Sobre Crise Ecológica, Violência e Capitalismo no Século XXI

14
www.osmilnomesdegaia.eco.br | rio de janeiro, 09.2014 1 Sobre Crise Ecológica, Violência e Capitalismo no Século XXI Alexandre Araujo Costa 9 de Maio de 2013: os instrumentos do observatório de Mauna Loa registraram, pela primeira vez desde que as medidas se iniciaram, uma média diária de concentração de dióxido de carbono (CO2) acima de 400 partes por milhão (ppm). 14 de julho de 2013: Amarildo Dias de Sousa, brasileiro, ajudante de pedreiro, casado com Elizabeth Gomes da Silva, pai de seis filhos, desaparece, após ser detido pela PM na Favela da Rocinha. Como dois fatos tão distintos e aparentemente desconexos na verdade se articulam? Da Especulação Financeira à Especulação com o Sistema Terra. O negacionismo climático tem em comum com a lógica do mercado financeiro muito mais do que simplesmente a defesa da continuidade dos combustíveis fósseis ou o vínculo em geral facilmente identificado com a direita organizada. Envolve também uma perspectiva irresponsável, um comportamento de risco e uma linha de raciocínio de que o "estrago", em acontecendo o pior, pode ser repassado adiante, seja aos trabalhadores (que arcam sempre com o ônus de bancos "socorridos" pelo Estado ou de "bolhas" financeiras estouradas), seja às gerações futuras (a quem caberá desatar o nó da crise climática segundo os negacionistas quando estes fazem concessão, por um minuto, de sua farsa e admitem que a mudança no clima pode vir a provocar catástrofes).

description

Uma reflexão sobre a relação entre a crise ecológica, social e econômica.

Transcript of Sobre Crise Ecológica, Violência e Capitalismo no Século XXI

  • www.osmilnomesdegaia.eco.br | rio de janeiro, 09.2014 1

    Sobre Crise Ecolgica, Violncia e Capitalismo no Sculo XXI

    Alexandre Araujo Costa

    9 de Maio de 2013: os instrumentos do observatrio de Mauna Loa registraram, pela primeira vez desde que as medidas se iniciaram, uma mdia diria de concentrao de dixido de carbono (CO2) acima de 400 partes por milho (ppm). 14 de julho de 2013: Amarildo Dias de Sousa, brasileiro, ajudante de pedreiro, casado com Elizabeth Gomes da Silva, pai de seis filhos, desaparece, aps ser detido pela PM na Favela da Rocinha. Como dois fatos to distintos e aparentemente desconexos na verdade se articulam?

    Da Especulao Financeira Especulao com o Sistema Terra. O negacionismo climtico tem em comum com a lgica do mercado financeiro muito mais do que simplesmente a defesa da continuidade dos combustveis fsseis ou o vnculo em geral facilmente identificado com a direita organizada. Envolve tambm uma perspectiva irresponsvel, um comportamento de risco e uma linha de raciocnio de que o "estrago", em acontecendo o pior, pode ser repassado adiante, seja aos trabalhadores (que arcam sempre com o nus de bancos "socorridos" pelo Estado ou de "bolhas" financeiras estouradas), seja s geraes futuras (a quem caber desatar o n da crise climtica segundo os negacionistas quando estes fazem concesso, por um minuto, de sua farsa e admitem que a mudana no clima pode vir a provocar catstrofes).

  • alexandre araujo costa | sobre crise ecolgica, violncia e capitalismo no sculo xxi 2

