Sobre a troca informacional entre o modelo fisiológico de organismo e concepções de organização...

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA Vanessa Nicola Labrea Dissertação de Mestrado: SOBRE A TROCA INFORMACIONAL ENTRE O MODELO FISIOLÓGICO DE ORGANISMO E CONCEPÇÕES DE ORGANIZAÇÃO POLÍTICO-SOCIAL. Política, técnica e ciências da vida a partir de Georges Canguilhem. Orientador: Norman Roland Madarasz PORTO ALEGRE 2015

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Sobre a troca informacional entre o modelo fisiológico de organismo e concepções de organização político-social: política, técnica e ciências da vida a partir de Georges Canguilhem. Dissertação de Mestrado em Filosofia. Autora: Vanessa Nicola Labrea.

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  • PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO RIO GRANDE DO SUL PROGRAMA DE PS GRADUAO EM FILOSOFIA

    Vanessa Nicola Labrea

    Dissertao de Mestrado:

    SOBRE A TROCA INFORMACIONAL ENTRE O MODELO FISIOLGICO DE ORGANISMO E CONCEPES DE ORGANIZAO POLTICO-SOCIAL.

    Poltica, tcnica e cincias da vida a partir de Georges Canguilhem.

    Orientador: Norman Roland Madarasz

    PORTO ALEGRE 2015

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    VANESSA NICOLA LABREA

    SOBRE A TROCA INFORMACIONAL ENTRE O MODELO FISIOLGICO DE ORGANISMO E CONCEPES DE ORGANIZAO POLTICO-SOCIAL.

    Poltica, tcnica e cincias da vida a partir de Georges Canguilhem.

    Verso definitiva para depsito da dissertao apresentada como requisito para a obteno do grau de Mestre pelo Programa de Ps-Graduao em Filosofia da Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul.

    Orientador: Norman Roland Madarasz

    PORTO ALEGRE 2015

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    VANESSA NICOLA LABREA

    SOBRE A TROCA INFORMACIONAL ENTRE O MODELO FISIOLGICO DE ORGANISMO E CONCEPES DE ORGANIZAO POLTICO-SOCIAL.

    Poltica, tcnica e cincias da vida a partir de Georges Canguilhem.

    Verso definitiva para depsito da dissertao apresentada como requisito para a obteno do grau de Mestre pelo Programa de Ps-Graduao em Filosofia da Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul.

    Aprovada em _____ de ____________ de _______.

    BANCA EXAMINADORA:

    ________________________________________________

    Prof. Dr. Norman Roland Madarasz (Orientador) - PUCRS

    ________________________________________________

    Prof. Dr. Ricardo Timm de Souza - PUCRS

    ________________________________________________

    Prof. Dr. Nythamar Fernandes de Oliveira - PUCRS

    ________________________________________________

    Prof. Dr. Vladimir Pinheiro Safatle - USP

    PORTO ALEGRE 2015

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    Il n'y a pas de dpart zro.

    Jean Cavaills

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    Para Lucas N. F., com amor de irm.

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    AGRADECIMENTOS

    Agradeo ao professor e orientador Norman Madarasz, com admirao e sentimento de amizade, pelo ensinamento, confiana e incentivo que me ofereceu com generosidade invarivel desde o seu ingresso no corpo docente da PUCRS e que foram fundamentais para a realizao desta dissertao; ao professor Nythamar Fernandes de Oliveira, pelas oportunidades de transdisciplinaridade no grupo de pesquisa em neurofilosofia no InsCer, nos Seminrios e no Centro Brasileiro de Pesquisas em Democracia, que inserem, sem dvidas, verdadeiro dinamismo de trabalho no PPG em Filosofia; ao professor Ricardo Timm de Souza, cuja habilidade no ensino da filosofia excede qualquer descrio devido combinao nica entre a entrada em temas da biopoltica com incomparvel competncia crtica e a ternura do convvio fraterno; e ao professor Vladimir Safatle - de quem respeito as constribuies crticas ao pensamento filosfico da poltica e acompanho o trabalho distncia -, agradeo por ter aceito o convite de ler este trabalho e participar na banca como avaliador.

    FFCH da PUCRS e ao PPG em Filosofia; aos professores ao longo do tempo, em especial a Eduardo Luft, Draiton Gonzaga de Souza e Srgio Sardi; ao professor Agemir Bavaresco, como tambm aos secretrios Andra Simioni e Paulo Mota, pela gentileza e disponibilidade em auxiliar com as questes prticas; equipe do Xerox do Prdio 5, pelo apoio e ateno sempre afetuosos; e especialmente ao Lucas Margoni, pelas boas conversas.

    Aos colegas do MaterialismoS, grupo que me abriu perspectivas importantes em 2012: Rodrigo Nunes, Adriano Krle, Charles Borges, Moyss Pinto Neto, Victor Marques; a todos os colegas do Lgicas de Transformao - Crticas da Democracia, especialmente a Leonardo Schaefer, Andr Neiva, Marcos Messerschimidt, Marcelo Puricelli, Grgori Laitano, Jernimo Milone, Gustavo Pereira, Tiago Porto, Estevan Ketzer, Henrique Doelle, Larissa Couto, Jeverton Soares, Robson Rosa, Felipe Villanova, Arthur Lopes, Emerson Pirola, talo Silva Alves; tambm aos colegas Johnny Marques de Jesus e Jorge Piaia, como a Marlia Bento e Gabriela Leal; aos colegas do Instituto do Crebro: Fabrcio Pontin, Luiz Stern, Cinara Nahra, Felipe Karasek e demais; e, especialmente, agradeo ao antigo colega e amigo, Richer Fernando Borges de Souza, que leu e opinou atenciosamente sobre parte deste trabalho, em sua fase inicial.

    minha me, Deise; ao meu pai, Rogrio: a ambos, pelo incansvel, pelo o que de fato incalculvel, eu sou imensa e profundamente grata; ao Jardim, por todo o companheirismo, pelas discusses, pelo carinho; ao Lucas, Pedro, Giovanna, Guilherme, Sophie, Stephanie e Joo Vitor, por cada gesto de espontaneidade vivido e por vir; e ao Gustavo, particularmente, pela diverso e pela partilha de uma vida inteira; Ubaldina e s seguintes geraes da famlia, por todos os momentos de convvio to amvel; Nena, pelo amor que permaneceu; ao meu av, pela pacincia infinita; Luciana, pela resistente proximidade nesses anos de distncia; e ao Christian, pelo dilogo e por ter me ajudado a movimentar-me face a dificuldades.

    CAPES, agradeo pela bolsa concedida pesquisa durante os anos de 2013 e 2014.

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    RESUMO

    O presente estudo aborda o problema da assimilabilidade entre modelos de organismo fisiolgico e organizao poltico-social, pautado principalmente pelo uso homlogo do conceito de regulao entre os domnios mdico-cientfico e poltico. Os trabalhos em filosofia e histria das cincias de Georges Canguilhem (1904-1995) permitem abordar o uso de modelos no mbito das cincias da vida e analisar o trnsito informacional entre o mbito poltico-social e mdico-biolgico, segundo os nveis estrutural, funcional e normativo. Discute-se a partir disso o vis prottico da vida e o vis biolgico da tcnica. As consideraes de Canguilhem convergem para determinao de sua obra enquanto campo de interao entre as quatro categorias: poltica, cientfica, vital e tecnolgica. A individualidade orgnica e o modo de organizao das sociedades humanas so discutidas pelo filsofo luz da sociologia de Auguste Comte e Emile Durkheim, da fisiologia de Claude Bernard, de Ren Leriche, de Franois Broussais, de Xavier Bichat, da filosofia tecnolgica de Alfred Espinas, de A.A. Cournot e outros cientistas/filsofos ambientados na Frana dos sculos XIX e XX. Georges Canguilhem habitualmente classificado no quadro da chamada Epistemologia Histrica, em conjunto com Michel Foucault, Gaston Bachelard e Jean Cavaills. Em suma, apontamos aqui para um aporte terico extrado da obra canguilhemeana enquanto contribuio busca de mtodos filosficos para pensar o enredamento entre tcnica, poltica, e cincias da vida, domnios que se mostram interagentes na produo de saber e de ao.

    Palavras-chave: Biofilosofia; Regulao; Normatividade Vital; Organicismo; Canguilhem; Tecnopoltica.

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    RSUM

    La prsente tude aborde la question de la capacit dassimilation entre les modles dorganismes physiologiques et dorganisation politico-sociale, en se basant principalement sur lusage semblable du concept de rgulation entre les domaines mdico-scientifiques et politique. Les travaux de philosophie et histoire des sciences de Georges Canguilhem (1904-1995) permettent daborder lusage de modles dans le cadre des sciences de la vie et analyser le transit informationnel entre les cadres politico-social et mdico-biologique, sous des perspectives structurelles, fonctionnelles et normatives. On discute, partir de l, le ct prothtique de la vie et celui biologique de la technique. Les considrations de Canguilhem mnent dfinir son uvre en tant que champ dinteraction entre les quatre catgories: politique, scientifique, vitale et technologique. Lindividualit organique et le mode dorganisation des socits humaines sont discutes par le philosophe la lumire de la sociologie dAuguste Comte et dmile Durkheim, de la physiologie de Claude Bernard, Ren Leriche, Franois Broussais et Xavier Bichat, de la philosophie technologique dAlfred Espinas, A. A. Cournot et autres philosophes/savants travaillant en France au cours des XIXe et XXe sicles. Georges Canguilhem est habituellement rang dans ce que lon nomme lpistmologie Historique, aux cts de Michel Foucault, Gaston Bachelard et Jean Cavaills. En somme, nous faisons merger ici un apport thorique extrait de luvre de Canguilhem en tant que contribution la recherche de mthodes philosophiques permettant de penser la trame qui se tisse entre technique, politique et sciences de la vie, domaines qui savrent interacteurs dans la production de savoir et daction. Mots-cls : Biophilosophie; Rgulation; Normativit vitale; Organicisme; Canguilhem; Technopolitique.

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    ABSTRACT

    This present study addresses the problem of assimilability between models of the physiological body and socio-poltical organization, based mainly on the homologous use of the concept of regulation in both the medical-scientific and poltical fields. The works of Georges Canguilhem (1904-1995) in philosophy and the history of science permit an approach to the use of models in the life sciences and an analysis of informational transit between the socio-poltical and medical-biological contexts, according to the structural, functional, and normative levels of each. From this, the "prosthetic" bias of life and biological bias of technique are discussed. Canguilhem's considerations converge to make his work an interaction between the four categories: politics, science, life, and technology. Organic individuality and the way human societies are organized are discussed by the author in the light of the sociology of Auguste Comte and Emile Durkheim, the physiology of Claude Bernard, Ren Leriche, Franois Broussais, and Xavier Bichat, and the technological philosophy of Alfred Espinas, A.A. Cournot, and other scientists and philosophers in France in the nineteenth and twentieth centuries. Georges Canguilhem is usually classified in what as known as historical epistemology, along with Michel Foucault, Gaston Bachelard, and Jean Cavaills. In conclusion, here we call attention to the theoretical support extracted from Canguilhem's work as a contribution to the search for philosophical methods to consider the entanglement between art, politics, and life sciences, fields that are seen to interact in the production of knowledge and action.

