Sobre constructos epistemiológicos nas ciências: uma contribuição para a enfermagem.

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420 SOBRE CONSTR SOBRE CONSTR SOBRE CONSTR SOBRE CONSTR SOBRE CONSTRUT UT UT UT UTOS EPISTEMOLÓGICOS N OS EPISTEMOLÓGICOS N OS EPISTEMOLÓGICOS N OS EPISTEMOLÓGICOS N OS EPISTEMOLÓGICOS NAS CIÊNCIAS – UMA AS CIÊNCIAS – UMA AS CIÊNCIAS – UMA AS CIÊNCIAS – UMA AS CIÊNCIAS – UMA CONTRIB CONTRIB CONTRIB CONTRIB CONTRIBUIÇÃO P UIÇÃO P UIÇÃO P UIÇÃO P UIÇÃO PARA ARA ARA ARA ARA A ENFERMA A ENFERMA A ENFERMA A ENFERMA A ENFERMAGEM GEM GEM GEM GEM 1 Vilma de Carvalho 2 Carvalho V. Sobre construtos epistemológicos nas ciências – uma contribuição para a enfermagem. Rev Latino-am Enfermagem 2003 julho-agosto; 11(4):420-8. Neste trabalho, pretende-se expor algumas reflexões críticas “sobre construtos epistemológicos nas ciências”, a partir de conceitos e preocupações inerentes aos avanços científicos e tecnológicos que influenciam a construção do conhecimento. Na abordagem metodológica, a enfermagem é vista como “uma ciência-em-vias-de-se-fazer”. A discussão e os argumentos focalizam aspectos/traços distintivos da ciência, que definem a natureza e os objetivos da pesquisa, e que ampliam a visão de conhecimento e realidade objetiva para a área da enfermagem. A autora, coerente com pontuações filosóficas e acadêmicas, coloca o enfoque do discurso para realçar/destacar o significado de construtos como consistente com a elaboração de teorias ou de assuntos significantes de uma área de estudo. E explica sua posição intelectual no plano de algumas teses de enfermagem (Doutorado), numa tentativa de esclarecer aspectos epistemológicos da construção científica na enfermagem. DESCRITORES: enfermagem; epistemologia; conhecimento; pesquisa; construtos ABOUT EPISTEMOLOGICAL CONSTRUCTS IN SCIENCE – A ABOUT EPISTEMOLOGICAL CONSTRUCTS IN SCIENCE – A ABOUT EPISTEMOLOGICAL CONSTRUCTS IN SCIENCE – A ABOUT EPISTEMOLOGICAL CONSTRUCTS IN SCIENCE – A ABOUT EPISTEMOLOGICAL CONSTRUCTS IN SCIENCE – A CONTRIB CONTRIB CONTRIB CONTRIB CONTRIBUTION UTION UTION UTION UTION TO NURSING O NURSING O NURSING O NURSING O NURSING This study presents some critical reflections “about epistemological constructs in science”, on the basis of concepts and preoccupations that are inherent to the scientific and technological advances that influence the construction of knowledge. In accordance with the methodological approach, nursing is seen as “a science under construction”. The discussion and arguments focus on distinct aspects/traces of science, which define the nature and objectives of research and which broaden the view of objective knowledge and reality for the field of nursing. In coherence with philosophical and academic reference bases, the author uses the focus of discourse to emphasize/highlight the meaning of constructs as being consistent with the elaboration of significant theories or issues in a field of study and explains her intellectual position in relation to some nursing theses (Ph.D.), in an attempt to explain epistemological aspects of the construction of nursing science. DESCRIPTORS: nursing; epistemology; knowledge; research; constructs SOBRE CONSTR SOBRE CONSTR SOBRE CONSTR SOBRE CONSTR SOBRE CONSTRUCT UCT UCT UCT UCTOS EPISTEMOLÓGICOS EN LAS CIENCIAS – UN OS EPISTEMOLÓGICOS EN LAS CIENCIAS – UN OS EPISTEMOLÓGICOS EN LAS CIENCIAS – UN OS EPISTEMOLÓGICOS EN LAS CIENCIAS – UN OS EPISTEMOLÓGICOS EN LAS CIENCIAS – UNA CONTRIBUCIÓN A LA ENFERMERÍA CONTRIBUCIÓN A LA ENFERMERÍA CONTRIBUCIÓN A LA ENFERMERÍA CONTRIBUCIÓN A LA ENFERMERÍA CONTRIBUCIÓN A LA ENFERMERÍA Este trabajo se pretende exponer algunas reflexiones críticas “sobre constructos epistemológicos en las ciencias”, a partir de conceptos y preocupaciones inherentes a los avances científicos y tecnológicos que influyen la construcción del conocimiento. En el abordaje metodológico, la enfermería es considerada como “una ciencia-en-vías-de-hacerse”. La discusión y los argumentos centran aspectos/trazos distintos de la ciencia, que definen la naturaleza y los objetos de la investigación, y que amplían la visión de conocimiento y realidad objetiva para el área de la enfermería. Coherente con referenciales filosóficos y académicos, la autora, coherente con reflexiones filosóficas, coloca el enfoque del discurso para realzar/destacar el significado de los constructos como consistente con la elaboración de teorías o de asuntos significantes de un área de estudio y explica su posición intelectual con respecto a algunas tesis de enfermería (Doctoramiento), en una tentativa de esclarecer aspectos epistemológicos de la construcción científica en enfermería. DESCRIPTORES: enfermería; epistemología; conocimiento; investigación; constructos 1 Contribuição ao Temário do Programa Científico do 11º Seminário Nacional de Pesquisa em Enfermagem - SENPE, realizado pela Associação Brasileira de Enfermagem - ABEn, Belém-PA; 2 Enfermeira, Doutor/Livre Docente, Professor Titular da Escola de Enfermagem Anna Nery da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Bacharel/Licenciada em Filosofia, Pesquisador do CNPq Rev Latino-am Enfermagem 2003 julho-agosto; 11(4):420-8 www.eerp.usp.br/rlaenf Artigo Original

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O artigos trabalha com a concepção da formação da enfermagem no seu contexto histórico.

