Sobre a violência e os jovens

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Sobre a violência e os jovens * François Dubet Professor da Universidade de Bordeaux II. Traduzido do original em francês por Marisa Carneiro de Oliveira Franco Donatelli 1 Resumo. Este artigo tem com obje- tivo a sugestão da existência de qua- tro formas de violência observadas a partir dos processos sociais espe- cíficos e que se manifestam segundo modalidades particulares. Palavras Chave: juventude, violên- cia e processos sociais. Abstract. This article objective the suggestion of the existence of four observed forms of violence from the specific social processes and that they are disclosed according to par- ticular modalities. Keywords: youth, violence and so- cial processes.

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Sobre a violência e os jovens*

François DubetProfessor da Universidade de Bordeaux II.

Traduzido do original em francês por MarisaCarneiro de Oliveira Franco Donatelli

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Resumo. Este artigo tem com obje-tivo a sugestão da existência de qua-tro formas de violência observadasa partir dos processos sociais espe-cíficos e que se manifestam segundomodalidades particulares.

Palavras Chave: juventude, violên-cia e processos sociais.

Abstract. This article objective thesuggestion of the existence of fourobserved forms of violence from thespecific social processes and thatthey are disclosed according to par-ticular modalities.

Keywords: youth, violence and so-cial processes.

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Uma vez que a violência é definida por sua representação, quenão é outra coisa senão aquilo que é vivido como uma violência emuma cultura, em um grupo e em um contexto de interação, ela nãopode ser reduzida a um fenômeno objetivo mensurável. Por essa ra-zão, optamos por enfocar antes pelas formas de violência associadasaos jovens do que por medir eventuais indicadores quantitativos. Oobjeto deste artigo volta-se para a sugestão da existência de quatroformas de violência observadas a partir dos processos sociais especí-ficos e que se manifestam segundo modalidades particulares.

A VIOLÊNCIA COMO REPRESENTAÇÃO

Se optamos por intitular este artigo “sobre” a violência, isso se dánão para que nos voltemos para o exercício clássico de “crítica daspré-noções”, tão comum à retórica sociológica. Trata-se mais de umadificuldade própria a esse objeto, pois a violência civil faz parte dessascondutas, das quais cada um de nós tem a experiência, e sobre cujadefinição quase não é possível um acordo, salvo em suas formas maisextremas. Além disso, a violência física, a mais estreitamente defini-da, explica quase sempre as outras violências, psicológicas, econômi-cas ou físicas, também. A violência está associada tanto às “paixões”como aos “interesses”, à identidade dos desejos que nos torna todosrivais e inimigos, e às diferenças que podem parecer insuperáveis.

Segundo a teoria de Hobbes, a própria sociedade tem por fina-lidade reduzir a violência, ao criar uma violência mais forte, porémlegítima: a da ordem e do Estado. Em uma perspectiva próxima,Freud nos informa que a violência está firmada no desejo e na for-mação normal da personalidade (FREUD, 1963). Enfim, a violênciaestá em toda parte, real ou potencial, legítima ou não, e é isso quetorna a definição banal ou arriscada: muito ampla, ela dissolve oobjeto, muito estreita, ela não passa de uma forma de estigmatizarcertas condutas de violência ilegítima.

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Essas cautelas parecem muito mais necessárias, uma vez que aviolência é multifacetada: ela pode ser individual, coletiva, organiza-da, imprevisível, instrumental, “irracional”, ritualizada. Isso sem men-cionar as “motivações” dos atores que podem fazer derivar a violên-cia de todos os sentimentos, de todos os interesses e da maioria dasideologias. Mesmo se aceitarmos a velha distinção entre violência eforça, isto é, da violência ilegítima e da violência legítima, o problemanão fica mais simples, e poderemos terminar por designar como vio-lentas as condutas que os atores sociais escolhem no momento em quesão confrontados com elas ou com suas representações.

Ao associar estreitamente a violência com sua representação,pensamos, particularmente, nas violências juvenis e mais aindanaquelas de gangues de jovens, que são, às vezes, construídas comoquase-espetáculos pelos próprios atores e pelos meios de comuni-cação. As reportagens voltadas para a violência das gangues, quecompõem, às vezes, a manchete dos jornais e pesquisas sociais dossemanários, são construídas como encenação1 . Pensemos, também,no cinema, notadamente o americano que elaborou uma verdadei-ra forma canônica de violência juvenil e provoca, como no caso deBoys in the Hood, movimentos de moda na expressão dessa vio-lência que ele, certamente, não produz, mas da qual participa. Esseelo entre violência e espetáculo apareceu de forma gritante por oca-sião das rebeliões de Los Angeles, em abril-maio de 1992. A violên-cia policial em relação a um motorista negro foi filmada como aabsolvição dos policiais, como a própria rebelião com os lincha-mentos, as pilhagens. Cada um foi diretamente tocado por essa vi-olência, e toda a sociedade, então, se apercebeu como violenta ouameaçada. Há um efeito “contagiante” da violência e de seu medo,afirma Girard (1972), e o sociólogo não pode agir como se a violên-cia fosse simplesmente um fato “objetivo”, como qualquer delin-qüência, não importa qual.

