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    Revista Brasileira de Inovao Cientfica em Comunicao ano 1 n. 1 - maio 2006

    A Dialogia e o Filme Documentrio

    Camila Amara Tavares

    Universidade Metodista de Piracicaba

    Resumo

    O presente trabalho tem como tema de estudo a potencialidade dialgica do cinemadocumentrio de Eduardo Coutinho. Sob a referncia fundamentadora da filosofia dotelogo Martin Bubber e do educador Paulo Freire analisamos o filme Babilnia 2000,

    para compreender a possibilidade da instaurao do dilogo entre entrevistado-entrevistador no filme documentrio.

    Palavras-chaveCinema; Documentrio; Dialogismo.

    Dialogism and DocumentariesAbstract

    The theme of this paper is the dialogical potentiality on Eduardo Coutinhosdocumentaries. Under solid references from the philosophy of the theologian MartinBubber and the educator Paulo Freire, we will analyse the filmBabilnia 2000, in orderto comprehend the possibility of dialogue between interviewer and interviewed in thedocumentary.

    Key-wordsCinema; Documentary; Dialogism.

    El Dialogismo y la Pelcula Documentaria

    Resumen

    Este estudio tiene como tema la potencialidad del proceso del dialogismo del cinedocumentario del cineasta Eduardo Coutinho. Tal estudio fue desarrollado bajo lafilosofa del telogo Martin Bubber y del educador Paulo Freire. Para ello, analizamosla pelcula Babilonia 2000 como forma de llegar a la comprensin de la posibilidad dela instauracin del dilogo entre entrevistado-entrevistador en las pelculas del gnerodocumentario.

    Palabras-claveCine; Documentario; Dialogismo

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    Revista Brasileira de Inovao Cientfica em Comunicao ano 1 n. 1 - maio 2006

    IntroduoO documentrio um produto audiovisual que aborda um tema, um lugar, um animal,uma questo social ou cultural, uma pessoa - famosa ou annima - uma doena, umadescoberta. Esta caracterstica plural abre para o documentrio uma enorme

    potencialidade a ser explorada no campo da informao e da educao.O filme documentrio um gnero livre que permite ao realizador a escolha de seuspassos. Por no estar preso a regras jornalsticas, o documentrio possibilita ao diretor odesenvolvimento de interpretaes e criaes flmicas mais elaboradas do que asreportagens suportariam. Ele tambm no obrigado a sujeitar-se aos aspectos mnimosda narrativa como normalmente acontece em filmes de fico e, ainda que devaobedecer alguns aspectos tcnicos comuns - como a captao das imagens in loco -diversos documentrios que tratem do mesmo tema sero sempre filmes completamentediferentes entre si, j que um documentrio mostra um determinado, e exclusivo, pontode vista: ele expe ao espectador o olhar e as escolhas do documentarista.Porm, quando o documentrio trata do mundo dos homens e busca nas pessoas a

    informao, quando utiliza da entrevista para saber de seu objeto, o documentaristapode seguir dois caminhos. Um, em que continuar s, os entrevistados e todos aquelescom os quais cruzar serviro apenas para comprovar uma teoria da qual o realizador jhavia se agarrado antes mesmo das filmagens; e outro, em que o diretor se apoiarverdadeiramente nestas pessoas, em suas palavras e seus olhares para ento construirseu filme, marcando-o desta forma pelas sinuosidades da dialogia.O dilogo no apenas uma simples conversa. Martin Bubber explica-nos que para suaverdadeira instaurao essencial que as partes envolvidas realmente voltem-se uma-

    para-a-outra, experincia capaz de transformar seus interlocutores. Paulo Freire defendeo dilogo como a arte de comunicar o mundo.Desta forma, propomo-nos a tratar, neste estudo, da construo do dilogo na relaoentrevistado-entrevistador no filme documentrio. Discutiremos as caractersticas dadialogia, aspectos e particularidades do gnero documental, sua histria e

    potencialidades. Atravs da anlise da obra de Eduardo Coutinho, em especial do filmeBabilnia 2000 levantaremos a questo: possvel a instaurao do verdadeiro dilogoentre entrevistado-entrevistador em um filme documentrio?

    Descrio da Pesquisa

    A presente pesquisa propem-se a discutir a possibilidade da construo do dilogo nodocumentrio, segundo as acepes de dialogia de Paulo Freire e de Martin Bubber.Para tanto, realizamos amplo levantamento de textos a respeito do cinema documental e

    da linguagem audiovisual, e considervel pesquisa de documentrios antigos e atuais.Dentre os assistidos, debruamo-nos sobre Babilnia 2000, de Eduardo Coutinho, a fimde observarmos nele os conceitos dialgicos estudados.

    MetodologiaPara a realizao da pesquisa A Dialogia e o Filme Documentrio utilizamos a seguintemetodologia:

    1 - Levantamento de bibliografia, leitura e fichamento de textos relacionados linguagem audiovisual, ao documentrio, aos conceitos de dialogia em PauloFreire e Martin Bubber;

    2 - Levantamento e seleo de filmes e vdeos documentrios que trouxessem em

    seu processo de trabalho a preocupao com o dilogo;3 - Observao e anlise da obra selecionada empregando os conceitos estudados;

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    4 - Produo de texto acadmico;5 - Reviso do texto.

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    Anlise dos Resultados

    O Dilogo"Tudo se reduz ao dilogo, contraposio dialgicaenquanto centro. Tudo meio, o dilogo o fim. Uma s

    voz nada termina, nada resolve. Duas vozes so o mnimo devida".Mikhail Bakhtin

    Seguindo o senso-comum, e referenciado pelo popular Dicionrio Aurlio da LnguaPortuguesa1, podemos definir o dilogo como uma simples troca de idias entre pessoasna busca por um entendimento. No entanto, aqui o trataremos sob uma perspectiva maisabrangente.Segundo grande parte do antigo pensamento filosfico at Aristteles, o dilogo no apenas uma forma do pensar filosoficamente, mas sua forma tpica e privilegiada, poisassume um carter de construo do pensamento, de tolerncia entre os diferentes, de

    cooperao entre as partes isso porque no se trata de discurso feito pelo filsofo parasi mesmo, que o isole em si mesmo, mas uma conversa, uma discusso, um perguntar eresponder entre pessoas unidas pelo interesse comum da busca 2.Paulo Freire explica o dilogo como sendo um pronunciar o mundo. Para o educador,

    por ser somente atravs de atitudes dialgicas que o homem pode transformar a si, econseqentemente ao mundo, o dilogo no pode ser simplesmente definido da formacomo o fazem os dicionrios. Ao mesmo tempo, o dilogo no a discusso guerreiraque se d entre homens que desejam no construir idias, mas impor a suas aos outros.

    Porque encontro de homens que pronunciam o mundo, no deve serdoao do pronunciar de uns a outros. um ato de criao. [...] Aconquista implcita no dilogo, a do mundo pelos sujeitos dialgicos,no a de um pelo outro. Conquista do mundo para a libertao dohomem.3

    Para Martin Bubber, o elemento definidor do dilogo a atitude de um homem peranteseu interlocutor:

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    BUARQUE DE HOLANDA, Aurlio. Novo Dicionrio Aurlio da Lngua Portuguesa , p. 3752ABBAGNANO,Nicola. Dicionrio de Filosofia, p. 2743 FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, p. 93.