    A financeirizao do capital se completou na escala global. O prprio imperialismo, que no incio e meados do sculo era baseado fortemente nos Estados nacionais, que serviam, alm de aparatos militares, como agentes econmicos centrais via capitalismo de Estado por serem estes capazes de reunirem grandes somas de capital para investimentos em infraestrutura, sofreu mudanas expressivas. Com fuses, compra de participaes em outras companhias, flexibilizao de regras econmicas em diversos Estados nacionais, aparecimento de acordos comerciais, etc., corporaes globais se estabeleceram cada vez mais como fora dominante, fortemente centradas nos bancos. Incorporados organicamente ao mercado global os pases do Leste Europeu e quebradas barreiras comerciais e restries aos fluxos de capital, por um certo perodo, a reproduo capitalista adquiriu um carter brutalmente especulativo. No que esse trao tenha desaparecido, mas o sistema, aps sucessivas crises, certamente percebeu a vulnerabilidade implicada em reproduo ampliada do capital instantnea, meramente especulativa e sem lastro nos processos de produo real de mercadoria (aps rompimentos consecutivos de bolhas especulativas e quebras sucessivas de bancos, que foram socorridos novamente pelos Estados nacionais s expensas das classes que vivem do trabalho, claro!). Um certo balano entre a intrnseca, nesta etapa de desenvolvimento do capital caracterstica especulativa e a expanso da produo ou crescimento real mostrava-se necessrio. Ao mesmo tempo, exrcitos produtivos imensos em potencial, particularmente o chins, eram retirados da cama. Nesse novo encaixe econmico global, a China, que chegou a experimentar taxas de crescimento do PIB da ordem ou acima de 10% anuais por duas dcadas, transformou-se no grande galpo de fbrica mundial. Ao mesmo tempo, pases como o Brasil expandiram a sua fronteira de agronegcio, servindo de fazenda global (grande parte da soja brasileira transgnica exportada para a China vai para ser transformada em rao para porcos, cuja criao aumentou para suprir a demanda por mais consumo de carne pelos chineses). Esse novo ciclo de crescimento capitalista imps novas presses sobre o sistema Terra e, como mostraremos, aguou brutalmente a crise ecolgica no perodo recente.

  • www.osmilnomesdegaia.eco.br | rio de janeiro, 09.2014 3

    Resgata-se, aqui, a ideia de que o crescimento capitalista a no ser que este fosse puramente especulativo implica em aumento da demanda por matria-prima e energia. Como regra global, do Canad Rssia, do Brasil e pases andinos frica, da China ao rtico, a combinao de ataques aos ecossistemas se d pela busca de novas jazidas de minrios e de combustveis fsseis, pela construo de novas grandes barragens para assegurar suprimento de gua seja para gerao de energia, seja para os processos industriais e para irrigao (ou ainda abastecimento humano de grandes metrpoles) e pela expanso da fronteira agropecuria. o que fez com que o nvel de ocupao das terras continentais (excluindo as calotas polares) ultrapassasse os globalmente (limitando a no interveno humana a algumas reas desrticas ou semidesrticas e outras de floresta tropical e boreal). Paralelamente, o consumo de gua doce cresceu cerca de seis vezes nas ltimas cinco dcadas (enquanto a populao pouco mais do que duplicou no mesmo perodo). Nesse quadro, o nmero de conflitos ambientais no tem cessado de aumentar, vide levantamento da Universidade Autnoma de Barcelona que resultou no Atlas de Justia Ambiental (disponvel online em http://www.ejatlas.org/). Para alm do crescimento da demanda de entrada no processo produtivo (entram matria-prima, como constituinte material na produo, e energia, necessria para que as transformaes que esta implica ocorram), h um fortssimo crescimento nos rejeitos do processo produtivo, atestando a ruptura do metabolismo existente entre a sociedade e o restante da natureza. Esse metabolismo, como o de um ser vivo que obtm o alimento e elimina seus excretas para que estes sejam reprocessados no ambiente, deveria permanecer num estado de equilbrio. Os fluxos de matria e energia para dentro e para fora da sociedade (ou mais exatamente dos processos produtivos que a sustentam) deveriam se coadunar com a capacidade de reposio de recursos e de processamento de rejeitos pelo ecossistema global. Mas evidente que isso no se d no presente. Longe disso. A contaminao qumica do ecossistema terrestre global. So exemplos o plstico nos oceanos; os metais pesados no solo, rios e penetrando por toda a biota via cadeia alimentar; o oznio (desejvel em camadas elevadas da atmosfera mas extremamente prejudicial prximo superfcie) produzido por reaes fotoqumicas que se originam em motores e caldeiras de combusto e que gera smog (como o que literalmente obstrui a

  • alexandre araujo costa | sobre crise ecolgica, violncia e capitalismo no sculo xxi 4

