Sobre Augusto dos Anjos · em 1934; Afonso Arinos, em 1916; Olavo Bilac, em 1918; Vicente de...
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" ... 0 andar tergiversante, parecia reproduzir o esvoaçar das imagens que lhe agitavam
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o cérebro", descrevia assim Orris Soares o seu amigo
Augusto. Na foto, o poeta caminha pela rua Duque de Caxias, na capital paraibana.
Sobre Augusto dos Anjos Antônio Houaiss
Já a partir dos meados do século passado a segurança do regime econômico e social da burguesia - a qual representara um ponderável avanço, sob todos os aspectos, para o mundo europeu particularmente e ocidental de um modo genérico- principiava a sofrer ·seus primeiros abalos. Contradições internacionais, inter-regionais e dentro de vários países se aguçavam, geravam guerras, revoluções e revoltas ou sublevações, com problemas de produção, de consumo, de mercados, o que tudo culmina no século presente, com a guerra de 1914-1918, sem resolver senão alguns aspectos daquelas contradições . O século XIX, eminentemente cientificista, é fonte, também, de teorias e doutrinas - políticas, históricas, econômicas, fllosóficas, éticas - de estruturas já racionalistas, já irracionalistas. Mas as contradições da vida social, agravando-se, dão por terra com certo profetismo eufórico, na medida em que os obstáculos para harmonização dos interesses humanos se multiplicam.
No interregno que corresponde a esse quadro sumário, o Brasil é país retardatário em face do padrão cultural de que deriva. A Abolição da Escravatura em 1888, a Proclamação da República no ano seguinte, bons resultados no mercado internacional, via de regra, para o seu açúcar - ainda -, a par de seu café - ainda e por longos anos futuros - e de sua borracha - ainda, mas por poucos anos - dão, juntamente com a doutrinação positivista dos primeiros tempos do novo regime político, a impressão de possibilidades ilimitadas e bem-estar físi-
co e espiritual para as classes dirigentes. Estas, na maioria, senão que na totalidade dos seus integrantes, estavam identificadas com a noção de que o país era essencialmente agrícola e o devia ser, país em cujo seio vivia desafogadamente. A ainda pequena intelectualidade brasileira principiava, já individualmente, já como intérprete de classes diferentes, já como analista dos problemas da nação, a sentir os efeitos de uma estrutura econômica e social em que as grandes seções do povo pouco ou nada representavam, por sua desvalia como produtores e como consumidores, tanto de bens materiais quanto espirituais.
Dessa intelec;tualidade, é claro, assim, que parte, e não menor, vivesse a existência de problemas especiosos, ou pelo menos não imediatamente suscitados pelo meio nacional. A parte menos alienada dessa intelectualidade, entretanto, estaria em breve apta a compreender e descobrir múltiplos estrangulamentos para o processo de progressão do país : um população rural que tendia para o estado larvar do mais completo atraso, sem nenhuma possibilidade de ascensão ou melhora, imensa massa que era dirigida ou tangida por uma minoria de senhores de terra essencialmeiite monocultores; uma produção voltada fundamentalmente para exportação de matérias-primas cujos preços eram arbitrados por poucos e grandes compradores externos, preços cuja flutuação criava instabilidades políticas periódicas, cuja superação provisória esgotava as atividades dos congressistas, eleitos por sistemas eiva-
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dos de fraude; um subcapitalismo nacional eminentemente mercador, incapaz de preencher funções internas de criação e valorização de mercado nacional.
Essa intelectualidade, por isso mesmo, não podia ainda voltar-se para os aspectos técnicos que o progresso material viria a exigir num futuro não remoto. Voltava-se, assim, para genéricos problemas ftlosóficos, quando aguçada pelo desejo de saber. E na medida em que cada intelectual, por suas raízes sociais, por suas idiossincrasias individuais e pessoais, se inseria no corpo social durante esse período, tendia a exprimir-se diferentemente, do mais genérico ao mais específico . É assim que aparecem formas militantes, como a de Euclides da Cunha
' sobretudo em "Os Sertões", já nos primeiros anos deste século, até formas puramente alheadas de qualquer problema _coletivo, ou então até formas como a de Augusto dos Anjos, em que se coloca, essencialmente, o problema da afirmação teleológica do ser, do ser humano sobretudo, na sua ânsia de saber.
O Brasil já era - para mais de três quartéis de século depois de sua independência política - um país de certa extensa, embora rarefeita, população, com centros regionais e urbanos distanciados, que gestavam, por suas escolas e por sua fermentação ideológica, grupos quase autônomos de artistas e escritores, cujo ideal, sem embargo, seria ainda por muitos anos deslocar-se para a capital da república, na medida em que o Estado de origem oferecia menores possibilidades de afirmação material e espiritual.
Sem definição programática para a nação, o país apresentava, por isso mesmo, uma inteligência alienada em parte, dila-
cerada freqüentemente, desorientada quase sempre .