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Vilma de Carvalho2

Carvalho V. Sobre construtos epistemológicos nas ciências – uma contribuição para a enfermagem. Rev Latino-am Enfermagem2003 julho-agosto; 11(4):420-8.

Neste trabalho, pretende-se expor algumas reflexões críticas “sobre construtos epistemológicos nas ciências”, a partirde conceitos e preocupações inerentes aos avanços científicos e tecnológicos que influenciam a construção do conhecimento.Na abordagem metodológica, a enfermagem é vista como “uma ciência-em-vias-de-se-fazer”. A discussão e os argumentosfocalizam aspectos/traços distintivos da ciência, que definem a natureza e os objetivos da pesquisa, e que ampliam a visão deconhecimento e realidade objetiva para a área da enfermagem. A autora, coerente com pontuações filosóficas e acadêmicas,coloca o enfoque do discurso para realçar/destacar o significado de construtos como consistente com a elaboração de teoriasou de assuntos significantes de uma área de estudo. E explica sua posição intelectual no plano de algumas teses de enfermagem(Doutorado), numa tentativa de esclarecer aspectos epistemológicos da construção científica na enfermagem.

DESCRITORES: enfermagem; epistemologia; conhecimento; pesquisa; construtos

ABOUT EPISTEMOLOGICAL CONSTRUCTS IN SCIENCE – AABOUT EPISTEMOLOGICAL CONSTRUCTS IN SCIENCE – AABOUT EPISTEMOLOGICAL CONSTRUCTS IN SCIENCE – AABOUT EPISTEMOLOGICAL CONSTRUCTS IN SCIENCE – AABOUT EPISTEMOLOGICAL CONSTRUCTS IN SCIENCE – ACONTRIBCONTRIBCONTRIBCONTRIBCONTRIBUTION UTION UTION UTION UTION TTTTTO NURSINGO NURSINGO NURSINGO NURSINGO NURSING

This study presents some critical reflections “about epistemological constructs in science”, on the basis of concepts andpreoccupations that are inherent to the scientific and technological advances that influence the construction of knowledge. Inaccordance with the methodological approach, nursing is seen as “a science under construction”. The discussion and argumentsfocus on distinct aspects/traces of science, which define the nature and objectives of research and which broaden the view ofobjective knowledge and reality for the field of nursing. In coherence with philosophical and academic reference bases, theauthor uses the focus of discourse to emphasize/highlight the meaning of constructs as being consistent with the elaborationof significant theories or issues in a field of study and explains her intellectual position in relation to some nursing theses (Ph.D.),in an attempt to explain epistemological aspects of the construction of nursing science.

DESCRIPTORS: nursing; epistemology; knowledge; research; constructs

SOBRE CONSTRSOBRE CONSTRSOBRE CONSTRSOBRE CONSTRSOBRE CONSTRUCTUCTUCTUCTUCTOS EPISTEMOLÓGICOS EN LAS CIENCIAS – UNOS EPISTEMOLÓGICOS EN LAS CIENCIAS – UNOS EPISTEMOLÓGICOS EN LAS CIENCIAS – UNOS EPISTEMOLÓGICOS EN LAS CIENCIAS – UNOS EPISTEMOLÓGICOS EN LAS CIENCIAS – UNAAAAACONTRIBUCIÓN A LA ENFERMERÍACONTRIBUCIÓN A LA ENFERMERÍACONTRIBUCIÓN A LA ENFERMERÍACONTRIBUCIÓN A LA ENFERMERÍACONTRIBUCIÓN A LA ENFERMERÍA

Este trabajo se pretende exponer algunas reflexiones críticas “sobre constructos epistemológicos en las ciencias”, apartir de conceptos y preocupaciones inherentes a los avances científicos y tecnológicos que influyen la construcción delconocimiento. En el abordaje metodológico, la enfermería es considerada como “una ciencia-en-vías-de-hacerse”. La discusióny los argumentos centran aspectos/trazos distintos de la ciencia, que definen la naturaleza y los objetos de la investigación, yque amplían la visión de conocimiento y realidad objetiva para el área de la enfermería. Coherente con referenciales filosóficosy académicos, la autora, coherente con reflexiones filosóficas, coloca el enfoque del discurso para realzar/destacar el significadode los constructos como consistente con la elaboración de teorías o de asuntos significantes de un área de estudio y explicasu posición intelectual con respecto a algunas tesis de enfermería (Doctoramiento), en una tentativa de esclarecer aspectosepistemológicos de la construcción científica en enfermería.

DESCRIPTORES: enfermería; epistemología; conocimiento; investigación; constructos

1 Contribuição ao Temário do Programa Científico do 11º Seminário Nacional de Pesquisa em Enfermagem - SENPE, realizado pela AssociaçãoBrasileira de Enfermagem - ABEn, Belém-PA; 2 Enfermeira, Doutor/Livre Docente, Professor Titular da Escola de Enfermagem Anna Nery daUniversidade Federal do Rio de Janeiro, Bacharel/Licenciada em Filosofia, Pesquisador do CNPq

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SOBRE O TEMA EM PAUTA

O tema em pauta tem a ver com a atividade deinvestigar e de conhecer. Afina-se com a preocupaçãotangível ao alcance da verdade do conhecimento, de quetratam a Filosofia da Ciência e a Epistemologia. Essa éuma preocupação subjacente aos avanços científicos e àcrise epistemológica que demarca o conhecimento daFísica, nas primeiras décadas do século XX, com asimplicações da Teoria da Relatividade e da Física Quântica.Preocupação comum nas profissões modernas, mormenteem razão da busca da cientificidade como estatuto efronteira de acesso a conhecimentos avançados. A idéiaprevalente visa estabelecer compasso entre atividadesprofissionais e progresso científico. Progresso de idealsem limites, já aponta na direção das galáxias. Sempreevidente na objetividade das ciências da natureza, e pelosignificado da vida no mundo ressalta-se, agora, nadecifração do código genético e nos objetivos de projetoscientificamente arquitetados para a reprodução dos seresvivos.

