SOBRE A PROPOSTA DE HENRI ATLAN DE UMA TEORIA … · vação e interpretação, sendo essencial...

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Gustavo M. Souza, Itala M. Loffredo D’Ottaviano, Maria Eunice Q. Gonzales (orgs.). Auto-organização: estudos interdisciplinares. Coleção CLE, v. 38, pp. 189-212, 2004. 7 Sobre Teorias Físicas da Auto-organização Intencional: uma análise a partir da proposta de Henri Atlan RICARDO PEREIRA TASSINARI Departamento de Filosofia Faculdade de Filosofia e Ciências, UNESP Marília, SP MÁRCIO AUGUSTO VICENTE DE CARVALHO Doutorando em Filosofia Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, UNICAMP Campinas, SP São possíveis teorias físicas da intencionalidade? Quais critérios se deve adotar para a elaboração dessas teorias? Consciente do progresso de diversos campos atuais da pesquisa científica, Atlan (1998) elabora uma proposta para a constituição dessas teorias, que buscam explicar a noção de intencionalidade sobre bases físicas, biológicas e computacionais. Há, então, um duplo interesse em analisar a proposta de Atlan (1998): 1) verificar como as diversas noções e métodos relativos às ciências naturais podem ser aplicados no estudo da noção de intencionalidade; e 2) identificar as possíveis falhas de aplicação de métodos e conceitos das ciências naturais, bem como algumas causas dessas deficiências, para, a partir daí, buscar critérios para possíveis elaborações de teorias físicas da intencionalidade, principalmente de teorias que venham a incorporar a noção de auto-organização.

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Gustavo M. Souza, Itala M. Loffredo D’Ottaviano, Maria Eunice Q. Gonzales (orgs.). Auto-organização: estudos interdisciplinares. Coleção CLE, v. 38, pp. 189-212, 2004.

7

Sobre Teorias Físicas da Auto-organização Intencional: uma análise a partir da proposta de

Henri Atlan

RICARDO PEREIRA TASSINARI

Departamento de Filosofia Faculdade de Filosofia e Ciências, UNESP

Marília, SP

MÁRCIO AUGUSTO VICENTE DE CARVALHO

Doutorando em Filosofia Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, UNICAMP

Campinas, SP

São possíveis teorias físicas da intencionalidade? Quais critérios se deve adotar para a elaboração dessas teorias? Consciente do progresso de diversos campos atuais da pesquisa científica, Atlan (1998) elabora uma proposta para a constituição dessas teorias, que buscam explicar a noção de intencionalidade sobre bases físicas, biológicas e computacionais. Há, então, um duplo interesse em analisar a proposta de Atlan (1998): 1) verificar como as diversas noções e métodos relativos às ciências naturais podem ser aplicados no estudo da noção de intencionalidade; e 2) identificar as possíveis falhas de aplicação de métodos e conceitos das ciências naturais, bem como algumas causas dessas deficiências, para, a partir daí, buscar critérios para possíveis elaborações de teorias físicas da intencionalidade, principalmente de teorias que venham a incorporar a noção de auto-organização.

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1. ATLAN 1998: AUTO-ORGANIZAÇÃO INTENCIONAL, POR UMA TEORIA FÍSICA DA INTENCIONALIDADE

De um modo geral, Atlan (1998) trata do mecanismo de emergência de estruturas e significados nas ciências físicas e biológicas. Mais especifi-camente, parte do exame do conceito de intencionalidade e propõe um mo-delo de comportamento intencional com base nos resultados de simulações computacionais de auto-organizações estruturais e funcionais. Aqui, neste trabalho, as citações dos números de páginas, salvo indicações contrárias, referem-se a Atlan (1998).

Atlan (p. 14-15) distingue três tipos de auto-organização, descritos sucintamente a seguir.

Auto-organização fraca: aquela na qual a meta do sistema (que define significado para o sistema, como explicar-se-á mais adiante) é imposta de fora.

Auto-organização forte: aquela na qual a geração de significado vinda de fora do sistema, como pela interpretação por observadores humanos, é reduzida ao máximo possível, sendo uma propriedade que emerge da evolução do próprio sistema.

Auto-organização verdadeira: aquela que é definida como uma pro-priedade dos sistemas com sofisticação infinita. A sofisticação de um objeto ou seqüência, como uma medida da complexidade significativa, é o mínimo comprimento da parte do programa, na descrição mínima, capaz de gerar esse objeto ou seqüência1. Objetos com sofisticação infinita têm a propriedade peculiar de não serem nem recursivos, nem aleatórios (cf. p. 23). Com efeito, como a sofisticação de uma seqüência ou objeto é o mínimo comprimento da parte do programa, na descrição mínima, capaz de gerar esse objeto, se um objeto tem sofisticação infinita então o “programa” que o geraria teria que ter comprimento infinito e não seria, propriamente

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1 Note-se que tal noção de sofisticação é muito semelhante à noção de

complexidade algorítmica.

interdisciplinares. Coleção CLE, v. 38, pp. 189-212, 2004.

