est ligada a uma preocupao com a verdade: ela nse importa com o valor de verdade do que diz. por isso que no pode ser observada comse estivesse mentindo; porque ela no presume conhecer a verdade e, portanto, no pode estdifundindo por querer uma proposio que supe ser falsa: Sua afirmao no est baseanem na crena de que verdadeira, como uma mentira deve estar, nem de que no verdadeira. E essa falta de preocupao com a verdade essa indiferena em relao amodo como as coisas realmente so - que considero a essncia do falar merda.

    Farei agora algumas consideraes (muito seletivas) sobre certos itens, no OxfonglishDictionary,que so pertinentes ao esclarecimento da expressofalar merda.O OE

    define falao como uma conversa ou discusso informal. A caracterstica desse tipo ddiscusso informal que constitui uma falao , segundo me parece, algo assim: embora

    conversa possa ser intensa e significativa, ela no de certa forma para valer.

  • 7/25/2019 Sobre Falar Merda Harry G. Frankfurt

    13/21

    Os tpicos caractersticos de uma falao tm a ver com aspectos da vida bastanpessoais e carregados de emoo - como religio, poltica ou sexo. Em geral, as pessorelutam em falar muito abertamente sobre esses assuntos quando supem que podem slevadas a srio. O que costuma acontecer numa falao os participantes manifestarem vriidias e atitudes, a fim de ver como ouvir a si mesmos falando essas coisas e descobrcomo os outros reagem, sem que se presuma que estejam comprometidos com o que dizemnuma falao todos entendem que as afirmaes feitas pelas pessoas no revela

    necessariamente suas crenas ou sentimentos verdadeiros. O principal possibilitar um alnvel de franqueza e uma abordagem experimental ou algo aventureira dos assuntos equesto. Portanto, providncias so tomadas para que se goze de uma cerirresponsabilidade, de forma a encorajar as pessoas a comunicarem o que vai em suas mentesem muita ansiedade quanto a serem cobradas por isso.

    Cada um dos participantes de uma falao se fia, em outras palavras, num reconhecimengeral de que aquilo que ele expressou ou disse no para ser entendido como sendo o qupensa de verdade ou acredita de corao. O propsito da conversa no transmitir crenaAssim, as costumeiras hipteses sobre a relao entre o que as pessoas dizem e aquilo em qacreditam ficam eliminadas. As afirmaes proferidas numa falao so diferentes de falmerda porque no h a pretenso de que essa relao esteja sendo mantida. Elas assemelham a falar merda em razo de no serem, de forma alguma, restringidas por umpreocupao com a verdade. Essa similaridade entre falao e falar merda tambm sugeripela expresso metendo o malho,que se refere a um tipo de conversa que tambm caracterizas falaes e na qual o termo malho, muito provavelmente, um substituto mais higinico pamerda.

    Um tema semelhante discernvel num uso britnico de falao, no qual, de acordo com

    OED, o termo refere-se a tarefas ou cerimoniais de rotina desnecessrios; disciplinexcessiva ou cuspir e polir ; formalidades. O dicionrio fornece os seguintes exempldeste uso:

    O peloto () sentiu-se molestado com toda aquela falao que ecoava pela esta(i. Gleed, Arise to Conquer. VI 51, 1942); Eles nos removendo a guarda, nmarchando em linha reta sob seus olhos, toda aquela falao (A Baron,Humem KinXXIV. 178, 1953); a maada e a falao na vida de um membro do parlamen(Economist, 8 de fevereiro, 470/471, 1958)

    Aqui o termofalaose refere evidentemente a tarefas inteis, visto que no tm muito

    ver com a inteno bsica ou com o propsito que justifica o empreendimento que as requeCuspir e polir e formalidades no contribuem, de se supor, para os verdadeiros propsitde militares ou de funcionrios do governo, apesar de serem coisas impostas por rgos oagentes que pretendem conscienciosamente dedicar-se a esses propsitos. Portanto, as tarefou cerimoniais de rotina desnecessrios que constituem a falao no tm ligao com omotivos legitimadores da atividade na qual se intrometem, da mesma forma que as coisas dit

    pelas pessoas numa falao no esto ligadas a suas convices estabelecidas, nem a fala