A enfermagem não escapa da preocupação. Osaber profissional sofre pressões para manter-sepedagogicamente de nível elevado, no contexto daeducação superior e da Pós-Graduação “stricto sensu”.Como prática de pesquisar e produzir conhecimento, aprofissão é avaliada com requisitos das ciênciasconhecidas. Requisitos de protocolos das agências defomento à pesquisa, e não por critérios acadêmicos desuporte às atividades dos pesquisadores, e à analítica dagênese, desenvolvimento e evolutivas da enfermagem comociência em construção. Preocupação marcada devicissitudes da prática de pesquisar face à desfavorávelpolítica de ciência e tecnologia. E não existe regra deconduta ou de cálculo capaz de eliminar de vez talpreocupação. A saída talvez seja seguir as regras dasciências. Há certa razão para os pesquisadores daenfermagem desejarem dominar conhecimentos capazesde apoiar a construção científica, seja como meta paraatingir o status das ciências, seja para definir de vez ovalor do corpus doutrinae da profissão.

O que eu sei não é muito. Não sigo regras destaou daquela ciência, com exclusividade. E não me utilizodos fundamentos de um único sistema de explicação.Reconheço-me crítica, um tanto eclética pela posiçãointelectual. Quanto à pesquisa e à construção científica,sigo o que tenho aprendido da Filosofia, do ensino de

enfermagem e das orientações de dissertações e teses.Confesso que tenho aprendido muito de uma sistemáticametodológica artesanal e construtiva(1), pois não absolutizoo poder das ciências. Percebo a enfermagem como nodizer de Moles(2) - “uma ciência-em-vias-de-se-fazer” - e,portanto, classificada entre “as ciências do impreciso”.Independente de classificar ou dividir as ciências, - (purase aplicadas, físicas e sociais, compreensivas eexplicativas, etc.) -, percebo a enfermagem carente deconhecimentos capazes de superar obstáculosepistemológicos(3), os que retardam de muitas formas, oato de conhecer e até pela preferência às respostas aoinvés de às perguntas. Uma profissão necessitando rompercom experiências casuais, para submeter seus achadosà verificabilidade e à falseabilidade. Portanto, precisandosubmeter as formulações do pensamento sobreenfermagem a conjeturas e refutações(4).

Sabemos do valor das teorias de enfermagem.Não podendo contar com bons resultados de aplicaçõespráticas, continuamos deixando-as de lado, seguindomodelos emergentes, ao invés de submetê-las,experimentalmente, ao controle das provas científicas.Algumas pesquisas possibilitam ampliar a visão darealidade assistencial, mas sem chegar à consistênciado conhecimento confiável(5). Não damos toda atençãoaos requisitos das ciências, exceto (talvez) quando osmétodos utilizados são ineficazes. Com os desafios deobter aprovação de projetos, começamos a dar maisatenção à lógica e à dinâmica da pesquisa. Mas semseguir o processo das ciências, podemos continuaralmejando a posição de conhecimento científico. Jáalcançamos muito com a produção intelectual, naenfermagem, mas sem o nível pretendido à dignidade deuma profissão socialmente dada. Como alertam Goode eHatt(6), “como nas outras profissões, o êxito do cientista[ou do pesquisador] é medido pela opinião de seus colegas.Eles devem ser juizes de seu trabalho. Eles lêem seustrabalhos publicados, utilizam ou criticam seus resultados”.A esse respeito, não alcançamos a consideraçãoindiscutível da comunidade científica.

Reconheço meus limites de pesquisadora, egostaria de dispor de um estudo mais apurado para minhascolocações, as quais são fruto da experiência com o ensinode pós-graduação, na Escola de Enfermagem Anna Nery(EEAN/UFRJ). A premência de tempo é um fato. Nãodisponho de grupo de apoio, nem de condições ideais auma prática crítica de nossa construção científica.

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Contudo, o que penso, embora sem uma investigaçãoespecífica, pode servir de base para reflexões pertinentesao tema.

UM PONTO DE PARTIDA PARA A DISCUSSÃO

Certa vez, em um curso de metodologia científica,discutíamos características do que seja ciência. Eu nãoqueria, e ainda não quero, tomar partido entre as ciênciasclassificadas segundo óticas diferentes e diversos modosde análise. Na ocasião, tentava-se explicar os traçosdistintivos da ciência, os quais permitem definir a naturezada pesquisa e seus objetivos. Não precisamos deexemplos detalhados. A literatura contemporânea deFilosofia da Ciência é ampla e apresenta respostas àsdificuldades da pesquisa. Acredito que a natureza daciência, seus princípios e regras servem de parâmetrospara assuntos do espaço da pesquisa científica. A elesdevemos consideração. Isso, se quisermos assegurar,para a enfermagem, uma avaliação e um enquadramentoreconhecidamente consagrados.

