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estudos semióticos

issn 1980-4016

semestral

vol. 6, no 1

p. 1 –9junho de 2010

www.fflch.usp.br/dl/semiotica/es

Sobre a teoria do valor em Saussure, Marx e Lacan

Maurício José d’Escragnolle Cardoso∗

Resumo: Este artigo reproduz a comunicação feita durante o III Seminário de Semiótica na USP, em outubro de2009, na qual tomamos por objeto as teorias do valor em Saussure, Marx e Lacan, com o objetivo de explicitarcertas homologias existentes entre elas. Com tal objetivo, partimos da consideração de que o princípio de baseque sustenta essas homologias concerne ao fato de os autores partilharem da mesma orientação epistemológica,que podemos chamar de “materialismo estrutural”, caracterizada pela recusa do realismo metafísico; esteúltimo, fruto da associação entre o realismo ontológico e o convencionalismo epistemológico. É nesse sentidoque propomos uma definição daquilo que consideramos ser o materialismo saussuriano, explicitado comomodelo-tipo exemplar dessa orientação epistemológica materialista e a partir da qual se torna possível situaras equivalências formais das teorias da forma-valor aqui tratadas. Desse modo, pretendemos mostrar que ostrês autores desenvolveram — cada um, obviamente, à sua maneira e em função das exigências específicas deseus respectivos campos disciplinares — uma mesma orientação teórica materialista acerca da teoria do valor.Para tanto, buscamos demonstrar, então, que cada um dos autores citados trata do mesmo tríplice problemaque consiste em: a) colocar em relevo uma teoria da forma-valor propriamente dita; b) dar conta da enigmáticanatureza da positividade do valor diferencial e c) propor um espaço heurístico que permita apresentar umconceito de sujeito adequado ao sistema de valores.

Palavras-chave: teoria do valor, Saussure, Marx, Lacan

Introdução

Este artigo reproduz a comunicação feita durante o IIISeminário de Semiótica na USP, em outubro de 2009,na qual tomamos por objeto as teorias do valor emSaussure, Marx e Lacan com o objetivo de explicitarcertas homologias existentes entre elas. Com tal ob-jetivo, partimos da consideração de que o princípiode base que sustenta essas homologias concerne aofato de os autores partilharem da mesma orientaçãoepistemológica que podemos chamar de “materialismoestrutural”, caracterizada pela recusa do realismo me-tafísico; este último, fruto da associação do realismoontológico com o convencionalismo epistemológico. Éneste sentido que propomos uma definição daquilo queconsideramos ser o materialismo saussuriano, expli-citado como modelo-tipo exemplar dessa orientaçãoepistemológica materialista e a partir do qual se tornapossível situar as equivalências formais das teorias daforma-valor aqui tratadas. Desse modo, pretendemosmostrar que os três autores desenvolveram — cada um,obviamente, à sua maneira e em função das exigênciasespecíficas de seus respectivos campos disciplinares

— uma mesma orientação teórica materialista acercada teoria do valor. Para tanto, buscaremos demons-trar, então, que cada um dos autores citados trata domesmo tríplice problema que consiste em: a) colocarem relevo uma teoria da forma-valor propriamente dita;b) dar conta da enigmática natureza da positividade dovalor diferencial e c) propor um espaço heurístico quepermita apresentar um conceito de sujeito adequadoao sistema de valores.

1. Materialismo saussuriano,materialismo tipo

Comecemos, então, por Saussure. A primeira caracte-rística daquilo que chamamos “materialismo estrutu-ral” saussuriano é a recusa do que Bachelard chamavade “dualismo metafísico” ou “realismo metafísico” (Le-court, 1978, p. 28). Essa perspectiva caracteriza-sefundamentalmente pela associação entre o realismoontológico e o convencionalismo epistemológico, ouseja, parte da postulação de um plano de realidadesubstancialmente independente do modo teórico deapreendê-lo e busca organizar tal relação — entre a rea-

∗ Universidade de São Paulo (usp). Endereço para correspondência: 〈 [email protected] 〉.

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lidade do objeto e seu método de abordagem — a partirde pares de oposição nos quais os elementos preexis-tem às relações que os entretêm. Podemos citar comoexemplo do dualismo metafísico as seguintes tradicio-nais oposições entre a metafísica e a episteme clássicas:real/pensamento, ser/consciência, razão/experiência,teoria/objeto, real/artificial, dado/construído etc. (Le-court, 1978, p. 28). Nesse sentido, o problema me-tafísico por excelência é saber como superar e cons-truir a adequação do pensamento ao Ser do ponto devista ontológico por um lado e, por outro, do dado àteoria do ponto de vista epistemológico. De tal pers-pectiva, deriva-se um preconceito teórico fundamentalque consiste na pressuposição do primado da subs-tância extrassimbólica; preconceito esse que, em suaexterioridade radical, resiste à expressão convencional.