  • 7/25/2019 Sobre Falar Merda Harry G. Frankfurt

    14/21

    a uma preocupao com a verdade.O termofalao tambm empregado, num uso muito mais disseminado e familiar, com

    um equivalente pouco menos vulgar de falar merda. No verbete para falao com essentido, o OEDsugere o seguinte como definitivo: conversa ou escrita trivial, insincera falsa; contra-senso Assim, no parece caracterstico da falao que ela deva snecessariamente carente de significado ou sem importncia; de forma que contra-sensotrivial, alm de sua impreciso, parecem estar na pista errada. O foco sobre insincera o

    falsa melhor, mas precisa ser aguado.{5}

    O verbete era questo tambm fornece as duas seguintes definies:

    1914, Notas Dialetais, IV, 162: Falao, conversa sem propsito: papo furado.1932, Suplemento Literrio, Times,8 de dezembro, 933/3. Falao o termo dgria para uma combinao de blefe, bravata, papo furado e o que se costumchamar no Exrcito de zombando da tropa.

    Sem propsito e apropriado, mas muito amplo em seu alcance algo imprecis

    Engloba digresses e irrelevncias inocentes, que no so invariavelmente exemplos falao; alm disso, dizer que a falao sem propsito no deixa claro que propsito pretende. A referncia, em ambas as definies, a papo furado mais til.

    Quando caracterizamos uma conversa como papo furado, queremos dizer que o que sai boca do falante apenas isso. Mero vapor. A fala vazia, sem substncia ou contedo. O uda linguagem no contribui, portanto, para o propsito ao qual pretende servir. Nenhuminformao a mais comunicada, como se o falante tivesse apenas exalado. A propsito, hcertas semelhanas entre papo furado e excremento que fazem papo furado parecer u

    equivalente especialmente apropriado defalar merdaDa mesma forma que papo furado umfala que foi esvaziada de todo contedo informativo, excremento matria da qual foraremovidos todos os nutrientes. Ele pode ser visto como o cadver dos nutrientes, o que resquando os elementos vitais da comida foram exauridos.

    Desse ponto de vista, o excremento uma representao da morte que geramos e, nverdade, que no podemos impedir de gerar no processo de manuteno de nossa vida. Talvseja por tornarmos a morte to ntima que consideramos o excremento repugnante. De qualquforma, ele no serve mais ao propsito da manuteno do que o papo furado ao dcomunicao.

    Consideremos agora essas linhas do Canto LXXIV, de Pound, que o OED cita em sverbete parafalar merda

    Ei. Snag, o que tem na Bblia?Quais so os livros da Bblia?Diz, no tala merda pra MIM.

    Isso e uma avaliao dos fatos. A pessoa interpelada e evidentemente vista como tend

    de alguma forma, afirmado conhecer a bblia ou interessar-se por ela. O falante suspeita qu

  • 7/25/2019 Sobre Falar Merda Harry G. Frankfurt

    15/21

    isso eram apenas palavras vazias e exige que a declarao seja apoiada por fatos. Ele no vaceitar uma mera descrio; ele insiste em ver a coisa em si. Ou seja, no quer um blefe. ligao entre falar merda e blefar declarada explicitamente na definio com a qual as linhde Pound esto associadas:

    Falar besteira; ( ..) tambm, blefarpara conseguir as coisasfalando besteira

    De fato, parece que falar merda envolve algum tipo de blefe. Encontra-se, certamenmais prximo de blefar que de contar uma mentira. Mas o que se deduz de sua natureza pefato de ter mais semelhanas com aquele do que com este? Qual a diferena relevante aqentre o blefe e a mentira?