Há alguns aspectos basilares da concepção deciência os quais merecem atenção. Se não para aceitá-los, então para revisá-los à luz de concepções maisrecentes, que estão influenciando as pesquisas naenfermagem. Mas ninguém seria tão ingênuo a ponto depensar que respostas elucidativas para problemas práticosda enfermagem são de natureza exclusiva desta oudaquela ciência. Na enfermagem, a maior dificuldade dospesquisadores talvez seja decidir, objetivamente, quais osmétodos aplicáveis e as teorias que merecem maior peso.Dificuldades metodológicas tornam realmente difíciloferecer respostas definitivas para muitas perguntas. Porisso, é importante atender às características da ciência.Não faço disto uma questão de embate. Mas asafirmações, a seguir, prestam-se bem ao propósito daexposição.1. O traço mais saliente da ciência é o controle prático danatureza(7). Entenda-se “natureza” como “o objetoespecífico da ciência”. O objeto da experiência, em umdado projeto de pesquisa, o que circunscreve a busca derespostas para um problema, é designado “objeto deestudo” - um aspecto da natureza. Na ciência e natecnologia, a investigação da natureza já deu testemunhode sua relevância. Não precisamos, aqui, de outrasexplicações.

2. Teórica e experimentalmente, a ciência ressalta-se nosegundo traço enquanto concebida como sistemáticaobjetiva e ocasião para a “pesquisa básica” – a que podedeterminar leis com a matematização dos resultados. Naconcepção de cientistas da objetividade, instruções emedidas asseguram a confiablidade da experiência,afastando inadequações e erros na pesquisa, que retardamverdadeiras descobertas. Ciências pautadas pela Físicavisam preservar os fenômenos, em sua integração ànatureza, apresentando fatos e processos segundo leis eteorias explicativas.3. O terceiro traço da ciência é o método de investigação.Aspecto às vezes mal interpretado que eu, pessoalmente,não gosto de discutir. Sobretudo por ser radicado na lógicadas descobertas científicas, o método científico não podeser posto em causa. Não após séculos de aquisiçõescientíficas e tecnológicas. Mas penso que um método éútil, na enfermagem, desde que aplicável.

Apesar das críticas e influências de novosconhecimentos sublinhando o fato de que a orientação denossas vidas não é produto de conhecimento sistemático,precisamos de mais atenção aos traços da ciência e àdistinção entre proposições teóricas sobre a natureza(fatos e problemas da realidade) e outras formulações –ou não bem fundamentadas, ou oriundas do senso comum.

Não que o senso comum seja de se desprezar.“Por dezenas de milhares de anos, os homenssobreviveram sem nada que se assemelhasse à ciência”(8).Parafraseando Moles(2), eu não faço apologia da “ideologiada precisão”. Porém, “asserções do senso comum” sãoimprecisas, às vezes fragmentárias. Precisam desubmissão a esquemas categoriais, ou de redução anúcleos substantivos, ou a idéias centrais na pesquisa.Talvez não se possa resolver de vez o limite entre o sensocomum – opiniões obtidas de experiências imediatas - eos resultados da pesquisa. Precisamos ter em mente que“o sinal distintivo da ciência é o de tentar deliberadamentealcançar resultados livres das limitações do sensocomum”(7). Porque o propósito fundamental da ciência é acompreensão objetiva do mundo empírico no qual o própriohomem está inserido.

Sabemos que a enfermagem moderna pauta-sepor princípios fundamentais e proposições explicativas deFlorence Nightingale(9-10). “Em sua gênese edesenvolvimento, a enfermagem é consistente com a artede cuidar específica de uma prática científica, quecorresponde a uma verdadeira reforma sanitária e, por isso,

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reconhecida de alta relevância”(11). A trajetória histórico-evolutiva e o progresso profissional, como sucedido naexpansão paradigmática em todas as partes do mundo,estão socialmente reconhecidos. Se a enfermagem nãoculminou como ciência, em si e por si, é que “a ciêncianão nasce toda equipada do cérebro do cientista, ela éum processo antes de ser um acabamento, ela é umpenoso esforço para recomeçar perpetuamente a pensarde maneira precisa”(2).

Já avançamos na pesquisa, e a produçãointelectual na enfermagem é bem considerável. Nossosargumentos podem não ser tão convincentes, nem nossosachados tão indiscutíveis em grau de confiabilidade. Aciência é uma atividade humana complexa, tão integradaa mudanças aceleradas, em forma e conteúdo, que nãose pode, simplesmente, superestimar ou subestimar aconfiabilidade do conhecimento. Mas precisamos deatenção aos fundamentos da enfermagem e aos doconhecimento científico. Ou, então, nossas pesquisas,bases explicativas e decisões para o avanço da construçãocientífica não serão bem avaliadas. Eis aí (talvez) o pontocrucial de como entender os construtos epistemológicosnas ciências.

Para os afeitos à orientação filosófica, o temapode não representar desafio. Os interessados na pesquisapoderão se beneficiar da reflexão e do exame dedificuldades que acompanham a atividade investigativa eque cercam a construção e aplicação de teorias para apreservação ou produção de fenômenos. Salvaguardando-se a atenção aos quadros referenciais, é preciso nãoesquecer a finalidade principal do cientista, ou dopesquisador, qual seja fornecer instrumentos para a críticade sua própria concepção das coisas(12). Um esquemacategorial para “o agrupamento da produção científica depós-graduação e apreciação das linhas de pesquisa eprioridades de enfermagem” serve de exemplo(13). Vejamoscomo tirar, então, proveito de mais uma contribuição paraa enfermagem.

UM POUCO DE HISTÓRIA

A preocupação com “construtos epistemológicos”e problemas do conhecimento é muito antiga. Na culturaocidental, a preocupação demarca o surgimento daFilosofia e do saber entendido como Ciência. Aos filósofosda Grécia antiga (Século VI AC) é atribuída a questãofundamental de constituir a temática e problemática das

ciências. Dos gregos surgiram os esforços de instaurarperguntas, de buscar razões para impelir o pensamentoem prol da precisão sobre as coisas. Precisaram criartermos, vocábulos, palavras, expressões, quesignificassem causas, propósitos de conceber, meios deidentificar a natureza. Interessava distinguir entre “opiniãocorrente” e “conhecimento fundamentado”. À opiniãocorrente Platão atribui o sentido do saber comum a todos,saber que não é (sistematicamente) procurado. Cria apalavra doxa, designada para a opinião como fruto do sabermetodicamente adquirido. Partindo da reflexão -autodiscussão do espírito consigo mesmo - Platão suscitaa emergência de opiniões contrapostas e resultantes deidéias obtidas com o método designado dialética. A palavra“episteme” é proposta em oposição à palavra “doxa”, ecom sentido de “verdade” pretendida na busca do saberprocurado. A episteme resulta, assim, da busca dosignificado real ou da essência mesma das coisas. Afilosofia é estabelecida como saber racional, reflexivo,saber procurado, fundamentado e adquirido commétodo(14).