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    O dilogo no se limita ao trfego dos homens entre si; ele assimque demonstrou ser para ns um comportamento dos homens um-

    para-com-o-outro, que apenas representado no seu trfego. Assimsendo, mesmo que se possa prescindir da fala, da comunicao, hcontudo um elemento que parece pertencer indissoluvelmente

    constituio mnima do dialgico, de acordo com seu prprio sentido:a reciprocidade da ao interior. Dois homens que estodialogicamente ligados devem estar obviamente voltados um-para-o-outro; devem, portanto, - e no importa com que medida de atividadeou mesmo conscincia de atividade ter-se voltado um-para-o-outro.4

    Para que surja o verdadeiro dilogo, necessria a total doao de si ao prximo, necessrio voltar-se-para-o-outro. Pela sua natureza gregria, o dilogo eleva o homem,

    pois s ao homem que se permite o encontro com o outro possibilitado o encontroconsigo mesmo. Toda a vida encontro

    O Eu e o TuSegundo Bubber, o EU s existe a partir do momento em que aceito e posso dizer TUao outro. O EU sem o TU pura abstrao, o homem s se realiza quando se encontraem relao dialgica com mundo. Neste EU-TU, o homem se descobre pleno, e a partirde ento o dilogo pode verdadeiramente estabelecer-se:

    O mundo duplo para o homem, segundo a dualidade de seu mundo.A atitude do homem dupla de acordo com a dualidade das palavras-

    princpios que ele pode proferir.As palavras princpios no so vocbulos isolados, mas pares devocbulos. Uma palavra-princpio o par EU-TU. A outra o par EU-ISSO na qual, sem que seja alterada a palavra-princpio, pode-sesubstituir ISSO por ELE ou ELA.Deste modo, o EU do homem tambm duplo.Pois, o EU da palavra-princpio EU-TU diferente daquele da palavraEU-ISSO.5

    As palavras princpios so sempre ditas em par. Se dito TU, tambm dito EU. Noh um EU em si, sempre referimo-nos a um dos dois Eus das palavras princpios. Osfazeres, as coisas do dia-a-dia, os quereres, referem-se sempre ao mundo do ISSO. Omundo do TU tem outro fundamento. O mundo do ISSO o da experincia, em que ohomem vivencia as coisas; a palavra princpio EU-TU fundamenta o mundo das

    relaes. O dilogo genuno s se d em clima de plena reciprocidade, quando oindivduo experiencia a relao tambm do lado do outro, sem contudo abdicar aespecificidade prpria6. Sendo assim, impossvel o surgimento de uma relaodialgica entre dois lados que se percebem de forma desigual. O dilogo parte do

    principio de igualdade entre os plos, de uma atitude de comunho: Como possodialogar, se me fecho a contribuio dos outros, que jamais reconheo e at me sintoofendido com ela? 7 No dilogo, no h espao para a auto-suficincia e para aintolerncia.

    4 BUBBER, Martin. Do Dilogo e do Dialgico,p. 41.

    5 IDEM, Eu e Tu, p. 036 BUBBER, Martin. Do Dilogo e do Dialgico,p. 087 FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, p. 95

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    Em seu livro Do Dilogo e do Dialgico, Bubber diferencia trs formas derelacionamento que adotamos perante o outro, sem ser de importncia a atitude que eletem para conosco - se existe ou no um relacionamento ou uma ao relativa

    percepo. Segundo o telogo, aquele que assume uma posio de observador estcompletamente concentrado em gravar na sua mente o homem que observa8. Ele

    busca decorar aquele que esta diante de si. J o contemplador no est concentrado, nobusca anotar o homem. Simplesmente o observa, a fim de tirar dele impresses. Espera.[...] No d ateno a traos. (Traos, diz, enganam.) Valoriza no objeto o que no carter e nem expresso. (O interessante, diz ele, no importante)9.Ao contemplador e ao observador existe uma caracterstica comum: para ambos, ohomem apenas um objeto de percepo, distante de suas vidas e experincias pessoais.O que existe um distanciamento que, por isso mesmo, permite que se veja de umamaneira correta. Diferentemente de quando, em um momento de receptividade,encontramos algum que de algum modo nos diz algo. De objeto de observao oOUTRO passa agora a ser tambm agente. Ele interage conosco dizendo-nos algo queno pode ser racionalizado, nem pensado objetivamente. Precisamente, no o homem

    que diz, mas alguma coisa, atravs dele - este homem um canal para algo quenos necessrio. Bubber descreve:

    O efeito de ter sido o receptor deste dizer totalmente diferente doefeito de observar e de contemplar. No posso retratar, nem descrevero homem no qual, pelo qual, algo me foi dito (...) este homem no meu objeto; cheguei a ter algo a ver com ele. Talvez tenha que realizaralgo nele; mas talvez tenha que aprender algo e s se trata do meuaceitar.10

    Bubber chama esta forma de percepo de tomada de conhecimento ntimo, e para ele, odilogo s acontece quando esta relao se instala. No uma experincia que possaser recordada independentemente da situao em que se tenha dado; algo que

    permanece a palavra pronunciada, a palavra daquele instante, que no pode serisolada11

    Caractersticas do DilogoAinda que normalmente se faa atravs deles, o dilogo pode surgir fora dos signos -sejam eles sons ou gestos. Existe tambm a partir do silncio: de forma subjetiva, emmomentos de maior elevao, h um entender entre os homens que transcende oslimites impostos pelas formas fsicas da comunicao. No entanto, como defendeBubber, embora se complete fora dos contedos comunicados ou comunicveis,

    mesmo os mais pessoais; no se completa, no entanto, num acontecimento mstico, massim num acontecimento que concreto (...) totalmente inserido no mundo comum aoshomens 12. O dilogo se d, em essncia, no contato humano, na troca de olhares, norespeitar a presena de fato do outro.Paulo Freire trata o dilogo como uma ao essencialmente humana, uma atitude deamor, humildade, coragem, liberdade e confiana no homem e que, somente atravsdele, possvel a construo de um pensamento crtico. Em Educao como Prtica daLiberdade, Freire define o dilogo como uma relao horizontal de A com B. Nasce deuma matriz crtica e gera criticidade (...) Instala-se, ento, uma relao de simpatia entre8BUBBER, Martin. Do Dilogo e do Dialgico, p. 399 Ibid,p. 41

    10 Ibid,p. 4211 BUBBER, Martin. Do Dilogo e do Dialgico,p. 4512Ibid, p.37

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    ambos. S a h comunicao 13. De maneira inversa, encontramos o antidilogo,caracterizado por uma relao vertical de A com B, quebrando a relao de simpatiaentre os plos. O antidilogo no comunica, faz comunicados, mas a ele voltaremos em

    breve. No h tambm o dilogo se no h uma intensa f nos homens. A f nos homens, segundo Freire, um dado a priori do dilogo. Por isso, manifesta-se antes mesmo de o

    dilogo instalar-se. O homem dialgico acredita no potencial criador e transformador doser humano: Sem esta f nos homens, o dilogo uma farsa. Transforma-se, na melhordas hipteses, em manipulao14 adocicadamente paternalista. E, se a f um dadoanterior ao dilogo, a confiana surge atravs dele, tornando aqueles que dialogam cadavez mais parceiros em suas pronncias ao mundo.