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falando, um programa; nesse sentido, objetos com sofisticação infinita não são programáveis. Por outro lado, objetos com sofisticação infinita têm uma estruturação e, portanto, não são gerados pelo mero acaso. Assim, a noção de sofisticação infinita permite caracterizar a propriedade de sistemas verdadeiramente auto-organizados terem evoluções não programadas e estruturadas na sua própria evolução. Mais adiante neste trabalho, se rediscute a noção de sofisticação infinita na sua relação com os modelos de comportamentos intencionais.

O método central adotado por Atlan (1998) para explicar como seria possível uma teoria física da intencionalidade se constitui de uma cons-trução crescente de modelos até se atingir modelos capazes de incorporar a intencionalidade. Tais modelos são usados para sugerir como o aspecto voluntário de comportamento decisório em geral pode emergir de proces-sos de auto-organização funcional.

No centro do artigo se encontra um resultado obtido anteriormente por Atlan et al. (1986) e Atlan (1987), em que redes de autômatos boo-leanos relativamente simples podem classificar e reconhecer padrões de seqüência binária, com base em um critério auto-gerado não programado, exemplificando emergências não-programadas de estruturas macroscó-picas e de funções, ou seja, de auto-organização forte, segundo a classi-ficação acima.

Considera-se, por exemplo (cf. p. 16-7 e p. 30-1), uma rede booleana constituída de uma matriz, na qual cada célula pode assumir dois valores, 0 ou 1. Para exemplificação, podemos considerar aqui uma matriz como abaixo.

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Sobre a matriz da rede booleana se aplica, repetidamente, uma

transformação. Nessa transformação, cada célula recebe a informação de duas células vizinhas, faz um cálculo sobre esses valores, e armazena o valor resultante. A cada célula tem-se assim associada uma operação binária, que realiza o cálculo descrito, dentre as 16 operações binárias possíveis (explicitadas aqui na tabela abaixo), a menos das duas operações constantes (as das colunas 1 e 16).

As 16 Operações Binárias Possíveis

Entradas Operações e suas Saídas 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 0 0 0 1 0 1 0 1 0 1 0 1 0 1 0 1 0 1 0 1 0 0 1 1 0 0 1 1 0 0 1 1 0 0 1 1 1 0 0 0 0 0 1 1 1 1 0 0 0 0 1 1 1 1 1 1 0 0 0 0 0 0 0 0 1 1 1 1 1 1 1 1

Na definição da transformação, que será sempre aplicada à matriz

boolenana, as operações são atribuídas a cada célula de forma aleatória.

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Porém, no decorrer do processo, a associação das operações às células se mantém constante.

Depois de transcorrido um certo tempo, a rede passa a repetir uma dada seqüência de estados, ou ainda, passa a realizar um ciclo no qual há células estáveis (i.e. que permanecem com o mesmo valor) e células instáveis (i.e., aquelas que têm seu valor alterado durante o ciclo).

Atlan (p. 30) apresenta a seguinte representação esquemática, na qual as células estáveis são indicadas por S e as células instáveis são indicas por P.

S S S P P P P P S S S S S S S S S S S P P P P P S S S S S S S S S S S S P P P P P S P P P S S S S S S S S P P P P P P P P P P S S S S S S P P P S S S S S P P S S S S S P P P P S S S S S P P S S S P P P P P P P S P P S S S S S P P P P P P P S P P P S S S S S P P P P P P S S P P P P S S S P P P P P P P P S P P P S S S S P P P P P P P S S S S S S S P P P P P P P P P S S S S S S S S P P P P P P S S S S S S P P S P P P P S S S S S S S S P P S S P P P S S S S S S S S S P P S S P P P P S S S P P S S P P P S P P S

Há, assim, a partir do estado inicial e da evolução do sistema, a

emergência de uma estrutura macroscópica não prevista, ou ainda, não preestabelecida intencionalmente pelo programador.

Nessa rede pode-se ter também a emergência de funções de reconhecimento de seqüência de zeros e uns. Considera-se, por exemplo (p. 30), uma modificação na rede de forma que uma de suas células passa a desempenhar um papel de entrada de informação. Ora, haverá a

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emergência de um novo padrão de estabilidade, ou seja, de um novo ciclo, dependendo da seqüência de zeros e uns introduzida na rede por essa célula. Logo, tem-se uma classificação das diferentes seqüências de zeros e uns, de acordo com os diferentes ciclos gerados por elas, nos quais as células estáveis podem ser utilizadas para estabelecer o reconhecimento de padrões de seqüências de zeros e uns. Note-se então que, como comenta Atlan (p. 31 e p. 21):

... o comportamento da rede como um dispositivo de reconhecimento de padrões e o critério de reconhecimento são propriedades funcionais emergentes.

... temos aqui um modelo relativamente simples de emergência de função enquanto um critério não programado que fornece significado a uma classe de seqüências sendo reconhecidas.

A rede tem, portanto, uma auto-organização forte, no sentido esta-

belecido acima. Porém, para uma teoria da intencionalidade, a existência de autogeração desse tipo não é suficiente, como diz o próprio Atlan, pois, por exemplo, não é suficiente para explicar a capacidade de agir segundo planejamentos, característica fundamental da intencionalidade. Nesses casos, como Atlan comenta, falta uma capacidade de auto-obser-vação e interpretação, sendo essencial para modelos de comportamentos intencionais conscientes e inconscientes um mecanismo de memória que grave as histórias das interações e, nesse caso, a possibilidade de máquinas com sofisticação infinita – e portanto não programáveis – não pode ser evitada (cf. p. 5), como ver-se-á mais adiante.