Com Platão, a reflexão, atividade de pensar(também) sobre a natureza, e as palavras forjadas eusadas, no diálogo, constituem-se em espécie deinvestigação doxológica, concretizada mediante o conceitoe a definição. Mas o termo principal para designar as coisasé a idéia, neologismo da terminologia platônica e expressaas representações do pensamento sobre “o que é e o quenão é” no plano do conhecer. Àquela época, não haviaoutra saída para o filósofo, a não ser dois recursos: - 1.tomar do idioma usual um termo e dar-lhe sentidofilosófico (doxa); e 2. forjar um termo novo (idéia)para atingir a verdade. Os dois recursos permitiramestabelecer a sistemática epistemológica e a forma deelevar-se o pensamento do mundo físico para as idéias,modelos perfeitos não como entidades do pensamento,mas como essência mesma do real(14-15). Desde então,conceituar e definir, exprimem a capacidade reflexiva dopensamento, e a condição de ajustar e criar termos parapoder-se falar com firmeza sobre as coisas de nossosinteresses.

A reflexão - instrumento de busca da verdade -avança com Aristóteles, o qual, com “a lógica e a ordemdos conceitos”(16), amplia o espaço de dar razões ànatureza e atribuir causas à realidade apreendida. Eledefine o poder do pensamento de decidir entre proposições,com aplicações metodológicas (regras do silogismo) parapensar-se corretamente sobre o real(17-18). A Lógica -

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analítica das asserções de fato (definições afirmativas enegativas) - aumenta o espaço de alcance da verdade, senão das coisas, das proposições sobre elas. Com areflexão sobre proposições, as premissas, e consideradosos princípios lógicos (de identidade, de não-contradição,do terceiro excluído, da razão suficiente), é possível atingir-se a verdade. A busca de respostas é ancorada na verdadedas premissas. Com a criação das categorias (conceitose definições), amplia-se o poder da razão em designar edividir as coisas. Assim, o pensamento ganha poder declassificar as relações do sujeito com as coisas, e apossibilidade de justificar, (pela razão), o conhecimentofundamentado. O realismo gnoseológico de Aristótelesopõe-se à gnoseologia idealista de Platão, faz avançar areflexão e transforma a busca de respostas em metodologialógica designada dedução.

Parece elementar. A investigação de problemas(enigmas?) da natureza releva-se com as “categorias”(predicamentos, predicativos), ou atributos de conceituarmodos de ser de um sujeito. “As relações do sujeito comas coisas” torna-se o centro de interesse com as razões,e a busca de causas em sistemática objetiva.Progressivamente, o objeto da ciência (o real), jáclassificado em tipologias, ocupa lugar privilegiado, naépoca moderna. As novas filosofias, principalmente o“racionalismo” e o “empirismo”, movem as buscas decausas, com “experiências de demonstração e provas deevidência” do método científico. O poder do pensamento,per se, reduz-se no plano do conhecimento da natureza.Mas, na lógica contemporânea, a dedução releva-se,novamente, com o método axiomático (hipotético-dedutivo),o qual, com as formalidades e recursos da lógica, permitederivar de termos primeiros, axiomas (princípios evidentes),a verdade a ser estabelecida(19). Na estrutura dessemétodo, conceitos fundamentais ancoram a lógica dopensamento que incorpora, às vezes, conceitos essenciais(presssupostos, hipóteses) e termos significantes(sentenças arbitrárias ou necessárias), que norteiam abusca da verdade.

Não sei se me explico bem. Mas, no todo e naspartes da estrutura do raciocínio, e do arranjo metodológicode uma pesquisa, com pretensão de busca da verdade, éimprescindível deduzir-se com base em premissas etermos norteadores da investigação. A dedução implica acorreção do pensamento e comporta a relação dasproposições. As regras lógicas e a ordem dos conceitossão necessárias(16) e permitem ao raciocínio conduzir-se

coerente com princípios dos enunciados, enquanto osentido das premissas vai se afinando com a verdadeimplicada nas respostas dos sujeitos sobre as coisas.Sem o quê, é impossível o raciocínio correto e até aemissão de juízos sobre os limites da investigação.

Embora não seja tudo, isso exemplifica, nahistória do pensamento, as filosofias do conhecer e “osrecursos de ajustar e criar palavras e conceitos para norteara investigação”. Sejam simples idealizações ou termoscategoriais, para se conceber a busca de respostas, emvista de dificuldades do problema na pesquisa, é necessáriolançar mão desses recursos para estabelecer as notasdistintivas do objeto em causa. Às vezes, para eliminar aredundância de definições, e aumentar o poder deafirmação, precisamos de conceitos alternativos ou deasserções adicionais(12). É como entendo o significadode construtos – idéias e termos categoriais, princípioscondutores, opiniões influentes ou conceitos essenciaisadotados, em uma teoria ou área de estudo. A meu ver,os “construtos” são palavras ou expressões brilhantementeinventadas no plano de uma investigação, de um programade pesquisa, de uma teoria ou de um discurso de efeitoteorizante. A função deles é mediar a distinção do objetocomo percebido, além de facilitar a conceituação dasrelações dos sujeitos envolvidos na pesquisa, favorecendoa delimitação do espaço de alcance da verdade ou docampo de compreensão epistemológica dos resultadosda investigação.