É nesse sentido que a primeira objeção feita porSaussure à linguística de seu tempo se referia ao fatodesta ter adotado a perspectiva do convencionalismoclássico: para Saussure, uma teoria seria convencio-nal com respeito à realidade que ela busca descrever,da mesma maneira que a língua pode ser consideradaindependente dos objetos que busca designar. Nessecaso, tanto o modelo teórico quanto a língua seriamtratados como simples instrumentos de convenção,sem peso ontológico, visando à expressão de relaçõesabstraídas da experiência. Esse modelo criticado porSaussure se baseia em uma tradição que remonta aAristóteles com a sua ideia de que a língua é um sis-tema de representações taxionômicas que se sobrepõeà realidade. Desse modo, para o convencionalismo, ossignos seriam essencialmente nomes de gêneros oudesignação de atributos, ou seja, índices de sujeitose de predicados, logo, dependentes da coisa sensível,e sua função seria eminentemente informacional. Odualismo metafísico de Aristóteles implica essa formade paralelismo, própria a uma teoria das afetaçõespassivas, na qual a alma é afetada por um objeto ex-terno do qual provém a ideia como sua representação.Tal representação é, por sua vez, representada por umsigno. Nessa perspectiva, os objetos e conceitos (físicosou psíquicos) preexistem sempre à linguagem que oscodifica.

Para Saussure, a linguagem não é uma nomencla-tura, tampouco um instrumento de descrição. O con-ceito saussuriano do signo não implica o privilégioda denominação da coisa extralinguística, seja elaempírica ou psicológica, mas, ao contrário, sua par-ticipação em um sistema que conhece somente suaprópria ordem. A principal característica do signo éser a unidade própria a um sistema autônomo e autor-referencial (Saussure, 2005, p. 43). Dessa maneira, o

conceito de signo exclui de seu domínio de pertinênciao privilégio da representação sobre o sistema e da coisasobre a relação, em procedimento inverso, segundoSaussure, ao das perspectivas filosóficas: “A maiorparte das concepções que os filósofos da linguagemse fazem ou, ao menos, oferecem, faz-nos imaginarnosso primeiro pai Adão chamando para perto dele osdiversos animais e lhes dando seus nomes” (Saussure,2002, p. 230)2.

A referência ao gesto adâmico visa simplesmentea indicar que a perspectiva filosófica (de base lógico-proposicional) pressupõe sempre uma interrogação arespeito da origem das relações entre a linguagem ea realidade, entendidas como duas substâncias reci-procamente exteriores. Para Saussure, esse ponto devista expressa simplesmente uma maneira ingênua deconceber o estatuto convencional da linguagem, pois,ali, o acento é posto na oposição entre dois planos dis-tintos de realidade, de modo a abolir a autonomia dalíngua e reduzir o signo ao estatuto de um instrumentode descrição, pressupondo uma relação de exteriori-dade entre a palavra e a coisa, na qual se reduz o signoao significante, o significado à coisa e, finalmente, asemiose à designação de um referente. Como nos dizSaussure:

É um acidente quando o signo linguísticocorresponde, para os sentidos, a um objetodefinido, como um cavalo, o fogo, o sol, maisque a uma idéia como έθηχε ‘il posa’. [...]Entretanto, existe aí, implicitamente, umatendência que nós não podemos nem desco-nhecer nem deixar passar acerca do que seriaa linguagem: a saber, uma nomenclatura deobjetos. Objetos dados primeiro. De inícioo objeto, em seguida o signo; logo (isso quenós negaremos sempre) base exterior dada aosigno, e figuração da linguagem pela seguinterelação:

*—aObjetos *—b Nomes

*—c

[...] É triste certamente que comecemos poraí misturar, como um elemento primordial,o dado dos objetos designados, os quais nãoformam aí nenhum elemento qualquer. [...]situamo-nos para além desta tentação de re-conduzir a língua a alguma coisa de externo.(Saussure, 2002, p. 230-231).

Milner (1978) assinalou de maneira exemplar essarecusa do realismo semântico que caracteriza a pers-

2 Todas as traduções serão nossas. Seguirá sempre, como nota, a citação original em língua estrangeira.3 Assim, Milner afirma que “Saussure se autoriza construir uma teoria dos signos que não visa em nada uma teoria das coisas: a

linguística, a partir de então, não é uma visão de mundo, e a relação que a unia, desde os gregos, a uma teoria do ser das coisas é rompida”(Milner, 1978, p. 59)

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pectiva saussuriana ao afirmar que Saussure propõeuma teoria que não é uma visão de mundo, tampoucouma teoria do Ser3.

Abolindo o pressuposto realista de sua teoria, Saus-sure formula um tipo de convencionalismo refratário atodo dualismo metafísico. Sua doutrina implica, porum lado, a primazia da relação sobre a substância, doponto de vista ontológico, e, por outro lado, a primaziado sistema sobre a coisa, do ponto de vista epistêmico(Saussure, 2005, p. 23). Destarte, o convenciona-lismo saussuriano considera que toda substância éproduto de uma relação e todo real, um efeito da lin-guagem. Na teoria do mestre genebrino, a recusa dodualismo metafísico se manifesta, inclusive, em suaprópria arquitetura, pois as dicotomias saussurianas(língua/fala, diacronia/sincronia ou mesmo signifi-cante/significado e negatividade/positividade) formamoposições que não são exclusivas; ao contrário, consti-tuem dualidades inclusivas, como em uma espécie desuperfície topológica.