    Key words: Biophilosophy; Regulation; Vital Normativity; Organicism; Canguilhem; Technopolitics.

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    SUMRIO

    INTRODUO..............................................................................................................................11.

    CAPTULO I. ORGANIZAO E CONSENSO UM MODELO E UM PROBLEMA CONCERNENTES ESTRUTURA DO ORGANISMO VIVO..............................................22.

    I.1. Fisiologia social, fsica social, poltica biolgica.....................................................................23.

    I.1.1. Regularidades normativas do sculo XIX francs...........................................................23.

    I.1.2. O conceito de organizao entre vitalismo, organicismo e biosociologia.......................37.

    I.1.3. A anatomia tissular: base morfolgica do positivismo biolgico....................................50.

    I.1.4. O continuismo das cincias da vida.................................................................................55.

    Intermdio. Fraturas conceituais, recomeos conceituais....................................................66.

    CAPTULO II. A FUNO DE REGULAO E OS RGOS REGULADORES NORMATIVIDADE E PRTESES VITAIS..............................................................................74.

    II.1. Regulao fisiolgica e regulao poltico-econmica..........................................................78.

    II.1.1. Dispositivos de equilbrio natural: economia animal................................................78.

    II.1.2. Do controle bernardiano ciberntica...........................................................................88.

    II.1.3. Racionalidade governamental e normatividade poltico-econmica no sculo XXI..108.

    II.1.4. Meio tecnolgico, tcnica biolgica..............................................................................127.

    CONSIDERAES FINAIS.......................................................................................................146.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS.......................................................................................151.

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    INTRODUO

    possvel apreender o que relaciona cincia e poltica, saber e poder, compondo com tais domnios o segundo par: tcnica e vida. O cientfico, o poltico, o tecnolgico e o vital so quatro referenciais de cuja natureza, hoje como h longa data, uma anlise resulta insuficiente quando cr retir-los dos processos produtivos que os fazem fundamentalmente correlatos. A identificao do trao distintivo de uma filosofia da cincia que leve em conta tal situao de interdependncia remete maneira pela qual ela opera o trnsito conceitual entre as reas, maneira pela qual aloca em sua compreenso os movimentos de importao, transferncia, migrao, evico de conceitos, para utilizar alguns termos canguilhemeanos, e de como compreende o uso de modelos de analogia e homologia em que tais podem ser veiculados.

    At os primeiros anos do sculo presente, no Brasil, a obra de Georges Canguilhem (1904-1995) fora mais interpretada por estudiosos instalados originalmente na rea da sade do que por aqueles em primeiro lugar tributrios de uma perspectiva histrica da filosofia. Prevalecera desse modo um recorte, por vezes no pouco estreito, das possibilidades de debate acerca de seus livros, artigos e conferncias, lidos at ento sob o vis tcnico do clnico, especialmente o vis psiquitrico. A primeira edio brasileira de tudes dHistoire et de Philosophie des Sciences data de 2012. Em conjunto com a traduo de Connaissance de la Vie, publicada no mesmo ano pela Editora Forense (Coleo Episteme Poltica, Histria Clnica), o seu aparecimento no mercado editorial brasileiro configura uma espcie de tardia confirmao de interesse, exemplificada e amplificada nos comentrios acadmicos. Antes disso, tinha-se apenas a traduo brasileira da tese de doutoramento, Le Normal et le Pathologique (com posfcio de Pierre Macherey, apresentao de Louis Althusser e o acrscimo das Novas Reflexes), somada traduo dos artigos compilados em crits sur la Medecine, ambas publicadas pela primeira vez no ano de 2005.

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    No obstante demais obras significativas, como por exemplo Idologie et Rationalit dans lhistoire des sciences de la vie, ainda no conheam publicao no Brasil, e que diversos artigos, alguns assinados com o pseudnimo Laffont ou C.-G. Bernard, como Le fascisme et les paysants, sejam de acessibilidade recente mesmo na Frana, onde foram disponibilizados pela famlia Canguilhem CAPHS tanto a biblioteca pessoal quanto os arquivos de trabalho, abrindo o Fonds Georges Canguilhem em 2003, e onde o tomo primeiro das Oeuvres Compltes: crits philosophiques et politiques 1926-1939 veio a pblico em dezembro de 2011, inegvel o aclive de interesse pela obra canguilhemeana,

    perceptvel igualmente na procura pelos materiais inditos. Em correspondncia com essa renovao de interesse, e aprofundando o tema praticamente inexplorado da leitura feita por Canguilhem da sociologia de mile Durkeim, a primeira dissertao de mestrado brasileira dedicada integralmente obra filosfica de Canguilhem de Fbio Lus Nbrega Franco, defendida na Universidade de So Paulo, no ano de 2012.

    Na Frana, embora tenha adquirido amplitude o vis de leitura medico-biolgico, como talvez se o considere aquele que prevalece em Franois Dagognet, Michel Morange, Anne Fagot-Largeault, Henri Atlan ou Andr Pichot, autores que sobretudo aprofundam os temas do vitalismo canguilhemeano (incluso o tema tecnolgico e a relao com Gilbert Simondon, Leroi-Gourhan e Raymond Ruyer), os trabalhos de cunho predominantemente scio-poltico como os de Claude Debru, Michele Cammelli, Jean-Franois Braustein, Guillaume Le Blanc e Anastasios Brenner tm no somente retomado a filiao de Georges Canguilhem Epsitemologia Histrica, reestabelecendo sua proximidade com Gaston Bachelard, Jean Cavaills, Michel Foucault e Alexandre Koyr, como tambm retomado a presena do positivismo de Auguste Comte em sua obra, assim como a sociologia de mile Durkheim, mile Littr, Raymond Aron, a tematizao de modelos econmicos e demais questes concernentes pauta da normatividade social e poltica1. Pode-se considerar sem equvoco que essa segunda espcie de leitura j houvera sido iniciada por Dominique Lecourt, Pierre Macherey, pelo prprio Michel Foucault e por Alain Badiou, todos antigos alunos dos seminrios de Canguilhem que o retratam antes de mais nada como um filfoso marcado pelo par de preocupao com o tema do vital e do

    1 Cf., a ttulo de exemplo, o colquio organizado pelo Collge International de Philosophie:

    Georges Canguilhem: Philosophe, historien des sciences. Actes du colloque (6-7-8/12/1990). Paris: Albin Michel, 1993.

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    social, s vezes mesmo se sobressaindo pela crtica de cunho poltico. Com efeito, essa duplicidade uma referncia adequada para definio da obra canguilhemeana, e primria, inclusive, com relao cada um de seus termos, caso se consiga de algum modo isol-los.

    devido precisamente ao feitio duplo enquanto marca da obra que, a despeito da especificidade dos trabalhos sobre bacteriologia, embriologia, sobre a teoria do reflexo em neurologia ou acerca da passagem da teoria fibrilar teoria celular, com ttulos como Patologia e Fisiologia da Tireoide no sculo XIX ou A Experimentao em Biologia Animal, e diversos textos dedicados parcial ou integralmente aos mdicos Xavier Bichat, Claude Bernard, Ren Leriche, Franois Broussais e outros, vale insuspeito o rigor de descries como esta, registrada no ltimo texto publicado por Foucault antes de sua morte:

    Mas suprimam Canguilhem e vocs no compreendero mais grande coisa de toda uma srie de discusses que ocorreram entre os marxistas franceses; vocs no mais apreendero o que h de especfico em socilogos como Bourdieu, Castel, Passeron, e que os marca to intensamente no campo da sociologia; vocs negligenciaro todo um aspecto do trabalho terico feito pelos psicanalistas, especialmente os lacanianos. Mais: em todo o debate de ideias que precedeu ou sucedeu o movimento de 1968, fcil reencontrar o lugar daqueles que, de perto ou de longe, haviam sido formados por Canguilhem.2

    Aqui o inevitvel de uma meno ao contexto significativo ao qual reenvia o nome de Michel Foucault, aproximado de demais como Louis Althusser, Alain Badiou, Jacques Rancire e tienne Balibar. Contexto em que estiveram envolvidos coesivamente, antes dos eventos de 1968 terem divisado notavelmente seu(s) encontro(s). Os ncleos de pensamento filosfico francs cuja clivagem tornou de praxe a classificao entre filosofias existenciais e filosofias conceituais3 so consequentes tambm do desmonte

    2 FOUCAULT, M. A Vida: a Experincia e a Cincia. In: Ditos e Escritos, v. II. Rio de Janeiro:

    Forense Universitria, 2000, p. 352-353. "La Vie: Lexprience et la science". Rvue de Mtaphysique et de Morale, ano 90, n1, 1989, pp. 3-14. 3 C'est celle qui spare une philosophie de l'exprience, du sens, du sujet et une philosophie du

    savoir, de la rationalit et du concept ("La vie: l'Exprience et la Science", Revue de mtaphysique et de morale, anne 90, n1: Canguilhem, janvier-mars 1985, pp. 3-14). Embora o

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    desse grupo de alunos da cole Normale Suprieure, poca responsveis pela feitura e publicao dos Cahiers pour lAnnalyse, a revista cuja condio de existncia talvez melhor apresente o fundamental da figura de Canguilhem enquanto inserida nos quadros da filosofia francesa novecentista4. A notoriedade de sua presena nas discusses do grupo do Cahiers pode ser observada no prprio contedo colocado luz nos debates, mas tambm pode-se observar que a recorrncia dos nomes de dois dos principais mestres de Canguilhem no teriam tido ali tamanha ateno seno por efeito de seus seminrios: Jean Cavaills e Gaston Bachelard, nomes para os quais converge em ampla medida o

    referencial epistemolgico canguilheameano e emblemticos no que suas prprias linhas de trabalho representam ao transcurso da filosofia francesa da cincia5.

    contedo das discusses impressas nos Cahiers pour lAnnalyse atestem a prevalncia do formalismo, em referncia direta lingustica, matemtica, psicanlise, qumica, e de fato o primado das cincias ditas duras, no resta menos expressa a fora da influncia da releitura althusseriana do marxismo-leninismo e das demais linhas de interpretao (do PCF, dos maostas, etc.), que, de fundo, balizavam mesmo as questes acerca da cientificidade e da ideologia, do surgimento de uma cincia e de sua trajetria na histria. O tema da publicao n 9 Cahiers, em 1968, tendo sido A Genealogia das Cincias, com a participao importante de Foucault, marca o momento em que o grupo se dissipou como sabido, a filosofia fundada na existncia humana ou experincia da tica que o perodo posterior fez espessa, fez divises na filosofia francesa ao mesmo tempo que minorou a prevalncia de elementos da cincia discusso filosfica. nesse sentido que Norman Madarasz, professor-orientador desta dissertao, em sua Apresentao edio v. 58, n. 2 (2013) da Revista Veritas, dedicada ao tema Sistema e Ontologia na Filosofia Francesa Contempornea, faz referncia quilo que 1968 interrompeu. Desde a proliferao da filosofia francesa das dcadas de 70 e 80, a quase mudez acerca dessa outra filosofia francesa se v bem em sua ausncia nos espaos acadmicos. A filosofia das cincias da vida de Canguilhem reenvia de maneira direta a tal momento que perfeitamente, como descreve ainda Norman Madarasz, matriz convergente entre formalismo e poltica de emancipao. 4 abertura de cada um de seus volumes, a revista veiculava a seguinte citao de Canguilhem:

    Trabalhar um conceito fazer variar sua extenso e sua compreenso, generaliz-lo pela incorporao dos traos de exceo, export-lo para fora de sua regio de origem, tom-lo como modelo ou, inversamente, procurar-lhe um modelo, em resumo, conferir-lhe, progressivamente, por transformaes regradas, a funo de uma forma. Trata-se de um excerto retirado do artigo de 1963, Dialtica e Filosofia do No em Gaston Bachelard (Dialectique et philosophie du non chez Gaston Bachelard.In: Revue Internationale de Philosophie, 1963, p. 452), em que Canguilhem ressalta o carter estrutural e coletivo do racionalismo bachelardiano. 5 Em 1969, Louis Althusser escreve em seu Lenin e a Filosofia: De fato, preciso alguma

    coragem para admitir que a filosofia francesa, de Maine de Biran e Cousin at Bergson e Brunschvicg, pelo caminho de Ravaisson, Hamelin, Lachelier a Boutroux, somente pode ser salvada de sua prpria histria pelos poucos grandes espritos contra os quais virou sua face, como

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    O trabalho terico especializado de Bachelard, abrangente da matemtica e da fsico-qumica contemporneas primeira metade do sculo XX (em dilogo com mile Meyerson, Louis de Broglie, douard Le Roy, etc), no o impedira de filiar-se membro do Comit de Vigilance des Intellectuels Antifascistes (CVIA)6, repetindo o posicionamento do qumico Paul Langevin e do filsofo Alain antes dele (membros-fundadores, ao lado de Rivet), e assim como o prprio Canguilhem na sequncia. No menos ilustrativa a figura de um matemtico como Cavaills, que segundo as palavras de Canguilhem optou por lutar na Resistncia por lgica7: uma referncia justificativa do prprio Cavaills decorrente da qual a afirmao conclusiva de que a luta contra o inaceitvel , portanto, inelutvel. Reverbera na filosofia de Canguilhem aquilo que Cavaills escrevera em sua primeira condenao priso militar nazista, em maio de 1940, prvia a ocorrida em 1944, ocasio que desembocou em seu fuzilamento. Dizia Cavaills: no uma filosofia da conscincia, mas uma filosofia do conceito, que pode dar uma doutrina da cincia8. Canguilhem no fora aluno de nenhum dos dois cientistas/filsofos professores, mas fora manifestamente aprendiz de ambos, e veio a suced-los tambm no mbito acadmico, ocupando tanto a ctedra de Cavaills em Estrasburgo como a de Bachelard na Sorbonne. A ambos recorreu em incontveis momentos de sua obra para reafirmar tal aprendizado, o que, excetuando as referncias indiretas, pode ser encontrado expressamente, por exemplo, em Vie et Mort de

    os de Comte e Durkheim, ou, enterrados em oblvio, Cournot e Couturat; [isto] atravs de alguns poucos conscientizados historiadores da filosofia, historiadores da cincia e epistemlogos que trabalharam pacientemente para educar aqueles a quem, em parte, a filosofia francesa deve o seu renascimento nos ltimos trinta anos. Ns todos sabemos estes nomes; desculpem-me se eu cito apenas aqueles que j no esto conosco: Cavaills e Bachelard. 6 O Comit, fundado em maro de 1934 por Alain, Paul Langevin e Paul Rivet sob o princpio de

    sauver contre une dictature fasciste ce que le peuple a conquis de droits et de libert publique", teve adeso de intelectuais socialistas, comunistas e radicais da esquerda francesa assinalando a preocupao com a ascenso do fascismo na Frana, anos antes ecloso da Segunda Guerra. 7 "(...) a t Rsistent par logique". CANGUILHEM, G. Vie et Mort de Jean Cavaill. Paris: Allia,

    1996, p. 34. 8 CAVAILLS, J. Sur la logique et la thorie de la science. Paris: Vrin, 1997, p. 90.

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    Jean Cavaills9 e nos numerosos trabalhos cuja centralidade dada a filosofia de Bachelard10.

    *

    Na conferncia de 1969, proferida em Varsvia e em Cracvia comunidade cientfica polonesa sob o ttulo Quest-ce quune idologie scientifique,11 o dilogo com a teoria althusseriana de diviso cincia versus ideologia palco para que o conceito de ideologia cientfica tome destaque no pensamento canguilhemeano. Ele projetado visando reforar uma perspectiva cuja origem vai de encontro aos fundamentos epistemolgicos desenvolvidos na dcada de 1920/30 por Bachelard,12 com o qual Canguilhem sustenta a necessidade de considerar a atuao histrica das apropriaes do cientfico pelo no-cientfico como no menos relevante nem menos retratvel do que a pretensa linearidade causal e o estatuto de pureza habitualmente aferido pela historiografia das cincias sancionadas s suas trajetrias.

    Ideologia cientfica, nesse sentido, reenvia categoria bachelardiana de obstculo epistemolgico: os empecilhos ao desenvolvimento cientfico que o vem a ser atravs do uso acrtico repetido massivamente, ao ponto de se tornarem ossificados ou fossilizados pelo uso. O desconhecimento da tenacidade dos erros que por muito tempo obscureceram um problema.13 Se, como Badiou afirmava em seu texto de 1966, Le

    9 CANGUILHEM, G. Vie et Mort de Jean Cavaills. Paris: Allia, 1996 (1944).

    10 Cf. CANGUILHEM, G. "L'Histoire des Sciences dans l'Oeuvre Epistemologique de Gaston

    Bachelard". In: tudes d'Histoire et de Philosophie des Sciences. Paris: Librarie Philosophique J. Vrin, 1968. 11

    A conferncia foi depois publicada no n 7 da revista Organon, Varsvia, 1970. Posteriormente, em: Idologie et rationalit dans lhistoire des sciences de la vie. Paris: Vrin, 2000. 12

    Ver o Prembulo de Ideologia e Racionalidade nas Cincias da Vida, p. 9: a introduo, no meu ensino ou em artigos e conferncias, do conceito de ideologia cientfica, a partir de 1967-68, sob a influncia dos trabalhos de Michel Foucault e de Louis Althusser, no era apenas um indcio de interesse e de adeso concedida a estas contribuies originais para a deontologia da histria das cincias. Era um meio de revigorar, sem a rejeitar, a lio de um mestre, Gaton Bachelard, falta de poder seguir os seus cursos, lio em que se inspiraram e fortificaram os meus jovens colegas, a despeito das liberdades que sobre ela tomaram. 13

    CANGUILHEM, G. "L'Histoire des Sciences dans l'Oeuvre Epistemologique de Gaston Bachelard". In: tudes d'Histoire et de Philosophie des Sciences. Paris: Librarie Philosophique J. Vrin, 1968, p.185.

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    (Re)Commencement du Matrialisme Dialectique14, a cincia produz o conhecimento de um objeto do qual uma regio determinada da ideologia indica a existncia15, isso se conecta absolutamente com o fato de Canguilhem utilizar o termo evico para consignar a ao da ideologia cientfica, isto , algo que desapropria mas no ocupa. O sentido canguilhemeano para ideologia cientfica encontra-se em sua obliquidade perspectiva em direo aos objetos tambm visados pela investigao de teorias cientficas sancionadas. Mas essa ideia tambm evoca, ainda que menos diretamente, a noo de fronteira epistemolgica16. Esse conceito, surgido da ideia de que um problema depende de sua localizao em determinada problemtica, fundamentado na conjuno de duas coisas aparentemente incompatveis: limites s reas do saber e troca informacional entre eles. Toda fronteira absoluta proposta cincia, dizia Bachelard, um problema mal formulado. A tarefa de abordar os fenmenos de movimentao conceitual entre um domnio e outro, evitando delinear com exagero as fronteiras de uma disciplina como pretextos para que bem corra a historiografia de herana positiva que legitimava a prevalncia da continuidade sobre os cortes/rupturas, buscada e ampliada por Canguilhem ao longo de toda a sua obra. Finalmente, devemos sublinhar ento o conceito de corte epistemolgico. Eis o ponto de encontro e discordncia mximos de seu pensamento com o pensamento historicista do positivismo, afinal, sua pecha com o continuismo histrico to forte que ultrapassa a crtica linearidade temporal e se desdobra em crtica continuidade espacial, s concepes, por assim dizer, de um mbito do saber integrado a si prprio, fechado em si prpio. Canguilhem substitui essa perspectiva por aquela que atribui primazia ao relacional, ao interdependente.

    Na relao entre os momentos descontnuos da histria de uma cincia, entra o papel da valorao epistemolgica. Canguilhem afirma que os valores racionais devem ordenar a histria da cincia visto que eles polarizam a prpria atividade cientfica17 Desse modo,

    14 BADIOU, Alain. Le (re)commencement du materialisme dialectique. Paris: Cririque, 1967.

    15 Ibid., p. 449.

    16 Cf. BACHELARD, G. Crtica preliminar do conceito de fronteira epistemolgica. In: Estudos.

    Rio de Janeiro: Contraponto, 2008. 17

    CANGUILHEM, G. A histria das cincias na obra epistemolgica de Gaston Bachelard. In: Estudos de histria e filosofia de cincias concernentes aos vivos e vida. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 183.

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    uma teoria do valor est por trs da perspectiva histrico-epistemolgica da descontinuidade. Se ela pleiteia a insero das utilizaes conceituais que no ocupam e contudo desapropriam o local da teoria cientfica porvir, reverberando no plano epistemolgico, Canguilhem nunca deixou de frisar sua viso da historiografia cientfica: para alm de laboratrio, deveria compreender-se enquanto uma espcie de tribunal18, compreendendo o exerccio do julgamento como fator decisrio particular e relevante para reestruturao causal dos fatos. Algo de seu colega Raymond Aron que ecoa em sua obra, como se v na descrio:

    sem dvida a razo pela qual Aron recebeu to favoravelmente a idia de valor como condio de exerccio do julgamento histrico. Sem a referncia aos valores, os eventos da histria so uma sucesso sem consequncia, sem apelo ao julgamento, seja um encadeamento de causas e de efeitos fundada num tipo de explicao estritamente naturalista, ou seja, inversamente, uma poeira incoerente de eventos contingentes.19

    Dispensando a iluso retrospectiva pela assuno deliberada de uma espcie de estruturalismo historiogrfico forte, Canguilhem concluir: o relato histrico sempre transtorna a verdadeira ordem de interesse e interrogao. no presente que os problemas solicitam reflexo. Se a reflexo leva a uma regresso, a regresso necessariamente relativa reflexo20. O fator crucial que d forma mais limitada ao que poderia ser acusado de pura e livre escolha de pontos de corte, de reconhecimento de rupturas, sua valorizao, etc, a necessidade de identificar modelos e retratar sua utilizao.