DO SIGNIFICADO E OPORTUNIDADE DOSCONSTRUTOS

As dificuldades dos “construtos” não se resolvemsó nos modos da filosofia grega. Em mais de quatrocentosanos de evolução, passando por Bacon, Galileu, Newton,Descartes e tantos outros, evidentemente a ciênciaprogrediu. Porém, buscar respostas para os problemasda natureza transformou-se em uma atividade complexa,mormente pela sofisticação de instrumentos queampliaram a importância e enriqueceram o método dainvestigação. Na trajetória evolutiva, “conceitosnorteadores” foram surgindo para elucidar as pesquisas,tanto no contexto da descoberta como no da justificação.Eles surgem de permeio com as atividades simples oucomplexas de pesquisar, como listar aspectos do objetode estudo ou dar ordem aos significados dos achados.

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Às vezes, integram as teorias ou os esquemasclassificadores constitutivos de uma dada investigação.Na dependência de como é arquitetada e executada apesquisa, tais conceitos valem para delinear a concepçãodo que está em causa. Funcionam como elementoscondutores do pensamento investigativo. Equivalem aconvicções que podem (e devem) ser provadas. Asseguramo propósito da pesquisa e, sobretudo, a relevância doobjeto, o nível da construção científica, e a justificativa doassunto.

Confesso que não sou especialista para falar, comtoda propriedade, sobre esse assunto. Por necessidadepedagógica e de bem conduzir o raciocínio em relação àpesquisa na enfermagem, e na ajuda a meus alunos naelaboração de dissertações e teses, não pude escaparde envolvimento com a temática da filosofia da ciência ecom a problemática de aspectos epistemológicos queperpassam a atividade de qualquer pesquisador,principalmente se ligada às pretensões científicas daenfermagem. Assim, alguns exemplos de minha própriaprática podem apoiar minhas colocações. Penso que mesairei melhor do que se tentar os exemplos das ciências.Como já referido, a literatura sobre Filosofia da Ciência eEpistemologia é farta e pode clarear, melhor do que eu,as dificuldades por detrás das atividades na pesquisacientífica.

A primeira vez que percebi a ocorrência e validadede “construtos”, sucedeu em um concurso de DocênciaLivre realizado na década de 70, na Escola de EnfermagemAnna Nery (EEAN/UFRJ). Falo da tese* de Lygia Paim(20),intitulada “Quantitativos e Qualitativos de Cuidados deEnfermagem”, a qual entendo como brilhante tentativa deaplicar, na prática assistencial, princípios teóricos doprocesso de enfermagem. A autora, para instruir e controlara experiência e assegurar confiabilidade aos resultados,utiliza-se de termos “prontuário-paralelo” e “deslocamentode problemas”, entre outros definidos para ajustar ométodo de resolver problemas e avaliar prescrições deenfermagem. Pude observar o significado e a oportunidadedos construtos, quando, além das “hipóteses da pesquisa”,Paim cria outras, emergencialmente, para controlar “certasatividades administrativas das enfermeiras, na Unidade deInternação”, as quais designavam horas gastas com“treinamento de pessoal de enfermagem, controle daUnidade e coordenação do cuidado ao paciente”. A tese

apresenta os três traços distintivos da ciência, comoreferidos por Nagel, e os termos criados ressaltamaspectos distintivos para o alcance do conhecimentocientífico.

Os exemplos, a seguir, são oriundos deorientações de teses de Doutorado em Enfermagem. Faloprimeiro da tese de Nébia Figueiredo, defendida em 1994(EEAN/UFRJ)(21). A necessidade de apelar aos “construtos”surgiu no começo da investigação. A expressão “corpoda enfermeira” na terminologia de enfermagem e no aparatoinstrumental de trabalho da enfermeira era completamentenova. Conceituar a expressão “como instrumento detrabalho” e justificá-la com convicção de que, nasistemática assistencial, é preciso compreender “O Corpoda Enfermeira como Instrumento do Cuidado”(21), exigiucriar o novo significado e o ajuste conceitual a sercompatibilizado com as respostas das enfermeiras.“Técnicas especiais de obter dados e dinâmica de grupos”foram ajustadas. As respostas classificadas porcategorias, especialmente forjadas, serviram ao sentidodas representações das enfermeiras. Além de ampliar oespaço metodológico da tese, as “categorias” ensejaramo alcance epistemológico dos resultados. Os “construtose categorias” serviram não de substitutivos, mas de apoioà idéia de acrescentar novos elementos à definição de“corpo” [da enfermeira]. Daí a opção pelo ajuste conceitual,e não pela introdução de novo termo com potencialdesorganizador para os princípios e enunciados deenfermagem. A idéia era a de destacar os recursos denova abordagem aos cuidados de enfermagem, e não geraruma linguagem anti-natural para a profissão. A teseevidencia-se pela diferenciada sistemática objetiva e pelostermos aditivos ao método. E consubstancia contribuiçãoao sentido de que “a enfermeira trabalha com seu corpo”,na esfera do cuidado. Os resultados já estão frutificandoem novos estudos sobre essa idéia (in)comum.