Escrever sobre a violência dos jovens, violência mal conhecidae mal mensurada, posto que o mais das vezes é discreta e ocorre no

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âmbito da privacidade, é participar diretamente do próprio fenô-meno e do medo que ele engendra mais moderadamente, sem dú-vida, do que fazem os jornais, mas de maneira tal que mantém omesmo fundamento.

Nada mostra melhor essa natureza da violência como “repre-sentação” do que o distanciamento entre a violência “real”, aquelaque se pode medir, e a violência sentida, experimentada. O estudode Chesnais (1981) é instrutivo nesse aspecto. Por mais que se pos-sa julgá-la pelos documentos históricos, a história recente foimarcada por uma diminuição sensível da violência civil: hoje, épossível atravessar uma cidade francesa sem armas e sem prote-ção, o que não era possível às vésperas da revolução. As pessoasnão estão mais aterrorizadas com a idéia de viajar e de tirar as pro-teções comunitárias. Mais próximo de nós, os conflitos sociais jánão são reprimidos por massacres, e pode-se admitir que, na Fran-ça, o linchamento e a vendetta tornaram-se práticas relativamenteraras...Isso não impede que uma parte da opinião pública tema,cada vez mais, parece, a violência, menos a violência real e “objeti-va” do que sua invasão e sua própria imagem como ruptura daligação social. Mais do que qualquer outra conduta, a violência nãopode ser separada de sua representação e de sua experiência subje-tiva, pelo fato de que tal ou tal ato é ou não vivido por aquele quecomete e por aquele que sofre, mais ou menos diretamente comouma violência. Por essa razão, mais do que nos esforçarmos emmedir um grau de violência e de fazer um levantamento metódicodas diversas manifestações, é preferível revelar as lógicas dessasviolências e de suas representações, quando elas enfocam os jovens.

VIOLÊNCIA E REGULAÇÃO SOCIAL

Se é admitido, como Hobbes, Freud, Durkheim, Girard e ou-tros, que a violência é uma conduta “natural”, isso ocorrerá apenas

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no sentido de uma agressividade necessária à sobrevivência e comouma resposta “normal”à agressão. Pode-se compreender por queas sociedades não se limitam a reprimí-la a fim de sobreviver, se-não para entrar na civilização. Elas a regulam e canalizam muitomais do que a interditam. Nesse sentido, há uma violência aceita e“normal”, não somente a violência legal do ano, da polícia e darepressão, mas também a violência “espontânea” que encontra ex-pressões possíveis.

Parece que as sociedades fortemente integradas sempre ofere-ceram aos jovens, sobretudo aos jovens homens, espaços de violên-cia tolerável. A violência tolerável dos jovens é, ao mesmo tempo,explicitamente condenada e implicitamente encorajada pelos adul-tos. Pode-se imaginar que essas violências participam de forma maisou menos “consciente” de ritos iniciáticos. Shorter nos dá váriosexemplos por meio da descrição de extravasamento às vezes mor-tais, das festas de carnaval ou de primavera nas sociedades nórdi-cas (SHORTER, 1977). A violência dos jovens e das gangues de jo-vens é antiga: ela faz parte dessas “novidades” que simbolizam adecadência dos tempos presentes descoberta em cada geração. Aviolência dos jovens está ligada àquela do “nível”. As brigas debaile no campo ou nas cidades operárias sempre foram objeto dascrônicas locais, dos ajustes de contas entre as gangues de “apaches”,no início do século, assim como as brigas de blusões negros dosanos sessenta participam, sem dúvida, de uma parte dessas violên-cias juvenis canalizadas. Evidentemente, essa violência está muitoestreitamente ligada a sua representação pelos grupos diversos quea vivem como mais ou menos violenta. Essa violência juvenil fezparte, durante muito tempo, das culturas populares “viris e du-ras”, cada vez menos toleradas, como o boxe que se torna intolerá-vel, bárbaro, violento, quando se difunde a cultura “soft” das clas-ses médias (RAUCH, 1992).

É difícil saber se os alunos do ensino profissionalizante são maisviolentos hoje do que ontem. Mas uma coisa é certa: essa violência

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operária na escola não é nova. Os meninos sempre brigaram no pá-tio de recreação do Colégio de ensino técnico ou do Centro de apren-dizagem (GRIGNON, 1970). Questão de “honra” ou, mais simples-mente, de interesse, essa violência era, o mais das vezes, ignorada etolerada pelos adultos. Ela possuía seus lugares e seus momentos nopátio da escola, e nenhum professor ou supervisor se permitiu inter-vir em um caso “privado”. Os ajustes de conta “na saída” faziammesmo parte tanto de uma tolerância quanto de uma obrigação dedignidade. Condenada no plano dos princípios, essa violência era,na verdade, autorizada, e, até mesmo encorajada como uma provajuvenil. Esse tema não se limita somente às culturas populares. Nocaso de uma cultura reputada como violenta, como aquela dos Esta-dos Unidos, um dos planos literários e cinematográficos mais famili-ares é o da briga entre garotos, na qual o mais fraco provará suacoragem, apesar de tudo, não será mais uma “menininha” e passarápara o lado dos homens e dos adultos, ao aceitar a violência.