    A AntidialogiaNem toda conversa constitui-se essencialmente como um dilogo, muitas vezes nosdeparamos com monlogos caracterizados de dilogo. Segundo Martin Bubber, existemtrs diferentes formas de dilogo: o autntico onde duas ou mais pessoas tem de fatoem sua mente e em sua ateno o outro a quem falam - no importando aqui, se os

    interlocutores utilizam ou no a comunicao oral; o dilogo tcnico, que a simplesbusca por um entendimento comum; e o monlogo disfarado de dilogo.A primeira forma de dilogo citada, sua forma real, onde as pessoas de fato seencontram e com isto alimentam transformam-se rara. J o dilogo tcnico o maiscomum, embora algumas vezes encontremos nele - perdido no meio de tantos falares -um dizer real, escondido em um sorriso, em um olhar, em um tom de voz inesperado.

    No entanto, em diversas vezes, o monlogo disfarado de dilogo que as pessoasescolhem para relacionar-se:

    um debate, no qual os pensamentos no so expressos da forma emque existiam na mente mas que, no ato de falar, so to aguados que

    podem acertar o ponto mais sensvel e isto sem se considerar osindivduos com quem se fala como pessoas presentes; umaconversao, que no determinada nem pela necessidade decomunicar algo, nem por aquela de aprender algo, nem de influenciaralgum, nem de entrar em contato com algum, mas determinadaunicamente pelo desejo de ver confirmada a prpria autoconfiana,decifrando no outro a impresso deixada, ou de t-la reforada quandovacilante; uma conversa amistosa, na qual cada um v a si prpriocomo absoluto e legitimo e ao outro como relativizado e questionvel15

    Dessa forma, entendemos como antidialgico o homem que nega experenciar o Outro.

    Bubber chama de movimento bsico a ao interior, uma ao essencial que vir atornar-se uma atitude essencial, dada pela essncia do ser. O movimento bsico dodilogo o voltar-se-para-o-outro. Mas isso, que pode ser entendido como um simplesolhar para o outro, deve ser feito com toda a alma. O movimento bsico monolgico odobrar-se-em-si-mesmo. Este conceito diferente do egosmo, est ligado ao negar ooutro enquanto presena, no aceitar em essncia a singularidade do outro. O voltar-se

    para o outro muitas vezes vira o viver-no-outro quando as situaes comuns passam aser experienciadas ao lado do outro, do lado do Outro. O dilogo entre merosindivduos apenas um esboo, somente entre pessoas que ele se realiza. 16

    13 FREIRE, Paulo. Educao como Prtica de Liberdade, p. 11514 Como em muitos documentrios, nos quais o cineasta coloca na boca dos entrevistados palavras e pensamentos

    que no o pertencem (seja atravs da forma como conduz a entrevista, seja atravs das artimanhas da montagem)15 BUBBER, Martin. Do Dilogo e do Dialgico,p. 5416Ibid,p. 55

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    A Entrevista DialgicaSegundo Cremilda Medina, a entrevista, em suas diferentes aplicaes, uma tcnicade interao social, de interpenetrao informativa, quebrando assim isolamentosgrupais, individuais, sociais; pode servir a pluralizao de vozes e a distribuio

    democrtica da informao17

    . Porm, quando levada s ultimas conseqncias, aentrevista pode assumir um carter muito mais ousado, transformando-se em umdilogo, onde tanto o entrevistador quanto o entrevistado vivenciam uma experinciatransformadora, interagindo, modificando-se, crescendo em seu conhecimento demundo e de si mesmo.Desta forma, a relao entre entrevistado-entrevistador deve primar pela humanizao.Realizar uma entrevista no apenas seguir regras e tcnicas. Se amigvel, ou maisainda, humana, a entrevista pode chegar a alcanar os caminhos da dialogia.

    Enquanto insistirmos na competncia do fazer (das tcnicas),despojada do significado humano, pouco se avanar no dilogo

    possvel numa sociedade que impera a diviso, a grupalidade, a

    solido. Se os meios so de comunicao, que se encare o que comunicar, interligar18.

    17 MEDINA,Cremilda. Entrevista, o Dilogo Possvel, p. 0818Ibid,p. 23

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    O Gnero Documental

    A palavra documentrio data do sc. XX e tem origem no vocbulo latino documentum,que significa ttulo ou diploma que serve de prova, declarao escrita para servir de

    prova19, demonstrando assim, em sua prpria etimologia, o compromisso assumidocom a realidade, seu carter de testemunho de verdades.

    Usualmente, denomina-se filme documentrio todos os produtos flmicos20

    de carterdocumental. Nesta perspectiva, considerado como documento qualquer vestgio dopassado que possa ajudar um estudioso a acessar ou compreender algum fato histrico,podendo ser classificados em documentos visuais, sonoros, impressos, filatlicos, etc.Um filme documentrio seria ento um documento visual e/ou sonoro que constituiriaum registro do ento presente que , agora, passado. Porm, consideramos estaclassificao como incapaz de dar conta das especificidades de um documentrio, umavez que todos os filmes possuem caractersticas documentais. Um filme, mesmo defico, sempre um retrato de sua poca da tecnologia usada s formas de atuao,

    podemos sempre encontrar nele caractersticas do tempo em que foi produzido. Para adoutora em comunicao social Manuela Penafria

    a noo histrica de documento visual abarca todas as imagens emmovimento, incluindo as apresentadas num filme de fico que,eventualmente, poder ser to til ao historiador, ou a qualquer outroinvestigador, quanto um documentrio. Os filmes de fico so, deigual modo, vestgios de: algum, algo, algum tempo e/ou algumlugar; contm neles a marca da poca em que foram realizados etraduzem algo de historicamente verdadeiro dessa poca.21

    Outra generalizao comum classificar o documentrio como um filme de no-fico. Todavia, da mesma forma que os filmes de fico possuem diversos gneros(romance, comdia, terror), a no-fico no abarca somente os diferentes tipos dedocumentrios (o documentrio cientfico, o etnogrfico, o histrico, o performtico),como tambm as reportagens jornalsticas especiais e as produes institucionais que,ainda que mantenham o compromisso com a realidade, o fazem de forma diferenciadaa do documentrio.Os institucionais tm como objetivo promover empresas, idias ou pessoas, e por issomesmo no costumam destacar suas negatividades, comportando-se muito mais comouma publicidade. J as reportagens especiais, mais freqentemente confundidas com osdocumentrios, carregam em si toda a rigorosidade da tradio jornalstica, terminando,em sua maioria, engessadas pelos padres tcnicos especficos dos manuais dasempresas de comunicao. Suas caractersticas bsicas representadas pelo lead (as

    famosas perguntas - O qu? Quem? Como? Quando? Onde? Porqu?), as formasconsagradas do uso da imagem (ela serve para ilustrar e dar uma prova da realidadedo que o texto offnarra), a objetividade do jornalista e sua tentativa de elaborao deum retrato completo do acontecimento impossibilitam reportagem uma dascaractersticas mais marcantes do gnero documental: a liberdade de criao dos seusrealizadores.O documentrio um gnero livre, cujo nico compromisso com a realidade retratada,ainda que esta realidade seja apenas o recorte da realidade escolhido pelo diretor22. Aodocumentrio no existem regras nem padres a serem seguidos, a no ser aqueles

    19 CUNHA, Antnio Geraldo. Dicionrio Etimolgico Nova Fronteira da Lngua Portuguesa, p. 27420 Chamaremos aqui de filme, todos os produtos audiovisuais que utilizem uma sucesso de imagens e sons

    organizados de modo a transmitir uma (ou vrias) mensagens, indiferentemente de seu suporte (vdeo, pelcula) emeio de transmisso (televiso, cinema, internet)21 PENAFRIA, Manuela. Unidade e Diversidade do Filme Documentrio, p. 07