    Mentir e blefar so formas de embuste ou de logro. Assim, o conceito mais fundamentque caracteriza uma mentira o de falsidade: o mentiroso , em essncia, algum que divulgde propsito uma falsidade. O blefe, tambm, transmite uma coisa falsa. Entretanto, de formdiferente da mentira pura e simples, ele mais um caso de tapeao que de falsidade. Isso que o torna prximo do falar merda. Pois a essncia de falar merda no algo falso, madulterado.De forma a avaliar essa distino, deve-se reconhecer que um embuste ou umadulterao no precisam ser, de modo algum ( parte a autenticidade em si), inferiorescoisa verdadeira. Aquilo que no genuno no precisa ser defeituoso por causa disso. Poser, apesar de tudo, uma cpia exata. O problema de uma imitao no a aparncia, mas modo como foi feita. Isso aponta para um aspecto similar e fundamental da natureza intrnsede falar merda: embora se origine sem preocupao com a verdade, no precisa ser algo falsO falador de merda est camuflando as coisas. Porm, isso no significa que ele as entenderradamente.

    No romanceDirty Story,de Eric Ambler, um personagem chamado Arthur Abdel Simpslembra-se do conselho recebido do pai quando criana:

    Embora tivesse apenas sete anos quando meu pai foi morto, ainda me lembro muibem dele e de algumas coisas que costumava dizer () Uma das primeiras lies qele me ensinou foi:

    Nunca conte uma mentira se voc pode conseguir as coisas falando merda.{6}

    Isso supe no apenas que h uma diferena importante entre mentir e falar merda, m

    que este prefervel quele. Ora, o Simpson pai no julgava, certamente, que falar merdfosse superior a mentir em termos morais. Nem provvel que considerasse mentir sempmenos eficaz que falar merda, na obteno dos propsitos para os quais algum desses doexpedientes fosse empregado. Afinal de contas, uma mentira elaborada com inteligncia podfazer seu trabalho com absoluto sucesso. Talvez Simpson julgasse ser mais fcil obter xifalando merda do que mentindo. Ou ento pensasse que, embora o risco de ser pego seja maou menos o mesmo nos dois casos, as consequncias do flagrante pudessem ser menos sever

    para o falador de merda do que para o mentiroso. Na verdade, as pessoas tendem de fato a s

  • 7/25/2019 Sobre Falar Merda Harry G. Frankfurt

    16/21

    mais tolerantes com a falao de merda do que com a mentira, talvez porque sejamos menpropensos a tomar aquela como uma afronta pessoal. possvel que tentemos nos distancida falao de merda, porm somos mais inclinados a dar-lhe as costas com um simplencolher de ombros, com impacincia e irritao, do que com o sentimento de ultraje ou indignao que a mentira quase sempre inspira. O problema de se compreender por que nosatitude em relao a falar merda , em geral, mais generosa do que em relao a mentirmuito importante, o que deixarei como um exerccio para o leitor.

    A comparao pertinente no est, todavia, entre contar uma mentira e originar umocorrncia especfica de falar merda. O Simpson pai v conseguir as coisas falando merdcomo alternativa a contar uma mentira. Isso no envolve apenas originar uma ocorrncia dfalar merda; envolve umprogramade produo de merda em todo e qualquer mbito que circunstncias possam requerer. Essa talvez seja uma explicao para sua preferncia. Contuma mentira um ato com enfoque muito preciso, projetado para inserir uma determinadfalsidade num ponto especfico de um conjunto ou de um sistema de convices, a fim devitar as consequncias de se ter aquele ponto ocupado pela verdade. Isso requer um grau dpercia no qual o contador da mentira se submete a constrangimentos objetivos, impostos paquilo que ele tem como sendo a verdade. O mentiroso incondicionalmente afetado pelvalores de verdade. Para inventar uma mentira qualquer, ele tem de pensar que conhece verdade e, a fim de inventar uma mentira eficaz, precisa elaborar sua falsidade sob orientao daquela verdade.