Essa violência juvenil é tanto mais tolerada quando ela se dáem um grupo integrado, em uma “comunidade” suficientementesegura em partilhar as normas e os critérios de avaliação de condu-tas para não se sentir ameaçada por uma violência que, ela o sabe,permanecerá localizada e previsível. A integração do grupo autori-za uma injunção paradoxal pela qual os adultos reprovam e enco-rajam a violência. Os homens, sobretudo, fazem um teste do valore da coragem; eles a condenam, em princípio, e sustentam, de fato.No fundo, essa violência tolerada tem qualquer coisa a ver comesses esportes “violentos”, nos quais os “estrangeiros” vêem agres-são pura onde os “amantes” percebem provas e “ritos”. O rugby,do qual se conhece o enraizamento comunitário e rural, pode seruma ilustração quase exemplar das regras dessa violência tolera-da: a violência dos jogadores jamais chega aos espectadores e, de-pois da partida, ela se volta para a festa de integração na hora do“terceiro meio tempo”. Aqueles que não conhecem o “espírito dojogo”, evidentemente só vêem violência e hipocrisia.

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Pode-se, então, imaginar que quanto mais uma sociedade estáintegrada sobre um modo comunitário, mais ela abre espaço para aviolência tolerada, da mesma maneira que as escolas autoritáriaseram aquelas que autorizavam as brincadeiras mais violentas e maisdistantes de uma ação contestadora. Se esse raciocínio funcionalista,dos mais tradicionais, é aceito (a socialização de uma “necessida-de”, à maneira de Malinowski), resta que a violência atual dos jo-vens do subúrbio e das cidades pode ser tanto mais vivamente sen-tida e, portanto, mais violenta, quando ela ocorre em um tipo desociedade, no qual as regulações comunitárias se enfraqueceramconsideravelmente. Sem a conivência dos adultos, sem o acordosobre as normas que permitem que “é preciso que a juventude trans-corra”, as violências juvenis parecem se inscrever na cadeia de umaviolência geral.

Os grandes conjuntos localizados na periferia parecem ser pro-pícios para essa representação das condutas violentas juvenis. Sabe-se que os grandes conjuntos são caracterizados por suaheterogeneidade social e cultural. A relativa homogeneidade derenda dos habitantes é muito pouco associada àquela das culturas,dos modos de vida e das trajetórias. Uma classe operária tradicio-nal margeia as classes médias no começo de carreira: os jovensempregados, os empregados que se empenham em se “distinguir”de um ambiente popular, famílias imigradas, de “casos sociais”, depessoas idosas que precisam procurar outro lugar depois de teremsido despejadas... Ao longo dos anos, os operários mais qualifica-dos partem para as zonas residenciais no subúrbio, os empregadostambém, enquanto que as famílias imigradas são “lançadas” nogrande conjunto, onde ficam apenas aqueles que podem mais par-tir. Às vezes, os administradores se esforçam em criar uma relativahomogeneidade segundo as construções e as áreas comuns, masainda se constituem enclaves no meio do grande conjunto. O quequer que seja, e sem evocar as situações mais extremas, essaheterogeneidade enfraquece terrivelmente as regulações espontâ-

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neas que abrem os espaços de violência tolerada. As condutas dosjovens, e mesmo das crianças, que podem ser violentas, sem dúvi-da, a baderna, os xingamentos, as brigas são tomadas como perigo-sas e ameaçadoras, mais como violências do que como jogos. Nin-guém conhece suficientemente esses jovens para estar em condi-ções de interferir, ninguém conhece muito seus pais para prever asreações. Conseqüentemente, toda conduta mais ou menos violentae agressiva tem grandes chances de ser tomada como perigosa e deaumentar, assim, a violência, pois os atores não conseguem situá-lano meio das normas compartilhadas. A única maneira de construiressas normas é, então, à prova da confrontação e dos desafios coma vizinhança. Muitos dos extravasamentos que não se configura-ram como problemas para o “vilarejo” ou no antigo bairro pare-cem, hoje, violentos.

Essa interpretação da violência se aplica, particularmente, pa-rece, ao caso das jovens crianças que encarnam mais claramente,hoje, a “violência dos jovens”. Muitos testemunhos concordam arespeito daquilo que os jovens chamam “ralé”.