Sobre a relação de uma teoria da intencionalidade com uma teoria da atribuição de significados, Atlan (1998, p. 9-10 e p. 17) mostra como a construção de uma teoria física da intencionalidade implica na necessidade de uma teoria da interpretação ou da atribuição de significados. De forma geral, pode-se dizer que, na medida em que algo X é intencionado por um

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sistema S, X possui uma significação para S que possibilita a S agir orientado por X.

Com efeito, Atlan afirma (p. 17):

... se queremos construir modelos para a emergência verdadeira de significados, precisamos de uma teoria da interpretação .... verdadeiramente, tal teoria da interpretação seria uma teoria física da intencionalidade – i.e. de conferir significado –, em que nós nos empenhamos.

Como se busca construir uma teoria física da intencionalidade e da

interpretação, percebe-se a dificuldade de uma certa circularidade da proposta, já que, por exemplo, dar as características de um comportamento intencional do ponto de vista físico se confunde com estabelecer como isso é fisicamente possível. Atlan ressalta, então, que (p. 17):

... é provavelmente mais eficiente primeiro discutir modelos limitados de mecanismos possíveis, nos quais interpretações específicas podem ser produzidas, e tentar posteriormente examinar as condições sobre as quais podem ser generalizados.

Assim, o método adotado por Atlan (1998), na construção de uma

teoria física da intencionalidade, possui uma espécie de indução, no sentido de que se parte da construção de modelos cada vez mais complexos até se poder afirmar que os sistemas construídos teriam intencionalidade. Atlan propõe (p. 17, o grifo é do autor):

... vamos tentar ver o que está faltando para nossa rede se comportar como se entendesse o que estava fazendo, para realmente criar significados, não apenas aos olhos do observador.

Nota-se que tal característica inducionista já pode ser notada na justificação de sua postura em relação à busca, pela análise fenomenológica, de um fundamento absoluto das ciências naturais, pois como ele escreve (p. 11):

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... a análise fenomenológica não pode servir como um fundamento absoluto das ciências naturais; justamente porque as ciências naturais têm se desenvolvido, historicamente, sem ajuda de um fundamento absoluto, de acordo com critérios locais para a veracidade e a efetividade, que as libertam desta necessidade.

A partir daí, na análise do “que está faltando para nossa rede se

comportar como se entendesse o que estava fazendo”, Atlan sugere que seria necessário um mecanismo de memória associativa, acoplado à rede, que guardasse todo o desenrolar do processo e cuja lembrança fosse ativada por associação do processo sendo executado com o processo guardado na memória.

Além disso, Atlan argumenta que há a necessidade de uma memória que guarde o quão freqüentemente seqüências de entradas de uma dada classe são apresentadas à rede e reconhecidas; assim, a freqüência de distribuição poderia determinar a função de satisfação que orienta o próprio comportamento da rede. Nesse caso, Atlan comenta que (p. 20):

Logo, a origem dessa função dependeria, de um lado, da estrutura do am-biente e da história de seus encontros com o sistema, i.e. os tipos de seqüências de entradas encontradas pelo sistema e, por outro lado, da estrutura do sistema, que determina que características do ambiente podem ou não ser reconhecidas. Tal sistema funcionaria como um extrator de característica sem definição a priori da característica, nem explícita (como em uma programação clássica), nem implícita (como na aprendizagem adaptativa a partir de um conjunto de treinos).

Tem-se, pois, que segundo esse modelo mecânico, o silogismo

clássico da intencionalidade: (1) Alguém B tem o desejo de estar no estado S; (2) B sabe ou acredita que C é a causa de S; (3) Logo, B produz C.

é reinterpretado de tal forma que (p. 21):

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(1) O desejo de B de estar em S é simplesmente o fato da rede B estar sendo dirigida para S por algum estímulo atuando sobre a dinâmica de B, como especificado pela estrutura preexistente da rede B;

(2) O conhecimento ou crença que C é uma causa de S é o armazenamento na memória da seqüência de estados, incluindo C, que produziu S, no passado, começando de algum estímulo, que pode ser C, e um estado inicial;

(3) A recordação dessa seqüência de estados por B é disparada por S, porque foi armazenada junto com S, quando S ocorreu pela primeira vez.

Atlan ressalta ainda que, por esse modelo (p. 22):

... a atenção (awareness) ou consciência (consciousness), apesar de parecer dirigida para o futuro, é mera memória desse processo de construir proce-dimentos e lembrança de estados freqüentes, que vieram a ser os mais freqüentes por causa das propriedades tanto da rede como de seu ambiente.

Porém, como coloca o próprio Atlan (p. 23), algo ainda está faltando

ao modelo para ser relevante à intencionalidade humana, vista como uma capacidade incessante de atribuir significados.