    viso em Beijing e outras grandes cidades da China e outros pases)... A mudana na composio qumica da atmosfera se d de forma mltipla: a quantidade de aerossis (particulado lquido e slido em suspenso) se multiplicou brutalmente com os processos industriais, combusto de combustveis fsseis e queimadas; gases que no existem naturalmente agora fazem parte do ar que respiramos, particularmente os halocarbonetos (que incluem os CFCs responsveis pela degradao da camada de oznio estratosfrico e que, em seu conjunto, so gases de efeito estufa) e as concentraes de gases como xido nitroso (resultante da decomposio de fertilizantes e outros agroqumicos nitrogenados), metano (emitido em associao com atividades agropecurias) e, claro, dixido de carbono, ou CO2. Alm da influncia brutal sobre o clima (os trs ltimos citados so gases de efeito estufa), o excesso de CO2 na atmosfera leva a que este se dissolva nos oceanos, acidificando-os (o pH j aumentou 0,1 desde o perodo pr-industrial, o que implica em um aumento no nvel de acidez em quase 30%). contaminao qumica, soma-se a contaminao radioativa, associada aos sucessivos testes nucleares e, claro, aos acidentes e vazamentos em reatores, como os casos trgicos de Tchernobyl e Fukushima. Ao se ter a humanidade (ou mais precisamente o capital) pressionando o ecossistema global como uma fora de escala geolgica, interferindo decisivamente (e em vrios casos de forma dominante) nos ciclos biogeoqumicos e alterando a prpria termodinmica planetria, alguns cientistas propuseram que se caracterize o presente como uma nova poca geolgica, distinta do Holoceno (perodo de cerca de 10 mil anos de estabilidade climtica ao longo do qual a civilizao humana floresceu): o Antropoceno, conforme a designao proposta por Crutzen e Stoermer (2000). Alguns cientistas propuseram a existncia de chamados limites ou fronteiras do sistema Terra, que deveriam ser respeitados(as) a fim de se manter a estabilidade do ecossistema global. Uma sistematizao mais completa desses limites foi apresentada por Rockstrm et al. (2009) e seriam: a mudana climtica, a acidificao ocenica, a degradao da camada de oznio estratosfrica, os ciclos do Nitrognio e Fsforo, o uso de gua doce, a mudana no uso e ocupao do solo, a taxa de perda de biodiversidade, as emisses de aerossis e a contaminao qumica. Para alguns, os limites no chegaram a ser estimados quantitativamente, mas dos que o foram, pelo menos 3 j foram ultrapassados, a saber: o clima (a concentrao atmosfrica de CO2 no deveria ter

  • www.osmilnomesdegaia.eco.br | rio de janeiro, 09.2014 5

    ultrapassado 350 partes por milho e beira os 400 ppm na mdia anual), o ciclo do Nitrognio (cuja remoo da atmosfera no deveria ter ultrapassado 35 milhes de toneladas e j chega a 121 milhes) e a taxa de extino de espcies, que pelo menos 10 vezes maior do que a suportada pelo ecossistema global e de 100 a 1000 vezes maior do que a do perodo pr-industrial. Pelo menos outros dois limites se encontram muito prximos de serem ultrapassados (a quantidade de Fsforo fluindo para os mares, que j cerca de 80% do valor permitido e o nvel de acidez dos oceanos do planeta avaliado pela relao com a saturao para a aragonita, mineral que compe as conchas, os exoesqueletos e vrias estruturas de um sem nmero de organismos marinhos, sendo que 80% da distncia entre as condies pr-industriais e o limite seguro j foi percorrida). A situao de outros trs est longe de ser confortvel: avalia-se que dois teros da gua doce globalmente disponvel j esteja comprometida com atividades humanas, principalmente agropecuria e processos industriais e de gerao de energia, alm do uso domstico, a concentrao de oznio na estratosfera, no pode cair em mais do que 2,4% e, como citamos, ultrapassamos os trs quartos na proporo de ocupao das terras continentais. Dois limites (referentes s emisses de aerossis e contaminao qumica do ecossistema global) no foram estimados quantitativamente. Como bem coloca Cribb (2011), um animal que coloca em risco seu prprio futuro e o de outras formas de vida e ecossistemas no merece sequer um sapiens, que dir os dois que hoje carregamos1. Mas esta irracionalidade manifestao ltima de um modo de produo especfico, desde a bem conhecida anarquia da produo. A ultrapassagem perigosa dos limites do Sistema Terra funciona, nesse sentido, com a mesma lgica especulativa aplicada ao sistema financeiro, ao mercado de aes e outros. Como muitos capitalistas no prprio mercado financeiro, globalmente, em relao natureza, o capital age de forma arriscada, irresponsvel, na prtica se baseando na expectativa de que as probabilidades se materializem a seu favor. Especula-se com as 1 Homo sapiens foi a designao de nossa espcie dada por Carl Linnaues. Homo sapiens sapiens, com a

    incluso da subespcie, mesmo sendo a nossa a nica sobrevivente, nos diferencia de outros primos muito

    prximos, como o Homo sapiens idaltu (White et al., 2003).