Enquanto a delinqüência dos jovens aparece como relativamen-te discreta para os moradores do bairro, a das crianças é cada vezmais designada como insuportável: insultos, degradações, roubos,barulhos... Tudo o que as crianças vivem como jogos, fora do con-trole dos adultos, é percebido como violência por estes últimos. Aregulação da rua, aquela das crianças fotografas por Doisneau, de-sapareceu, pois todas as crianças dos outros são “estrangeiras”, e aautonomia de seus jogos é uma ameaça. C. Petonnet mostrou mui-to bem como os moradores das antigas favelas interpretaram suatransferência para os grandes conjuntos mais confortáveis: comouma perda das solidariedades das vizinhanças, como a entrada emum mundo perigoso, onde a vigilância comum das crianças nãoera mais possível (PEDONNET, 1979).

As desordens da baderna, os desafios, as brigas, a indolênciados jovens que “giram” pela cidade são muito mais percebidas como

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violências à medida que os adultos não mais sentem ter a capacida-de de interferir e que os jovens, que quase não os conhecem, nãolhes concedem esse direito. A regra, também, é de evitar os conta-tos, pois praticamente não existe um modelo regulado de gestãodas tensões, como pode ser observado pela atualidade dos fatosdiversos, segundo os quais moradores exacerbados disparam a ca-rabina sobre os jovens da cidade.

É muito possível que a ausência de violência tolerada não pro-duza, necessariamente, maior violência, mas ela leva os atores ainterpretar tudo como violência, cada um sendo “o estrangeiro” dacompetição de rugby, evocada mais acima. Esse sentimento de vio-lência, perante as condutas que não têm mais o sentido tradicional,explica largamente o recurso crescente ao Estado e aos aparelhosespecializados para interferir lá onde a sociedade não parece maisestar em condições de agir. Assim se explicam, por exemplos, osfatos apontados pelos profissionais, educadores, policiais, anima-dores, quando eles observam que quase sempre o público, aí com-preendido os bairros “difíceis”, manifesta um medo que ultrapassalargamente a violência “real” ou, ainda, os incidentes da vida coti-diana que são interpretados como violências.

AS CRISES E OS TERRITÓRIOS

Não se pode permanecer nessa imagem de violência juvenilconhecida como um efeito de espelho, um efeito de intolerância emuma sociedade que teria visto enfraquecer suas regulações tradici-onais. Não é possível fazer como se essa ausência de regulação per-manecesse “exterior” às condutas juvenis, como se ela não tivessetransformado as lógicas pelo desenvolvimento de uma “anoma-lia”, liberando as “paixões”, assim como os “interesses”. No quediz respeito às paixões, a sociologia “clássica”, aquela de Durkheime da Escola de Chicago, trouxe à luz uma dupla relação entre a

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autonomia, de uma parte, a delinqüência e a violência, de outra.Para Durkheim, o enfraquecimento da interiorização das normasprovoca diretamente um excesso de desvio e de marginalidade. Paraos sociólogos da Escola de Chicago, a desorganização social acarre-ta reações espontâneas de formação de gangues de jovens.

As análises da delinqüência e da violência dos jovens, em ter-mos de crise de socialização, são tão banais que basta relembrarseus princípios. Durante a adolescência e a juventude, os atores sedeparam com problemas de identificação e de interiorização dasnormas, com um “desregramento” das condutas, uma incapacida-de de resistir aos desejos e às pressões. Esse estado de anomia libe-ra as “paixões”, e os jovens não conhecem mais ou mal conhecemos limites do que é permitido, interdito e tolerado. A violência juve-nil estaria no domínio dessa espécie de “selvageria”, de ausênciade controle de si, que nada mais é do que uma introjeção da criseda socialização.

Esse tipo de raciocínio reúne, largamente, a sociologia espon-tânea dos atores que interpretam a delinqüência e a violência dosjovens como um defeito da educação: eles são “mal” ou “não” edu-cados, eles não conhecem as regras, as famílias “renunciam”, a es-cola também... No caso dos jovens provenientes da imigração, essainterpretação é mais freqüente ainda, reforçada pelo tema da crisede identidade ligada à dupla vinculação dos atores. Preso entre duasculturas, os jovens terminariam por não se reconhecer em nenhu-ma das duas e por viver uma situação de dupla desvinculação.

Esses tipos de análise oferecem alguns elementos de semelhan-ça. É verdade que a violência deriva, às vezes, de uma ausência decontrole de si e que uma parte da delinqüência é completada sobreum modo lúdico e impulsivo sem que seu caráter propriamenteilegal seja percebido pelos atores. Quanto à dupla desvinculação,ela parece confirmada pelas pesquisas que indicam que os jovensdelinqüentes saídos da imigração são, em seu grupo, os mais forte-mente separados de suas culturas tradicionais, de tal forma que

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eles são fascinados pelas culturas da sociedade que os acolheu, semterem, para tanto, condições de interiorizar as normas e os valores(MALEWSKA-PEYRE, 1982).