O que está faltando é uma capacidade não apenas de memorizar proce-dimentos com seus significados e, assim, o processo de memorização mesmo, mas também [uma capacidade] para modificar os significados dos procedimentos sob quase quaisquer circunstâncias que modificam os proce-dimentos mesmos. A observação de si mesmo não é suficiente. No sentido de funcionar como uma fonte aparentemente infinita de interpretação, a auto-observação (ou atenção (awareness)) tem que estar conectada a um ou vários dispositivos auto-organizadores capazes de produzir novidade indefinidamente, que se interpretará indefinidamente com um novo significado.

É nesse ponto que Atlan retorna à noção de sofisticação infinita.

Com efeito, a noção de sofisticação infinita é utilizada aqui, na medida em que: 1) sempre se pode construir modelos de partes do funcionamento de um sistema auto-organizado; 2) cada novo modelo de uma seqüência

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de modelos cada vez mais próximos ao comportamento global do sistema terá uma maior sofisticação que o anterior; e 3) se o sistema for verdadeiramente auto-organizado, nunca se atingirá uma descrição computacional completa dele, tendo, portanto, uma sofisticação infinita. Como nos diz Atlan (p. 24): “Sofisticação infinita fornece uma definição formal para esses sistemas”.

E Atlan comenta ainda que (p. 25):

Essa propriedade de objetos infinitamente sofisticados não serem nem alea-tórios, nem programáveis, nem predizíveis, mas ainda estruturados e inter-pretados, é o que esperamos de coisas significantes (meaningful) para as quais novos significados são constantemente atribuídos sobre inesperadas reorganizações constantes.

Porém, Atlan mostra como objetos com geração aleatória parecem, às

vezes, ser verdadeiramente auto-organizados, e como, inversamente, objetos infinitamente sofisticados aparentam ser aleatórios. A partir daí, conclui que (p. 25):

Somente se tivéssemos um conhecimento infinito seríamos capazes de saber se esse objeto é parcialmente aleatório ou tem realmente uma sofisticação infinita.

Finaliza então, antes de sua Conclusão, recolocando a questão da

consciência real versus a mera simulação da consciência, sobre a qual escreve (p. 25):

Se mantivermos que, para nós, ser consciente (bem como ter entendimento (understading)) é computar de uma forma particular, então o computador verdadeiramente computa e, logo, faz mais que simular entendimento e consciência. Poderíamos sustentar que o computador, como uma mônada leibniziana hardware-software, realmente entende e é consciente. Se, por outro lado, sustentarmos – como sou inclinado a fazer – que nosso entendi-mento e consciência implicam não apenas computação, mas também (por exemplo) nossa digestão e respiração, que é, ao menos, o metabolismo de nossos neurônios, então o computador meramente simula certos resultados desse metabolismo, justamente como simula respiração sem respirar.

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Antes de se passar para a discussão da Conclusão de Atlan (1998), no início da seção seguinte, analisa-se o trabalho a partir do já foi apresen-tado até aqui.

2. CRÍTICA À PROPOSTA DE ATLAN 1998

Do já exposto, vê-se, então, a existência de um certo tipo de indução no método adotado por Atlan. Ver-se-á mais adiante como essa caracterís-tica, somada a considerações tomadas em princípio, ou como se, enfra-quece o seu argumento na justificação de uma teria física da intenciona-lidade.

Começar-se-á a análise crítica a partir do termo modelo utilizado por Atlan (1998). O termo ‘modelo’ possui pelo menos dois significados. O primeiro, que se denomina de computacional, é aquele de ‘modelo’ como um programa, ou um esboço de programa, que pode ser implementado em uma máquina. É basicamente o sentido do termo ‘modelo’ usado no Artigo.

O segundo significado do termo ‘modelo’, que se denomina cien-tífico, é uma espécie de método das ciências naturais. Esse sentido é analisado em detalhe nos estudos epistemológicos de G-G. Granger (cf. e.g. Granger, 1992 e 1995). Nessa acepção, o modelo estabelece um conjunto de todos os fatos possíveis, chamados de fatos virtuais, do sistema em consideração e as leis que determinam quais fatos virtuais se atualizarão na experiência sob dadas circunstâncias. Um exemplo é o modelo da mecânica lagrangeana, na qual se descreve todas as trajetórias possíveis dos corpos em um sistema mecânico e se dá uma lei, a lei de mínima ação, que nos diz, dadas as condições iniciais, qual será a evolução do sistema e, portanto, quais fatos (caminhos) virtuais devem se realizar. Granger (1988) argumenta ainda que essa noção abstrata de modelo pode ser utilizada na distinção do conhecimento científico sobre a realidade empírica de demais tipos de conhecimentos, como, por exemplo, do conhecimento filosófico. Observe-se que, nesse sentido, toda teoria científica implica na existência

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de um modelo, como, por exemplo, a teoria eletromagnética clássica, a tabela periódica e as possíveis ligações entre os elementos, o modelo do código genético na biologia contemporânea, etc. Por fim, note-se que o significado científico do termo ‘modelo’ utilizado aqui é mais amplo que o computacional.