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    prprios das tcnicas de produo mnimas referentes ao meio (televiso, cinema, vdeo,internet e at rdio, no caso de um documentrio sonoro). Conceitos comoenquadramento, posicionamento de cmera, presena ou no do entrevistador, tcnicasde iluminao, escolha do microfone, montagem, ritmo de edio: tudo fica a escolhado realizador ou de sua equipe. A criatividade do diretor e a forma com que trabalhar

    todas as possibilidades tcnicas iro imprimir seu ponto de vista e estilo pessoal aofilme que guiaro os olhos e pensamentos do espectador durante a projeo.Outra diferenciao entre documentrios e reportagens que se faz necessria quanto abordagem dos temas. Diferentemente do jornalismo, o documentrio pode abordarquaisquer aspectos da vida humana, da natureza, da histria, dos acontecimentos domundo sem se preocupar com sua relevncia, ou se o assunto escolhido pode serrealmente classificado como notcia. No entanto, sua relao com o tema ultrapassa olimite do noticioso, do explicativo ou do meramente descritivo/informativo: odocumentrio deve olhar seu objeto com profundidade. Um documentrio no precisa, enem deve pretender, esgotar um assunto. Ele deve propor-se a discutir, mostrar ouresponder no toda uma situao, mas aspectos dela, um olhar nico sobre aquele tema.

    Quanto a sua diferenciao em relao fico, encontramos as mais diferentesopinies. O professor Roger Odin23 defende que o estatuto de documentrio dado peloreceptor medida que este faz uma leitura documentarizante da obra, ou seja, a partir domomento que o espectador entende que naquele filme h um enunciador real. ParaOdin, ao compararmos o documentrio com a fico, o nico nvel estvel queencontramos o da construo deste enunciador real, a quem podemos dirigirquestionamentos uma vez que vivemos no mesmo mundo. Ao contrrio doenunciador ficcional, que est no mundo do imaginrio, da fico, podemosquestionar o documentarista a respeito dos processos e at da veracidade dos fatosnarrados. E, ainda que cheguemos concluso de que o cineasta mente, no podemosdizer que seu filme seja uma fico: s por podermos questionar a verdade jadentramos na matriz documentarizante. Por sua vez, Penafria24 enumera diversos ediferenciados conceitos acerca deste tema, chegando at a apresentar algumas teses quedefendem que no existir uma oposio real entre o que documentrio e o que fico. Tamanha profuso e confuso de definies surgem porque, para se diferenciaros gneros, temos primeiro que definir quais so seus limites e fronteiras, tarefa nemsempre simples, uma vez que facilmente percebemos uma fuso de elementos emambos os gneros.Entre a fico e o documentrio, encontramos filmes situados em uma zona fronteiria

    bastante nebulosa, onde as linguagens se fundem reinventando a toda hora os gneros eas possibilidades do se fazer audiovisual: enquanto diretores de fico utilizam

    elementos documentais como imagens reais para enriquecer sua obra, documentaristasrecorrem a atores a fim de reconstruir determinadas situaes. No somente o uso deimagens e sons histricos em uma produo ficcional que bastam para caracteriz-lacomo documental. Muitos filmes utilizam essa tcnica para expressar autenticidade, masa criao de um mundo com cenrios, atores e todos os componentes de uma obraficcional se mantm, conservando-se ento sua caracterizao enquanto fico. Um

    22 O documentrio apresenta um argumento a respeito da realidade, uma vez que a apresenta atravs de umdeterminado ponto de vista. Desta forma, entendemos o documentrio como uma representao (entre as muitas

    possveis) de uma realidade especfica.23 Seminrio Do Documentrio a Leitura Documentarista: uma Abordagem Semio-pragmtica, com o prof. Roger

    Odin (Universidade Sorbonne Nouvelle/Paris III) organizado pelo Programa de Ps-graduao em Multimeios daUNICAMP, ocorrido entre dias 02 e 17 de maro de 2004.24 PENAFRIA, Manuela. Unidade e Diversidade do Filme Documentrio, p. 11

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    exemplo bastante conhecido o filme JFK (1991) de Oliver Stone, que mistura, graas tecnologia, personagens da fico com imagens histricas reais.A mesma inverso acontece no filme documental, quando so montadas cenas pararetransmitir um aspecto da realidade. As reconstrues, tambm chamadasreconstituies, so uma das vrias possibilidades para se aumentar as temticas

    passveis de serem documentadas atravs de filmes, uma vez que sem estes recursos ofazer documental estaria fadado a tratar somente do tempo do hoje e dos momentos emque a cmera esteve presente. Este tipo de filme que recorre encenao costuma serchamado de docudrama (documentrio dramatizado), e considerado um gnero menor25

    um infeliz desenvolvimento do documentrio, pois ficam no meio do caminho do que um documentrio e um filme de fico.26

    No que se refere produo, mais fcil encontrarmos uma oposio entredocumentrio e fico: ao contrrio desta, o documentrio relaciona-se de forma inteiracom a realidade, com o mundo ou com homens e situaes do espao real e material.Ao assisti-lo, sabemos que aquilo que vemos no foi criado, no resultado daimaginao de um produtor ou diretor, ainda que, por ser narrativa, carregue em si

    aspectos semelhantes ao dos filmes ficcionais, podendo mesmo manter em sua estruturaelementos como enredo, personagens, tramas e, como qualquer outro, construirsituaes e conflitos. Penafria explica que:

    na fico os atores movem-se em cenrios construdos para o efeito eatuam de acordo com o perfil da personagem que representam. A miseen scne ficcional exige a encenao dos diferentes elementos quecompem a imagem de acordo com um certo critrio visual. Constri-se o ambiente que se entende adequado para apresentar no filme. Pelocontrrio, no documentrio os atores so atores naturais que atuam

    para o filme, do mesmo modo que atuariam se no estivesse l umacmara a filmar as suas aes. Por seu lado, o cenrio o ambientenatural do mundo que nos rodeia. 27

    Ainda assim, acreditamos ser impossvel, para ns, delimitar de forma ltima o que vema ser um documentrio. Os filmes assistidos e os referenciais tericos usados para esteestudo nos provam que ele um gnero de difcil definio, exatamente por suaversatilidade. Desta forma, entendemos poder apenas enumerar algumas caractersticasgerais do documentrio: a importncia da captao das imagens in loco, a relao queele mantm com a realidade, a defesa de um ponto de vista tratando aprofundadamentede um aspecto de determinado acontecimento e/ou personalidade. O filme documental

    baseia-se principalmente nas imagens e sons recolhidos no local seus fios condutores -

    e os demais componentes (sonorizao, elementos grficos, legendas, trilha sonora)devem servir como complemento. Sua montagem demonstra o argumento do diretor.Mais do que isso no poderamos afirmar, uma vez que um documentrio muito maisum reflexo de seu criador e de seu contexto histrico-social do que a definio de umgnero.

    No entanto, podemos recorrer historia e tradio documental para encontrarmos nelaaquilo que realmente diferencia o objeto de nosso trabalho, o documentrio, das demais

    25 Vale ressaltar que ainda que desconsiderada por parte da crtica, a dramatizao em documentrios j nos trouxebons resultados, como no curta metragem brasileiro Carolina (2003) de Jeferson De, premiado no 9 FestivalInternacional de Documentrio Tudo Verdade. O filme trata da vida da escritora Carolina Maria de Jesus,representada por Zez Motta. Dos catorze minutos do filme, so poucos, mas cheios de fora, os de imagens de

    arquivo de Carolina.26 PENAFRIA, Manuela. Unidade e Diversidade do Filme Documentrio, p. 1627 PENAFRIA, Manuela. Unidade e Diversidade do Filme Documentrio,p.16

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    produes flmicas, alm de entendermos como a evoluo da tecnologia influenciouseu desenvolvimento e os seus caminhos at o documentrio atual, onde encontraremosa obra de Eduardo Coutinho.