    Em Models et analogies dans la dcouverte en biologie21, Canguilhem enfatiza que s cincias de estudo do vivo no tanto a construo de analogias (transposies

    18 Cf. CANGUILHEM, G. O Objeto da Histria das Cincias. In: Estudos de Histria e de

    Filosofia das Cincias concernentes aos vivos e a vida. Rio de Janeiro: Forense Universitria, p. 5-7. 19

    CANGUILHEM, G. "Raymond Aron et la philosophie critique de lhistoire", Enqute, 1992, p. 29. Online desde 16/11/2005, consultado em 20/01/2014. URL: http://enquete.revues.org/138. 20

    CANGUILHEM, G. Augusto Comte e o Princpio de Broussais. In: O Normal e o Patolgico, Rio de Janeiro: Forense, 2012, p.29. 21

    Com o nome The role of analogies and models in biological Discovery, este artigo aparece primeiro na publicao decorrente de um Simpsio ocorrido na Universidade de Oxford: Scientific

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    estruturais; semelhanas morfolgicas), mas sim de homologias (correspondncias referentes finalidade; origens associadas mesma funo) que adquire maior eficcia quando de suas aplicaes. No mais das vezes, quando se trata de construes tericas nos estudos sobre o vivo, ele sustenta, um modelo nada mais do que sua funo22. Apresentar o que o autoriza a constatar essa singularidade das cincias da vida, a primazia outorgada funo em detrimento da forma, implica aludir ao momento-chave em que a individualidade biolgica ganha estatuto cientfico dentro da histria da anatomo-fisiologia. Trata-se do momento em que Claude Bernard fundamenta a noo de regulao

    orgnica, importada de um modelo poltico de sociedade, para redefinir a compreenso da individualidade biolgica. Essa especificidade da individualidade se explica mesmo nas partes, totalidades indecomponveis vivendo dentro do organismo vivo como se vidas autnomas fossem. Encontra-se a latente, pensamos, a convenincia e a importncia da definio da funo de regulao orgnica, inclusive para anlise da operao de transferncia funcional entre modelos.

    verdade que no h ineditismo na ocorrncia de discursos cientficos que excedem seu campo terico original ao adentrar saberes laterais, seja alterados em seu contedo seja aderentes, ainda, aos mesmos. So plurais os casos que o exemplificam. Anteriores fundao da ideia fisiolgica de regulao, apenas tratando-se de biologia, no foram poucos os modelos adaptados em mbito do saber poltico. A acepo de economia animal23, por exemplo: se Linn a veicula em seus Poltica Naturae e Oeconomia Naturae, no o faz sem imprimi-la da carga com a qual Lavoisier a tinha emprestado (o dispositivo de estabilizao mecnica do modelo de mquina animal, a mquina hidrulico-pneumtica que seria composio dos trs reguladores: respirao, transpirao, digesto) e Buffon expandido quantidade populacional, a partir da juno do mecanicismo subjacente ideia de mquina animal com o ideal naturalista de conservao e equilbrio

    Change. ed. by A.C. Crombie; Heinemann. London, 1963. Surge mais tarde na lngua francesa, em tudes dHistoire et de philosophie des sciences. 5. ed. rev. e aum. Paris: Vrin, 1983.

    22 CANGUILHEM, G. Models et analogies dans la dcouverte em biologie. In: tudes

    d'Histoire et de Philosophie des Sciences. Paris: Librarie Philosophique J. Vrin, 1968, p. 340. 23

    CANGUILHEM, G. conomie, Technologie et Physiologie: "La formation du concept de rgulation biologique aux XVIIIe et XIXe sicles". In : Idologie et rationalit dans lhistoire des sciences de la vie. Paris: Vrin, 2000.

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    da natureza, por sua vez herdeiro da medicina hipocrtica, sumria da qual a expresso vis medicatrix naturae faculdade vital compensatria e reorganizadora (natureza curativa) qual Cannon, recolhendo o conceito de milieu intrieur, atribuiu a inspirao para o desenvolvimento do conceito de homeostasis. Avanando ainda no mesmo exemplo, vis medicatrix naturae tanto a expresso que Stalh, influente Escola mdica de Montpellier (de tradio vitalista), descrevia enquanto autocracia da Natureza (autocratia naturae)24 como tambm a ideia que Malthus transformava em vis medicatrix res publicae25 em sua teoria de equilbrio das populaes. Na seo Economie, Technologie et Physiologie do artigo intitulado La formation du concept de rgulation biologique aux XVIIIe et XIXe sicles26, Canguilhem aponta para o fato de que, quando as teorias econmicas liberais e as teorias econmico-polticas socialistas consolidaram-se no sculo XIX, nutriram-se da ideia da diviso fisiolgica de trabalho. Em seguida, a teoria celular consignava a vida social das clulas, Ernst Haeckel utilizava os termos repblica das clulas e Estado celular e Claude Bernard introduzia anlises comparativas entre a vida em liberdade das clulas com sua vida social.

    Mas dessa profuso de transferncias destacam-se observaes mais pontuais. Constatado isso seja na aplicao tecnolgica, na formulao de mecanismos decisrios, na legitimao de prticas econmicas, na mistificao e tipologia do poder, no so escassos os casos em que se encontram conceitos originrios da biologia na prtica do saber poltico o que, sem dvidas, no implica em excluir a veracidade da recproca. Porm, vem evidncia que os casos em que uma teoria poltica domina uma filosofia biolgica27 parecem ser menos caros Canguilhem do que a ocorrncia do caminho inverso, que possibilita encontrar, em uso por determinada teoria vigente na esteira das cincias da vida, modelos polticos. Ao longo dos anos, Canguilhem volta-se muitas vezes s teorias vitalistas, ao evolucionismo, gentica, casos diversos em que a biologia justificao para a poltica, em que h parasitismo, converso interessada ou casos de transplante

    24 CANGUILHEM, G. A ideia de natureza na medicina contempornea. In: Escritos sobre a

    Medicina. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 19. 25

    MALTHUS, R. Essai sur le principe de population (1798). Paris: Seghers, 1963. 26

    CANGUILHEM, G. "La formation du concept de rgulation biologique aux XVIIIe et XIXe sicles". In: Idologie et rationalit dans lhistoire des sciences de la vie. Paris: Vrin, 2000. 27

    CANGUILHEM, G. A Teoria Celular. In: O Conhecimento da Vida. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 70.

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    de conceitos biolgicos para o terreno da poltica28. Isto , a troca informacional entre o saber interessado na organizao scio-poltica e o saber cientfico acerca do organismo mantm-se presente no cerne de trabalhos de Canguilhem ao longo de toda sua obra, dos anos 20 at os anos 80 do sculo XX. O uso de modelos, para Canguilhem, um fato entre os saberes. No entanto, seu mtodo de tra-los, fazendo sobressair a filiao dos conceitos, ao invs da sucesso de teorias, jamais foi esquematizado ou transformado em sistema, de modo que s podemos apreend-lo no acompanhamento de sua prtica.

    Cumpre, por fim, salientar a seguinte singularidade acerca da obra: se se deseja tambm abordar a filosofia canguilhemeana da normatividade em suas bases funcionais, faz-se preciso esclarecer suficientemente o fato de que, antes de sustentar um interesse pelas normas em si, por sua aplicao ou legitimidade, Canguilhem interessa-se pelo poder instituinte das normas em seu carter originrio, isto , pela origem biolgica da constituio de tcnicas expressas junto a modelos de racionalidade, pela anterioridade vital da faculdade normativa. H relevncia em sublinhar a anterioridade do pensamento do vital, em Canguilhem, com relao ao pensamento do poltico, mesmo que modelos polticos sejam pensados com anterioridade em relao aos modelos biolgicos, em suas anlises (como o caso do modelo regulatrio). Dessa forma, parece-nos legtimo entrecruzar assim os traos essenciais de seu trabalho filosfico: de um lado, a direo de modelos polticos s cincias da vida; de outro, e indo mais longe, a origem vital das normas sociais. Ademais, ser necessrio, como veremos adiante, sublinhar o papel da tcnica (tanto a tecnologia da agncia direta quanto a do frmaco e a do terapeuta, por exemplo), um papel de prolongamento de rgos biolgicos sem a explicitao do qual no estaria completa a abordagem da filosofia canguilhemeana acerca dos aspectos interdependentes do domnio biolgico e de estruturas scio-polticas.

    Tomado em conjunto e a ttulo introdutrio, pode-se dizer que isto o que Canguilhem estabelece enquanto escopo para anlises filosficas. So teorias, conceitos ou noes atravs dos quais o domnio cientfico comunica com o social e com o poltico. Comunicao essa que, no limite, identifica-se com a anlise de informaes provenientes

    28 CANGUILHEM, G. Aspectos do Vitalismo. In: O Conhecimento da Vida. Forense, 2011, p.

    102-103.

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    da investigao do tema do vital e, por suposto, do tecnolgico. A vida enquanto perspectiva primeira ocasiona a especificidade da reflexo canguilhemeana, furtando-a de cair em antropomorfizao no debate acerca do normativo, como faria caso partisse de uma preconcepo de coletividade da espcie humana ao invs de tomar como incio fatos da individualidade biolgica e suas definies formais. , por exemplo, a partir da vida de qualquer espcie, enquanto faculdade e exerccio normativos, que a teoria social pode extrair o dado, do qual o problema, do modelo funcional de regulao.

    *

    O objetivo geral deste trabalho ser o de rastreamento de alguns pontos significativos da troca informacional entre o modelo fisiolgico de organismo e concepes de organizao poltico-social enquanto interagentes na produo de saber acerca do vivo, a partir de uma interpretao particular da filosofia canguilhemeana. Particularmente, tentaremos demonstrar que a filosofia de Canguilhem no se restringe ao ramo da histria das cincias, mas se apresenta tambm, se no como um esboo de teoria poltica, no mnimo enquanto matria prima para que dela sejam extrados os componentes de um mtodo de atuao da filosofia que no a restrinja aproximao sobre um saber isolado dos demais, mas sim que possa adquirir uma espcie de atuao crtica sobre a relao entre mais de um domnio da racionalidade. No caso presente, pelo vis de nosso interesse prprio e por serem eles justamente os campos mais explorados pela obra de Canguilhem, ganhar relevo a relao entre saberes mdico-biolgicos e saberes poltico-sociais. Especificamente devido carcaterstica fundamental da obra canguilhemeana, isso ser retratado a partir da noo de vida, que engendra, por sua vez, certa noo de tcnica.

    A presente dissertao nasce do encontro entre uma necessidade prtica, relativa ao exerccio ou estudo da filosofia, com a descoberta, a partir da pesquisa sobre a obra de Canguilhem, de uma possvel metodologia para pensar a produo de saber a partir da relao de mbitos delimitados. Esperamos conseguir mostrar, com ela, que dos escritos de Canguilhem possvel extrair as bases de um modo de fazer filosofia e pensar a poltica e a cincia a partir da ideia de vida e das formulaes de modelos utilizados para compreend-la, em nveis plurais.