No plano estritamente literário, verificase, em conseqüência, um reflexo disso: as chamadas escolas literárias oriundas do foco europeu aqui se manifestam fora do tempo, anacronicamente, procronicamente, às vezes acavalando-se, mesclando-se e fundindo-se, tumultuando a periodização do modelo e comportando, por conseguinte, amálgamas de formas e tendências, quando não originalidades mais ou menos personalistas - como é, precisamente, o caso de Augusto dos Anjos .
Vivendo vida consciente de adulto, de 1900 até a morte em 1914, durante esses quinze anos Augusto dos Anjos coexistiu, no Brasil, com escritores integrados nos mais diferentes movimentos literários . Com efeito, dentre os chamados realistas, ou naturalistas, ou parnasianos - Aluísio Azevedo morre em 1913; Inglês de Sousa, em 1919; Machado de Assis, em 1909; Coelho Neto, em 1934; Afonso Arinos, em 1916; Olavo Bilac, em 1918; Vicente de Carvalho, em 1924; Joaquim Nabuco, em 1910; Rui Barbosa, em 1923; Euclides da Cunha, em 1909. Dentre os chamados simbolistas indisputados - Cruz e Sousa morre, é verdade, em 1898, mas "Faróis" são de 1900 e "Últimos Sonetos", de 1905; Pereira da Silva, em 1944; Alphonsus de Guimarães, em 1921; Emiliano Perneta, em 1921. Dentre os chamados simbolistas penumbristas - Mário Pederneiras morre em 1921; Gonzaga Duque, em 1911. Dentre os chamados neoparnasianos - Hermes Fontes morre em 1930; Amadeu Amaral, em 1929; Luís Carlos, em 1932; José Albano, em 1923.
O fato é que, classificado durante certo período como simbolista, associando-se seu nome, via de regra, ao de Cruz e Sousa, os
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teóricos, subseqüentemente, prine1p1aram a impugnar o critério, soltando-o no ar, fazendo-o só, Eu e mais ninguém - guando, em tratamento mais judicioso, não há como deixar de reconhecer-lhe a cabida dentro do simbolismo, tomado esse movimento como oposto ao realismo-naturalismo-parnasianismo. De um lado, essencialmente, o mundo objetivo é mentado como existente em si mesmo e o intérprete procura anularse, transformando, se possível, seu próprio mundo subjetivo em matéria do mundo objetivo; de outro lado, no simbolismo, o mundo objetivo e o mundo subjetivo se interpenetram numa vivência mental única que comporta, por isso mesmo, modalidades personalíssimas; ambos, entretanto, se aparentam no fato, fundamental, de que traduzem, de regra, uma cosmovisão em que o destino do homem, não se explicando pela vocação mesma de viver, parece tender para uma desgraça essencial.
Pelos dados biográficos por ora conhecidos - Augusto dos Anjos espera seu biógrafo na pessoa de Francisco de Assis Barbosa, que já levantou dados fundamentais para isso - pode-se depreender que, nascido de casal psicologicamente vibrátil, o poeta herdou essa característica. Ademais, deve ter precocemente participado da aventura espiritual e intelectual do seu pai, voltado intensamente para o conhecimento das teorias científicas do século XIX, tanto filosóficas, quanto, provavelmente, econômicas, políticas e sociológicas. Dandose de corpo e alma à leitura e à contemplação, propendeu, também, para certa fraqueza biológica, que já trazia talvez em si e que iria facilitar o surto da doença que o matou, cedo demais . Poetando com notável precocidade - há depoimento de Augusto dos Anjos que situa essa preocupação na
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infância-, teve tempo para amadurecer sua expressão, na conformidade de sua formação intelectual. É de ver, porém, que Augusto dos Anjos, por sua própria contextura mental, não é de tipo dialético, lógico e discursivo - malgrado a aparência de sua linguagem: a visão do mundo desse materialista imediato é mediatamente estética e simbólica, pois nas noções (e seu vocabulário correspondente) da ciência materialista de que se embebeu - sobretudo nos aspectos divulgadores que há em Haeckel ou em Spencer - vê, antes de um causalismo necessário, correlações arbritárias ou espantosas, que lhe confirmam certas emoções e certas intuições talvez estruturalmente mórbidas ou tendentes à morbidez. As dificuldades materiais de sua vida, a luta pelo bemestar da família, os reveses e as incompreensões sofridas, tudo precipitou, nesse autodidata que acumulou saberes de um plano cognitivo para uso noutro plano expressional, a originalidade de sua cosmovisão e de sua poesia, cuja parte formal, abstraído o vocabulário, poucas inovações apresenta deliberadamente.