    Por outro lado, a pessoa que tenta conseguir as coisas falando merda goza de muito maliberdade. Seu enfoque e panormico em vez de particular. Ela no se limita a inserdeterminada falsidade num ponto especfico e, dessa forma, no se v restringida pelverdades que rodeiam esse ponto ou que o atravessam. Ela est preparada, tanto quanto

    preciso, para camuflar o contexto tambm. Essa liberdade em relao s restries a quementiroso tem de se submeter no significa necessariamente que sua tarefa seja mais fcil qua dele. Porm, a forma de criatividade na qual se fia menos analtica e refletida do quaquela mobilizada na mentira; mais extensa e independente, com oportunidades mais amplpara a improvisao, a nuance e o jogo imaginativo. Isso menos uma questo de habilidadque de arte. Dai o conceito familiar do artista de merda. Minha opinio que recomendao oferecida pelo pai de Arthur Simpson reflete o fato de que ele se sentia muimais atrado por essa forma de criatividade, sem levar em conta seu relativo mrito oefetividade, do que pelas exigncias mais austeras e rigorosas da mentira.

    O que o falar merda deturpa, essencialmente, no o estado de coisas ao qual se refereque a mentira deturpa por ser falso nem as crenas do falante em relao a esse estado dcoisas. Uma vez que falar merda no envolve falsidade, difere das mentiras em seu intendeturpador. O falador de merda pode no nos enganar, ou nem ao menos querer faz-lo, sobos fatos ou sua interpretao deles. E sobre sua inteno que ele tenta necessariamente nenganar. Sua nica caracterstica distintiva que, de certa forma, ele deturpa seu objetivo.

    Esse o ponto crucial da distino entre ele e o mentiroso. Ambos representam a mesmos de modo falso, como se tentassem comunicar a verdade. O sucesso de cada u

    depende de eles nos enganarem a respeito disso. O fato ocultado pelo mentiroso su

  • 7/25/2019 Sobre Falar Merda Harry G. Frankfurt

    17/21

    tentativa de nos afastar de uma apreenso correta da realidade; ns no podemos saber sobseu desejo de que acreditemos numa coisa que ele supe falsa. O fato que o falador de merdoculta sobre si, por outro lado, que o valor de verdade de suas afirmaes no tem uinteresse fundamental para ele; o que no devemos descobrir que sua inteno no relatarverdade nem ocult-la. Isso no significa que seu discurso seja anarquicamente impulsivmas que o motivo a orient-lo e control-lo est pouco interessado em saber como so de faas coisas que ele fala.

    impossvel para algum mentir a menos que julgue conhecer a verdade. Falar merda nrequer essa convico. Uma pessoa que mente est reagindo a verdade e tem, at certo pontrespeito por ela. Quando um homem honesto fala, diz apenas o que acredita ser a verdadenquanto, para o mentiroso, indispensvel que ele considere suas afirmaes falsaEntretanto, no caso do falador de merda, essas coisas no contam: ele no est nem do lado dverdadeiro nem do falso. Seu enfoque no sobre os fatos, como o do homem honesto e dmentiroso, a no ser que sirvam a seu interesse de se safar com o que diz. Ele no se imporse as coisas que fala descrevem a realidade corretamente. Apenas as escolhe ou inventa pasatisfazer seu propsito.

    Em seu ensaio De Mendacio [Sobre a mentira], santo Agostinho distingue oito tipos dmentira, classificadas de acordo com a inteno ou justificativa com que contada. Mentirde sete tipos so ditas apenas porque se supe que sejam meios indispensveis para algum fque no a mera inveno de falsas convices. Em outras palavras, no a falsidade em que atrai o mentiroso para elas. Uma vez que so ditas somente em virtude de sua suposnecessidade com relao a um objetivo que no o logro, santo Agostinho as considera comditas contra a vontade: o que a pessoa deseja de fato no contar a mentira, mas conseguir sobjetivo. No se trata, em sua opinio, de mentiras reais, e aqueles que as dizem no s

    mentirosos, no sentido mais estrito da palavra. E a categoria restante a que contm o que eidentifica como a mentira contada apenas pelo prazer de mentir e enganar, ou seja, verdadeira mentira.{7} As mentiras dessa categoria no tm outro objetivo a no ser propagao da falsidade. Elas so ditas simplesmente por dizer - isto e, por puro amor logro:

    H uma distino entre a pessoa que conta uma mentira e o mentiroso. Aquela mencontra a vontade, enquanto este ama a mentira e passa o tempo desfrutando seu praz() compraz-se nela, exultando com a prpria falsidade.{8}

    O que Agostinho chama de mentiroso e de verdadeira mentira algo raro

    extraordinrio. Todos mentem por vezes, mas h muito poucas pessoas para quem ocorrercom frequncia (ou mesmo sempre) mentir exclusivamente por amor falsidade ou ao logro.

    Para a maioria dos indivduos, o fato de uma afirmao ser falsa j constitui em si umrazo, por mais fraca e facilmente supervel que seja, para no ser feita. No caso dmentiroso genuno de santo Agostinho, essa uma razo a favor de se faz-la. Para o faladde merda, no algo a favor nem contra. Tanto ao mentir quanto ao falar a verdade, as pessoa

    so guiadas por suas crenas a respeito de como as coisas so. Isso as orienta quando tenta

  • 7/25/2019 Sobre Falar Merda Harry G. Frankfurt

    18/21

    descrever o mundo de forma correta ou descrev-lo enganosamente. Por essa razo, menincapacita uma pessoa a dizer a verdade da mesma forma que falar merda tende a fazer. Pum excesso de satisfao nesta ltima atividade, que envolve fazer afirmaes sem preocupar com nada, exceto com aquilo que convm a algum dizer, o hbito normal de atinar com a realidade das coisas pode atenuar-se ou at perder-se. Tanto quem mente quanquem fala a verdade atuam em campos opostos do mesmo jogo, por assim dizer. Cada ureage aos fatos como os entende, embora a reao de um seja guiada pela autoridade

    verdade, enquanto a reao do outro desafia essa autoridade e se recusa a satisfazer suexigncias. O falador de merda as ignora como um todo. Ele no rejeita a autoridade dverdade, como faz o mentiroso, e ope-se a ela; simplesmente, no lhe d a menor atenEm virtude disso, falar merda um inimigo muito pior da verdade do que mentir.

    Aquele que se preocupa em relatar ou ocultar fatos supe, de alguma forma, que algundeles so distintos e reconhecveis. O interesse em dizer a verdade ou em mentir pressupque existe uma diferena entre entender as coisas de forma errada e de forma certa, e que pemenos s vezes possvel perceber essa diferena. Quem pra de acreditar na possibilidadde identificar certas afirmaes como verdadeiras e outras como falsas tem apenas duopes. A primeira seria abrir mo de dizer a verdade e de enganar. Isso significaria abster-de proferir qualquer afirmao sobre os fatos. A segunda opo seria continuar fazendafirmaes que pretendessem descrever o modo como as coisas so, mas isso no seria outcoisa seno falar merda.

    Por que se fala tanta merda? claro que impossvel saber se hoje se fala relativamenmais merda que no passado. H mais comunicao de todo tipo em nossa poca do que houve antes, mas a parte que equivale a falar merda pode no ter aumentado. Sem pressupque sua incidncia seja maior agora, vou mencionar algumas consideraes que ajudam

    ustificar o fato de que isso seja algo to notvel nos dias de hoje. inevitvel falar merda toda vez que as circunstncias exijam de algum falar sem sabo que est dizendo. Assim, a produo de merda estimulada sempre que as obrigaes ooportunidades que uma pessoa tem de se manifestar sobre algum tpico excederem sconhecimento dos fatos pertinentes. Essa discrepncia comum na vida pblica, em que indivduos so com frequncia impelidos seja pelas prprias inclinaes ou por exigncde outrem - a falar sobre questes em que so at certo ponto ignorantes. Exemplintimamente relacionados se originam de uma convico generalizada de que dever dcidado, numa democracia, ter opinies sobre tudo ou, pelo menos, tudo aquilo que digrespeito conduo das questes de seu pais. A falta de um nexo significativo entre opinies de uma pessoa e sua apreenso da realidade vai tornar-se ainda mais grave, desnecessrio dizer, para algum que acredite ser seu dever, como agente morconsciencioso, avaliar acontecimentos e condies de todas as partes do mundo.