  • alexandre araujo costa | sobre crise ecolgica, violncia e capitalismo no sculo xxi 6

    (extremamente baixas) chances de que se possa ultrapassar a concentrao segura de CO2 ou de oznio estratosfrico e, com a graa de alguma tecnologia ainda no existente, se possa ou retornar a patamares seguros no futuro ou resistir aos impactos. A aposta, baseada apenas no desejo, nas possibilidades de adaptao falsa, ignora as leis da Fsica e a dinmica biogeoqumica dos sistemas naturais. No considera, ao contrrio do que se deveria, as chances muitssimo maiores de que as mudanas ora em curso marchem no rumo da irreversibilidade e que sejam profundamente danosas, a curto, mdio e longo prazo para a humanidade e, porque no dizer, toda a complexa teia de vida que recobre o planeta. Agentes de transformao social profunda, revolucionria, em consonncia com seu tempo, neste sculo XXI, precisam fugir dessa lgica antimaterialista, irresponsvel e especulativa, dessa f cega em alguma soluo tecnolgica milagrosa, de que se tem o controle da situao. preciso pensar de maneira radicalmente distinta da lgica do capital, no s acerca das relaes entre ns, humanos, mas acerca da nossa relao com o restante da natureza. De 400 ppm a Amarildo Alm da proximidade de datas, h muito mais vinculando o recorde de concentrao de CO2 e a tragdia de Amarildo: o atual estgio do capitalismo mundial. Tal sistema pretende (na verdade, depende de) um crescimento indefinido, resultando num aumento continuado da demanda por matria-prima e energia. Mas nenhum processo pode permanecer, em se dando dentro de um sistema limitado, apresentando crescimento exponencial, isto , em progresso geomtrica. Isso fcil de ilustrar se considerarmos uma economia hipottica, cujo PIB se inicie com o valor unitrio e cresa a uma taxa de meros 3%, que, em alguns casos, os brilhantes economistas capitalistas consideram bastante modesta e que David Harvey (HARVEY, D., 2010) aponta como o patamar de crescimento mnimo para sobrevivncia do sistema. Ao longo dos anos, o tamanho dessa economia que cresce a 3% aumentar conforme a sequncia [1 1,03 1,0609 1,092727...]. No vigsimo ano, ela j ser 75% maior do que no ponto de partida e no 39 ano ter triplicado de tamanho. Aps 79 anos, ser 10 vezes maior e em um sculo ter se expandido mais de 18 vezes. No final desse primeiro sculo bastam 2 anos para que a economia tenha crescido (no em termos relativos, mas em

  • www.osmilnomesdegaia.eco.br | rio de janeiro, 09.2014 7

    termos absolutos) aquilo para o que eram necessrios 25 anos, no incio. Dois sculos de crescimento depois, o PIB j 369 vezes maior do que aquele do comeo da brincadeira. Importante frisar: no importa quo pequena seja a taxa de crescimento (se de 10%, 3%, 1%); por ser exponencial, em algum momento valores impressionantemente altos e, como mostraremos, proibitivos, emergem. Se percebermos que a economia e a sociedade no pairam no ar, mas se sustentam em cima de uma realidade material, imediatamente associamos esse crescimento econmico a demandas cada vez maiores por matria-prima e por energia. Voltando ao exemplo anterior, se no incio de nossa simulao a produo de uma tonelada de ao e a gerao de 1MW (Mega-Watt) de energia eram necessrias para sustentar a economia, ao final mantidos os bens, mquinas, tecnologias, demandas de produo e consumo do incio sero precisos exatamente 369 toneladas de ao e 369 MW de energia, ao final. evidente que variveis diversas podem fazer com que tal proporo no se mantenha (novas tecnologias, mais eficincia energtica e ou de processos industriais), mas certamente no so capazes de impedir o crescimento total da demanda material e energtica (na verdade, alguns fatores podem jogar na direo contrria, como a dificuldade maior em encontrar determinados recursos escassos ou de extra-los, etc.). A que tem levado o crescimento exponencial da economia capitalista, alm da ultrapassagem dos limites elencados anteriormente? A massa anual de sedimento realocado por interveno humana direta provavelmente da escala de todo o transporte de sedimento fluvial depositado globalmente nas guas ocenicas costeiras, ou aproximadamente 150.5Gt/a (bilhes de toneladas por ano) (Syvitski e Kettner, 2011). A edio 2012 do Relatrio Planeta Vivo, da Rede WWF, por exemplo, indica que a demanda humana por recursos naturais sobe vertiginosamente e chega a 50% a mais do