Augusto dos Anjos foi e será, tempos em fora, incluído numa modalidade de poetas chamados, a um tempo, cientificistas e filosofantes. A asserção é válida, enquanto se compreenda que, por cientificista, rião se quer senão designar quem se volte para as questões científicas, sem, entretanto, imbuir-se do seu método, em que o raciocínio analógico, simbólico, alógico, emotivo e afetivo deve, na medida do possível, ser neutralizado ou pelo menos contra-regrado, aferido, experimentado: nesse sentido, Augusto dos Anjos foi o contrá"rio de um cientista; foi, repitamos, um cientificista. Aquela asserção é, ainda, válida, enquanto se compreendà que, por filosofante, não se
quer senão designar quem se volte para as questões filosóficas sem espírito sistemático (mesmo quando esse espírito seja a negação do sistemático através de um sistemático eclético) e, em sendo poeta, não pretenda em sua poesia fazer um tratado de ftlosofia. Augusto dos Anjos é, de fato, um poeta filosofante, como o foi Antero de Quental, e nessa atitude filosofante se reflete, mais do que tudo, a aventura do seu espírito (e do seu corpo), à cata de uma definição para si mesmo, para a sua visão dos outros, para a sua visão do mundo, para a sua inserção dentro da natureza e entre os seus semelhantes: seus erros de filosofia, se os há, não têm senão o valor de mostrar que, mesmo com eles, pode orientar-se no mundo ou
"Se no bolso o espelho/ Oculta o teu rosto/ És um clandestino passageiro/ Em cujos sapatos/ Cadarços não são cadarços ... " (Sérgio Castro Pinto). Objetos do uso pessoal de Augusto dos Anjos compõem coleção particular preservada pela família do historiador paraibano Humberto Nóbrega. Há muitas raridades no acervo. Documentos como o título de eleitor do juiz Aprígio Carlos Pessoa de Melo, padastro de dona Esther, esposa do poeta, (no destaque) figuram também na coleção.
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" .. . Eu, depois de morrer/ Depois de tanta tristeza,/
Quero, uma vez de nomeAugusto,/ Possuir aí o nome de um arbusto/ Qualquer ou de qualquer obscura planta!".
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pode estar à procura de uma orientação . O fato de ser ostensivamente um ateu - pelo menos em sua poesia - não exclui, por isso mesmo, de Augusto dos Anjos uma dolorosa visão solidária com os seres e as coisas, embora lhe permita, na direção desesperada das perguntas que propôs ao seu materialismo, crer que o mal presida a vida e que esta é, sobretudo, um caminho para a morte. Visão pessimista, está claro, mas que, eticamente, é acompanhada de uma sentida confraternidade com os homens.
Há que prestar atenção especial para o vocabulário do poeta. Oriundo, em grande parte, da linguagem das ciências naturais, não é ele, entretanto, apenas assim caracterizado. Augusto dos .Anjos matiza, pela riqueza vocabular e sobretudo pelo vocabulário de origem erudita, a minúcia original que quer dar ao que designa ou exprime. De modo que, assim, propende para um tipo de fonetismo pouco corrente ao normal da língua portuguesa no Brasil- como oferecer em cada verso grupos consonânticos raros nos usos ordinários ou mesmo líricos na língua, grupos que, entretanto, passam, na sua, a dar um tipo de verso, cuja originalidade fica, sob esse aspecto, fortalecida pelos proparoxítonos. Isso, que tem sido um dos motivos para a vivência lúdica com que um grande número de leitores seus se comprazem, é traço que, não sendo compreendido, pode levar à rejeição quase maciça e total de Augusto dos Anjos. Cumpre, destarte, captar esse aspecto da poética e da retórica de Augusto dos Anjos, aspecto que condiciona a capacidade de progredir na co-participação de sua poesia, tão rica, a partir daí, e daí inclusive, de sugestões, emoções, tristezas, alegrias e lições.
Em conseqüência dos usos simbólicos feitos por Augusto dos Anjos do material
não raro de proveniência científica, dos usos analógicos e correlatas para fms de enlace estético e emocional, em conseqüência disso desde cedo se manifestou entre nós uma tendência a interpretar a poesia de Augusto dos Anjos como uma poesia esotérica, cuja chave - como a de Cruz e Sousa - poderia estar na sistemática de certas doutrinas místicas. Não querendo aqui polemizar quanto a isto, lembramos, apenas, que Augusto dos Anjos comporta uma vivência quase literal de sua poesia, sem que, nas suas características, ela saia diminuída.
Após o lançamento da primeira edição do Eu, em 1912, sete a oito anos se passaram para que, por iniciativa de um amigo, Orris Soares, a poesia de Augusto dos Anjos lograsse uma segunda edição, em 1920, graças à qual o poeta começou a ser considerado pela crítica. Entretanto, foi só a partir da terceira edição, em 1928, que começou a penetrar os meios do leitor comum. Daí em diante vem mantendo-se o interesse que desperta, interesse eivado, entretanto, de certos pendores ou equívocos, que se nutrem de caracteres reais parciais da poesia de Augusto dos Anjos: o aparente preciosismo vocabular; certas imagens fantásticas, fantasmagóricas ou quase surrealistas; certas tiradas pessimistas e afrontosas; certa aparente imaturidade inconformista. É, assim, um poeta do gosto de certos adolescentes , também, em crise típica de iqade. Só uma síntese conspectiva de sua poesia pode, através de vivência continuada, superar tais qualidades brilhantes e tais defeitos gritantes, para dar a justa medida desse tão importante, tão singular e tão expressivo poeta brasileiro.
(ln "Drummond Mais Seis Poetas e Um Problema", Rio de Janeiro, Imago, 1976, págs. 59/65 ).
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