Uma vez concebido que as dicotomias saussurianasconsistem em oposições inclusivas, podemos melhorcompreender o conceito de valor em Saussure, bemcomo podemos verdadeiramente reconhecer a línguacomo um sistema institucional de signos. A maneiracomo Saussure associa as noções de sistema, de va-lor e de instituição social pura no interior do próprioconceito de língua acarreta duas características maio-res. Em primeiro lugar, a indiferença da natureza dosuporte material da língua, de tal modo que a própriaestrutura do sistema se impõe enquanto forma à subs-tância, e não, como no caso do dualismo convencio-nalista, o inverso, passando, assim, da materialidadede substâncias prévias à materialidade objetiva daforma-valor em si mesma. Em segundo lugar, privile-giar a materialidade da estrutura acarreta a imunidadeda língua em relação a qualquer atribuição de causali-dade cuja natureza seja mecânica. Desse modo, somoslevados a considerar a substância como sendo umasubsunção da estrutura simbólica da língua desdesempre. Considerando-se, pois, que a substância ésomente um efeito da língua — e não o seu substratoa priori — então os valores linguísticos, enquanto umsistema, só sofrem influência de valores da mesmanatureza: valores linguísticos, portanto.

2. Teoria da forma-valor emSaussure

Sendo a língua imune à causalidade (necessidade natu-ral), suas unidades (signos) serão definidas como purasrelações de equivalência, e tal concepção implica o quepodemos chamar de “princípio geral de imanência”, noqual: 1) a língua é um sistema que possui uma ordemautônoma, logo, autorreferencial, sendo incompatívelcom qualquer fundamento de cunho causal natural;

2) se a substância não é primeira, ela deve ser in-terna à língua per se, logo, toda forma de exterioridadedeve ser interna ao sistema que a manifesta. Assim,toda forma de substância extrassimbólica pressupõe alíngua como condição de existência.

Se para o dualismo metafísico a teoria se opõe aoobjeto, como o dado se opõe ao construído ou a lin-guagem se opõe à realidade, no caso de Saussure asituação se inverte, pois todo dado teórico é construído,toda realidade é informada simbolicamente de saída, emesmo as formas de exterioridade devem ser internasà estrutura da linguagem. Extrair-se da ordem da lin-guagem é impossível por definição e toda metafísica dalinguagem se torna inoperante. Mas se a linguagem éuma totalidade que subsume toda a ordem do possível,se ela é uma estrutura autorreferente, onde situar asubstância intuitivamente atribuída ao sujeito? Se alíngua constitui uma totalidade sem exterioridade, en-tendida como ausência de limite externo causal, ondesituar a existência de fatos positivos em meio a seusistema de diferenças? Ou, como diz Saussure, comoentender o fato de que todas as nossas maneiras defalar sejam modeladas por uma suposição involuntáriade uma substância? (Saussure, 2002, p. 197). Deonde vem essa ontologia da linguagem, da qual falaSaussure, e que faz do sujeito falante um realista es-pontâneo? Em que medida isso implica na teoria dovalor? Como a teoria saussuriana do valor explica essailusão referencialista e descritivista?

Para compreendermos nosso problema, devemosanalisar o signo linguístico, pois a questão da posi-tividade da substância também poderia se aplicar àlíngua em si mesma. Em outras palavras, se os sig-nos não são coisas — ou seja, se eles não são simplesrealidades positivas que se aplicam a outros objetospositivos —, como definir o signo como sendo o fatopositivo da ciência linguística?

O signo possui, paradoxalmente, uma materialidadeincorporal, que é fruto da objetividade de seu própriosistema de valores. Em outras palavras, invertendoo modelo convencionalista, Saussure considera que osigno possui uma “natureza incorporal”, justamentepor poder ser reduzido à dimensão do Valor (Saussure,2002, p. 287). Tal materialidade da forma-valor dosigno é devida ao seu caráter de invariante objetivo noseio de um sistema de relações, cujo modelo é dadopela equação. Mas, é importante ressaltar que mesmose o signo possui o estatuto de uma equação algébrica,mesmo quando ele é puramente uma determinação deinvariâncias, a recusa do dualismo é tão radical emSaussure que a forma-valor do signo não excluirá nemmesmo a indeterminação. A maior característica daforma-valor do signo é precisamente a de propor demaneira intrínseca a associação entre a determinaçãoe a indeterminação no seio mesmo da equação:

Ela [a forma-signo] não é nada mais, como ela

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também não é nada menos [que uma formadeterminada]. Ela não possui necessaria-mente ‘um sentido’ preciso; mas é percebidacomo alguma coisa que é; que ainda por cimanão seria mais, ou não seria mais a mesmacoisa, se mudássemos o que quer que fosseem sua configuração exata (Saussure, 2002,p. 37) [grifo nosso]4

É por isso que, na ausência de uma limitação exte-rior, na ausência de todo fundamento natural, o sis-tema da língua se torna uma totalidade inconsistente.A expressão conceitual que designa teoricamente talinconsistência própria à estrutura simbólica se chama,em Saussure, “princípio da arbitrariedade do signo”.Se considerarmos que a arbitrariedade indica a impos-sibilidade de haver uma substância primeira, anteriorà linguagem, tal consideração se deve ao fato de queexiste uma exterioridade interna à língua, o que apontapara a presença de uma indeterminação no coraçãodo processo de determinação do sentido. É a par-tir da presença desse quantum de indeterminação noseio do determinado, designado pelo princípio de ar-bitrariedade, que entramos no registro do Valor. Adimensão deste indica uma ordem autorreferencial,autônoma do ponto de vista da necessidade natural einconsistente, na qual o primado da relação, portanto,da diferença, implica o fato de o sentido ser inseparáveldo sem-sentido.