O segundo exemplo é da tese de Maria JoséCoelho, defendida em 1996 (EEAN/UFRJ) e publicada comtítulo “O Socorro, o Socorrido e o Socorrer: Cuidar/Cuidados em Enfermagem de Emergência”(22). Participeida orientação pelas exigências universitárias eexperiências de atuar, enquanto professora, na área deemergência. A intencionalidade objetiva visava descrevere caracterizar “ações de cuidar e operações de prestarcuidados em situações de emergência”. Com a escassa

* Tese defendida em 1977 e publicada em 1979

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literatura da área de atuação, os ajustes conceituaisserviram para ampliar a percepção dos “sujeitos-objeto” ea compreensão das respostas perseguidas. Os“construtos” foram sendo forjados para reduzir deficiênciasterminológicas e para situar a atuação da enfermeira esua equipe nas emergências. Particularmente, contribuícom o termo “cuidar/cuidados” para significar a unicidadeda atuação da enfermeira e seu pessoal, nas emergênciase na arte de cuidar e prestar cuidados. Nas específicassituações, não há como dissociar as atividades de uns ede outros. Com a expressão significativa do papel daenfermeira, ficou entendida a impossibilidade de distinguir,nas emergências, entre “ação de cuidar como processoabrangente” e “cuidados prestados como atos concretos(ou operações) de assistir”. Entre os “construtos”, ascategorias foram criadas para designar e classificar oscuidados de enfermagem de emergência e contribuir aoconhecimento de enfermagem. O aspecto destacado é aparticipação efetiva do “sujeito-pesquisador” na coleta dedados e descrição das situações de enfermagem. No planoda integração entre pesquisador e equipe de enfermagem,os “construtos” associaram os envolvidos e aumentarama compreensão de “especificidades e aspectos distintivosdos cuidados prestados”. A esse respeito, a tese destaca-se pela sistemática objetiva, com pertinência à descriçãoda prática e à categorização dos cuidados, dois aspectosreferendados na perspectiva dos sujeitos situados noespaço epistemológico do objeto.

O terceiro exemplo é da tese de Paulo VaccariCaccavo, “A Arte da Enfermagem – efêmera, graciosa eperene”, defendida em 15/12/2000(23). Não posso minimizara idéia dos “construtos” que, já na concepção da tese,surgem para nortear a sistemática objetiva. As palavras“efêmera, graciosa e perene” foram criadas para definir ocaráter especial do que é “a arte da enfermagem”. Comoatributos indispensáveis à concepção da enfermagem “naexpressividade ou operosidade das ações de cuidar dasenfermeiras”, elas servem à distinção entre a “arte dasenfermeiras” e outras artes engendradas pelo espíritohumano. Foram ajustadas noções novas de “arte deenfermagem” e “arte da enfermagem” (distinguidas pelaspreposições de e da). A primeira, para a consagradadisciplina de estudo calcada em Florence Nightingale eem suas “Notas sobre Enfermagem: o que é e o que nãoé”(10). A segunda designa a enfermagem na expressão daprática profissional e como predicativa do contextooperativo do trabalho dos enfermeiros. A noção bem cuidar

ressalta a essência do “cuidado” característico da artefundamental à satisfação das necessidades dos clientes– “arte de enfermeira” nas palavras de Parsons(24).“Percepções sobre o que fazem as enfermeiras, na práticade bem cuidar dos clientes”, ajudaram a balizar a criaçãode outros “construtos”, ou noções novas, implicando ariqueza da “arte de cuidar” em seu contexto e, também, ada “arte de ensinar a cuidar na enfermagem”. Os atributosmerecem atenção dos estudiosos, posto que extrapolamopiniões correntes e o senso comum, habitual oupragmático, da arte de cuidar na enfermagem. Seja pelosentido estético ou pedagógico, os vários “construtos”relevam o que há de mais distintivo na especificidademesma do que seja “A arte da Enfermagem – efêmera,graciosa e perene”.

ALGUMAS DIFICULDADES SUBSTANTIVAS

Tais colocações não resumem todo o assunto.Meu pensamento é até bastante esvaziado para umaexplicação teórica mais plena. Mas serve de partida parao desafio de construir “conceitos e definições” capazesde nortear a pesquisa na enfermagem. Penso que osexemplos das teses referidas permitem apreender osignificado e a oportunidade dos construtos com potencialde assegurar validade às formulações de efeito teorizantena enfermagem. Mas o que penso é só um ponto de vista.Há muito que se aprender “para uma epistemologia daenfermagem”. De fato, avancei com esforços de tentarexplicar aspectos epistemológicos das teses. Foi a formaque encontrei para dar exemplos de “construtos”. Nastentativas de explicar, na elaboração de uma tese, noandamento de uma pesquisa, é que emergem as ocasiõesde criar palavras novas, de ajustar instrumentos, de forjartermos significantes, de designar conceitos adequadosao alcance da verdade e à ampliação do conhecimento.Mas precisamos de atenção, quando se trata de uma teoriaconsagrada. Não se deve simplesmente pensar queformulações novas substituem as anteriores, como separtindo de um ponto zero. Se é preciso produzir fenômenosnovos, face às exigências epistemológicas das ciências,temos que conferir nossas concepções com quadrosteóricos fundamentais. Não se pode esquecer que asciências regem-se pelo controle das experiências, pelaintenção objetiva e pela sistemática do método, emborade nenhum modo e em nenhum caso se deva admitir a

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consciência do pesquisador compelida à inércia e aosobstáculos epistemológicos de que nos fala Bachelard(25).

Devo salientar mais um aspecto significativo daidéia de “construtos”. Falo da idéia de classificar, no corpusda profissão, as contribuições das teses. Mais do quenunca, valem os parâmetros das ciências, posto que épreciso muita humildade para conferir o grau deconfiabilidade do conhecimento produzido. Os exemplosdas teses mencionadas só servem de início para entendero assunto dos construtos epistemológicos. Idéias capazesde apoiar uma explicação organizada de fatos oufenômenos do universo, enquanto construtos assumidosou adotados, não servem de garantia plena à enfermagemcomo conhecimento científico. Uma “tipologia” das tesesde enfermagem poderia ajudar na compreensão do alcanceepistemológico do conhecimento construído. Não possofalar do valor substantivo das teses. Mesmo sem umaidéia firmada, percebo que “o esquema categorial”produzido no contexto das discussões em torno daprodução científica da Pós-Graduação stricto sensu serve,em primeira instância, para destacar o sentido do alcanceepistemológico do conhecimento ou do pensamento sobreenfermagem. Além de impulsionar a aceitação da“enfermagem-ciência”, esse esquema serve de partida àcriação de outros “construtos” favoráveis a umaclassificação adequada às teses. Tal como arquitetadopelas “categorias” profissional, assistencial eorganizacional, o esquema serve de “tipologiaclassificatória” fundamental à ordem dos conhecimentosproduzidos. No plano da construção cientifica, penso queserve de estrutura ao arranjo do corpus da enfermagembrasileira. O exemplo das teses mencionadas em relaçãoà pretendida tipologia é simplesmente arbitrário. Por issomesmo, aqui, mais do que nunca vale o ponto de vista.Então, vejamos.