  • alexandre araujo costa | sobre crise ecolgica, violncia e capitalismo no sculo xxi 8

    que o planeta pode suportar e que no ritmo atual, a humanidade precisar de 2,9 planetas at 20502 (WWF, 2012). A presso por novos recursos naturais, portanto, enorme. No campo, isso implica em expulsar comunidades tradicionais, indgenas, quilombolas, trabalhadores rurais, etc., de suas terras, a fim de abrir caminho para a explorao de combustveis fsseis, a minerao em geral, a construo de grandes barragens ou a expanso do agronegcio. Nas cidades, significa expulso de comunidades pobres de regies de interesse imobilirio, destruio de reas verdes, intensificao das desigualdades, segregao social e represso a movimentos contestatrios. Em ambos os casos, evidente que a soluo adotada pelas classes dominantes, por conta da pressa e da fome insacivel (e que cresce exponencialmente) da parte do "hamster impossvel", , cada vez mais frequentemente, a da fora. demanda de mais matria e energia para o processo produtivo, segue-se o aumento na quantidade de rejeitos "metablicos" (metais pesados, material radioativo, gases de efeito estufa, aerossis, etc.). Dentre estes rejeitos, ainda que muitos dos outros sejam diretamente mortais, o aumento da concentrao de CO2 particularmente relevante, primeiro por seu efeito ser ubquo, universal e de longo prazo (na verdade seu efeito no sentido todo imediatamente; sua permanncia levando a um desequilbrio energtico planetrio com aquecimento crescente e aumento de temperatura posterior s suas emisses). Segundo, pelo ineditismo. As concentraes de CO2 se mantiveram quase constantes, com valores prximos a 280 partes por milho (280 litros do gs para cada milho de litros de ar) pelos mais de 10 mil anos compreendidos entre o final da ltima era glacial e o incio da era industrial. Do sculo XIX para c, cresceram, atingindo, nos ltimos dois anos, valores que chegaram a ultrapassar as 400 ppm, aumento de mais de 40% e prova inequvoca de que o sistema Terra (biota continental, principalmente 2 Isto se d sob enorme desigualdade, pois, segundo o mesmo relatrio, se a humanidade vivesse como

    um habitante mdio da Indonsia, somente 2/3 da biocapacidade planetria estaria sendo utilizada, ao

    passo que seriam necessrias 4 Terras para sustentar 7 bilhes de estadunidenses mdios. Claro, para no

    falar de quantas Terras precisaramos para sustentar 7 bilhes de pessoas com o padro de vida dos muito

    ricos.

  • www.osmilnomesdegaia.eco.br | rio de janeiro, 09.2014 9

    florestas, e oceano, mesmo com toda sua acidificao) no consegue processar emisses to elevadas desse gs. Vale dizer que tais concentraes no foram to altas em pelo menos cerca de 3 milhes de anos. Por ltimo, e mais importante, pelas potenciais consequncias no que diz respeito a alteraes no clima da Terra. de conhecimento corrente como o excesso de gases de efeito estufa (e, em particular, o CO2) levam a um desequilbrio energtico no planeta, ao introduzir uma forante radiativa, dada pelo excedente ou dficit de energia (por unidade de rea por unidade de tempo, sendo portanto medida em Watts por metro quadrado ou W.m-2) no topo da troposfera, ou seja, da camada da atmosfera em contato com a superfcie, em relao a um perodo de referncia, no caso, o pr-industrial ou, mais especificamente, 1750 (RAMASWAMY et al., 2001)3. Tambm h muitas evidncias de o quanto o sistema climtico sensvel a esse desequilbrio e o quanto isso se reverte no apenas no estado mdio da atmosfera (por exemplo, nas temperaturas mdias globais), mas sobretudo na mudana nas estatsticas de ocorrncia de eventos extremos (IPCC, 2012). Por fim, tambm j se mostrou claramente como os impactos de tais eventos so distribudos de forma profundamente desigual (IPCC, 2014). Nesse contexto, as mudanas climticas precisam ser uma pauta central das lutas sociais, ao se vincular estreitamente questo da desigualdade e por guardar, em si, uma perspectiva muito clara de piora das condies de vida de amplas parcelas da populao em escala mundial. Ao contrrio do discurso romantizado do capitalismo verde (contradio em termos), no estamos todos numa mesma nave, a no ser que tal nave nos seja uma analogia dramtica com o Titanic, que efetivamente se espatifou num iceberg enquanto a orquestra tocava, mas que contava com primeira, segunda e terceira 3 De acordo com o 5 Relatrio de Avaliao do IPCC, a forante radiativa claramente positiva, isto , o

    sistema climtico terrestre tem acumulado energia, em funo das alteraes antrpicas, a uma taxa de