Como observado, o significado do termo ‘modelo’ utilizado por Atlan (1998) é o computacional. Com efeito, não se descreve o conjunto de todos os fatos virtuais de intencionalidade e não se dá as leis de atualização desses fatos, mas apenas se esboça como alguns comportamentos, aos quais se atribui intencionalidade, poderiam vir a ser simulados por máquinas ou mesmo realizados por organismos biológicos.

Porém, apesar do significado adotado do termo ‘modelo’ ser o computacional, não se consegue saber, a partir do exposto no artigo, como implementar os mecanismos apresentados, como aqueles para a auto-observação, por exemplo, e nem mesmo se esclarece como a possibilidade de implementação dos mecanismos de memórias permiti-riam a auto-observação e o comportamento intencional. Parece haver apenas uma projeção daquilo que se reconhece, em linhas gerais, como intencionalidade em comportamentos que, em princípio, poderiam ser simulados por máquinas computacionais ou máquinas biológicas, ou físico-químicas.

Ora, mas essa sugestão, tomada apenas em princípio, ou mais especificamente, tomada como se, parece ser a tradução da incapacidade de detalhamento físico do processo de intencionalidade, pois, esboça algo que poderia vir a ocorrer; ou ainda, que ocorreria, adotado um certo ponto de vista, o que implica que a proposta de uma teoria física (científica) da intencionalidade seja mais uma interpretação (vaga) da intencionalidade como física.

Note-se, então, que não é a possibilidade de uma teoria física da intencionalidade que se discute aqui, mas em que medida essa possi-

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bilidade foi efetivamente apresentada pelos argumentos de Atlan (1998). Nesse ponto, a questão do método se torna mais relevante. Como se viu, há uma certa indução no método adotado por Atlan (1998). Ora, se se soma ao método da indução, a conjectura dos princípios e os como se adotados para interpretar os diversos passos dessa indução, ter-se-á, ao final, não um modelo no sentido científico, como uma teoria física da intencionalidade exigiria, mas uma exposição de um ponto de vista filosófico. O que poderia mostrar que esse é um ponto de vista possível, mas certamente não o mostra como necessário. Porém, mesmo tal possibilidade acaba ficando vaga, devido ao método geral adotado, indução mais os como se, que não fornecem o detalhe dos encadeamentos na construção do modelo.

Assim, um primeiro ponto a ser ressaltado é que não se atingiu a explicitação da possibilidade de uma teoria física da intencionalidade, devido à característica do tipo de exposição adotada, indução mais os “como se”, tornando a exposição da possibilidade de uma teoria (científica) física da intencionalidade mais uma interpretação (filosófica) da intencionalidade como física.

Pode-se confirmar essa insuficiência pela análise das conclusões de Atlan (1998, p. 29, cujo subtítulo é Modelando os modelos? Transcen-dentalidade da lógica e ética; mais adiante discutir-se-á a questão da auto-referencialidade de uma teoria da intencionalidade ou da atribuição de significados), que afirma que:

Entretanto, apesar desse tipo de modelo poder em princípio ajudar-nos a entender a formação dos conteúdos semânticos e da intencionalidade, deixa completamente intocada a questão da origem da lógica, ou razão, com sua peculiar capacidade de distinguir a verdade do erro. Poderia ser o caso de que nessa matéria, algum tipo de lógica fenomenológica seria ainda necessária.

Completa então afirmando algo análogo para a esfera da ética:

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O mesmo se mantém verdadeiro para a ética, que não determina apenas juízos cognitivos sobre o que é bom ou mal, mas também produz normas de comportamento para evitar o mal e procurar o bem. O aspecto normativo dos juízos morais é sobreposto às nossas atividades cognitivas e faz uso delas, mas é de natureza diferente. Parece vir de outra parte e, através de muitas transformações culturais, pode ter raízes arcaicas no direcionamento fisiológico de evitar a dor e procurar o prazer (Atlan , 1991b, 1995b). Em relação a nossas capacidades cognitivas abstratas, parece o caso, como Wittgenstein (1922) nos disse, que na verdade, apesar de em dois sentidos diferentes, lógica e ética são transcendentais.

Como se viu, significado e intencionalidade estão interrelacionados

na medida em que, por exemplo, o objeto intencionado tem significado para quem o intenciona, ou ainda, a própria relação entre meios e fins demanda significados-para-o-sistema, para a sua ordenação na busca do pretendido. Por outro lado, há uma relação geral entre verdade e signifi-cado: se há, entre os objetos ou ações x e y, a relação r, então r participa do significado de x e y (como, por exemplo, a relação r entre uma ação x que é um meio para se realizar determinado fim y). Porém, dizer que há, entre os objetos ou ações x e y, a relação r, significa dizer que é verdade que entre x e y há a relação r. Assim, necessariamente, uma teoria da intencionalidade ou da atribuição de significados está relacionada com a capacidade de distinguir o verdadeiro do falso. Mais ainda, a forma e o motivo de como se ordena tais juízos pelo sistema, i.e., sua lógica subjacente, está no cerne do comportamento intencional: uma teoria da intencionalidade ou da atribui-ção de significados tem que ser capaz de explicitar essa possibilidade e estabelecer, pelo menos parcialmente, sua necessidade, e não apenas expor em linhas gerais a vaga possibilidade da existência de um mecanismo físico da intencionalidade. Como se viu, Atlan (1998) declara, nas Conclusões, ter deixado intocada a questão dessa capacidade (bem como a do aspecto ético, ou ainda de valoração das ações para o sistema, que, ao nosso ver, deveria ser explicado por uma teoria da intencionalidade), mostrando a insuficiência do método apresentado.