No entanto, esse tipo de análise permanece frágil, uma vez queela evoca uma delinqüência, eventualmente uma violência impul-siva, “irracional”, resultante do simples encontro de desejos e frus-trações, os jovens não tendo mais a capacidade de se controlar. Pen-sa-se, então, em condutas “de caráter”, “patológicas”, “bárbaras”...A violência e a delinqüência não têm mais verdadeiro sentido forado fato que elas são expressão individual de uma patologia do sis-tema. Isso pode tornar esse gênero de explicação suspeito deetnocentrismo, sendo a irracionalidade a única maneira de qualifi-car condutas “estranhas”, porque estrangeiras. A análise, em ter-mos de desorganização social, é mais convincente. Apesar de par-tir da mesma idéia de crise e de ausência de integração, ela supõeque os atores, os jovens em particular, têm a capacidade de cons-truir outros modos de pertinência de outras identidades coletivasface ao mundo que se desorganiza e se desfaz (SHAW, 1940;THRASHER, 1963). Nessa perspectiva, as gangues de jovens sãouma reação “normal” à desorganização social. Elas reconstroemmicro-sociedades e microculturas, onde a “grande” sociedade nãoestá mais em condições de fazê-lo. Elas criam uma solidariedade eregras, onde a sociedade não é mais capaz de propô-las. Esse tipode bando, que os americanos chamam de gangues, não é, necessa-riamente, delinqüente e violento, ainda que a violência seja umacondição quase inevitável de sua existência e de sua sobrevivência.As identidades mobilizadas por essas gangues são, antes de tudo,“territoriais”. As gangues são fenômenos urbanos, pelos quais osjovens dos bairros desfavorecidos, periféricos, “intersticiais”, iden-tificando-se ao seu território, tornam-se os defensores “guerreiros”.A solidariedade da gangue supõe um estado de “guerra” mais oumenos inflamado com as outras gangues. As questões de honra, devingança de obrigação moral implicam uma certa violência e, mais

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ainda, uma encenação da violência potencial pelo espetáculo dobando que repousa sobre o desafio. Estamos lá na grande mitolo-gia das gangues, em que se misturam a realidade e a ficção, a notí-cia e o cinema, imagem sobre a qual se fixam os meios de comuni-cação e a opinião que “reconhecem”, em uma briga entre bandos,fenômenos já conhecidos, cada vez recolocados em uma filiaçãoincerta: os teddys boys, os roqueiros, os blusões negros, os mods, osskinheads, os hell angels, os zulus...

Os Estados Unidos são o país das gangues: primeiro, no cine-ma, em seguida, na vida urbana. A sociologia dos anos trinta des-creveu um fenômeno que se revelou relativamente estável nos meiospopulares e minoritários. Pesquisas indicam a existência de milha-res de gangues nos Estados Unidos. Cada uma dentre elas possuium território mais ou menos identificado a uma etnia, segundo otipo de bairro, cada uma possui líderes e um nome de família, di-versos graus de engajamento na delinqüência, muitas vezes armas,e todos os anos são computadas algumas centenas de mortos e deferidos nos confrontos entre as gangues, para os quais os mais jo-vens são chamados a participar pela honra dos antigos.

Como ocorre esse tipo de gangue e de violência, na França?Pode-se afirmar que estamos muito longe da situação americana eque nem o número, nem a violência, nem a estruturação dos ban-dos são comparáveis. Muitas vezes, mesmo, as gangues têm o efei-to de miragens que se dissolvem quando nos aproximamos. Agangue é uma forma de se representar o outro, o grupo de jovensde outra cidade, de outro povoado, de outra comunidade, pois nãobasta, evidentemente, que um grupo de jovens exista, se reúna emum imóvel, para formar essa gangue, essa “Street corner society” dasociologia e da sociedade americanas” (WHYTE, 1943). Os noticiá-rios, como aqueles do verão de 1990, que mostraram algumas bri-gas entre bandos de “Blacks”, ou a epopéia de “Requins Vicieux”nãobastam para sustentar a imagem de uma França de gangues.

Parece verdadeiro, no entanto, que se observa um deslize para

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uma situação “à americana”, principalmente pela formação de ló-gicas “territoriais” e mais ou menos “étnicas”, segundo a composi-ção dos bairros e das cidades. Quando os jovens não podem maiscontar com as identificações de classe, como nos anos sessenta, comos blusões negros, ou com as identificações escolares e profissio-nais, eles mobilizam a única vinculação de que dispõem: a do bair-ro, eventualmente a da “raça”. Esse deslize é do tipo “americano”sem criar uma violência da mesma ordem, mas constrói seu espec-tro, como o indicam, esporadicamente, os títulos das revistas.