3. Teoria do sujeito em SaussureA língua, para Saussure, é uma instituição social pura,na medida em ela não é condicionada por nenhum tipode coerção extrassimbólica, possuindo o estatuto deum costume ou hábito socialmente cristalizado. Comotodo costume, seu aspecto ritual implica a ausênciadas leis naturais, logo, a presença exclusiva de regrassimbólicas. Como a regra não possui poder causal,seu funcionamento depende necessariamente do con-sentimento do sujeito. Portanto, vemos que não seriapossível conceber um sujeito linguístico sem conce-ber os conceitos de arbitrariedade e valor. Dito deoutra maneira, se houvesse determinação natural, nãohaveria sujeito, mas mecanismo.

Sendo a língua uma instituição social, a arbitrarie-dade é concebida por Saussure como uma forma de ir-racionalidade imanente ao caráter racional do sistemaque a contém; ou, melhor dizendo, sendo a língua umsistema de relações formais, e o signo, uma equação,sua forma é intrinsecamente racional. Mas, ao mesmotempo, se esse sistema não possui um fundamentonatural — na ausência de toda determinação causalou de limitação externa — a arbitrariedade do valorimplica necessariamente certo quociente de indetermi-

nação no interior da determinação do signo, de modoque o sistema de signos não pode ser inteiramente mo-tivado, tampouco completamente arbitrário. A noçãode forma-valor designa sempre a estrutura do relativa-mente motivado. Nesse sentido, a atividade subjetivaé dependente da arbitrariedade do valor, entendidacomo proporção entre motivação e imotivação.

Efetivamente, todo o sistema da língua re-pousa sobre o princípio irracional do arbi-trário do signo que, aplicado sem restrição,conduziria a uma complicação suprema; maso espírito consegue introduzir um princípiode ordem e de regularidade em certas partesda massa dos signos, eis o papel do relativa-mente motivado (Saussure, 2005, p. 182).

Na concepção saussuriana do sistema de formas-valor que é a língua, o sujeito é a constante ideal quevem ocupar o lugar do sem-sentido interno ao sentido,do arbitrário inerente ao valor. Ele é o correlato do quo-ciente de indeterminação inerente à determinação dovalor e, nesse sentido, é uma medida da exigência deracionalidade sempre imposta ao sistema e imanenteà forma simbólica da linguagem. É por essa razão que,se, de um lado, a língua não é inteiramente racional,na medida em que em sua própria definição está ins-crito um limite interno à completa determinação deseu sistema (o que significa precisamente o conceitosaussuriano de arbitrário), por outro lado, essa limita-ção interna é um correlato direto da própria atividadedo sujeito. Então, duas consequências se impõem: emprimeiro lugar, tanto o arbitrário completo quanto o in-teiramente motivado são simplesmente duas maneirasde pensarmos dois limites impossíveis, pois implica-riam na inexistência de um sujeito linguístico; emsegundo lugar, “valor” e “sujeito” são duas noções ne-cessariamente cooparticipativas, logo, indissociáveis.Nesse sentido, os dois polos do motivado e do arbitrário,mais do que opostos, são, na verdade, determinadosreciprocamente, e todas as possibilidades da línguase inscrevem entre esses dois limites impossíveis. Afunção subjetiva se situa, assim, no ponto reflexivode sua imbricação recíproca, ponto este em que essesdois elementos se tornam indissociáveis.

Dessa maneira, se uma das características do sen-timento de subjetividade é a sensação de liberdade,com respeito ao condicionado, e de indeterminação,com respeito ao atributo, podemos dizer que o sujeitoocupa o lugar da inconsistência no sistema de signos.Em outras palavras, se a língua é um hábito coletivoorganizado por regras autorreferenciais, a convençãolinguística é insensata. O paradoxo aqui instauradorevela o consentimento obrigatório próprio à sociali-zação, ou seja, o consentimento instaurado por um

4 Observemos desde já o fato de que Saussure assinala que uma “forma-valor”, pura coordenada de relações, é “sentida” pelo sujeitocomo algo que “é”, ou seja, como seu oposto, uma substância.

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contrato social no qual o sujeito que assina o contratoé produzido pelo contrato em si mesmo.

Desse modo, podemos considerar que a forma dalinguagem se assemelha à forma do pensamento ante-rior ao pensamento individual e que o sentimento deliberdade subjetiva é um efeito da estrutura de valorda língua (um efeito ligado ao seu estatuto de puraforma material ideológica). A ilusão de independênciada ordem subjetiva, esse sentimento de subjetividade,pode ser considerada como sendo o efeito de reifica-ção do sujeito, pois significa a conversão da relativamotivação/imotivação formal em sensação de subs-tância subjetiva incondicionada. A teoria da línguaem Saussure contempla, assim, a possibilidade de en-tendermos a dualidade própria ao conceito de sujeito,pois permite entender a passagem do sujeito comopura função simbólica à subjetividade como vazio reifi-cado, sendo capaz de contemplar o fato paradoxal dacoexistência dessas duas facetas do sujeito.

4. Forma-valor em Saussure eMarx

A organização conceitual da teoria saussuriana se ma-nifesta na própria analogia proposta pelo linguistasuíço entre a forma-valor do signo e a forma-valor damercadoria. Da mesma maneira que o signo, umamercadoria existe somente em um sistema de equiva-lências e substituições, e seu lugar é, segundo Marx,a equação e a relação invariante. Como nos diz Marxa propósito da mercadoria como valor de troca:

O valor de troca aparece inicialmente comouma relação quantitativa, como a proporçãona qual os valores de uso de espécie diferentetrocam-se um contra o outro, relação quemuda constantemente com o tempo e o lu-gar. O valor de troca parece então algumacoisa de arbitrário e de puramente relativo;um valor de troca intrínseco, imanente à mer-cadoria, parece ser, como diz a escola, umacontradictio in adjecto (Marx, 1993, p. 41).