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Unindo essa insuficiência confessada e o problema de método abor-dado anteriormente, conclui-se que Atlan (1998) não deu conta de expor uma direção para a elaboração efetiva de uma teoria física da intenciona-lidade. Na realidade, o artigo acaba mais por expor suas posições filosó-ficas a respeito da intencionalidade do que propriamente apresentar a possibilidade de uma teoria física da intencionalidade.

Com efeito, as características a seguir podem ser atribuídas à postura de Atlan (a maioria é auto-atribuída pelo próprio Atlan). As citações permi-tem tornar mais preciso o sentido de tais características.

Primeiramente, segundo Atlan (1998, p. 7), sua abordagem aqui é tanto emergentista como reducionista, logo, pode-se atribuir a ela essas duas características (p. 9):

Emergentista: [A abordagem] É emergentista, porque nós levamos a sério a possibilidade de propriedades emergentes em um sistema multinível, no sentido que, não apenas o todo é mais que as somas de suas partes, mas que propriedades globais, tanto estruturais como funcionais, são qualitativamente diferentes, e não podem ser preditas nos detalhes completos das propriedades individuais de seus constituintes.

Reducionista: [A abordagem] É reducionista, desde que propriedades emergentes não são meramente descritas, ainda menos usadas para explicar o comportamento do sistema, mas têm de ser explicadas causalmente, por nada mais que interações locais entre os constituintes que definam, em termos mecânicos, a dinâmica do sistema.

Pode-se atribuir-lhe ainda a característica de ser fisicalista, pois

como comenta Atlan (p. 9, na seqüência da citação anterior):

Na verdade, deste ponto de vista, tal abordagem é mesmo mais reducionista que o reducionismo tradicional, já que o objetivo desta sua pesquisa ou, melhor, deste programa de pesquisa, é algo como uma teoria física da intencionalidade.

Além dessas, pode-se dizer que a postura de Atlan (1998), em

relação ao conhecimento e à intencionalidade, é biologista. Para ilustrar a

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situação do seu biologismo de forma mais precisa, veja-se algumas conclusões da análise das metáforas do DNA-como-programa e do DNA-como-dado e do reducionismo associado a elas. Por exemplo, no caso do DNA-como-dado, Atlan afirma que (p. 14):

... a parte significativa das funções biológicas não deveria estar restrita às estruturas de DNA, mas à dinâmica das regulações citoplasmáticas, deter-minando diferentes padrões de atividade do genoma em diferente tipos de células de um organismo.

Mais adiante, em relação ao DNA-como-programa e DNA-como-dado, Atlan declara que (p. 14):

... nem uma das duas metáforas DNA-como-programa ou DNA-como-dado deveria ser tomada literalmente, desde que uma visão mais realística da célula deveria ser a de uma rede desenvolvida de reações metabólicas na qual um dado padrão da atividade genética determina a estrutura da rede metabólica; a dinâmica dessa rede pode levar a um estado estável temporário capaz, por vezes, de modificar o padrão de atividade genética, e assim por diante.

Pode-se dizer ainda que Atlan (1998) tem uma postura computa-cionalista: já que utiliza a implementação de modelos computacionais em seus estudos. Porém, ele comenta (p. 12 e p. 25):

Sem dúvida, a metáfora computacional tem algum vigor. Entretanto, ela tem uma deficiência maior: pressupõe a solução para o problema que supõe resolver, a saber, da origem de significado, sem a qual nenhuma computação pode ser significativa, e portanto não representa o comportamento inten-cional. ... No melhor dos casos, pode apenas simular o comportamento real e, mesmo então, sobre as condições de que um agente intencional externo, um ser humano teorizador, projete significados dentro dele. Em outras palavras, estas metáforas computacionais também tomam o significado como concedido, a saber, na forma das funções biológicas interpretadas como se máquinas naturais fossem intencionalmente programadas. Se nós mantivermos – como seríamos inclinados a fazer – que nosso conhecimento e consciência implicam não apenas computação, mas também (por exemplo) nossa digestão e respiração, isto é, ao menos o metabolismo dos nossos neurônios, então o computador meramente simula certos resul-tados do nosso metabolismo, justamente como simula a respiração sem respirar.

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Por fim, e aqui se expressa mais fortemente o caráter filosófico de sua postura, pode-se dizer que a postura de Atlan é spinozista, pois como ele afirma (p. 11 e p.26):

Nós podemos olhar Spinoza como uma filosofia capaz de suportar esta simetria entre a redução físico-química da consciência e a redução feno-menológica da físico-química. Estender ao infinito a análise dos sistemas auto-organizadores implica um tipo de abordagem spinozista pela qual nosso conhecimento e entendimento da natureza são vistos como parte de um entendimento infinito.