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    O modo de pensar os modelos, a troca informacional entre eles, est presente na obra de Canguilhem no enquanto mtodo mas enquanto exerccio. Pensar uma origem canguilhemeana de inteleco do enredamento entre tcnica, poltica, e cincias da vida, implica, portanto, em acompanhar seu raciocnio e demonstrar de que maneira suas anlises resultam em grmen de um mtodo. Modelo no aparecer em sua obra com o sentido de um molde padronizador, mas como via de comunicao. O vital, por sua vez, adquire papel de conceito operatrio principal, com o qual se passa de um setor a outro, atravs da ideia que o fundamenta: a normatividade. Se a questo metodolgica em

    Canguilhem exige ser buscada no exerccio de sua prtica filosfica e no em determinado conjunto de regras que ele porventura poderia ter hierarquizado em forma de sistema, isso de modo nenhum torna menos evidente sua considerao de mbitos diferentes do saber enquanto partes interagentes, que especificam-se e mantm-se em estado de cmbio conceitual constante.

    No Captulo I, propomo-nos interrogar a comparao entre o modelo anatmico de organismo fundamentado na noo de consenso das partes e o modelo de organizao scio-poltica positivista do sculo XIX, a partir de textos de Canguilhem. So levantadas as questes da finalidade, da integrao, da continuidade. Ao rechaar a noo de consensus comteana em sua aplicao ao pensamento da sociedade, Canguilhem adotar uma concepo de convergncia de normas enquanto ideal de organizao e fundamentar a ideia de um problema relativo compatibilidade das normas sociais, problema este que ele chama de sem soluo. Pela via estrutural, Canguilhem rejeitar a assimilao do corpo social ao organismo vivo, visto que a organizao enquanto coeso absoluta das partes s hbil a represent-lo ao solapar a convergncia das normas a um princpio metafsico ou teolgico de solidariedade ideal das partes, supondo que todos os membros da sociedade confiem contratualmente ao poder de governo o suprimento de suas necessidades internas.

    No Captulo II, intencionamos apresentar o modelo fisiolgico de organismo, isto , o modelo regulatrio proposto por Claude Bernard. A sociedade do final do sculo XX e incio do sculo XXI apresenta caractersticas que j tm sido definidas pelo paradigma da regulao. De teorias da regulao em economia modelos de Estado Regulador, v-se uma nova leva de organicismo social, porm com a seguinte diferena: dessa vez, a

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    comparao no se d por analogia, e sim por homologia. A autorregulao pelo interior, seja no organismo ou na sociedade, aparece na obra de Canguilhem corroborada pelas noes de potencial normativo e pela formulao de uma teoria biolgica da tcnica, em que rgos e aparelhos de regulao so como extenses de funes vitais. Apresentaremos a ideia de rgos sociais como prolongamento da vida e no da racionalidade.

    O trabalho, ento, perseguir um duplo objetivo. De uma parte, procurar, nos captulos que descrevemos, mostrar a troca informacional entre o saber mdico-biolgico

    do corpo vivo e o saber poltico-econmico do corpo social. Mas, de outra parte, procurar mostrar o carater metodolgico da obra de Canguilhem usando seus textos para percorrer este exemplo. Em resumo, pretendemos mostrar que a abordagem filosfica da troca de informaes entre modelos servente ao objetivo de pensar uma filosofia do cruzamento entre filosofia da cincia e filosofia da poltica em sua interao conceitual. Se se necessita uma classificao para tal modo de exerccio da filosofia, o caso da obra de Georges Canguilhem, que percorre esse caminho, um bom exemplo de permisso a simplesmente classific-la enquanto filosofia da vida.

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    CAPTULO I

    Organizao e Consenso um modelo e um problema concernentes constituio vital.

    Il est impossible de crer un corps pour une fin sans lui donner une organisation, des formes et des lois propres lui faire remplir les fonctions auxquelles on a voulu le destiner. Cest ce quon appelle la constitution de ce corps. Il est vident quil ne peut pas exister sans elle. Il lest donc aussi que tout gouvernement commis doit avoir sa constitution et ce qui est vrai du gouvernement en gnral lest aussi de toutes les parties qui le composent. Ainsi le corps des reprsentants, qui est confi le pouvoir lgislatif ou lexercice de la volont commune, nexiste quavec la manire dtre que la nation a voulu lui donner. Il nest rien sans ses formes constitutives il nagit, il ne se dirige, il ne commande que par elles. cette ncessit dorganiser le corps du gouvernement, si on veut quil existe ou quil agisse, il faut ajouter lintrt qua la nation ce que le pouvoir public dlgu ne puisse jamais devenir nuisible ses commettants. [...] Ces lois [constitutionnelles] sont dites fondamentales, non pas en ce sens quelles puissent devenir indpendantes de la volont nationale, mais parce que les corps qui existent et agissent par elles ne peuvent point y toucher. Dans chaque partie la constitution nest pas louvrage du pouvoir constitu, mais du pouvoir constituant.29

    29 SIYES, Emmanuel Joseph. Qu'est-ce que le Tiers-tat ? Prcd de l'Essai sur les privilges.

    Paris: Alexandre Correard, Libraire, 1822 (1788), p. 52-3.

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    I.1. Fisiologia social, fsica social, poltica biolgica

    I.1.1. Regularidades normativas do sculo XIX francs

    Os avanos desempenhados no mbito das cincias naturais forneceram histria do sculo XIX contribuies abrangentes. Estabelecido como escopo o perodo entre os limites de duas datas, restringindo-nos a Frana, podemos pontuar alguns registros desses avanos. Como data incial: o ano de postulao cientfica do termo biologia, marco que ocorre pelas mos de J.-B. Lamarck (1744-1829) em 180230; como data final: 1878, este que foi no apenas o ano de falecimento de Claude Bernard (18131878), mas tambm aquele em que, ministrando a disciplina de Fisiologia criada para ele no Collge de France em 1872, menciona pela primeira vez o termo regulao com conotao relacionada s secrees do chamado milieu intrieur, termo remetente a certa ao autnoma de declinao homeosttica31. Intermedeiam essas duas datas momentos-chave no itinerrio das cincias da vida, tais como a descoberta, operada por Louis Pasteur (1822-1895) em 1863, dos micrbios enquanto agentes patognicos - abrindo as portas, inclusive, das aes polticas higienistas que se dariam sob a gide da bacteriologia -; a formulao dos mtodos anatomo-comparativos como ferramenta de classificao taxonmica das espcies, elaborada por Georges Cuvier (1769-1832), mtodo que influenciaria fortemente a biologia das espcies, sob o signo de Charles Darwin (1809-1882) e sua principal obra, publicada em 1859; as leis da hereditariedade apresentadas por Gregor Mendel (1822-1884) no ano de 1865; o recebimento e aproveitamento, por Claude Bernard, do impacto da patologia celular - desenvolvida por aquele que fora tambm autor do termo Epidemiologia Social, o alemo Rudolf Virchow (1821-1902) sendo-lhe doravante

    30 Surge primeiro em Hydrogologie (1802). Depois, no prefcio de Philosophie Zoologique

    (1809), e em seus Recherches sur lorganisation des corps vivants e Philosophie Zoologique. 31

    BERNARD, C. Leons sur le diabte et la glycogense animale. Paris: Baillire, 1877.

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    possvel fazer a descoberta da funo glicognica do fgado em 1853, sem o que, alis, o termo regulao, com a conotao mencionada supra, talvez no tivesse tido os meios para que pudesse ter sido cunhado.

    Levando em considerao a exigncia bachelardiana de incluso da considerao do erro no pensamento filosfico sobre a cincia, frequentemente retomada e aplicada por Canguilhem, que afirmava: a histria de uma cincia falharia sem dvida o seu objetivo se no conseguisse representar a sucesso de tentativas, impasses e recomeos que teve por efeito a constituio daquilo que essa cincia considera atualmente como sendo o seu

    objeto prprio32, os atalhos e desvios no devem ser aqui menos destacveis que os avanos. At que Pierre Flourens (1794-1867) refutasse as teorias frenologistas, fazendo da prtica da ablao de partes do crebro de pombos a base emprica para justificar uma viso contrria ao locacionismo cerebral, a frenologia do alemo Franz Joseph Gall (1758-1828) vigorava no pensamento mdico-biolgico francs. Outro caso a noo ideolgica de eugenismo, defendida em 1882 pelo ingls Francis Galton (1822-1911), que desembocaria no alastramento das ideias de higiene racial, somadas, na Frana, com a preocupao bacteriolgica ocasionada pelas descobertas do j mencionado Louis Pasteur. No menos patentes foram as influncias do darwinismo social sobre mais de um ramo das cincias da vida. importante notar que todos esses so casos que no se limitam neurologia, gentica, ou qualquer um discurso interior ao mbito cientfico que se pudesse forosamente sitiar. So casos que, ainda que de assalto ao conhecimento cientfico33, obtiveram efeitos fora do mbito de seu surgimento e ainda extratericos, a partir das polmicas polticas geradas por eles. Uma ligeira impresso de que os erros cientficos tm mais efeitos sociais do que os acertos no deve enganar a percepo filosfica. Mais ou menos evidentes em prticas polticas, seria necessrio manter a ateno e assim gostaramos de fazer com o pano de fundo deste trabalho - para o fato de que, do sculo XIX francs ao tempo presente supranacional, ao estarmos diante de trocas e influncias entre cincia (em particular as cincias de estudo do vivo) e poltica, sejam elas calcadas em valores negativos ou positivos, poderamos bem classific-las entre

    32 CANGUILHEM, G. "O problema da normalidade na histria do pensamento biolgico.In:

    Idologie et rationalit dans lhistoire des sciences de la vie. Paris: Vrin, 2000, p. 108. 33

    Canguilhem utilizava o termo evico" para designar as ideologias cientficas, querendo dizer o ato de desapropriar sem, no entanto, ocupar o mesmo local.

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    estveis ou em condio de crescimento, mas de modo nenhum poderamos afirm-las como sendo inexistentes.

    Alm dos erros ou apropriaes ideolgicas, as condies materiais so para Canguilhem, mais do que eram para Bachelard, fundamentais para compreender o funcionamento dos racionalismos regionais em suas interdependncias. Canguilhem, que frequentemente demonstrava valorizar o ato de conceber o conhecimento como uma operao e no mais como uma contemplao, apagar a fronteira de dignidade que separava a teoria da prtica34, nunca deixou de sublinhar como questes elementares de estrutura de pesquisa, como o uso do microscpio por exemplo (determinante na relao de aceitao ou rejeio da teoria celular), estava to em comunicao com o terreno poltico quanto os erros que acabamos de destacar. Em seu surgimento, menos problematizada que o microscpio, a tcnica da vivissecao de animais no ser menos determinante para descobertas de rgos fundamentais ao desenvolvimento da endocrinologia. O sculo XIX permeado de momentos em que um conjunto de desenvolvimentos pertinentes s cincias da vida se converte em temas s cincias polticas e sociais e derivam em aes prticas e repercutem em discusses tico-pragmticas. Para aqum disso, no entanto, pode-se apenas recuar ao fato de que essas descobertas recobrem, no modo como se d sua constituio conceitual, seja ela polmica ou indiscutida, uma inegvel troca informacional. Entre saberes de reas divergentes do conhecimento em constituio, ocorre um contato sem aparente mediao, que levanta a necessidade de esclarecimento dessa influncia mtua entre saberes mdico-biolgicos e poltico-sociais j quando de seus momentos de irrupo.