Igualmente ao sistema de signos, o sistema de valo-res de troca exclui qualquer causalidade provenientede propriedades naturais e gera unicamente valoresarbitrários e relativos. A propriedade mercantil implicauma nova forma de atributo não-natural, uma proprie-dade comum a todas as mercadorias que não é outracoisa senão o valor propriamente dito:

Esta alguma coisa em comum não pode seruma propriedade natural qualquer, geomé-trica, física, química etc., das mercadorias.Suas qualidades naturais somente entramem consideração na medida em que elas lhesconferem uma utilidade como valores de uso.

Mas, por outro lado, é evidente que nós faze-mos abstração do valor de uso das mercado-rias quando as trocamos e que toda relaçãode troca é precisamente caracterizada poresta abstração (Marx, 1993, p. 42).

Cabe ressaltar o sentido do termo “abstração” empre-gado por Marx. No ato de troca efetivo, as propriedadesnaturais dos objetos são substituídas por uma novaforma de atributo que não existia anteriormente. Esseato de substituição é chamado por Marx de “abstra-ção real”. O ato de abstração transforma um objetoem uma mercadoria propriamente dita e impõe a sub-sunção generalizada do mundo natural pela dimensãode valores. É nesse sentido que tanto a mercadoriaquanto o signo exprimem igualmente uma forma de po-sitividade que não é uma qualidade natural, razão pelaqual podemos dizer que ambos são, utilizando umanoção marxista, objetos sensíveis suprassensíveis.

Eles possuem todos uma mesma realidadefantasmática. Metaformoseados em sublima-dos idênticos, amostras do mesmo trabalhoindistinto, todos estes objetos manifestamsomente uma mesma coisa, que, em sua pro-dução, uma força de trabalho humana foiconsumida, que o trabalho humano está aíacumulado. Enquanto cristais desta substân-cia social comum, eles são reputados valores(Marx, 1993, p. 43).

Para Marx, as formas-valor são objetos sublimes,são amostras de uma atividade puramente simbólicacom uma forma de pensamento objetivamente cristali-zada: cristais sociais e, por isso mesmo, valores. Emoutras palavras, cada unidade de valor é uma atividadesimbólica invariante socialmente cristalizada.

Analisemos, então, uma analogia proposta por Saus-sure entre linguística e economia política, tomandocomo referência a crítica marxista da mercadoria. Se-gundo Saussure:

[...] [Na linguística], como em economia polí-tica, estamos diante da noção de valor; nasduas ciências, trata-se de um sistema de equi-valência entre coisas de ordens distintas: emuma, um trabalho e um salário, na outra,um significado e um significante (Saussure,2005, p. 115).

Segundo Saussure, tanto a linguística quanto a eco-nomia são ciências do valor, pois tratam de um sistemade equivalências entre coisas de ordens diferentes, pos-suem como objeto um sistema de dualidades — entreum significante e um significado, para a primeira, eentre um trabalho e um salário, para a segunda. Aestrutura dual do signo não é posta, por Saussure, emanalogia com o caráter dúplice da mercadoria (valorde uso e valor de troca), pois, no caso da mercadoria,

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o valor de uso ainda está associado a propriedades na-turais e não constituem, nesse sentido, valores puros.O que justifica essa analogia tão específica? Aonde elanos conduz?

O valor de uso não é levado em consideração na ana-logia saussuriana, pois ele já se encontra inteiramentesublimado, isto é, encontra-se subsumido pela dimen-são do valor, da mesma maneira que tanto a realidadequanto as necessidades humanas já se encontram in-teiramente subsumidas pela linguagem. Assim comoa linguagem não conhece limite exterior, a analogiacom a economia política somente é possível quando osistema de circulação de mercadorias se universaliza; épor essa razão que a analogia é proposta por Saussurecom o par trabalho/salário: aquele é a última coisasocial a ser subsumida pelo sistema de formas-valor.Em outras palavras, a analogia saussuriana pode serválida somente a partir da universalização do sistemade trocas simbólicas, de modo que sua condição de va-lidade é dada pela transformação do próprio trabalhoem mercadoria, isto é, pela conversão de toda atividadehumana em valor socializado.

Para Marx, a substância do valor é o trabalho hu-mano e, mais precisamente, o trabalho social indis-tinto, cujo equivalente saussuriano seria o ato psi-cossocial linguístico (fala, discurso). Ou seja, paraambos, a substância humana ou psicológica não éuma realidade substancial prévia e natural, mas simuma atividade simbólica pura. Em termos de Marx,o trabalho privado humano se torna trabalho socialindistinto quando a força de trabalho se torna valorpuro e se exterioriza como valor coagulado em umsistema de equivalências e trocas, ou seja, quando sealiena sob a forma de mercadoria: nesse momento, aforça de trabalho se torna valor produtivo e a atividadesimbólica perde toda finalidade natural, na medida emque o sistema de valores visa apenas à sua própriaautonomia e circularidade.