A tese de Paulo Vaccari Caccavo classifica-secomo estudo epistemológico de Concepções Teórico-filosóficas de Enfermagem, posto que expressa “novaconcepção” da “a arte de cuidar na enfermagem”. Em vistados novos atributos “efêmera, graciosa e perene”, a teseconfigura, com efeito, uma formulação teorizanteimprescindível à compreensão de significadosfundamentais da enfermagem. Além dos três atributos,outros “construtos” reforçam os caracteres distintivos da“enfermagem – ciência e arte”, caracteres delineadoresda modernidade da enfermagem, tal como entendida apartir das proposições explicativas de Florence Nightingale.

A tese de Nébia Figueiredo classifica-se como

estudo epistemológico de Fundamentos do Cuidar naEnfermagem, em razão do “ajustamento conceitual eintrodução de novos termos” no aparato instrumental emetodológico de trabalho na enfermagem. Haja vista aidéia nova de compreender “o corpo da enfermeira comoinstrumento do cuidado” - idéia compreensiva de novaabordagem aos cuidados de enfermagem. Além decontribuir às formulações de efeito teorizante, a tese aliadaà teoria das “representações sociais”(26), destaca-se pelas“técnicas de busca de resultados e específicas dinâmicasde grupos”, estratégias de ensino de enfermagemfundamental.

A tese de Maria José Coelho classifica-se comoestudo epistemológico de Cuidar em Enfermagem noProcesso Saúde-Doença, consideradas as “ações decuidar e de operações práticas de prestar cuidados”, emUnidade de Emergência. Abrangente quanto à atuaçãoda enfermeira e sua equipe, e específica quanto apreencher vazios de conhecimento, a tese destaca-se pelasistemática objetiva de descrever situações e cuidadosclassificados a partir da percepção dos sujeitos. Além decontribuir a formulações de efeito teorizante, a novaexpressão “cuidar/cuidados” confere significado deunicidade ao papel da enfermeira e sua equipe.

A tese de Lygia Paim classifica-se como estudoepistemológico do Processo de Cuidar em Enfermagem,calcado em ajustamentos conceituais e aplicação deteorias de enfermagem. Estudo que comporta os traçosdistintivos da ciência pautados nos parâmetros de “controleda natureza, sistemática objetiva e método deinvestigação”, a tese é demonstrativa do elevado alcanceda construção científica na enfermagem. Exemplifica bema preocupação lídima do pesquisador com suas atividadese com o zelo científico na busca de resultados visando “àsistematização da assistência de enfermagem”. Alémdisso, transcende os termos do “esquema categorial”,enquanto abrange um tributo às Concepções Teórico-Filosóficas de Enfermagem e uma contribuição àsistemática de Gerenciamento dos Serviços de Saúde ede Enfermagem.

CONCLUSÃO

Com base no exposto, cumpre-me considerar, porúltimo, que a idéia de uma tipologia classificatória para acontribuição das teses de enfermagem impõe-se, por si,

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mormente em vista da necessidade imperiosa deimpulsionar o processo da construção científica. Minhascolocações valem, aqui, como idéia prima facie e comvalor de significado de “construto epistemológico para aenfermagem-ciência”. Sei que existem várias contribuiçõesvisando demonstrar a cientificidade do conhecimentoproduzido nas teses de enfermagem. A meu ver, umempreendimento concreto em prol do enquadramento dasteses, tentando uma apreciação do seu possível alcanceepistemológico, não pode radicar-se somente emcontribuições singulares, nem tampouco nos esforçosintelectuais de uns poucos. Essa questão merece opropósito de um projeto coletivo de elevado nívelepistemológico e, ainda assim, fruto da generosidadeacadêmica dos pesquisadores da enfermagem brasileira.Não há como estimar custos e estabelecer recursos, umempreendimento exemplar para uma atribuição decausalidade(27) à enfermagem e em que pese a integraçãode suas respostas ao corpus teórico da profissão de

enfermagem. Isso estamos devendo à produção científicae à construção do conhecimento na enfermagem.

Em suma, dou por assentada minha contribuiçãoao tema. Para finalizar, vale dizer que, diante dos desafiosda ciência e da necessidade imperiosa de escolher entrefuturos condicionais preferíveis, mais do evitar a inércia(obstáculo epistemológico?), precisamos de ousadia paraassumir a coragem não apenas de buscar respostas paratentar compreender e expor “o visível e o invisível”, narealidade objetiva da enfermagem. De fato, precisamosde coragem para decidir entre limitações e impeditivos dainvestigação, se é que apostamos nas possibilidades da“enfermagem-ciência”. E, como entendo que nossaspossibilidades são infinitas, apoio-me em Arthur C.Clarke(28), cientista e escritor de ficção científica, e tomo-lhe de empréstimo a seguinte proposição: “Quando umcientista ilustre declara que alguma coisa é possível, quasecertamente tem razão. Quando declara que alguma coisaé impossível, muito provavelmente está errado”.

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Recebido em: 6.1.2003Aprovado em: 3.4.2003

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