    Um Breve Histrico

    No dia 28 de dezembro de 1895 teve lugar, no Grand Caf do Boulevard desCapucines, em Paris, a primeira apresentao pblica e paga do CinematgrafoLumire- os filmes projetados foram La Sortie des ouvriers de l'usine Lumire (A sada dosoperrios da fbrica Lumire) e L'Arrive d'un train en gare (Chegada de um trem estao).As imagens na tela apresentavam aos franceses aquilo que eles facilmente poderiam vernas ruas: operrias saindo da fbrica, homens deixando o trabalho em suas bicicletas, os

    patres sentados confortavelmente em uma carruagem, um trem chegando na estao.Aps estes filmes, muitos outros foram apresentados, retratando o cotidiano das pessoasou lugares e civilizaes exticas. No entanto, embora o senso comum assim entenda,no podemos considerar estes filmes como o princpio do gnero documental. Ainda

    que estas filmagens tratem do mundo real, elas no apresentam uma reflexo acercado contedo ou da forma daquilo que registram, ou um questionamento do porque faz-lo: estes filmes so, no mais, os precursores de todo os trabalhos de no-fico.Com o desenvolvimento da fico e o surgimento das primeiras tcnicas de montagem,o pblico perde o interesse pelos chamados documentaires e encanta-se com a mgicado cinema, trocando a reproduo de sua vida comum pela impressionante viagem Lua!28 somente nos anos vinte que o filme documentrio se consolida enquanto uma

    prtica, atravs dos trabalhos do americano Robert Flaherty (1884-1951) e de DzigaVertov (1895-1954) na Unio Sovitica. Seus filmes, respectivamente Nanook of the

    North 29(1922) e O Homem com a Cmera30 (1929), so considerados marcos daquiloque entendemos hoje como prtica documentarista.Com eles, filmes e autores, ficou definido que, no documentrio, absolutamenteessencial que as imagens do filme digam respeito ao que tem existncia fora dele. Esta a principal e primeira caracterstica do documentrio. A segunda, j em estdio, aorganizao desse material31 eventualmente com outros elementos (por exemplo,legendas) segundo uma determinada forma; o resultado final dessa forma um filme. Aorganizao fora o filme a no se pautar por uma mera descrio, apresentaodescaracterizada ou sucesso sem propsito aparente, das imagens obtidas in loco32.A maior contribuio destes dois cineastas para o gnero documental foi a liberdade queeles se permitiram no trabalhar com o material filmado. A influncia de ambos persistiuenormemente nos documentaristas posteriores. Vertov, mais tardiamente, pelas mos de

    Jean Rouch (1917-2004) teria o seu manifesto Kino-pravda re-significado no conceito28 Georges Mlis (1861-1938) foi um dos primeiros cineastas a trabalhar com as possibilidades da montagem e dosefeitos visuais. Em Le voyage dans la Lune (1902 14 minutos), adaptao de uma novela de Julio Verme, um grupode cinco cientistas consegue chegar a Lua. L, so atacados por seres aliengenas, mas escapam e voltam a salvo paraa Terra.29 O filmeNanook of the North, filmado no norte do Canad, tem como personagem central o esquim Nanook e suafamlia, e mostra a vida do povo Inuit. Flaherty, um explorador, pediu a tribo para encenar os costumes de seusantepassados: como eles pescavam, construam iglus, se alimentavam. Desta forma, fez um documentrio do

    passado, atravs da memria dos mais velhos.30O Homem com a Cmera busca ser um dia na cidade de Odessa e de seus habitantes. o exemplo maior doCinema-olho (Kino-eyes) que buscava captar a verdadeira vida atravs da cmera, pois considerava seu olhomecnico superior ao olho humano. O movimento tambm dava grande destaque para o processo da montagem,sendo atravs desta etapa que seus entusiastas desejavam atingir a verdade.31 Penafria, em outro trecho, nos lembra que a montagem no simplesmente uma juno de quadros mas sim, comoafirma aqui, a sua organizao.32 PENAFRIA, Manuela. Unidade e Diversidade do Filme Documentrio, p. 25

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    de cinema verit (cinema verdade) nos anos 60. J Flaherty marca fortemente influnciano documentarismo britnico dos anos 30, cujo principal nome o produtor eestudiosos escocs John Grierson (1898-1972).A presena marcante de Grierson em instituies subsidiadas pelo governo, aschamadas Film Units33, foi decisiva para o desenvolvimento do documentrio nos

    moldes que ainda conhecemos. Para ele, os documentrios deveriam ter uma funosocial, servindo como instrumentos de educao das massas e formao da opinio pblica. Foi ele quem, atravs de artigos, fundamentou o que chamamos dedocumentrio clssico34. Foi tambm o primeiro a usar o termo documentrio, em1926, ao referir-se ao filme Moana de Robert Flaherty. Utilizava este conceito paraclassificar um tipo de filme que considerava de categoria superior restante produoque tambm usava material retirado da realidade.Aps os anos 30, foram as inovaes tecnolgicas que marcaram o desenvolvimento dognero, uma vez que este j se encontrava consolidado atravs das experincias daescola britnica. Entre as dcadas de 50 e 60, surgem os equipamentos portteis e desom sncrono, que possibilitavam o registro da imagem e do som ao mesmo tempo.

    Com o equipamento porttil, tornou-se possvel e oportuno desafiar e apresentaralternativas onipotente voz em offto caracterstica da escola griersonina, apostando,

    por exemplo, em dar voz ao cidado comum.35.Esta descoberta tcnica ampliou enormemente as possibilidades de forma e tambm decontedo do gnero documental. Foi somente atravs dela que Jean Rouch e EdgarMorin puderam realizar, em 1960, Chronique d'un t (Crnicas de um Vero) em queos realizadores saram pelas ruas de Paris perguntando aos jovens: voc feliz?. Estefilme um representante do cinema-verdade, movimento iniciado na Frana quedefendia a interao do autor do filme com o seu tema. A presena do documentarista marcante e pode surgir de diferentes formas (podemos ouvi-lo, v-lo ou apenas notarsua presena atravs das legendas) e seu ponto de vista bastante claro.Outra vertente do documentrio a surgir neste mesmo momento foi o cinema-direto36norte americano, que procurava anular a presena da cmera, buscando a observao eno a interao/construo conjunta. A presena do documentarista minimizada e as

    possibilidades tcnicas e de linguagem (comentrios, entrevistas, legendas, sonorizao)no so utilizadas. Para tentar anular a presena da equipe, costumava-se passar omaior tempo possvel com as pessoas retratadas, a ponto de estas esquecerem-se dacmera.

    No Brasil, o filme documentrio (em especial os curta-metragens)passam, a partir dos anos 50, a tecer crticas realidade nacional,influenciados principalmente pelos curtas do Cinema Novo. o inicio

    do que Jean-Claude Bernardet

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    chama de documentrios de modelosociolgico. Nas dcadas de 60 e 70, encontramos a maior parte daproduo voltada ao registro de tradies, da cultura popular e dasartes brasileiras devido, principalmente, a poltica cultural do governoe ao apoio dado por outras entidades para o curta-metragem.

