SOBRE A INCOMUNICABILIDADE HUMANA - teses.usp.br · Eu e o Outro, passagem esta impossibilitada...

136
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES CLAUDENIR MODOLO ALVES SOBRE A INCOMUNICABILIDADE HUMANA SÃO PAULO 2009

Transcript of SOBRE A INCOMUNICABILIDADE HUMANA - teses.usp.br · Eu e o Outro, passagem esta impossibilitada...

0

UNIVERSIDADE DE SO PAULO

ESCOLA DE COMUNICAES E ARTES

CLAUDENIR MODOLO ALVES

SOBRE A INCOMUNICABILIDADE HUMANA

SO PAULO

2009

1

CLAUDENIR MODOLO ALVES

SOBRE A INCOMUNICABILIDADE HUMANA

Dissertao apresentada ao Programa de

Ps-graduao em Cincias da

Comunicao, rea de Concentrao Teoria

e Pesquisa em Comunicao, Linha de

Pesquisa Epistemologia, Teoria e

Metodologia da Comunicao, da Escola de

Comunicaes e Artes da Universidade de

So Paulo, como exigncia parcial para

obteno do Ttulo de Mestre em Cincias

da Comunicao, sob orientao do Prof. Dr.

Ciro Marcondes Filho.

So Paulo

2009

2

CLAUDENIR MODOLO ALVES

SOBRE A INCOMUNICABILIDADE HUMANA

Dissertao apresentada ao Programa de

Ps-graduao em Cincias da

Comunicao, rea de Concentrao Teoria

e Pesquisa em Comunicao, Linha de

Pesquisa Epistemologia, Teoria e

Metodologia da Comunicao, da Escola de

Comunicaes e Artes da Universidade de

So Paulo, como exigncia parcial para

obteno do Ttulo de Mestre em Cincias

da Comunicao, sob orientao do Prof. Dr.

Ciro Marcondes Filho.

So Paulo

2009

3

__________________________________________________

__________________________________________________

__________________________________________________

4

Dedico este trabalho a minha esposa, amiga e

companheira Daniela Christiane Blank, que me

ensinou o princpio relacional da vida.

5

AGRADECIMENTOS

Encontramos pessoas em nossas vidas. So estrangeiras, pessoas presentes, porm

sempre ausentes e desejamos sobre elas nunca o poder de poder. Nestes encontros trocamos

algo, revelamos um pouco do nosso caminho e temos presente a sua face. O outro lana-nos

para um mais alm, o movimento para o infinito.

Agradeo Daniela Christiane Blank, esposa, amiga e companheira, pela

experincia do encontro e da relao. Experincia esta, que me fez viver a alteridade de

outrem feminino e viver o espao do dilogo.

Agradeo o encontro com o professor e orientador que se fez amigo, Ciro

Marcondes. Estes encontros sempre me lanaram para mais alm, sempre mais humano. As

idias, as palavras destes encontros nunca eram vazias, pelo contrrio, densas de

autenticidade e vida.

Ao amigo sempre presente, Renold Blank, agradeo pelo dilogo inquietante, que

com a fora de um jovem admirador do mundo, apaixonou-se de Deus e do homem.

Agradeo Christiane Blank, que carinhosamente apontou o caminho da persistncia e

esteve presente ao longo destes anos.

No posso esquecer-me dos encontros com o Prof. Franklin, que leu parte deste

trabalho e do meu amigo Valdir de Castro, que me aproximou do mundo da comunicao.

Aos meus familiares, que desde cedo me ensinaram os laos da relao, que atravessaro a

vida, especialmente em memria ao meu av, Sebastio Caetano.

*

Esta pesquisa fruto do espao pblico, ECA-USP, CAPES e principalmente dos

cidados que pagam os seus impostos.