A universalização e a autonomização do sistema devalores encontram sua maior manifestação no fenô-meno do fetichismo da mercadoria. Para entenderesse fenômeno, devemos partir, desde já, do fato deque todas as coordenadas de valor designam quan-tidades relativas, umas em relação às outras, logo,dependentes do sistema. Como diz Marx, o valor detroca é inteiramente relativo e arbitrário, ele é umaproporção de valor que somente existe em sua identi-dade/diferença relativa em relação aos outros valoresdo sistema: um valor de troca intrínseco, como umaespécie de propriedade natural imanente, seria umacontradição. Entretanto, o fenômeno do fetichismo éprecisamente o surgimento, para os sujeitos implica-dos no ato de troca, do valor como uma propriedadepositiva de um elemento, como se tal valor constituísseum atributo imanente ao objeto, logo, independenteda rede de relações do qual faz parte e que o deter-

mina. Como diz Marx, a propósito do fetichismo damercadoria:

A forma valor e a relação de valor dos pro-dutos do trabalho não têm absolutamentenada a fazer com suas naturezas físicas. Éunicamente uma determinada relação socialdos homens entre si que reveste para eles aforma fantástica de uma relação das coisasentre elas mesmas. Para encontrar uma ana-logia a este fenômeno, é necessário buscá-lana região nebulosa do mundo religioso. Lá,os produtos do cérebro humano possuem oaspecto de seres independentes, dotados decorpos particulares, em comunicação com oshomens e entre eles mesmos. O mesmo sepassa com os produtos da mão do homemno mundo mercantil. É isso que podemoschamar o fetichismo da mercadoria ligadoaos produtos do trabalho, desde que eles seapresentam como mercadorias, fetichismoinseparável deste modo de produção (Marx,1993, p. 83).

O valor-fetiche é um valor objetivado, naturalizadosob a forma de uma propriedade imanente de umobjeto. Ele é, assim, uma substancialização da nega-tividade, ou seja, é o modo de manifestação intuitivade um valor negativo, portanto, diferencial. É nessesentido que Marx fala de um engodo metafísico, emesmo teológico, ligado ao fetichismo da mercadoria,pois, de simples coordenadas de relações diferenci-ais, os valores se tornam substâncias particularizadas.Marx fala também que esse fenômeno do fetichismo damercadoria realiza uma contradição encarnada, poisa forma-valor imaterial não somente se torna proprie-dade substancial, bem como transforma as coordena-das de valor em objetos existentes. O fetichismo daforma-valor implica a sua transformação em objetoindependente de toda a determinação proveniente deum sistema. Em outras palavras, o mecanismo dofetichismo produz a transformação de uma forma emuma coisa, e de uma coordenada diferencial em umasubstância idêntica a si mesma. Assim, o fetichismoda mercadoria é um fenômeno de reificação que faz deuma invariância de relações, uma existência positiva;de um valor relativo, uma propriedade intrínseca aoelemento; ou então, segundo o exemplo dado por Marx:

É assim que o particular A não saberia repre-sentar para o indivíduo B a majestade, semque a majestade aos olhos de B revista ime-diatamente tanto a imagem quanto o corpode A; é por isso provavelmente que ela muda,com cada novo pai do povo, de rosto, de ca-belo e de inúmeras outras coisas (Marx, 1993,p. 59).

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O mesmo ocorre com os signos linguísticos. Oscadernos dos alunos de Saussure confirmam nossainterpretação, pois apresentam uma versão diferentedaquela encontrada no texto do Cours de linguistiquegénéral (CLG) sobre o estatuto positivo do valor dosigno. No CLG se lê: “ainda que o significado e o sig-nificante sejam, cada um tomado à parte, puramentediferenciais e negativos, sua combinação é um fato po-sitivo” (Saussure, 2005, p. 166). No entanto, segundoos cadernos de Dégallier e Constantin, Saussure teriadito algo ligeiramente diferente: uma coordenada devalor daria origem a “alguma coisa que se assemelha atermos positivos” (Engler, 1968, p. 271 e 272, nota1945). Ora, dizer-se que o signo pode se assemelhar aum termo positivo é um dado importante, pois sugereprecisamente a ocorrência de um fenômeno intuitivoespontâneo, ou seja, significa dizer que, uma vez queo valor se substancializa, o signo parece se tornar in-dependente de toda a rede de determinações para osujeito falante, e seu valor semântico relativo parecese tornar uma propriedade natural. Esse fenômenoé o responsável pelo sentimento de que uma palavrapossui uma presença objetal, podendo ser trocada poroutros objetos da mesma natureza.

Com o fetichismo do signo, a língua é percebida comoum simples instrumento de mediação entre realidadesprévias independentes da linguagem, permitindo ex-teriorizar a inconsistência do sistema da língua comopressuposição do referente. Por esse motivo, torna-se inteiramente lícito considerar que o correlato dofetichismo do valor semântico é, por um lado, a pres-suposição do referente extrassimbólico e, por outro, areificação do próprio sujeito. Destarte, podemos enten-der por que a linguagem implica, como diz Saussure,a suposição involuntária de uma substância (seja elasubstância empírica do mundo, do signo como coisaou do sujeito como substância).

5. A interpretação lacaniana dovalor: algumas indicações

Conforme apontamos na introdução deste artigo, amesma matriz teórica acerca do problema do valorpode também ser encontrada em Lacan e, cabe res-saltar, justamente no interior de uma discussão queconsidera o conceito de valor em Saussure e Marx.Aquilo que Lacan tenta esclarecer — e que orienta a lei-tura que o psicanalista faz dos dois autores — ao longode toda a sua obra, concerne a um mesmo problema:como definir o modo de articulação entre a estruturasimbólica inconsciente (o grande Outro) e o registroeconômico das pulsões? Em outras palavras: do pontode vista metapsicológico, como explicitar a imbricaçãoconstitutiva que há entre a pulsão e a linguagem?