    33 com o funcionamento das Film Units, durante os anos 30, que a escola de Grierson tem o seu grandedesenvolvimento. (PENAFRIA Unidade de Diversidade no Filme Documentrio, p. 31)34As caractersticas mais marcantes deste tipo de documentrio so o uso da voz over(normalmente bastante formal),montagem rtmica, fuso msica e rudo e imagens rigorosamente compostas.35 PENAFRIA, Manuela. Perspectivas de Desenvolvimento para o Documentarismo, p. 07

    36 O cinema-direto era tambm denominado "the fly-on-the-wall"(a mosca na parede) e o cinema-verdade como "thefly-on-the-soup" (a mosca na sopa). Estas denominaes deixam bastante claras as diferenas entre eles.37 BERNARDET, Jean Claude. Cineastas e Imagens do Povo, p. 12

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    Hoje, a produo do documentrio continua a acompanhar o desenvolvimentotecnolgico. As cmeras de vdeo nos anos 80 e agora os equipamentos digitais

    baratearam e (quase) democratizaram a produo documental. No Brasil, o mercadoest em expanso. Nos ltimos anos, tivemos uma srie de timos filmes que fizeramsucesso nos cinemas (feito raro para o gnero), entre eles: Janela da Alma (2001), de

    Joo Jardim e Walter Carvalho, nibus 174 (2002), de Jos Padilha, Nelson Freire(2003), de Joo Moreira Salles, O Prisioneiro da Grade de Ferro (2003) de PauloSacramento, Glauber - Labirinto do Brasil (2004), de Silvio Tendler, alm dos

    premiados e aclamados Santo Forte (1999), Babilnia 2000 (2001) e Edifcio Master(2002) de Eduardo Coutinho.

    Eduardo CoutinhoEduardo Coutinho hoje um dos principais documentaristas atuantes no Brasil.Reconhecido por critica e pblico38 considerado um mestre na arte da entrevista., sua

    presena ativa provoca momentos mgicos em seus filmes.O cineasta iniciou sua carreira participando do CPC (Centro Popular de Cultura) da

    UNE, dirigindo um dos episdios de Cinco Vezes Favela. Em 1964, ainda participandoda equipe da UNE, iniciou o projeto de Cabra Marcado para Morrer, ento uma fico,mas foi interrompido pelos militares que invadiram a regio e prenderam liderescampesinos, membros da equipe, o equipamento e o material gravado - apenas parte dooriginal, que havia sido enviada dias antes para a revelao no Rio de Janeiro, se salvou.Com a interrupo de Cabra, Coutinho dedica-se a alguns trabalhos de fico e em 1975integra-se a equipe do Globo Reprter - na poca, um programa onde se permitia aexperimentao e reunia documentaristas hoje consagrados39. Em 1981 retoma o projetode Cabra, agora como documentrio40. Segue fazendo uma srie de outrosdocumentrios de mdias-metragens em vdeo41: Santa Marta: Duas Semanas no Morro(1987), Volta Redonda - Memorial da Greve (1989), O Jogo da Dvida (1989), O Fioda Memria (1991) - este, um longa feito em 35mm , Boca de Lixo (1992), OsRomeiros do Padre Ccero (1994), Mulheres no Front (1995), Seis Histrias (1996) eCasa da Cidadania (1997). Volta aos longas: lana Santo Forte (1999), Babilnia 2000(2001) e Edifcio Master (2002); todos gravados em vdeo digital e transferidos para

    pelcula. Estes longas marcaram a produo de documentrios nos ltimos anos, Pees,seu ltimo trabalho, encontra-se em processo de finalizao.

    38 Segundo site da BBC Brasil, seu filmeEdifcio Master(2002) fez mais de 85 mil espectadores.39 Faziam parte da equipe do Globo Reprter entre outros: Paulo Gil Soares, Washington Novaes e colaboradorescomo Hermano Pena, Jorge Bodansky e Alberto Salva.40 Cabra Marcado para Morrer considerado um marco do documentrio brasileiro, tendo recebido diversos prmiosno Brasil e no exterior.41 Segundo Consuleo Lins, o uso da cmera de vdeo influenciou muito o trabalho de Coutinho. Com ela, o tempo

    ampliava-se. Um rolo de filme pode durar poucos minutos, como fazer uma entrevista se com um limite to curto detempo? O vdeo e suas longas fitas lhe davam tempo para explorar, e conhecer, o entrevistado. (LINS, ODocumentrio de Eduardo Coutinho)

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    A Dialogia e o Documentrio

    No podemos negar que o cinema de Coutinho impressiona. Em seus ltimos longas, acmera est quase sempre no trip, as nicas msicas que escutamos so as captadas noset, os enquadramentos so bsicos, o tempo de exposio longo, a edio simples - semrefinamentos ou malabarismos tecnolgicos - os cortes so secos e os temas

    aparentemente banais. Ainda assim, seu cinema nos impressiona.Impressiona pela riqueza das entrevistas, pela qualidade dos depoimentos que o cineastanos oferece. Seus personagens nos comovem, nos intrigam, nos surpreendem, nosincomodam. Seus filmes so feitos de pessoas, de particularidades e subjetividades quese abrem perante a cmera, na maioria das vezes, em uma atitude verdadeiramentedialgica.Coutinho trata do cinema com uma tica que no lhe permite reorganizar o local ou

    pessoas retratadas, acrescentando idias, informaes, ou elementos estticos a cenasque j se bastam. Referindo-se as gravaes de Boca de Lixo, Consuelo Lins 42 explicaque, para diretor, no querer transformar o lixo para filmar tentar conhecer o queest sendo filmado, sem uma idia preconcebida sobre aquele universo, nem sobre o que

    se quer passar para o espectador. So atitudes como esta, de querer conhecer o outrosem formular concluses ou planos anteriores, que possibilitam a construo do dilogo.Coutinho, ao entrar em contato com uma locao entra em contato com um universonovo, repleto de signos e significados prprios e sua atitude perante ele de curiosidadee respeito. Mas no um falso respeito como aquele que os intelectuais, e muitosdocumentaristas, costumam despender ao tratar com os miserveis - como diz Jean-Claude Bernardet 43 entrevistado pobre um tanto sacralizado. Coutinho no tentaapagar a diferena social existente entre eles, mas promover uma relao de igualdadeutpica e provisria. O cineasta sabe que sua postura fundamental para que odepoimento cresa. Ao perceber seu interesse, o entrevistado se esfora, procura

    palavras e histrias que possam, ou que ele imagina poder, agradar seu interlocutor

    42 LINS, Consuelo. O Documentrio de Eduardo Coutinho, p. 9443 BERNARDET, Jean Claude. Cineastas e Imagens do Povo, p. 295