    +2,29 W.m-2 (1,13 a 3,33, considerando as incertezas, especialmente em relao aos aerossis), com base

    em dados de 2011 em comparao com o clima de 1750. Isso nada menos do que 46 vezes a melhor

    estimativa para as alteraes observadas na irradincia solar no mesmo perodo, estimada em meros

    +0,05 W.m-2 (IPCC, 2013).

  • alexandre araujo costa | sobre crise ecolgica, violncia e capitalismo no sculo xxi 10

    classe; no qual existiam portes que impediam os passageiros da terceira classe de terem contato com os outros e no qual o acesso aos botes salva-vidas esteve longe de ser igualitrio. Tampouco admissvel a lgica recuada, a iluso reacionria no produtivismo e desenvolvimentismo e a f cega na tecnologia (como se esta, em si, no guardasse valor de classe) de grande parte dos segmentos que proclamam transformaes profundas da sociedade. Lamentavelmente ignorantes da materialidade do mundo, incapazes de reconhecer a necessidade de salvaguardar as prprias condies de subsistncia da ampla maioria da populao mundial (que precisa de gua, comida, energia e segurana contra eventos extremos), objetivamente abrem campo para concesses s classes dominantes. preciso parar de crescer (no sentido da quantidade de bens materiais sendo produzidos e da demanda de matria e energia envolvida) e desacelerar a locomotiva tresloucada do capital, arrancando a riqueza diretamente do punhado de bilionrios que a controla. A lgica de um pensamento de esquerda envelhecido a de que o banquete do capital pode/deve se ampliar, (de)predando o ecossistema global de forma ainda mais brutal, a fim de que caiam mais migalhas no cho, ao invs de colaborarem na construo da necessria insurgncia contra o poder do capital, contra as corporaes, contra a indstria de combustveis fsseis e o sistema financeiro; na prtica se voltam contra as futuras geraes, contra os povos tradicionais, contra os pequenos agricultores, contra o contingente cada vez maior de refugiados climticos e ambientais. A questo climtica , assim, uma questo de classe, de uma ponta outra: na origem, pela desigualdade das emisses (somente 4 companhias Chevron, Shell, Exxon e BP - so responsveis por uma em cada 30 molculas de CO2 na atmosfera!) e nos impactos. uma questo crucial para a classe trabalhadora, pois mitigar e frear a crise climtica pr-condio para que no herdemos da burguesia uma Terra em runas. Ademais, impossvel queimar combustveis fsseis a favor dos trabalhadores. S a burguesia, ensandecida que , se d ao luxo de explor-los e queim-los como se no houvesse amanh, quando sabemos o que discutiremos em seguida que queim-los at o fim garantia segura de que no haver! Uma "revoluo" que se limite a mudar as relaes (jurdicas) de propriedade, retirando os meios de produo da condio de propriedade individual para coletiva para mim no passa de uma "reforma radical". preciso ir alm, atacando as relaes de feticihizao e alienao e, alm de suprimir o