Explicitar o problema que supracitamos ilustra oporquê de Lacan haver se interessado pelas definições

saussurianas de sistema e de signo e, mais precisa-mente, pelo fato de o signo manifestar uma espécie deparalogismo kantiano, uma vez que, ao interpretarmosessa lógica paradoxal de reificação do valor como ocorrelato de um paralogismo linguístico imanente àdeterminação do sujeito, notamos a utilidade de talteoria na elaboração da subjetividade lacaniana, jáque, para Lacan, a função do signo — que lhe confereseu estatuto — é a de ser uma borda simbólica capazde expressar, de maneira invertida e objetivada, a di-mensão do Valor per se. Tal processo é, segundo ele,inevitável e constitutivo da própria subjetividade.

Note-se que Lacan lê Saussure — e, cabe assinalar,Marx também — através de uma perspectiva kantia-na,com o intuito de explicitar a presença de um paralo-gismo na teoria desses dois autores. Ora, essa estru-tura paralógica entre as teorias de Saussure e de Marxdetermina uma forma paradoxal de identidade entreum puro limite simbólico e nossa intuição espontâneade substância. É, assim, a partir dessa interpretaçãode Saussure e Marx, que Lacan entrevê a possibilidadede postular a articulação entre o sistema de significan-tes e o sentido econômico das pulsões. Lembremos adefinição kantiana de paralogismo:

O paralogismo lógico consiste na falsidade deum raciocínio quanto à forma, seja qual forinclusive o conteúdo ou o objeto. Mas, umparalogismo transcendental possui uma ra-zão transcendental de concluir erradamentequanto à forma. Tal paralogismo encontraentão seu princípio na natureza da razão hu-mana, e traz consigo uma ilusão inevitável,mesmo se ela possa ser compreendida (Kant,1987, p. 411).

Segundo Lacan, entendido como objeto de um para-logismo transcendental, o signo não seria nada maisque a determinação de uma indeterminação específica,cujos contornos seriam definidos pelos outros signosdo sistema do qual fazem parte. Dito de outra maneira,o fato de o valor não se reduzir à determinação, seja emSaussure seja em Marx, permite a Lacan considerarque os elementos do discurso constituem uma bordasemântica girando sempre em torno da impossibili-dade de cada elemento simbólico poder significar a simesmo; tal borda simbólica, que constitui o limite darepresentação, não seria nada senão a própria pulsão.

A indeterminação determinada que caracteriza osigno possibilitará a Lacan, em relação à pulsão —como possibilitara a Saussure em relação ao signo ea Marx em relação à mercadoria —, privilegiar a pos-sibilidade de uma interpretação de seu objeto comosendo um objeto sensível suprassensível. A título deexemplo, nós já vimos que a determinação do signo fazcom que a substância seja necessariamente o fruto daexternalização do próprio limite da simbolização. La-

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Maurício José d’Escragnolle Cardoso

can, por sua vez, transpõe o mesmo raciocínio para ocampo da metapsicologia freudiana: se a pulsão é puraexigência de sentido — é a maneira que a indetermi-nação intrínseca ao campo da determinação simbólicase manifesta no psiquismo —, o objeto pulsional nãopassa da reificação exteriorizada desse limite.

Eis o paradoxo da pulsão segundo Lacan: a iden-tidade especulativa entre a substância externa e aindeterminação formal. Tal paradoxo nos permite en-tender a substância do signo como sendo a imanênciade um paralogismo inerente à linguagem em si mesma,que fetichiza o caráter negativo da forma-valor soba forma de seu oposto, ou seja, sob a forma de umobjeto independente, e que só pode ser paralógica namedida em que essa substancialização fetichista dolimite simbólico não pode ser reduzida a uma simplesilusão subjetiva, consistindo, na verdade, em uma ilu-são objetivamente necessária e cuja implicação advémda própria estrutura simbólica do pensamento. ParaLacan, as teorias de Saussure e de Marx explicitama presença de um antagonismo inerente à ordem dalinguagem, dando forma, assim, à própria divisão dosujeito, divisão essa que funda o pensamento freu-diano.

Dessa maneira, transpor as teorias de Saussure ede Marx para o campo da metapsicologia permite fa-zer uma releitura de Freud que é capaz de eliminaros conceitos energéticos, que derivam do positivismocientificista tão caracterizador do século XIX, redire-cionando a metapsicologia para o seu próprio campode pertinência. Nesse sentido, Lacan afirma: “À ener-gética, eu substituí uma referência que, nestes nossostempos que correm, teríamos dificuldade em sugerirque ela é menos materialista, uma refrência à econo-mia, à economia política” (Lacan, Sem., Livre XVI [s. d.],p. 21).

O conceito desenvolvido por Lacan para determinaro objeto da economia pulsional consiste, desse modo,em um resto exteriorizado incompreensível, que é ocorrelato direto do vazio que define o sujeito comopura atividade simbólica. Esse resto se manifesta nouniverso psíquico do sujeito justamente como um ob-jeto sensível suprassensível, como puro valor. Assim,Lacan situa a substancialização da indeterminaçãoinerente ao valor, que é a face significante irredutívelà significação, como o fundamento simbólico das pul-sões. Ora, é neste ínterim que notamos a motivação deum retorno, por parte de Lacan, não somente à teoriade valor de Saussure, mas igualmente à teoria de valorde Marx:

Marx nos diz, em algum lugar dos Manifes-tes philosophiques que o objeto do homemnão é outra coisa que a sua essência mesmatomada como objeto; que o objeto ao qual osujeito se endereça, por essência e necessa-riamente, não é outra coisa que a essência

própria deste sujeito não objetivado. [...] Esteobjeto do qual se trata, esta essência própriaao sujeito, mas objetivada, será que não so-mos nós que podemos lhe dar sua verdadeirasubstância? (Lacan, Sem., Livre XIV [s. d.], p.309).