VIOLÊNCIA E MERCADOS DELINQÜENTES

A anomia e a desorganização social não liberam somente pai-xões; elas liberam também os interesses sob a forma de um “capita-lismo selvagem” e delinqüente, envolvendo uma violência instru-mental, interessada e também expressiva. Merton (1965) colocouem evidência essa dimensão da anomia ou da concepção que setem dela. A fragilidade das normas e do controle social não impe-de, de forma nenhuma, a força das aspirações aos modelos confor-mistas de sucesso. Apesar do que se chama de crise, o desemprego,a marginalização, os jovens dos subúrbios populares vivem em umasociedade de massa, na qual os modelos de realização das classesmédias se impõem, na maior parte. Ora, estes jovens sentem-se ex-cluídos de mil formas: pelo fracasso escolar, pela ausência de em-prego; a má fama das cidades; pelo racismo, enquanto que os mo-delos do consumo e de sucesso são veiculados na publicidade, nosupermercado e na televisão. A delinqüência aparece como umaforma de reduzir essa tensão.

A cidade e o grupo de jovens constituem também fontes eco-nômicas através de uma economia desviada construída sobre o rou-bo, os tráficos diversos, principalmente aqueles da droga. Pareceque os benefícios ligados a essas atividades são, com freqüência,

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suficientemente elevados para permitir uma certa participação so-cial através da “fachada”, um suporte não negligenciável para afamília e, sobretudo, para tornar bem pouco sedutores os estágiose as formações desvalorizadas oferecidas pelos serviços sociais. Aviolência ligada a esse tipo de atividade visa, mais freqüentemente,os bens do que as pessoas, apesar da extensão da “espoliação”.Contudo, os furtos, os roubos e as degradações são vividos comoviolências, como agressões, e as vítimas não se sentem consoladaspelo fato de se tratar, nas categorias estatísticas, apenas de “peque-na” delinqüência. Um dos paradoxos dessa delinqüência instru-mental é o fato de ser relativamente discreta, pensada e de evitar aviolência mais espetacular. As agressões contra as pessoas são, vi-sivelmente, minoritárias na ordem dos delitos. Vimos o caso de umbairro onde os jovens adultos delinqüentes, vinculados por múlti-plos “conchavos” e numerosos tráficos, não são tidos pelos habi-tantes como violentos e perigosos em razão da discrição de suasatividades, embora as crianças, barulhentas, “mal educadas”, gros-seiras, ladras e vândalos, aparecem como verdadeiros provocado-res de problemas e de violências, ainda que a maior parte de seus“crimes” se aproximem mais do “roubo de cerejas” do que da de-linqüência.

Enfim, se o mercado selvagem provoca a violência, trata-se maisde uma violência voltada para os membros do mercado delinqüen-te. Essa violência é discreta, interna ao grupo e relativamente pou-co percebida pelo público.

A VIOLÊNCIA “RAIVOSA”

Em um livro publicado em 1955, A. K. Cohen se perguntavaporque os jovens delinqüentes eram quase sempre “cruéis”. Namesma época, um filme que se tornou célebre – Grão de violência –colocou a mesma questão. De fato, nem a crise da socialização, nem

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a comunidade das gangues, nem o interesse delinqüente são sufici-entes para explicar a violência juvenil, naquilo que ela pode ter deexcessivo, de “cruel” no vandalismo, na agressão “sem objeto”, noinsulto. Essa crueldade não resulta de um mecanismo de resposta àagressão, ela aprece como “gratuita”, nos moldes dos heróis deLaranja Mecânica.

A. K. Cohen explica essa violência como uma estratégia defen-siva perante um conformismo frustrado. As normas dominantes,revezadas pela escola e, muitas vezes, pelas mulheres, nos meiospopulares, exigem disciplina, limpeza, polidez, trabalho e sucesso.Nesses registros, esses jovens serão sempre perdedores e, realmen-te, nunca chegarão a estar em conformidade como modelo do bommenino, tanto mais que os aparelhos educativos os estigmatizam eesperam que eles, de fato, não se enquadrem. Então, no momentoem que eles compreendem que a conformidade, na realidade, lhesé interdita, esses jovens “optam” por recusar as normas e os atoresque as encarnam. Eles optam por degradar a escola, serem violen-tos e mal “criados”, com o objetivo de escapar do movimento damá consciência que os obrigaria a se perceberem como culpados ecomo incapazes. A crueldade aparece, assim, como uma condutade dignidade e de negação da frustração. Quanto mais as normasdo sucesso e da conformidade das classes médias se impõem aosjovens das classes populares e das minorias que não poderão seconformar a elas, mais se desenvolve a agressividade, etapa preli-minar da violência, pode-se dizer. A agressão cruel e o insulto ante-cipam o fracasso e o desprezo. Eles permitem viver um fracassosocial como um ato voluntário, até mesmo heróico.