  • www.osmilnomesdegaia.eco.br | rio de janeiro, 09.2014 11

    aparelho de Estado atual, h que se substituir o aparelho produtivo atual por outro em consonncia tanto com a sustentabilidade do metabolismo entre a sociedade humana e o resto na natureza (vencendo a alienao em relao a ela) quanto com a necessria superao das relaes alienadas entre humanos. Ora, mas a expanso recente do capital, j mencionada, alm de engendrar uma crise ecolgica sem precedentes, pautada pelo recrudescimento da violncia, particularmente a de Estado. No Canad, o grande capital ganha acesso a novas terras para expanso da extrao de minrios e estabelecimento de grandes hidreltricas para atender demanda de aumento da gerao de energia somente ao romper o acordo secular com as first nations (as primeiras naes) e que praticamente limitou a ocupao branca original a uma faixa relativamente estreita prxima fronteira dos EUA. No Brasil, grandes barragens e agronegcio se unem na tentativa de expulsar populaes ribeirinhas e tribos indgenas de suas terras, inviabilizando seus modos de vida tradicionais. E estes resistem com a prpria vida, crescendo sem parar a lista de assassinados por latifundirios ou por foras repressoras do Estado (que, alis, atravs da ABIN, no se furtou em cooperar na espionagem das atividades do Movimento Xingu Vivo, ao lado do Consrcio Belo Monte!). Nas grandes cidades de quase todo o mundo, no h como a construo civil e a especulao imobiliria abrirem novas fontes de lucro sem ser removendo populaes pobres e destruindo reas verdes! O mercado do medo (mistura apodrecida de mdia desumanizadora e que mercantiliza e banaliza a violncia com o setor de segurana privada) financia e d suporte a uma poltica deliberada de militarizao. Mas a hipertrofia das foras repressoras de Estado (maiores, melhor equipadas e mais brutalizadas e violentas), claro, nem de longe se destina ao fim proclamado, mas se volta fundamentalmente para conter qualquer trao de resistncia anti-sistmica e para agir efetivamente a favor do capital nos processos de higienizao social que este reivindica. Ivan Tenharim, Amarildo, Nsio Guarani-Kaiow, Cludia... O capital espremido pela sua prpria necessidade insensata de crescer, como serpente que no cabe mais na antiga pele, se expande de forma violenta. Impe, como nos velhos processos de invaso da Amrica pelos europeus, a ocupao de novos espaos e a apropriao de recursos que,

  • alexandre araujo costa | sobre crise ecolgica, violncia e capitalismo no sculo xxi 12

    para se tornarem acessveis, requerem a destruio (inclusive) fsica dos que vivem sobre eles. De um lado, a reedio do genocdio indgena nas Amricas e os ataques a populaes tradicionais nos pases andinos (inclusive patrocinados por governos com posies no alinhadas aos centros do imperialismo, como o caso do Equador), no Brasil, na frica, no Sul da sia e nos pases da Oceania, etc. Do outro, a poltica crescente de encarceramento dos pobres e negros nos EUA e no Brasil, o extermnio da juventude e dos pobres na periferia das grandes cidades. So ambas, portanto, manifestao de um mesmo fenmeno. A urbanizao, no contexto atual, um trao marcante da atual fase de desenvolvimento capitalista (H um sculo, 2 em cada 10 pessoas habitava a zona urbana e nos anos de 1990 isso ainda representava menos de 40% da populao global, mas em 2010, mais da metade das pessoas j habitava as zonas urbanas e, conforme projees da ONU, isso crescer para 60% em 2030 e 70% em 2050) e amplifica a desigualdade, segregao e concentrao dos conflitos nas cidades, ao mesmo tempo em que amplia, territorialmente, os conflitos fora delas. Isto tudo liga Amarildo aos celulares chineses e soja transgnica invadindo a Amaznia, como as mineradoras e petroqumicas, e todas estas aos ndios mortos... e estes ocupao do rtico e... E que liga tudo a 400 ppm de CO2 na atmosfera. Usando o termo da etnia Hopi, quis se chamar Antropoceno, mas mostrou ser Koyaanisqtsi, palavra que, na respectiva lngua, significa vida maluca, vida em turbilho, vida fora de equilbrio, vida se desintegrando, um estado de vida que pede uma outra maneira de se viver". Cribb (2011) afirma ns deveramos formalmente sermos renomeados [de Homo sapiens sapiens para outro nome] para que se descreva a espcie como ela [ou est]: exterminando milhares de outras; liberando carbono, nitrognio e fsforo em quantidades excedendo os ciclos naturais da Terra; destinando 50 vezes mais recursos fabricao de armas do que para sustentar o suprimento de alimentos; destruindo florestas; degradando o solo; poluindo a gua; pilhando os oceanos e danificando a atmosfera em escala planetria, mas a irracionalidade descrita no necessariamente inerente sociedade humana, at porque h evidncias de organizaes sociais, como as de populaes indgenas, em que tal equilbrio metablico se manteve por perodos muito longos. A irracionalidade descrita inerente, sim, pelo exposto quanto impossibilidade de crescimento indefinido, forma capital.