O conceito lacaniano utilizado para designar o re-síduo da indeterminação que é determinado e que semanifesta de maneira objetivada é o conceito de Real.Esse designa a própria substância do limite simbólico:para além do Ego, para além da consciência subjetiva,encontraríamos o estatuto real do sujeito em psicaná-lise, ou seja, nada mais que a identidade especulativaentre o vazio da indeterminação do significante e asubstância pulsional do próprio limite simbólico.

Para terminar, gostaríamos de assinalar que não pre-tendemos, com este pequeno percurso, sugerir que nãoexistam diferenças entre as teorias dos autores citados,mas simplesmente indicar que eles compartilham umalógica mínima comum, a qual nos autoriza fazer umasérie de analogias formais. Nesse sentido, gostaríamosde assinalar algumas diferenças entre suas doutrinas.Entre as doutrinas de Saussure e Marx, por exemplo,encontramos uma inversão hermenêutica, por assimdizer. Se para Saussure os signos são puros valorespercebidos pelo sujeito falante como coisas, para Marx,ao contrário, as mercadorias são coisas percebidaspelos sujeitos como valores. Já entre as teorias deLacan e de Saussure, ocorre uma mudança de focodisciplinar. Enquanto o primeiro visa a isolar o valorem sua função de signo, ou seja, como o elementosimbólico que se manifesta como substância intuitiva-mente exteriorizada, Saussure privilegia a análise docaráter estrutural do valor. Em outras palavras, aquiloque Lacan privilegia teoricamente — ou seja, o fenô-meno do valor fetichizado, reificado — consiste em umaquestão apenas acessória para Saussure. Essas sãoapenas algumas indicações ilustrativas; deixaremosa discussão sobre as diferenças entre os três autorespara um próximo momento.

Referências

Engler, Rudolf1968. Édition critique du Cours de linguistique géné-rale. Tome 1. Wiesbaden: Otto Harrassowitz.

Kant, Emmanuel1987. Critique de la raison pure. Paris: Flammarion.

Lacan, Jacques[s.d.] Le séminaire. Livre XIV. La logique du Fan-tasme. Version AFI (Association Freudienne Inter-national).

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estudos semióticos, vol. 6, no 1

Lacan, Jacques[s.d.] Le séminaire. Livre XVI. D’un Autre à l’autre.Version AFI (Association Freudienne International).

Marx, Karl1993. Le capital. Livre I. Paris: PUF.

Milner, Jean-Claude1978. L’amour de la langue. Paris: Seuil.

Saussure, Ferdinand de2002. Écrits de linguistique générale. Paris: Galli-mard.

Saussure, Ferdinand de2005. Cours de linguistique générale. Paris: Payot.

Dados para indexação em língua estrangeira

Cardoso, Maurício José d’Escragnolle

À propos de la théorie de la valeur chez Saussure, Marx et Lacan

Estudos Semióticos, vol. 6, n. 1 (2010), p. 1-9

issn 1980-4016

Résumé: Cet article reproduit une communication faite au III Seminário de Semiótica à l’Universidade de SãoPaulo (São Paulo, Brasil), en octobre 2009. La communication prend pour objet les théories de la valeur deSaussure, Marx et Lacan, et a l’objectif d’expliciter certaines homologies existantes entre elles. Nous partonsalors de la considération que le principe de base qui soutient les homologies concerne le fait que ces auteurspartagent une seule et même orientation épistémologique, dite matérialiste, caractérisée par le rejet tant du réalismeontologique que par celui du conventionnalisme épistémologique. C’est, dans ce sens, que nous proposons unedéfinition du matérialisme saussurien comme modèle-type exemplaire de cette orientation épistémologique, àpartir de laquelle il devient possible de situer les équivalences formelles de ces théories de la forme-valeur. Nousprétendons ainsi montrer que les trois auteurs développent — chacun évidemment à sa manière et en fonctiondes exigences de leurs respectifs champs disciplinaires — une seule et même orientation théorique matérialisteà propos de la théorie de la valeur. Pour cela, nous chercherons démontrer alors que chacun des auteurs citéstraite d’un triple problème : a) mettre en relief une théorie de la forme-valeur proprement dite ; b) rendre compte del’énigmatique nature de la positivité de la valeur différentielle ; c) proposer un espace heuristique qui rend possibleun concept de sujet adéquat au système de valeurs.

Mots-clés: théorie de la valeur, Saussure, Marx, Lacan

Como citar este artigo

Cardoso, Maurício José d’Escragnolle. Sobrea teoria do valor em Saussure, Marx e La-can. Estudos Semióticos. [on-line] Disponível em:〈 http://www.fflch.usp.br/dl/semiotica/es 〉. Editores Respon-sáveis: Francisco E. S. Merçon e Mariana Luz P. deBarros. Volume 6, Número 1, São Paulo, junho de 2010,p. 1–9. Acesso em “dia/mês/ano”.

Data de recebimento do artigo: 01/12/2009

Data de sua aprovação: 30/03/2010

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