6

RESUMO

Esta dissertao versa sobre a incomunicabilidade humana. A pergunta problematizadora

que temos como objetivo aprofundar : o ser humano , ontologicamente, um ser capaz de

se comunicar? ou de outra forma: possvel a existncia da comunicao? A hermenutica

imanente dos textos de natureza filosfica, seguida da reflexo analtica, nos aproxima da

problemtica sobre a incomunicabilidade humana, iluminando os enfoques chave do estado

instaurado de incomunicao radical e generalizada, por outro lado a possibilidade do ser

de relacionar-se e abrir a comunicao para sua existncia. A possibilidade do ser humano

de relacionar-se mnima no sistema planetrio de comunicao, o que nos faz concluir

que vivemos na era da incomunicabilidade humana, por primeiro da incomunicabilidade

entre eu e o outro.

Palavras-chave: sistema planetrio de comunicao, incomunicabilidade humana, eu e o

outro, exterioridade, infinito.

Obs. Este trabalho foi desenvolvido sob o horizonte do projeto Nova Teoria da

Comunicao, no FILOCOM da ECA-USP.

7

ABSTRACT

This dissertation deals with human incommunicability. We intend to further study the

following problematizing issue: Ontologically speaking, is the human being capable of

communicating? In other words: can communication exist? The immanent hermeneutics of

philosophical texts, followed by analytical reflection, leads us to the problem of human

incommunicability, throws light on key approaches to the state of radical and generalized

incommunication, and, on the other hand, the possibility for human beings to establish

relationships and open lines of communication for their survival. The planets

communication system allows for minimal possibilities of human beings establishing

relationships; we have, therefore, to conclude that we live in an era of human

incommunicability, starting with the incommunicability between the self and others.

Key words: planets communication system, human incommunicability, self and others,

exteriority, infinite.

Note: This paper was developed within the scope of the Nova Teoria da Comunicao

(New Communication Theory) project at FILOCOM (ECA-USP).

8

SUMRIO

Introduo.............................................................................................................................11

I parte

Em busca de horizontes para a compreenso da comunicao.............................................13

1. O atual horizonte da planetarizao..................................................................................13

2. O sistema comunicacional planetrio................................................................................20

3. Absolutizao e universalizao do sistema comunicacional planetrio..........................23

3.2 A grande esfera: mquina oracular.................................................................................25

3.2.1 Tecnologias e a comunicao......................................................................................26

3.2.2 Cultura..........................................................................................................................28

3.3 O que isso? A coisa...................................................................................................30

4. Qual a condio do homem diante do sistema planetrio de comunicao?..................33

4.1 Desconexo da vida.........................................................................................................35

4.2 No pensar.......................................................................................................................36

5. Comunicao como problema...........................................................................................37

6. Cinco teses problematizadoras da comunicao...............................................................41

Obra de referncia 1..............................................................................................................45

Obra de referncia 2..............................................................................................................47

II Parte

Eu e o Outro..........................................................................................................................50

1. Categoria particular de anlise eu e o outro......................................................................50

2. A incomunicabilidade humana..........................................................................................51

3. Ruptura primeira...............................................................................................................55

9

4. Solido do Ser...................................................................................................................59

5. Ruptura primeira e o comprometimento do dilogo.........................................................61

6. Alteridade..........................................................................................................................62

7. Alteridade e razo (a)........................................................................................................66

8. Princpio racional da comunicao...................................................................................70

9. Alteridade e razo (b)........................................................................................................71

10. A comunicao e o princpio da razo identificadora.....................................................74

11. Princpio da incomunicabilidade humana.......................................................................77

Obra de referncia.................................................................................................................80

III Parte

Alteridade..............................................................................................................................92

1. Porque insistimos em nos comunicar?..............................................................................92

2. Pressupostos da comunicao a partir da perspectiva de Martin Buber: dilogo.............93

3. Dilogo como possibilidade para a existncia da comunicao.......................................94

4. Homem cuja palavra-princpio EU-TU, abre-se para o acontecimento da comunicao.97

5. Quem provoca o EU?......................................................................................................101

6. ISSO................................................................................................................................104

7. Desestabilidade das certezas...........................................................................................105

8. Homem: ser relacional....................................................................................................106

10. (a) Implicaes sobre a incomunicabilidade humana...................................................109