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    a entrevista fala pblica (...) h um que de confessional (...) umfalar de si, da intimidade, que torna quem fala um personagem nosentido etimolgico do termo (ou seja, uma figura pblica). Emboraum estranho, ele (o cineasta) uma visita esperada elegeu o sujeitoe porta uma indagao. Visita que traz consigo a premissa da

    confiana, o senso partilhado de um ns que d lastro aomovimento da troca. 44

    Acaso e Polifonia

    Babilnia 2000 um trabalho diferente na carreira de Eduardo Coutinho. Ao contrriode seus outros filmes, neste, sobre o ltimo dia do sculo XX e as expectativas da

    populao das favelas Babilnia e Chapu Mangueira sobre o ano 2000, o diretorcontou com o apoio de outras quatro equipes, num processo produtivo que j trazia emsi um carter polifnico, calcado na multiplicidade de vozes que dividiam a posse dodiscurso.Em seu projeto, Coutinho pretendia filmar o dia 31 de dezembro, a manh do dia 03 de

    janeiro, primeiro dia til do ano 2000 e, caso julgasse necessrio, um dia em abril, sob opretexto da comemorao dos quinhentos anos do Brasil. No entanto, percebeu que paraconseguir produzir um filme com to pouco tempo de filmagem precisaria de ajuda, a aincorporao das outras equipes. Elas foram coordenadas pelos responsveis pela

    pesquisa, que j havia tido incio em meados de dezembro, e registradas por fotgrafosamadores que utilizaram cmeras digitais emprestadas. Dessa forma, Coutinho acabou

    por trabalhar no s com um dispositivo45 de locao nica, como j havia feito, mas aele somaram-se outros dois:

    um princpio temporal (realizar o essencial das filmagens em menosde 24 horas) e um principio tcnico-econmico (utilizar diferentestecnologias digitais). Para Coutinho, se houvesse filme, ele teria desurgir dessa limitao espao-temporal-tecnolgica, dessedispositivo, o que implicou tenso e risco 46.

    Alm dos dispositivos, percebemos que o carter de polifonia da produo repercutiu deforma bastante clara no filme. Na edio final, as entrevistas feitas por Coutinho do aunidade bsica ao filme47 mas as outras, captadas por cmeras sempre na mo, comqualidade tcnica inferior (por diversas vezes as imagens desfocam ou perdem oenquadramento) e acompanhadas por vozes e rostos que no sabemos ao certo de quemso, do vitalidade e agilidade ao trabalho, um movimento raro nos filmes dodocumentarista. As muitas vozes que costumavam estar presente apenas nas conversas

    entre entrevistado e entrevistador agora se mostram tambm na montagem, atravs dodilogo entre o material das cinco equipes.Em relao ao tema, Coutinho desejava, depois de Santo Forte, provocar nosentrevistados uma espcie de balano de vida ao mesmo tempo em que descobrir uma

    44 XAVIER, Ismail. Indagaes em Torno de Eduardo Coutinho, p. 23045 Coutinho chama de dispositivo sua metodologia de trabalho. Para ele, o essencial em um projeto de documentrio a criao de um dispositivo - pensado antes da filmagem e que no pode, de maneira alguma ser abandonado. Nocaso de Babilnia 2000, Coutinho deveria obedecer aos dias que havia se proposto filmar, a localidade e a presenadas outras equipes.46 LINS, Consuelo. O Documentrio de Eduardo Coutinho, p. 12447 Alm das entrevistas de Coutinho, cinco imagens da praia de Copacabana, vistas pelo morro, e a presena da horaem GC do sentido a montagem. Ela segue a cronologia do dia, criando tambm no espectador a ansiedade pela

    chegada da meia-noite. Na montagem final, as imagens captadas na manh do dia 03 de janeiro foram descartadas,Coutinho usou apenas as imagens do dia 31 de dezembro e as primeiras horas do dia 1 de janeiro. As filmegens emabril nem chegaram a acontecer.

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    teoria popular sobre o Brasil. Buscava, depois das perguntas pessoais, saber o que sepensava sobre o pas, com o pretexto da virada do ano. Porm, esta idia no foicolocada em prtica. Os entrevistadores perceberam que a pergunta: - E o Brasil? era

    por demais vaga e inibia os entrevistados. Em poucas entrevistas, como a de DonaDjanira, encontramo-la colocada to claramente, mas em quase todos os depoimentos

    podemos perceber uma forma bastante particular de se ver e entender o pas.A maioria das entrevistas, com exceo das realizadas por Coutinho, no forammarcadas, aconteceram por conta dos encontros e do acaso. Homens e mulheres, velhase crianas48, em todos, a possibilidade do dilogo. So cerca de 40 entrevistados com

    participaes bastante desiguais (na montagem encontramos depoimentos de at seteminutos e outros de menos de dez segundos). Para este estudo, escolhemos observarquatro personagens/momentos do filme que consideramos especiais no que se refere construo do dilogo entre entrevistado-entrevistador.

    Vozes da BabilniaO filme Babilnia 2000 inicia-se com uma vista de cima da praia de Copacabana:

    prdios e um pedao do mar. O som ambiente de puro silncio. Na cena seguinte,equipes de gravao e o GC que nos informa: so 10 horas 35 minutos. Aos poucos,ficamos sabendo pelo offdo prprio Coutinho quem so e onde esto aquelas pessoas:

    48 Um dos depoimentos mais verdadeiro e espontneo do filme se d em segundo plano, atravs da interveno deduas pequenas meninas, de cerca de seis e oito anos. Quando ao pai perguntado se bom viver no morro, enquantoele diz sim, suas filhas dizem no, pois ali falta gua todo dia. s ver na torneira, diz a outra.

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    Morro da Babilnia, praia de Copacabana, Rio de Janeiro. Na manhde trinta e um de dezembro de mil novecentos e noventa e nove, cincoequipes de cinema com cmeras digitais subiram o morro para filmar oltimo dia do ano. As equipes se espalharam pelas favelas do ChapuMangueira e Babilnia.

    Uma mulher de suti com tinta nos cabelos passa pela cmera em meio a microfones etrips. Logo depois conhecemos Ftima que, sorridente e brincalhona oferece uma

    bebida a equipe. Ouvimos algum da produo pedindo para que ela se sente em umbanco e a avisa que iro conversar s um pouquinho. a primeira moradora a serentrevistada.Coutinho inicia a conversa com uma pergunta banal, sobre o que ela estava fazendoquando eles chegaram. Ftima conta que pintava o cabelo porque acha que a aparncia fundamental, e que no porque a gente pobre que tem que ser relaxada. Aos

    poucos, vamos sabendo da vida da entrevistada. Fala de sua juventude e da vida nosanos 60, da semelhana que tinha com Janis Joplin, de sua famlia. Coutinho intriga-se

    com o nome de um de seus filhos: Mas por que Sidarta?, e Ftima, moradora defavela, nos surpreende revelando com simplicidade e altivez: Porque eu lia.Me, ex-hippie, viva de traficante e evanglica, Ftima nos oferta um depoimento

    bastante particular, cheio de referncias a um apocalipse tecnolgico: O satans vai virpor meio da internet e vai marcar as pessoas com um chips na testa. Sua postura bastante descontrada, fala com desenvoltura de temas que poderiam tornar-se motivode chacota, ou pelo menos caricato, se o entrevistador assim o pretendesse. ComCoutinho no. Ele se mostra intrigado, interessado em suas teorias, pergunta, quer sabercomo ser. Este posicionamento do entrevistador provoca em Ftima o desejo de contarmais, explicar melhor o que pensa; ela no se intimida, o dilogo se instala. No final,Coutinho agradece, e Ftima pergunta, animada, se no iria cantar. O diretor diz quesim, na pedra. So onze horas e vinte e cinco minutos.Ftima tem mais duas participaes no documentrio: em seguida, em uma das cenasmais marcantes do filme, quando canta em um ingls improvisado Me and BobbyMcGuee (sucesso de Janis Joplin nos anos 60) e quando a equipe a encontra voltando dafarmcia. Neste momento, Ftima, referindo-se a Coutinho pergunta E o coroa,gostou?.Consuelo Lins49 ressalta que o importante nas entrevistas de Coutinho a forma comoeste se coloca, desejoso de ouvir o outro. Este ouvir no , e nem pode ser, um ouvir