  • www.osmilnomesdegaia.eco.br | rio de janeiro, 09.2014 13

    Breves Consideraes Finais Como discutimos, a demanda por matria e energia no capitalismo tende a crescer exponencialmente, ou em progresso geomtrica, face um crescimento, ainda que modesto, da atividade econmica. Tal demanda impe presses imensas no sentido da obteno dos recursos naturais envolvidos e implica em uma tendncia exacerbao de conflitos. A crise ecolgica (da qual a crise climtica a faceta mais global) uma manifestao de uma etapa de desenvolvimento capitalista em que este avana sobre as ltimas fronteiras possveis de ampliao no mbito do planeta Terra, ultrapassando os limites naturais e predando sem freios o ambiente que sustenta a sociedade humana ao mesmo tempo em que se torna mais violento, ao investir cada vez mais claramente contra os obstculos ao desenvolvimento (sejam estes os povos indgenas que atrapalham a expanso do agronegcio ou a minerao, ou as populaes pobres localizadas nos terrenos pretendidos pela especulao imobiliria, nas cidades). Crise ecolgica e recrudescimento da violncia organizada pelo Estado, mesmo nos regimes burgueses ditos "democrticos", esto umbilicalmente unidas, como produto inevitvel do crescimento capitalista (a primeira) e como nico meio possvel para assegur-lo (a segunda). Ou se detm a fria expansionista do capital (e isso implica em rever as prprias noes produtivistas-desenvolvimentistas incrustadas em boa parte do pensamento "de esquerda"), ou secas e cacetetes, enchentes e balas de borracha, furaces devastadores e represso em massa se abatero, ao longo deste sculo, com mais e mais frequncia sobre a "terceira classe do Titanic".

    Referncias

  • alexandre araujo costa | sobre crise ecolgica, violncia e capitalismo no sculo xxi 14

    Cribb, J. (2011): Taxonomy: New name needed for unwise Homo?, Nature 476, 282 (18 August 2011) doi:10.1038/476282b Crutzen, P. J., and E. F. Stoermer (2000). The 'Anthropocene'. Global Change Newsletter 41: 1718. Harvey , D. (2010): The Enigma of Capital and the Crisis this Time, American Sociological Association Meetings in Atlanta, August 16th, 2010, disponvel em http://davidharvey.org/2010/08/the-enigma-of-capital-and-the-crisis-this-time/, acessado em 23 de abril de 2014. IPCC (2012): Summary for Policymakers. In: Managing the Risks of Extreme Events and Disasters to Advance Climate Change Adaptation [Field, C.B., V. Barros, T.F. Stocker, D. Qin, D.J. Dokken, K.L. Ebi, M.D. Mastrandrea, K.J. Mach, G.-K. Plattner, S.K. Allen, M. Tignor, and P.M. Midgley (eds.)]. A Special Report of Working Groups I and II of the Intergovernmental Panel on Climate Change. Cambridge University Press, Cambridge, UK, and New York, NY, USA, pp. 1-19. IPCC (2013): Summary for Policymakers. In: Climate Change 2013: The Physical Science Basis. Contribution of Working Group I to the Fifth Assessment Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change [Stocker, T.F., D. Qin, G.-K. Plattner, M. Tignor, S.K. Allen, J. Boschung, A. Nauels, Y. Xia, V. Bex and P.M. Midgley (eds.)]. Cambridge University Press, Cambridge, United Kingdom and New York, NY, USA IPCC (2014): Summary for Policymakers. In: Climate Change 2014: Impacts, Adaptation, and Vulnerability. Contribution of Working Group II to the Fifth Assessment Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change. Ramaswamy, V., et al. (2001): Radiative forcing of climate change. In: Climate Change 2001: The Scientific Basis. Contribution of Working Group I to the Third Assessment Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change [Houghton, J.T., et al. (eds.)]. Cambridge University Press, Cambridge, United Kingdom and New York, NY, USA, pp. 349416. Rockstrm, J. et al. (2009): A safe operating space for humanity. Nature 461, 472-475 (24 September 2009) | doi:10.1038/461472a Syvitski J P M and Kettner A J (2011): Sediment flux and the Anthropocene. Philosophical Transactions of the Royal Society A 369: 957-975 White T.D., Asfaw B., DeGusta D., Gilbert H., Richards G.D., Suwa G. et al. (2003): Pleistocene Homo sapiens from Middle Awash, Ethiopia. Nature, 423:742-7. World Wide Fund for Nature (2012): Relatrio Planeta Vivo 2012, a caminho da Rio+20. Disponvel online em http://d3nehc6yl9qzo4.cloudfront.net/downloads/relatorio_planeta_vivo_sumario_rio20_final.pdf, acessado em 23 de abril de 2014.