Poder-se-ia ainda identificar a possibilidade de sofisticação infinita e

de auto-organização verdadeira, como expressão de um conhecimento infinito não programável. Tem-se, portanto, que as bases para sua teoria física da intencionalidade são mais o fruto de suas próprias posições filosóficas a respeito da questão sobre elaboração de tal teoria do que, propriamente, fruto de resultados obtidos por ele ou fruto de um modelo, no sentido científico descrito acima, que permite explicar como é fisicamente possível a intencionalidade.

Entretanto, mesmo que o artigo não tenha atingido completamente o pretendido, deve-se reconhecer seu grande valor, por discutir questões tão amplas, importantes e difíceis, apresentando elementos concretos na tenta-tiva de sua solução, e por possibilitar a discussão mais detalhada, na sua complexidade, da possibilidade do conhecimento científico-tecnológico da intencionalidade e da atribuição de significados.

Na seção seguinte, conclui-se este trabalho com algumas considera-ções sobre a elaboração de uma teoria geral da intencionalidade ou da atribuição de significados auto-organizadas.

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3. CONSIDERAÇÕES SOBRE A ELABORAÇÃO DE UMA TEORIA FÍSICA DA AUTO-ORGANIZAÇÃO INTENCIONAL

Pode-se, então, a partir da análise da proposta de Atlan (1998) para a constituição de uma teoria física da intencionalidade, identificar uma dificuldade central no trabalho do próprio pesquisador ou filósofo que elabora teorias da intencionalidade ou, correlativamente, que elabora teorias da atribuição de significados, e que surge a partir da auto-referencialidade das noções envolvidas.

Propõe-se aqui a analisar essa auto-referencialidade para estabelecer uma forma de superação do problema, começando por uma análise da questão dos princípios em uma teoria.

O método adotado para superar a dificuldade apontada, será o de se buscar a explicitação e a adoção de certos metaprincípios, ou seja, de princípios sobre princípios.

Nesse sentido, designar-se-á inicialmente por Princípio de Anterio-ridade dos Princípios a própria afirmação da circularidade descrita acima, ou seja, a afirmação de que, em uma teoria, existe autodeterminação dos princípios a partir de si mesmos, mesmo se aceitando que a adoção dos princípios tenha que estar condicionada a que suas conseqüências não sejam contrárias aos fatos que se pretende explicar.

Note-se que, coerentemente com as análises realizadas nas seções anteriores, o Princípio de Anterioridade dos Princípios implica que o método adotado por Atlan (1998) (de indução mais os “como se”) não poderia ser suficiente para a constituição de uma teoria física da intencionalidade ou da atribuição de significados e que se torna necessário assumir certos outros princípios que, no caso de Atlan (1998), decorrem de uma aquiescência com princípios adotados na filosofia de Spinoza.

Tratando-se da questão da elaboração de uma teoria física da inten-cionalidade e da atribuição de significados, tem-se que uma tal teoria deve conter a explicitação de como atuais conceitos da física se correlacionam com o processo de atribuição de significados. Nesse caso, se se admite o

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Princípio de Anterioridade dos Princípios, é ele admitido como princípio, conjuntamente com os outros princípios físicos, o que implica, que o Princípio de Anterioridade dos Princípios deve estruturar a própria realidade física, sendo tal teoria física da intencionalidade, na qual se incorpora o Princípio da Anterioridade dos Princípios, uma extensão da Física atual, em uma espécie de teoria Física Generalizada. Ou ainda, nessa Física Generalizada deve haver a possibilidade de elaboração de teorias por sistemas físicos (capazes de atribuir significados), já que os autores das teorias devem ser encarados como sistemas físicos, e seus princípios devem regular também a manifestação de si mesmos na elaboração das teorias da atribuição de significados. O que leva a questão da possibilidade de auto-organização.

Em relação à possibilidade de auto-organização, tem-se que, uma teoria pode ou não admitir, por princípio, a existência de processos auto-organizados, ou ainda, verdadeiramente auto-organizados (adotando a terminologia de Atlan (1998)).

Chamar-se-á de Princípio de Auto-Organização à afirmação da existência de processos verdadeiramente auto-organizados (no caso de uma teoria da intencionalidade ou da atribuição de significados, o princípio referir-se-á à existência de processos auto-organizados intencionais ou de atribuição de significados para o sistema auto-organizado).

Se uma teoria física da intencionalidade ou da atribuição de signi-ficados admite o Princípio de Auto-Organização, tem-se que a teoria não pode pretender explicitar completamente o próprio processo de elaboração de significados, pois com isso eliminaria a possibilidade de auto-organização. O Princípio de Auto-Organização e o Princípio da Anterio-ridade dos Princípios implicam na existência de uma infinidade de princípios que estruturam a realidade física, não sendo possível descrevê-los finitamente.

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Designar-se-á por Princípios de Auto-Organização dos Princípios à afirmação da existência de processos verdadeiramente auto-organizados na elaboração de teorias da atribuição de significados.