Essa interpretação da violência e da crueldade pode, facilmen-te, se inscrever nas teorias do estigma. Quando um grupo é estig-matizado, uma das maneiras de escapar da rotulação consiste emreivindicar para si o estigma negativo, em exacerbá-lo a fim de voltá-lo contra aqueles que estigmatizam. Franz Fanon e Jean Genet des-creveram longamente esse mecanismo “perverso” engendrado pela

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estigmatização e pelo racismo. O grupo e o indivíduo desprezadosse comportam conforme aquilo que é esperado pelo estereótiponegativo, mas eles “remetem” a isso. Se “as pessoas” esperam queos jovens negros ou os jovens magrebinos sejam ladrões e violen-tos, uma das maneiras de controlar o estigma é, então, escolhercom excesso o roubo e a violência. Essas condutas têm, também, asfunções normativas de “neutralização”, pois, desde que o outro éconsiderado como um inimigo, ele não observa mais as normas damoral comum. Assim, o racismo origina a violência do lado dosracistas, com certeza, mas também do lado de algumas de suas ví-timas, posto que a violência se encontra justificada pela injustiçada qual elas são objeto. Trata-se, então, de um círculo vicioso deviolências, de desprezo e de má fé que se reforçam sem cessar econfirmam os estereótipos que o fundam.

Parece que esse tipo de violência cruel se desenvolve quando asituação de dominação não autoriza a criação de um conflito e deuma constatação. Com efeito, havíamos observado que onde existeuma forte consciência de classe operária, os jovens que estavam emsituação de dominação, não adotavam esse tipo de conduta (DUBET,1987). A consciência de classe permite, inicialmente, resistir ao es-tigma social. Ela confere uma dignidade, que dá aos atores a capa-cidade de não se deixar definir pela imagem negativa que lhes éimposta. Retomando a expressão de Sartre, eles não se deixam re-duzir ao olhar do outro. Além disso, a consciência de classe dá umsentido à situação suportada: sendo nomeada e designada a domi-nação social, o conflito social torna-se possível, ao se inscrever naimagem geral de uma sociedade. Enfim, a ação coletiva aparececomo possível pelo viés das organizações, sindicatos e partidos,que podem mobilizar a indignação e dar esperanças.

À medida que saímos da sociedade industrial, que os subúrbi-os industriais são substituídos pelos grandes conjuntos heterogê-neos dos subúrbios, a consciência da classe operária se esgota. Emseu lugar, forma-se uma revolta sem objeto, uma violência, que os

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jovens chamam, muito adequadamente, a “raiva”, o “ódio”. Essasfórmulas banais, como “eu tenho raiva”, “eu tenho ódio”, devemser levadas a sério. Elas significam que os sentimentos de domina-ção e de exclusão não dispõem de canais ideológicos e de meiosinstitucionais que lhes dêem forma. Restam as emoções, as disposi-ções à violência sem objeto, sem adversário estável e previsível;uma violência vivida como uma passagem ao ato e não como umaobrigação e uma tradição.

É essa natureza de violência, de raiva e de ódio, que comandaa rebelião. Isso na França como em outro lugar, pois os mecanis-mos de rebelião apresentam grandes similaridades. Em todos oscasos, a rebelião aparece ao final de uma série de violências polici-ais, de abusos e de negação de justiças. Ela aparece, também, nosbairros ou em situações nas quais as relações entre os jovens e ospoliciais ou guardas não são intermediadas por nada. A violênciada rebelião responde a uma outra violência que lhe permite passarao ato. Mas a rebelião não é um movimento social, ela é, justamen-te, o contrário. Ela é autodestrutiva, sua fúria volta-se contra o pró-prio bairro e não tem nada a negociar. Ela decai tão rapidamentequanto explode, de forma imprevisível. A violência da rebelião cer-tamente pode ser instrumentalizada depois do surgimento. Depoisdo choque, ela é considerada como o único recurso do qual dis-põem os protagonistas excluídos e marginalizados; os eleitos e ospoderes públicos procuram interlocutores no bairro, e uma partedos jovens adquire uma relativa capacidade de negociação. Masesse resultado da rebelião não está inscrito em seu processo dedesencadeamento. Ao contrário, a rebelião mistura todas as vio-lências: a violência lúdica dos menores, a defesa de um territóriocontra os outros, a violência delinqüente das pilhagens e dos rou-bos, a violência da raiva.

Se quisermos definir, verdadeiramente, um novo caráter daviolência juvenil na França contemporânea, devemos situá-la dolado dessa “raiva”. Vivemos uma longa institucionalização dos con-

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flitos sociais, um longo processo de integração conflituosa pelomovimento operário. Esse mecanismo se interrompeu, deixandoos protagonistas mais pobres, sem significações e sem recursos.Então, reaparece entre os jovens uma antiga violência: aquela dasclasses perigosas.

A VIOLÊNCIA NA ESCOLA

Distinguimos quatro formas de violência e de representação: aviolência juvenil privada de espaço de regulação, a violência dos ter-ritórios, a violência do mercado e a violência da raiva. Como essasviolências entram na escola? Parece que o essencial da violência es-colar dos adolescentes, isto é, aquela que é vivida como tal pelosprofessores, depende da primeira natureza da violência. Dois gran-des fenômenos marcaram a história recente do sistema educacional.