    passivo, uma presena interessada, que estimula o falar. Os interlocutores encontram-se. Coutinho no est l para dar voz ao outro, seu cinema feito com o outro, e

    no somente sobre o outro. o entrevistado quem tem o poder da fala, mas esta ssurge na interao com a equipe, com o entrevistador.Dona Djanira personagem marcante no filme. Mineira, chegou ao Rio de Janeiro aoscatorze anos para ser empregada domstica. Senhora amvel, diz que no abandona omorro e fala de seus empregos como cozinheira. A entrevistada esmera-se para contarsobre como se relacionava com Jucelino Kubitschek (amigo de seus patres) [...]assobiava para ele e ele vinha todo de vistidinho presidentinho, e teoriza sobre asdiferenas entre os homens e as mulheres homem da rua, e a mulher, de dentro decasa. meio-dia.Com Djanira, temos acesso a uma srie de informaes no verbalizadas, sua postura egestos nos revelam uma mulher extremamente forte. O Brasil? Em que sentido o

    senhor quer saber? O Brasil isso a que o senhor t vendo, essa desordem que no tem49LINS, Consuelo. O Documentrio de Eduardo Coutinho

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    jeito para nada e no vai melhorar nunca. Sua presena fsica na tela to marcanteque difcil notarmos quando um cachorrinho pula em seu colo logo no incio daentrevista. Conversa com Coutinho sem cerimnias, desejosa de contar-lhe coisas,quase em tom de confidncias diz: o Dr. Jucelino era mulherengo. Mas era bonito...Oh, que homem bonito.

    De certa forma, uma tcnica utilizada pelo entrevistador facilita esta relao que criacom seus personagens:Coutinho s entra em contato com os entrevistados no momento dafilmagem, com a equipe tcnica completa, e isso para ele fundamental. O frescor do primeiro encontro que garante pelo menosa possibilidade de ouvir uma boa histria. Alm disso, o entrevistadodeve partir do principio de que a primeira vez que Coutinho estescutando o que ele diz. 50

    Outro momento de Babilnia em que podemos ressaltar aspectos dialgicos, e dessa vezde forma mais interiorizada, na entrevista com Dona Conceio. A rezadeira tem

    uma participao curta no documentrio (cerca de trs minutos), mas sua fala e presenarevelam a instaurao do dilogo. Em um plano aberto vemos o quarto da entrevistada euma mulher da equipe de filmagem sentada ao lado de Dona Conceio, que segura umlbum de fotos. No primeiro momento, a entrevistada parece no dar muita ateno paraCoutinho, absorta em seu prprio passado. Perguntada a respeito de sua profisso,responde com certo desdm que trabalhava em casa de famlia, casa de explorao, econtinua a olhar para o lbum.Porm, Coutinho insiste em criar uma relao; ele lhe pergunta a respeito de um quadroatrs dela: Sou eu quando era nova,,, Bonitinha, e ri envergonhada. Coutinho perguntaA senhora gostava de uma gafieira, muito?, e ela muda seu jeito, entusiasmando-se afalar. Diz, numa aparente contradio, que sua patroa era muito boa, que a colocavatoda bonitinha para ir danar. Fala de seus pais que morreram ao seu lado, que agoraera sozinha e que esperava que algum viesse lhe buscar. Mas o mais revelador seuolhar.

    No inicio, Dona Conceio no encarava a cmera ou Coutinho; seus olhos estavamvoltados para suas fotos. Ao perceber o real interesse do cineasta, a entrevistada vaisoltando-se, permitindo um contato diferente com ele, at o momento em que sorri paraa cmera.O final do filme tambm nos revelador. Geraldo Pereira, diretor de uma das equipes,conversa com um grupo de moradores a respeito da imagem que as pessoas l de

    baixo tem dos moradores da favela. Este um assunto recorrente no filme, a todo

    momento algum cita a ciso entre a cidade e os morros. Toms, um dos participantesda conversa, faz um convite aberto a todos para que fossem passar um reveilln naBabilnia, porque ali no era s lugar de bandido, era uma casa de amigos, e busca aconfirmao de sua opinio em Pereira. De repente, Marcos, outro morador, invade oquadro e convida a equipe para um churrasco, vira para a cmera e diz Corta. Fadeout, o filme acaba.Este final marca mais uma vez a presena do dilogo em Babilnia 2000. Conta-nosLins que a descoberta desta cena por Coutinho foi de responsabilidade do acaso, nomomento da montagem. O diretor considerava obsceno terminar o filme com imagensdos fogos; na montagem anterior ainda estavam includas cenas do dia 03, masCoutinho deparou-se com esta conversa e preferiu finalizar Babilnia com este

    50 LINS, Consuelo. O Documentrio de Eduardo Coutinho, p. 103

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    encontro, um final aberto, onde no h a possibilidade de uma nica leitura, permitindotambm ao espectador participar do filme.

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    Concluses

    O filme documentrio um gnero do audiovisual extremamente rico e cheio depossibilidades ainda pouco exploradas. Por oferecer uma viso aprofundada a respeitode determinado assunto, capaz de contribuir enormemente para a compreenso domundo no qual vivemos. E, quando feito de encontros de homens, o documentrio

    assume os contornos da dialogia.O filme Babilnia 2000 mostrou-nos isso. Ainda que mediado pela cmera, EduardoCoutinho cria situaes em que o entrevistado se sente vontade a ponto de estabelecerum contato mais ntimo. O empenho de Coutinho para com o outro tal que este

    percebe e retribui a ateno do entrevistador narrando suas histrias com tanta vida quejuntos alcanam e constroem o dilogo.O espectador tambm ocupa um espao especial no filme. O carter polifnico deBabilnia admite que ele seja tambm um agente ativo; no momento em que odocumentarista abre um espao e permite-se conhecer o outro, possibilita que oespectador entre tambm neste crculo e dialogue com o filme. Em uma obra aberta,sempre h espao para mais um criador.

    Sendo assim, acreditamos poder responder afirmativamente a pergunta anteriormentecolocada, entendemos ser possvel a instaurao do dilogo em um filme documentrio.Para tanto, preciso que o respeito ao outro e a vontade de conhec-lo sem verdades

    pr-concebidas sejam o norte do documentarista que deseja basear seu trabalho nodilogo. Seu posicionamento tico vital. Ao tratar da vida de pessoas, ao relacionar-secom o outro, deve ser cuidadoso. Como defende o cineasta Jorge Furtado, em artigo

    para o site da Casa de Cinema de Porto Alegreo documentrio (...) sugere o registro da vida, como se elaacontecesse independentemente da presena da cmera, o que falso.A presena da cmera sempre transforma a realidade. E estatransformao segue para alm do filme. Registrar uma vida real uma grande responsabilidade, compreende uma enorme quantidadede dilemas morais, ticos, em cada etapa da filmagem: noenquadramento, na iluminao, na edio de som e, principalmente,na montagem.51

    Este cuidado, quando tomado, possibilita novas potencialidades ao filme documentrio.O dilogo possvel mas, como afirmou Coutinho, acima de tudo o respeito: o que ooutro diz sagrado. 52

    51Da mesma forma que a tica, o documentarista deve atentar-se a sua formao e ao trabalho com atecnologia, uma vez que o processo da montagem e da edio so, como j defendemos aqui,fundamentais a criao do sentido do filme.52 Citado em O Documentrio de Eduardo Coutinho, p. 113

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    Revista Brasileira de Inovao Cientfica em Comunicao ano 1 n. 1 - maio 2006

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