Assim, além de estabelecerem de forma geral o funcionamento de outros sistemas auto-organizados que atribuem significados, as teorias da atribuição auto-organizada de significados teriam princípios auto-organi-zadores capazes de regular a elaboração de teorias, como o Princípio de Auto-Organização dos Princípios, e seriam, portanto, teorias auto-regula-doras e auto-organizadas. Tem-se, pois, que a adoção de ambos princípios, o Princípio de Anterioridade dos Princípios e o Princípio de Auto-Organização, por uma teoria da atribuição de significados, implica numa reelaboração do próprio significado do termo ‘teoria’, implicando que deva ser possível conceber e aceitar teorias auto-organizadas.

Nessa perspectiva, é importante uma fundamentação das teorias auto-organizadas de forma análoga àquela que se faz em Debrun (1996a, 1996b e 1996c), na qual, como parte de um processo auto-organizador de si mesmo, é realizada uma análise do significado do termo “auto-organização”, bem como também faz uma análise semântica de cada novo termo introduzido pela teoria, no desenvolvimento de si mesma. Com efeito, Debrun (1996b), em seu início, afirma que (o grifo final é nosso):

A idéia de auto-organização situa-se na encruzilhada da idéia de “organi-zação” e da intuição que temos do prefixo "auto". Esse termo é uma âncora lingüística, constantemente relacionada com nossa experiência do mundo. Em particular com nossa percepção da interação – causal, moral, política – entre indivíduos ou coletividades, e com a avaliação que fazemos dos seus respectivos graus de autonomia e auto-afirmação. Nessas condições, uma definição de "auto-organização" que não fosse admissível pelo Senso Comum, em relação ao sentido atribuído explícita ou implicitamente a "auto", se tornaria arbitrária, gratuita. É o que ocorre com formulações do tipo proposto por H. von Foerster (1960), quando vê a auto-organização como o "aumento da redundância num sistema" ou "a diminuição da entropia num sistema". Não que tais definições sejam forçosamente erradas. Apenas não fazem sentido, enquanto não puderem ser conectadas com tal ou qual intuição, atual ou potencial, do Senso Comum, e nela enraizadas. Haveria, por exemplo, de se mostrar que as definições de von Foerster

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apontam para um aspecto, uma condição ou uma conseqüência da auto-organização, tal como terá sido definida intuitivamente. Trata-se portanto de explorar o Senso Comum – no duplo sentido de desvendá-lo e utilizá-lo, sistematizando ou tornando mais complexas suas sugestões –, nunca de superá-lo.

Tem-se então que, em linhas gerais, tais teorias auto-organizadas

(da auto-organização intencional ou da atribuição auto-organizada de significados) manteriam constantes alguns de seus termos, em seus processos de auto-organização, devido à própria manutenção de suas identidades, porém, os significados atribuídos aos seus termos se modificariam (por exemplo, ampliando-se, ou tornando-se mais precisos, etc.) com a própria auto-organização da teoria. Por exemplo, é isso o que ocorre com o próprio termo ‘auto-organização’ em Debrun (1996b), cujo significado sofre diversas reelaborações tornando-se cada vez mais determinado. Pode-se analisar sob esse mesmo prisma a elaboração de outras teorias da auto-organização, como por exemplo, a de Morin (1977/1991).

Assim, as partes dessas teorias de auto-organização podem até vir a ser detalhadas por modelos, ou ainda, por sistemas formais, porém, devido ao Princípio de Auto-Organização, ou ainda, da existência de processos auto-organizados de atribuição de significados, nunca se obterá uma modelização ou axiomatização final e completa da teoria. Note-se ainda, em relação à elaboração de modelos como caracterizado neste trabalho, que uma teoria auto-organizada da atribuição de significados não estabelece um único modelo (nem no sentido computacional, pois não é programável; nem no sentido científico, pois não se tem como estabelecer todos os fatos virtuais e as leis que os atualizam, já que há auto-organização verdadeira). Porém, nessa visão, as construções dos diversos modelos da atribuição de signifi-cados permitem uma compreensão cada vez melhor dos detalhes do processo e mostram como, para um conjunto determinado de casos, as noções da teoria se correlacionam com resultados já obtidos e organizados pelos

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modelos. Haveria uma constante construção de modelos com complexidade crescente, já que os resultados previstos por cada novo modelo englobam os resultados previstos pelos anteriores, sendo essa possibilidade necessária da construção dessa seqüência de modelos, uma das conseqüências da teoria ser auto-organizada.

Com relação aos universos de discurso dessas teorias, tem-se que eles só podem ser considerados compreensíveis, no processo de auto-organização da teoria, sob a condição de serem entendidos como se autodiferenciando, se auto-organizando e, nesse sentido, se autogerando, estando previsto ainda que, nesses universos, existirão teorias auto-organizadas que se referem a si mesmas e descrevem a auto-organização da atribuição de significado.

Tem-se ainda que uma teoria auto-organizada da auto-organização intencional ou da atribuição auto-organizada de significados deve implicar também em uma noção auto-organizada de “entendimento” ou uma noção de entendimento auto-organizado. Pode-se encontrar um exemplo de enten-dimento que se auto-organiza, particularmente, em relação à Lógica e à Matemática, em Tassinari (2003).

A partir dessas conclusões, seria interessante analisar como certas noções específicas como a de atribuição de significados, de auto-organi-zação, de entendimento, provocam uma reelaboração constante de seus significados. Porém, isso ultrapassa as pretensões do presente trabalho.

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