    Se h troca, nada interdita suspeitar que h tambm um dispositivo a permitir o transporte de informao. Que este no dependa de uma interpretao terica posterior a sua atuao, fundamentada em anlises comparativas, para funcionar e se fazer exposto, deve levar ao questionamento de que tipo de dispositivo seria esse. Pois assim como existem casos de converso interessada de uma teoria biolgica em teoria sociolgica de interesses polticos, outras vezes, bem ao contrrio, percebe-se que essas migraes

    34 CANGUILHEM, G. O homem de Veslio no mundo de Coprnico. In: Estudos de histria e

    de filosofia das cincias concernentes aos vivos e vida. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2012, p. 25.

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    ocorrem (como o caso da palavra constituio ou mesmo mquina) como que simultaneamente. O dispositivo que permite sua importao e exportao aparentemente sem paradas alfandegrias, encontra-se na utilizao de modelos, que vai antes mesmo de que os conceitos passsem a endossar uma transformao relacional, ou de que as compatibilidades categoriais passem a transformar-se de dentro de seu sentido. No entanto, se funciona como um espao de livre comrcio, a moeda no comum. H desvalorizaes e sobrevalorizaes adicionadas aos conceitos-chave dos modelos, assim que eles passam a ser usados em domnios que no os originais.

    Para compreender como podem ocorrer transferncias mesmo quando no h um propsito ou conscincia explcitos de faz-lo, julgamos crucial apreender que h um carter especfico para o que queremos dizer com o termo informao, neste caso: , justamente, que ela seja usada antes de ser detalhada. O que precede esse conceito de informao um modelo da Gentica, pois a ele vai aliada a ideia de que o cdigo contido no gene, transportado contendo informao, cuja manifestao ainda no se deu no fentipo, e que justamente por essa razo tem vrias chances, um quadro de probabilidade aumentado na hora de ser transcrito. Isto , a ideia de que um gene pode produzir mltiplas protenas, dependendo de um processo de regulao de cujo detalhamento funcional no entraremos no mrito de descrever. Como afirmava Canguilhem, um modelo ganha valor quando se empobrece. Em Models et analogies dans la dcouverte en biologie35, lembrado o fato de que, em matemtica, usar um modelo colocar em correspondncia termos com conservao de relaes. Contudo, em biologia36 no ocorre a conservao de relaes: o modelo no estruturalmente conservado enquanto tal. Quando fora do domnio inicial de sua verificao, os conceitos de um modelo entram em novas relaes, ligando-se aos termos da nova rea do saber na qual adentra. Se modelos aqui devem ser entendidos no enquanto figuras mas enquanto veculos porque a informao passada no nem pronta nem unvoca, mas sim um pattern de cuja pobreza de certificao de mensagem clara e pura pode ser extrada a riqueza de possibilitar novos usos. Ecoa aqui a teoria de Henri Atlan, segundo a qual o rudo amplia a informao, pois fraciona a pretensa

    35 CANGUILHEM, G. Modelos e analogias na descoberta em biologia. In: Estudos de histria e

    de filosofia das cincias concernentes aos vivos e vida. Rio de Janeiro: Forense Universitria. 2012.

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    equalizao entre um local de sada e outro local de entrada, gerando assim mais possibilidades de transformao da informao. , evidentemente, uma noo quantitativa, e no qualitativa de pobreza, que figura na frase de Canguilhem como na concepo de Atlan. O que importa compreender que a informao contida num modelo no a mesma contida na teoria da qual ele foi retirado, mas sim uma informao que, sendo por excelncia prvia a sua manifestao, comporta possibilidades latentes de ser expressa.

    Acima, dissemos um dispositivo a permitir a troca de informao, mas no dissemos a ocasionar tal cmbio. O que ocasiona, ou pelo menos fomenta fortemente, essa troca entre os domnios do saber? Podemos pensar que o que alimenta, incita ou ocasiona a troca especfica entre biocincias e cincias polticas seja um certo nmero de problemas em comum. Talvez isso fique claro se voltarmos ao sculo que Canguilhem tratou no maior nmero de pginas nos tudes d'Histoire et de Philosophie des Sciences e acerca do qual iniciamos o presente texto, para dele extrair um exemplo significativo. Em se tratando do sculo em questo, bastante evidente que a troca informacional entre esses campos tenha radicado no assunto da organizao, da arregimentao social, do ajustamento de sua ordem, demonstrado da economia poltica s cincias naturais. Mas compreende-se sem ter vista grandes empecilhos o carter sintomtico dessa escolha temtica, havendo ente as reas certo nmeros de problemas em comum que se aglomeram sobre o tema da organizao.

    De incio, bastar recordar o pano de fundo da Frana nesse perodo para compreender o que guia suas problematizaes. At adentrar o perodo de Terceira Repblica, sendo este o nico regime iniciado no sculo XIX que alcana vigncia mais longa - comea com o fim da Guerra Franco-Prussiana, em 1870, e tem fim junto ao incio da Segunda Guerra, em 1940 -, o territrio francs conhece uma sequncia de curtos implementos de diferentes regimes entre o ano de 1814 e o ano de 1871: Restaurao, 1815-1830; Monarquia de Julho, 1830-1848; Segunda Repblica, 1848-1851; Segundo Imprio, 1852-1870. Alm de pelo menos trs situaes de revoluo Revolues de 30, de 48 e de 71. uma paisagem que agrava e fortalece o tom propositivo no debate poltico, e igualmente o estmulo mais evidente para a proliferao de programas de reorganizao social. O debate geral incidia sobre problemas especficos, levados em conta projetos gerais para a sociedade, de fundamentao filosfica.

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    Convm fazer duas observaes iniciais para clarificar o que fundamenta e qual a natureza desses debates prospectivos. Em primeiro lugar, vale ressaltar que esse tumultuoso perodo uma poca em que a problemtica da organizao social, do ajuste entre poltica e sociedade, na Frana, praticamente se confundia com a ideia de socialismo que ento era emergente. hoje j bem propagada a frase de Vladimir Lenin que apontava para as trs fontes de uma das teorias polticas mais influentes da modernindade - ele dizia que suas fontes, as fontes do marxismo, eram a filosofia alem, a economia poltica inglesa e o socialismo francs37 -, mas muitas vezes no apresentado pela historiografia das

    ideias do sculo XIX o quanto tal socialismo, em seu surgimento francs, podia muito bem se confundir e se confundia de fato, na amplitude das ideias liberais, com concepes conservadoras, e de todo modo, sem sombra de dvidas, com o positivismo. Auguste Comte dizia mesmo que "o socialismo o positivismo espontneo, e o positivismo constitui o socialismo sistemtico"38. O princpio do socialismo francs foi alicerado sobre uma mistura entre problemas da vida prtica e ambies universalistas, perfilando-se sob seu nome uma srie de teses polticas, s vezes to divergentes quanto possvel, voltadas preocupao com estratgias e programas de organizao. Tanto o positivismo quanto o socialismo sentiram-se gestionrios do mesmo esforo, de reorganizao da vida social, passando por reformulaes institucionais mais locais s reformas culturais no sentido mais vasto. Transpuseram sua operacionalidade terica sobre necessidades sentidas na prtica, sendo assim indicativos das preocupaes gerais da sociedade da poca.

    Em segundo lugar, em marcha na Frana desde os primeiros anos do sculo, a problemtica social passou a ser tambm, e de maneira relevante, temtica de discusso mdica. A comear pelas discusses entre os sanitaristas, considerados homens polticos, ocupando na maioria dos casos cargos pblicos, como de senadores, em algum momento de suas vidas. Seria exagero afirmar que exerceram papel poltico simplesmente por serem mdicos, mas no seria exagero perceber sua participao poltica como ligada ao fato de o Estado adquirir papel mdico no sem razo que tantas vezes se qualificou o sculo

    37 Cf. LENIN, V. As trs fontes do marxismo. In: Obras Completas de V.I. Lnine, t.23, pp. 40-

    48. 38

    COMTE, A. "Lettre Pierre Laffitte: 13 aot 1849". In : Correspondance indite d'Auguste Comte (deuxime srie). Paris: Au Sige de la Socit positiviste, 1903, p. 43. Disponvel online em: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k66412r.

  • 32

    XIX como o sculo do higienismo. Como afirma a observao de Canguilhem em Le statut pistmologique de la mdecine39, foi o sculo em que a situao socioeconmica de um doente singular e sua repercusso vivida entram no quadro dos dados que o mdico deve levar em conta, e que, pelo vis das exigncias polticas da higiene pblica, a medicina vai conhecer a passagem do conceito de sade ao de salubridade ao de seguridade: deriva semntica [que] recobre uma transformao do ato mdico40. Se a ligao dos avanos materiais com os avanos morais, a procura dos meios para o progresso sem seu sentido abrangente e totalizador, so notadamente os moldes do

    republicanismo francs, isso algo que se presentifica tambm nas pautas mdicas que conduzem os pensadores oitocentistas procura da forma mais correta, mais saudvel possvel de organizao social. De um lado, o prprio positivismo, por exemplo, apresenta-se como um programa de reorganizao, tratando-se, em seu incio, de um programa sociolgico com pretenso normativo-cientfica. De outro lado, se pairava a ideia de controle atento do andamento da ordem social, pairava concomitante a ideia de cura, legada ideia de doenas sociais. O mal social era representado nos moldes da desordem orgnica. A desordem no coletivo era equiparada enfermidade e ganhava metforas de corpo doente, com seus devidos perturbadores da sade social, replicando concepes, por exemplo, que ainda hoje servem imunologia, como veremos adiante. De todo modo, as patologias sociais marcam tambm a importncia das definies de organizao da sociedade.

    Pode-se ter por bvio que o tema da organizao mobiliza modelos que transitam entre cincias do organismo vivo e da sociedade; nesse caso, o sculo XIX apenas pode intensificar tal observao. poca, o esquema dirigente de certa concepo integralista da noo de organizao no habitou, repetidamente como problemtica central, somente obras de biologia, de fisiologia, de economia, de sociologia, mas tambm a dicusso pblica e leiga. Canguilhem chamou esse tipo repetitivo de um padro de problemtica, para no dizer paradigmas, retificou, regularidades enunciativas de uma poca41,

    39 CANGUILHEM, G. "Le statut pistmologique de la mdecine". In: tudes d'Histoire et de

    Philosophie des Sciences. Paris: Librarie Philosophique J. Vrin, 1968, p. 15-29. 40

    Ibid., p. 463. 41

    CANGUILHEM, G. "La formation du concept de rgulation biologique aux XVIIIe et XIXe sicles". In: Idologie et rationalit dans lhistoire des sciences de la vie. Paris: Vrin, 2000, p.78.

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    fazendo aluso a Michel Foucault como autor desse termo. Termo que abriga certamente a possibilidade de coadunar-se com aquele de ideologias cientficas, cunhado por Canguilhem, e tambm com obstculo epistemolgico, termo de Gaston Bachelard. Mas o que nos interessa que essas regularidades enunciativas e, no limite, normativas, tem o papel enzimtico de atuarem como catalizadores, facilitadores do intercmbio informacional entre modelos do qual falamos, entre reas cuja divergncia entre si torne mais ou menos compatvel seus modos de comunicao; demonstrando, assim, que a polaridade do conceito de ideologia cientfica, como de obstculo epistemolgico, est em

    ser fator limitador e possibilitador, a um s tempo. Com efeito, at o incio do sculo XIX, no apenas os autores naturalistas, os mdicos vitalistas ou mecanicistas, cada um segundo a sua perspectiva, fizeram da organizao um problema com termos polticos, mas antes disso e muitas vezes, aderindo ao mesmo tempo ao pensamento que conclui do organismo sociedade42.