O primeiro é a massificação da qual é preciso avaliar um deseus efeitos: na escola acolhe jovens que ela abandonou no começoda adolescência há poucos anos, ainda. Muitas vezes os professo-res dizem que os alunos tornaram-se mais duros e mais violentos.Eles esquecem que, na maior parte do tempo não são mais os mes-mos alunos de antigamente, os irmãos mais velhos e os pais dessesalunos que deixaram a escola há quatorze ou quinze anos. Os LEP(Liceus de Ensino Profissionalizante) recebiam a futura aristocra-cia operária, os outros iam para a aprendizagem ou para a vidaativa. Os liceus e os colégios recebem, hoje, as crianças de imigran-tes durante longos anos, enquanto que essas gerações foramescolarizadas de forma fraca até o início dos anos setenta. Parafalar mais claramente, os colégios, os LEP e os liceus não eliminammais os alunos que têm mais chance de pertencer às categorias so-ciais nas quais a violência juvenil é a mais familiar.

A segunda transformação do sistema de ensino secundário ésua adesão à cultura juvenil das classes médias e o abandono de

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um sistema disciplinar de separação destacada entre o mundo es-colar e o mundo “civil”. Mais separação entre os sexos, mais jale-cos, mais vigilância, mais supervisores, mais bedéis... Antes de con-tinuar nesse caminho, afirmamos, imediatamente, que essa evolu-ção é, no mínimo, um sucesso, pois a grande maioria dos estabele-cimentos secundários não tem sistema disciplinar e não encontraproblemas de disciplina e de violência. Mas isso supõe que os alu-nos aceitam as normas “cool” da recusa da violência, que eles esco-lhem, em caso de conflitos, antes a retirada do que o confronto, eque eles se sentem, de preferência, ganhadores ao longo de seusestudos. Enfim, é melhor que eles sejam alunos médios pertencen-tes às classes médias.

Mas, assim que o novo público encontra esse sistema escolar,encontra-se em uma situação de desregulação da violência, pois osistema escolar não é suficientemente integrado para oferecer umespaço tolerado para a violência juvenil “normal”, nas categoriassociais dos recém-chegados. Ela torna-se, então, intolerável, princi-palmente pelos professores, em geral provenientes das classes mé-dias e que não suportam a violência, não sem boas razões.

Entretanto, essa violência é, essencialmente, uma violência en-tre alunos. Muito mais escandalosa aparece aquela que se volta paraos adultos: insultos, agressões, depredação de carros e delocais....Centenas de queixas foram registradas este ano contra seusalunos por professores que não distinguem mais, com razão, asmanifestações da algazarra tradicional. Parece que esse tipo de vi-olência se aproxima mais da rebelião e da raiva, e reenvia para aanálise sugerida mais acima. Se isso fosse verdadeiro, talvez não sedeva orientar em direção a um suplemento de controle e de disci-plina, diferente da primeira figura da violência, mas em direção aum tratamento mais “político” do problema. Com efeito, está emquestão um tipo de relação social e de construção do fracasso esco-lar, ao qual os alunos podem “escolher” responder de certa manei-ra. Ora, tanto a primeira forma de violência pode se fazer notar a

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partir de um problema de regulação e de controle escolar (ela pare-ce ser própria dos alunos mais jovens e dos colégios), como a se-gunda não pode ser estritamente escolar: a escola está, simples-mente, em primeira linha. Sugerimos distinguir duas lógicas daviolência na escola: aquela das classes populares que contrastamnum mundo de classes médias e numa escola que não é uma insti-tuição e aquela da raiva que deriva de um conflito impossível e deum sentimento constante de fracasso e de humilhação. Se essa dis-tinção é verossímil, ela exige respostas sensivelmente diferentes,até mesmo opostas em seus princípios. A primeira insistirá sobre aconstrução de uma ordem capaz de limitar o espaço da violência ede tolerar algumas expressões, enquanto a segunda deverá, ao con-trário, criar o campo de um conflito e de um debate em torno dealgumas práticas escolares.

A violência é múltipla. Ela não está reduzida à unidade deum princípio moral para melhor ser condenada. No entanto, não écerto que essa redução seja, a melhor forma de combater a violên-cia. O enfraquecimento das regulações comunitárias e o domínioda cultura das classes médias nos conduzem a não mais suportar oque a violência juvenil possa ter de “normal” e, por isso, não sabermais responder a ela. No outro extremo das formas de violência, acondenação da violência como categoria moral geral impede a des-coberta das modalidades de resistência e de conflito, pois a violên-cia da raiva corresponde, ainda, à mais forte das violências.

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NOTAS* Este texto foi publicado originalmente na revista Culture & Conflits: sociologie politique de

I'international nº6 (1992) p.7-24.1 Um número de l’Evénement de quinta-feira (maio, 1992) consagrado à violência dos ban-

dos é, nesse aspecto, exemplar: fotos, investigações “experimentadas” encenação da violên-cia pelos próprios jovens, sem contar a denúncia do papel da imprensa pelo próprio sema-nário, que se protege, assim, do estereótipo que ele produz..