    A atual proliferao do ato de falar merda tem tambm razes muito profundas em vriformas de ceticismo, que negam o fato de que possamos ter acesso confivel a uma realidadobjetiva e rejeitam, portanto, a possibilidade de sabermos como as coisas na verdade sEssas doutrinas ante-realistas minam a validade de todo esforo desinteressado para

    determinar o que verdadeiro e o que falso, e at a falta de inteligibilidade da noo

  • 7/25/2019 Sobre Falar Merda Harry G. Frankfurt

    19/21

    investigao objetiva. Uma das reaes a essa perda de confiana tem sido o afastamento ddisciplina requerida pelo ideal da correoem direo a um tipo de disciplina completamendiferente, que imposto pela perseguio a um ideal alternativo de sinceridade.Em vez buscar chegar primeiramente a representaes precisas do mundo comum, o indivduo se volpara a tentativa de oferecer representaes honestas de si. Convencida de que a realidade ntem nenhuma natureza inerente, que ela pudesse ter esperanas de identificar com a verdasobre as coisas, a pessoa dedica-se a ser fiel sua natureza. E como se percebesse que, um

    vez que no faz sentido tentar ser fiel aos fatos, deve, em vez disso, esforar-se para ser fielsi mesma.Porm absurdo imaginar que somos determinados e da suscetveis a descries corret

    e incorretas, embora supondo que a atribuio de determinao a tudo o mais tenha sidexposta como um erro. Como seres conscientes, existimos apenas em resposta a outras coise no podemos conhecer a ns mesmos, de modo algum, sem conhec-las. Alm disso, nexiste nada na teoria, e certamente nada na prtica, que sustente a opinio singular de queverdade sobre si mais fcil de saber. Os fatos a nosso respeito no so particularmenslidos e resistentes contra uma dissoluo ctica. Nossa natureza , na verdadenganosamente sem substncia muito menos estvel e inerente que a natureza das outrcoisas. E, j que o caso esse, sinceridade nada mais do que falar merda.

  • 7/25/2019 Sobre Falar Merda Harry G. Frankfurt

    20/21

    SOBRE O AUTOR

    Harry G. Frankfurt, renomado filsofo moral, professor emrito de filosofia na PrincetUniversity.Entre seus livros, incluem-se The Reasons of Love(Princeton),Necessity, Volition,andLo

    e The Importance of What We Care About

  • 7/25/2019 Sobre Falar Merda Harry G. Frankfurt

    21/21

    {1}Max Black, The Prawleticc of I lumbug (Itliaca: Cornell University Press. 1985){2}Ibd.. p. 143.{3} Isso relatado por Norman Malcolm em sua introduo a Recollections of Wittgenstein, R Rhees (org.), (Oxfo

    Oxford University Press. 1984). p. XIII.{4}Fania Pascal, Wittgenstein. A Personal Memoir, in Rhees. Recollections. p 28-29{5}Deve-se notar que a incluso da insinceridade entre suas condies essenciais implica que a falao no pode

    originar inadvertidamente; pois no parece possvel ser inadvertidamente insincero.{6}E. Ambler. Dirty Story (1967). 1, III, 25. A citao mencionada no mesmo verbete do OED que contm a passage

    de Pound. A proximidade da relao entre falar merda e blefar torna-se flagrante, parece-me, no paralelismo das expressfalar merda para conseguir as coisas e blefar para conseguir as coisas.

    {7}De Mendacio [Lying], in Treatises on Various Subjects, in Fathers of the Church, R. J. Deferrari (org), vol. 16 (NoYork Fathers of the Church. 1952), p. 109. Santo Agostinho sustenta que contar uma mentira desse tipo um pecado mensrio do que faz-lo em trs das categorias e mais srio que cont-la nas outras quatro.

    {8}Ibid, p. 79