    O caso do Cours de Philosophie Positive, redigido entre 1829 e 1842, onde Auguste Comte (1798-1857) promulga a srie de caractersticas que procederiam uniformemente para implementao de uma poltica social positiva em uma sociedade cientfica, talvez seja um dos exemplos que mais evidencie o cruzamento entre o estudo da vida e do social a vigorar no primeiro tero do sculo XIX francs. Consideraremos todo este perodo, anterior dcada de 70, como sendo marcado pela medicina pr-fisiolgica, tendo ele precedido as descobertas de Claude Bernard, que modificariam o modelo de organismo vivo. Neste perodo, a ordem social figura como subjacente e fundamental para inteleco da ordem poltico-administrativa e industrial. E esta ordem social que ser intensamente relacionada com o modelo de organismo estruturalmente integrado, designado pelo conceito de organizao, tal qual ele considerado por Auguste Comte.

    No sem razo que organizao e diviso social do trabalho se unem no termo vida, naquele que influenciou Comte em primeiro lugar e que fora o primeiro a cunhar o termo socialismo na Frana. A sntese do pensamento do socialista Saint-Simon (1760-1825) se d a conhecer na obra publicada em 1814 junto ao seu aluno, Augustin Thierry,

    42 CANGUILHEM, G. "Aspectos do Vitalismo". In: O Conhecimento da Vida. Rio de Janeiro:

    Forense Universitria, 2001, p. 102.

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    com o longo ttulo: De la rorganisation de la socit europenne, Ou de la ncessit et des moyens de rassembler les peuples de l'Europe en un seul corps politique en conservant chacun son indpendance nationale. Nas primeiras pginas do livro, o pensador da Revoluo Industrial e entusiasta dos poderes progressistas do saber cientfico e tcnico deixa claro que sua ideia de progresso sempre foi bem menos ligada ao teor revolucionrio do que consigna de manuteno da ordem: a filosofia do sculo passado foi revolucionria, a do sculo dezenove deve ser organizadora43. Influncia maior de Comte, o av utpico do socialismo e do cientificismo positivista falava em Fisiologia Social, ttulo, inclusive, dado a uma compilao de opsculos seus publicados entre 1803 a 1825 com introduo e notas do socilogo Georges Gurvitch. Dentro desta obra est seu primeiro texto publicado, o ttulo O Organizador. Num pequeno texto de ttulo igual ao ttulo da compilao, o modelo da mquina organizada, individual e social, faz-se expresso com as seguintes palavras:

    A fisiologia portanto a cincia, no somente da vida individual, mas tambm da vida geral, contexto no qual a vida dos indivduos no passa de engrenagem. Em toda mquina, a perfeio do resultado depende da manuteno da harmonia primitiva estabelecida entre todas as molas que a compem; cada uma delas deve necessariamente fornecer seu contingente de ao e de reao; a desordem surge rapidamente quando as causas perturbadoras aumentam viciosamente a atividade de umas s custas da atividade de outras.44

    A perspectiva de Saint-Simon se v reelaborada na obra de Comte, que por sua vez influenciaria grandemente tanto cientistas e filsofos quanto polticos. Como Canguilhem sublinha em diversos momentos de sua obra, no poucos foram os mdicos influenciados por Comte, em geral devido a influncia intermediria de mile Littr (1801-1881). Mas alguns fatos institucionais, tanto quanto os conceituais, demonstram nitidamente as ligaes entre cincias da vida e poltica que passam pela obra de Comte. Sabendo que

    43 SAINT-SIMON, C-H. De la rorganisation de la socit europenne, ou De la ncessit et des

    moyens de rassembler les peuples de l'Europe en un seul corps politique en conservant chacun son indpendance nationale. Disponvel online em: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k83331f. 44

    SAINT-SIMON, -H. "La physiologie sociale". In: Oeuvres choisies (textos reunidos por G. Gurvitch). Paris: P.U.F., Collection Bibliothque de sociologie contemporaine, 1965, p. 8. Extratos de textos datando de 1803 1825.

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    Sociologia foi conceitualizada pela primeira vez por ele em 1832, lembremos que quando a Revoluo de 1848 ocorreu, no mesmo ano, a Socit de Biologie foi fundada pelos mdicos comteanos que intentavam estudar a disciplina de mesologia, estudo dos meios (exteriores) e suas influncias no corpo vivo individual. Em 1971-72, quando do trmino da experincia da Comuna Francesa, Littr e Charles Robin (1821-1885) fundam a primeira Socit de Sociologie francesa. Robin , alis, um bom exemplo de mdico e personalidade poltica em que a polivalncia comteana se faz presente em teoria e prtica. Se, em 1848, Charles Robin tinha proposto e j dirigia as atividades da Socit de Biologie, logo aps o perodo em que trabalhou como mdico do exrcito na guerra franco-prussiana, participa da fundao da Socit de Sociologie, e de 1876 a 1885, ocupa cargo de senador; nesse meio tempo, em 1862, lhe oferecida uma cadeira na Facult de Medecine de Paris onde ele ensina a disciplina de histologia, quatro anos antes de ser membro da seo de anatomia da Acadmie des Sciences.

    Em La philosophie biologique d'Auguste Comte et son influence en France au XIXe sicle45, Canguilhem afirma: no h na Frana, de 1848 a 1880, bilogo ou mdico que no tenha tratado, para situar sua pesquisa na cooperao ou choque de ideias, para se definir a si mesmo o sentido e alcance de seu trabalho, diretamente os temas da filosofia biolgica comteana, ou indiretamente a ela por temas que dela decorriam46. Embora tenham se distanciado por discordncias particulares acerca da religio positivista, a duradoura aproximao de Comte a Saint-Simon quanto aos fundamentos fisiolgicos do corpo social, a ligao da biocracia sociocracia permanece ao longo do tempo e ressoa nas teorias dos mdicos e polticos influenciados por Comte, que nunca deixaram de aproximar os conhecimentos das cincias biolgicas e mdicas daqueles das cincias polticas e sociolgicas. Como Saint-Simon, e como seus seguidores, a tentativa de Comte em unir biologia e sociologia com tanto acento justifica grande parte do interesse de Canguilhem em desenvolver teses crticas em referncia a ele, na construo de sua prpria filosofia da vida. Lembrando claramente o saint-simonismo e representando o pensamento tanto de socilogos como de fisiologistas que o sucederiam no encadeamento do

    45 CANGUILHEM, G. "La philosophie biologique d'Auguste Comte et son influence en France au

    XIXe sicle". In: Bulletin de la Socit Franaise de Philosophie, n spcial, 1958, p. 73. 46

    Ibid., p.70.

  • 36

    pensamento positivista, Comte, afinal, quem afirma, explicando a fundao do que denominou fsica social:

    Todos os seres vivos apresentam duas ordens de fenmenos essencialmente distintos, os relativos ao indivduo e os concernentes espcie, sobretudo quando esta socivel. principalmente em relao ao homem que esta distino fundamental. A ltima ordem de fenmenos evidentemente mais complicada e mais particular do que a primeira, depende dela sem a influenciar. Da duas grandes sees da fsica orgnica: a fisiologia propriamente dita e a fsica social, fundada na primeira.47

    Para Comte, a vida aparecia necessariamente como propriedade de um todo, como resultado imediato da integrao total das partes. Compreender como isso inserido em sua teoria social ser fundamental para entender como a noo de organizao a pedra de toque da comparao entre modelos polticos e fisiolgicos segundo muitos pensadores do sculo XIX. Na 49 lio do Cours, Comte defende que a biologia deve fornecer o ponto de partida necessrio do conjunto de especulaes sociais, da anlise fundamental da sociabilidade humana, das diversas "condies orgnicas que determinam seu carter prprio e irredutvel48. Se verdade que a sociologia, como j dissemos, surgiu em certa situao de confuso com teorias particulares, tambm fato, como disse Annie Petit, que "ao fim do sculo XIX, a sociologia tem um nome, mas sempre graves problemas de identidade49. Nesse sentido, interessante perceber como as noes biolgicas passaram informaes s noes sociais via ideias mdicas, particularmente pelos seguidores de Comte. Basta pensar no prprio mile Durkheim (1858-1917). "Comte permanece, para Durkheim por exemplo, uma referncia obrigatria e bem onerosa, como afirma Petit. O fundador de uma teoria de patologia social bem conhecida quem escreve, no terceiro captulo de sua obra As Regras do Mtodo Sociolgico50, que o dever do homem de Estado

    47 COMTE, A. Curso de Filosofia Positiva. So Paulo: Coleo Os Pensadores, Abril S. A.

    Cultural e Industrial, 1978, p. 32. 48

    COMTE, A. Curso de Filosofia Positiva. So Paulo: Coleo Os Pensadores, Abril S. A. Cultural e Industrial, 1978, p. 32. 49

    PETIT, A. "Comte et Littr: les dbats autour de la sociologie positiviste". In: Communications, 54, 1992. Les dbuts des sciences de l'homme. pp. 15-37. 50

    DURKHEIM, . Rgles de la mthode sociologique. Paris: Presses Universitaires de France, 1894. p. 59.

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    equivale quele exercido pelo mdico. Assim Durkheim observa, acerca do que concebe como papel mdico do Estado:

    No se trata mais de perseguir desesperadamente um fim que se afasta medida que avanamos, mas de trabalhar com uma regular perseverana para manter o estado normal, para restabelec-lo se for perturbado, para redescobrir suas condies se elas vierem a mudar. O dever do homem de Estado no mais impelir violentamente as sociedades para um ideal que lhe parece sedutor, mas seu papel o do mdico: ele previne a ecloso das doenas mediante uma boa higiene e, quando estas se manifestam, procura cur-las.51

    Sabendo que Comte orientava-se por uma ideia segundo a qual a natureza do progresso dependia da manuteno da ordem, podemos acrescentar que a ao de evitar a desordem, como aparece no mago das tentativas de pensar a repblica durante sculo XIX europeu, o germe daquilo que no sculo XX se consolidar como propriedade definidora do que vivo, a partir da lei de neguentropia ou entropia negativa, por emprstimos energticos do meio externo. Antiga, a ideia de autoconservao do organismo, herdeira do hipocratismo (teoria da cura espontnea gerenciada pela prria natureza em caso de desequilbrio: vis medicatrix naturae), foi renovada pelo vitalismo da Escola mdico-filosfica de Montpellier. Antes de explicarmos o seu desenvolvimento em maiores detalhes, pode-se j observar que o valor articulado sob o modelo de ordem como manuteno, conservao de uma determinada distribuio estrutural, resulta superior ao valor atribudo transformao.

    De modo que a racionalidade biolgica e a racionalidade de Estado encontram-se enfeixadas pela funo ordem/desordem. A noo de consenso na organizao, de integrao, de totalidade indivisvel. Alm de Durkheim, outro socilogo que permaneceu validando a comparao entre organismo e corpo social foi Herbert Spencer (1820-1903). Dando continuidade ideia de que a sociedade assemelha-se a um organismo vivo, Spencer afirmava:

    51 Ibid., p. 59.

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    Organizao em uma criatura individual somente possvel pela dependncia de cada parte no todo, e do todo em cada uma. Agora, isto obviamente verdadeiro tambm acerca da organizao social. Se ele [um membro de uma sociedade primitiva] produz armas em vez de continuar um caador, ele deve ser fornecido com o produto da caa na condio de que os caadores so fornecidos com as suas armas. Se ele se torna um cultivador do solo, no mais defendendo-se, ele deve ser defendido por aqueles que se tornaram defensores especializados. Ou seja, a dependncia mtua das partes essencial para o incio e o avano da organizao social, como para o incio e avano da organizao individual.52

    Spencer conclui: Mesmo se no houvesse mais a ser apontado, seria bastante claro que no estamos aqui lidando com uma semelhana figurativa, mas com um paralelismo fundamental em princpios de estrutura53. Mas preciso diferenciar organicismo social de organicismo. A palavra organicismo se confunde com mecanicismo, oriunda de uma discusso entre filosofias mdicas. Os vitalistas de Montpellier, que j mencionamos, e os mecanicistas ou organicistas de Paris, influenciados por Auguste Comte. Uma obra sobre o organicismo de Lon Rostan (1790-1866) demonstrativa desse organicismo54. Contra Lon Rostan, autor da teoria mdica dita organicismo, diz Canguilhem, os vitalistas defendiam a irredutibilidade do organismo, isto , rejeitamvam as teorias que pretenderiam reduz-lo s mesmas caractersticas dos objetos inertes. Um vitalista como mile Chauffard (1823-1879) assim apresentado por Canguilhem, no texto sobre Littr:

    Acontece ento em 1863 a lio inaugural do Cours de Pathologie gnrale de mile Chauffard, publicada em 1865 com o ttulo De la philosophie dite positive dans ses rapports avec la mdecine. Ele critica o positivismo, e portanto Littr, de ter desnaturado, pela necessidade que tinha sua defesa, o sentido comum do materialismo, levando-o a ser, na ordem do saber, uma negao da hierarquia qualitativa dos fenmenos, uma reduo do

    52 SPENCER, Hebert. The Study of Sociology. New York: D. Appleton, 1896. p. 303.

    53 Ibid., p. 304.

    54 ROSTAN, L. Exposition des principes de l'organicisme, prcde de Rflexions sur l'incrdulit

    en matire de mdecine, par Lon Rostan, XVI-271. Paris: Lab, 1846.

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    superior ao inferior. O positivismo , sobretudo, seja l o que ele disser, uma expresso pura do materialismo.55

    O prprio mile Chauffard explicava: essa concepo da vida no aceita ento nada que no seja um efeito da organizao. Ela no saberia reconhecer a existncia de propriedades vitais e de foras vitais que fizessem da causa, do princpio da organizao uma essncia e um princpio parte56. Ele toma emprestado do Exposition des principes de l organicisme, de Rostan, os termos para definir tal viso de organismo, dizendo ns resumiremos e no entanto citaremos textualmente esse importante exposto". Faremos o

    mesmo, a despeito de ser longo o trecho, porque tem fora de resumo mesmo muito eficaz.

    A vida nada mais que o conjunto, a srie das funes, mas as funes so dependentes dos rgos, pois no podem vir antes dos rgos, visto que um efeito no pode vir antes de sua causa. As funes so portanto apenas uma consequncia da disposio orgnica. Da mesma forma que a vida no pode vir antes da organizao, e resultado dessa organizao. A vida no passa de uma disposio orgnica necessria ao movimento. Ns recebemos essa disposio nascendo. A mquina ento montada e funciona at que seja alterada de maneira natural ou acidental. Quando um corpo organizado existe sem vida, porque a disposio orgnica necessria ao exerccio de suas funes passou por quaisquer distrbios. Assim sendo, a vida no um ser parte que existe por si s como a eletricidade, o calor, etc, que se sobrepe aos corpos organizados , que os impregna, os penetra, e finalmente os anima, ela nada mais que o resultado da estrutura molecular. Desde o primeiro instante da concepo, o embrio recebe com sua organizao a necessidade de sua evoluo posterior57.

    Ou seja, o preceito da organizao bastava para definir a vida, no sendo necessrio defender a existncia de uma fora vital metafisica da qual falavam os vitalistas para lhe dar sua especificidade com relao aos outros domnios da matria. Comte no podia admitir ideia de organismo obter uma explicao metafsica, mas precisava

    55 CHAUFFARD, P. E. De la philosophie dite positive dans ses rapports avec la mdecine. Paris:

    Chamerot-Leclerc, 1863, p. 19. Disponvel online em: http://gallica.bnf.fr/ark: /12148/bpt6k5426716n. 56

    CHAUFFARD, P.E. Principes de pathologie gnrale (1862). Paris: diteur Estem, 2006. 57

    Ibid.

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    diferenci-lo dos corpos fsicos em sua hierarquia das cincias. Mas nem por isso, pela ideia de consenso do organismo, como veremos, Comte equaliza organismo e sociedade. Como dissemos, no se pode confundir organicismo com organicismo social, pois organicismo do organismo no necessariamente implica em organicismo social importante a distino porque o chamado organicismo social marca dos seguidores de Comte, positivistas, mas no foi seguida por ele prprio.

    Sua ideia no condiz com o extremismo dos organicistas que, mais tarde, em 1893, arrogariam para si o dever de fundar o organicismo social. O nome que ento concentra as caractersticas organicistas e as amplia ao extremo Ren Worms (1869-1926). ele quem, nesta data, d a sociologia uma perspectiva explicitamente organicista, reunindo um grupo em torno de uma teoria em que a sociedade deve ser estudada por leis que explicam o organismo vivo. A teoria est resumida em Organisme et Societ, obra que o mesmo publica em 1896. Este momento vivido pelo fundador do Instituto Internacional de Sociologia e da Revue Sociologique Internationale, da qual fizeram parte Gabriel Tarde, Alfred Espinas, alm de nomes cujas obras so muito pouco exploradas no estudo da filosofia, como os de Jacques Novicow, Maxime Kovalewsky, e outros, ficou relegado ao posto de ltimo momento de organicismo terico explcito e extremo na histria da sociologia.

    A ltima dcada do sculo oitocentista marca portanto o apogeu, mas tambm o fim da aceitao, pela comunidade cientfica, do organicismo. Ultrapassada a dcada de noventa do sculo XIX, o sculo seguinte j no levou em frente a comparao equitativa de um e outro mbito ao nvel de isomorfia bem ao contrrio, a sociologia procurou esquivar-se do organicismo o mximo que lhe foi possvel. Embora o conceito de organizao no tenha sido, evidentemente, o nico a marcar o sculo, ele se expandiu a partir daquele perodo de modo insistente nas cincias da vida e segue como cerne da problemtica poltico-social em muitas de suas tematizaes. De fato, poder-se-ia dizer que o organicismo atravessou o sculo XX bem mais implcito na teoria e atuando mais no mbito da poltica real. O pice de tal atuao se deu no mbito estatal, com o nazismo pelo Estado alemo. No caso da explorao dos socilogos nazistas de conceitos biolgicos antimecanicistas, o problema das relaes entre o organismo e a sociedade, lembrava Canguilhem. Mas a preciso no confundir a direo das coisas. Em Aspects du

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    vitalisme58, Canguilhem afirma que certo que o caso de Driesch oferece a considerar um caso tpico de transplante do conceito biolgico de totalidade orgnica para o terreno poltico, mas seria o vitalismo ou o carter de Driesch o responsvel dessa justificao pseudocientfica do Fhrerprinzip? (...) Trata-se de biologia ou parasitismo da biologia?. Canguilhem resumiu de maneira taxativa: No se obrigado a alojar, na biologia, sob a forma de consequncias lojicamente inevitveis, a atitude que, por falta de carter e por falta de solidez filosfica, alguns filsofos adotaram59.

    O que est em questo para ns, neste trabalho, no a disponibilidade da classe mdica para formas de tanatopoltica60 e o vitalismo mortfero que vai a embutido, considerando inimigos da Vida ou do corpo biolgico da nao tanto degenerados quando soldados vindos do Leste Alemanha de Hitler, presente no s na situao hipostaziada da Alemanha nazista, como bem lembrou Esposito em seu Bios Biopoltica e Filosofia, da mesma forma que no questo para ns o papel dos psiquiatras no diagnstico de doena mental aos dissidentes na Unio Sovitica estalinista ou s vivisseces praticadas pelos mdicos japoneses nos prisioneiros americanos depois de Pearl Harbor61. Mas nos ateremos aqui s operaes mais simplrias da racionalidade, os limites que ela mesma delimita e que depois ela mesma excede, seja em seus domnios, passando de um para o outro, seja em suas regras internas, pertinentes a cada um e a todos. Como disse Canguilhem: O que est em questo, no caso da explorao pelos socilogos nazistas de conceitos biolgicos antimecanicistas - e, diramos ns, em todos estes outros casos - o problema das relaes entre o organismo e a sociedade. sobre ele que permanece, porque no se destrinchou e talvez no seja possvel faz-lo completamente, as aproximaes, s vezes metafricas s vezes com pretenso ontolgico-analgica, entre

    estrutura do organismo biolgico e estrutura de uma sociedade humana, organizada economica e polticamente. Do conceito de organizao resta o resduo fundamental a partir do qual a questo mencionada por Canguilhem com frequncia levantada desde dentro dos saberes atinentes sociologia, economia, poltica, biologia, medicina,

    58 CANGUILHEM, G. Aspectos do Vitalismo. In: O Conhecimento da Vida. Rio de Janeiro:

    Forense, 2011, p. 102-103. 59

    Ibid., p.103. 60

    ESPOSITO, Roberto. Bos: Biopoltica e filosofia. Lisboa: edies 70, 2010. 61

    Ibid., 163.

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    etc. Mas tambm, e com algum diferencial perspectivo, desde a filosofia, levando em considerao que ela prpria um domnio cuja diferena mais banal qual se pode de pronto apontar, com relao a outras esferas de conhecimento, a necessidade e busca mais explcita de interao com os demais domnios.

    I.1.2. O conceito de organizao entre organicismo e biosociologia

    A questo mencionada supra - considerando-a como o conjunto de suas variaes - encontra-se naquela colocada por Georges Canguilhem na conferncia de 1955, proferida comunidade israelita de Paris a convite de Pierre-Maxime Schuhl, de ttulo Le problme des rgulations dans lorganisme et dans la societ62. A ocasio foi palco para colocar em dvida a situao e a legitimidade da relao entre a noo de dinmica vital do organismo e de organizao social de concepes econmica e poltica, tal como essa relao particularmente promovida por concepes adesistas do organicismo social, tomado aqui em suas aplicaes de intenes cientficas ou de senso comum. Canguilhem comea por interrogar-se: a assimilao usual, ora cientfica, ora vulgar, da sociedade a um organismo mais do que uma metfora? Ser que essa assimilao recobre algum parentesco substancial?63. O que importa a Canguilhem seu uso justificatrio, isto , sua insero no discurso pblico para defesa de outras ideas que levam consigo, implc