11. Pressupostos da comunicao a partir da perspectiva de E. Levinas: a alteridade.......111

12. Alteridade e infinito......................................................................................................115

13. Exterioridade.................................................................................................................118

14. Exterioridade, o diferente e o horizonte para alm (infinito)........................................119

10

15. (b) Implicaes sobre a incomunicabilidade humana...................................................120

Obra de referncia...............................................................................................................123

Concluso............................................................................................................................126

Bibliografia.........................................................................................................................128

11

INTRODUO

H um elemento que caracteriza o homem contemporneo: a comunicao. Queira

este homem ou no, localizado nos grandes centros ou nos sertes, ele tocado por algum

meio de comunicao. Seu mundo j no mais o mesmo, pois cada vez mais depende de

algum meio de comunicao para referenciar sua vida. As diversas reas das atividades

humanas, desde as econmicas s religiosas, so afetadas por algum meio de comunicao,

de modo a realizar profundas transformaes na sociedade e na cultura.

corrente a afirmao que a sociedade contempornea est sob a gide do imprio

das comunicaes. Esta a temtica da primeira parte desta dissertao, onde buscamos um

cenrio para a sociedade contempornea, denominado de: sistema planetrio de

comunicao. O dogma construdo por esta sociedade de que tudo se comunica. Os

sistemas sociais se comunicam, as culturas se comunicam, os sistemas bancrios esto

interligados por uma rede de comunicao, as indstrias operam por bases tecnolgicas de

comunicao. Em ltima instncia, o homem um ser para a comunicao.

Para ns, o problema da comunicao no est alocado nas tecnologias ou nos

signos, que podem resolver suas contradies atravs de suas prprias operaes. Para ns,

a questo primeira da comunicao o homem. a este que, em ltima instncia,

endereamos a questo: o ser humano , ontologicamente, um ser capaz de se comunicar?

Esta a problemtica desenvolvida na segunda parte desta dissertao. Apoiando-nos por

um lado na leitura de textos semitas, percebemos a ruptura primeira entre os homens donde

a incomunicao humana. Por outro lado, a leitura de textos gregos antigos, nos remete ao

processo identificatrio da razo e o solipsismo humano, donde tambm a incomunicao

radical entre os homens.

Conscientes da incomunicao instaurada entre os homens, na terceira parte desta

dissertao, buscamos uma passagem para a existncia da comunicao. Um princpio ou

uma esperana nos dada em certa abertura do homem para a relao. A pergunta: o ser

humano , ontologicamente, um ser capaz de se comunicar? Encontra sua resposta na

positividade mnima da afirmao do ser humano para a relao. Porm, esta abertura,

consiste num movimento rduo, pois primeiro deve-se re-estabelecer uma passagem entre

12

Eu e o Outro, passagem esta impossibilitada pela ruptura primeira, segundo arrancar o

homem de si mesmo (seu solipsismo) e de seu processo racional de identificao.

Posicionamo-nos, desta forma, diante de dois paradigmas. O primeiro o estado

instaurado de incomunicao radical e generalizado, o segundo a possibilidade do ser

relacionar-se e abrir a comunicao para sua existncia. No primeiro instaura-se o sistema

planetrio de comunicao, no segundo a improbabilidade da existncia da comunicao. O

que nos faz afirmar a era da incomunicabilidade humana. O rduo trabalho que possibilita

uma passagem para a existncia da comunicao uma profunda converso do homem a

Outrem. Quem est disposto a tal converso? possvel que o homem encontre foras em

si que o lancem a Outrem?

A pergunta problematizadora que nos acompanha como pano de fundo por todo este

trabalho : o ser humano , ontologicamente, um ser capaz de se comunicar? Ou de outra

forma: possvel a existncia da comunicao? Esta pergunta anterior quela o que

comunicao?, pois remete-nos ao prprio ser humano. Este o lugar primeiro da

comunicao: o homem. Portanto, implica sobre a existncia da comunicao a condio de

ser humano.

13

I PARTE

EM BUSCA DE HORIZONTES PARA A COMPREENSO DA

COMUNICAO

Homens que no sabem nem escutar nem falar.

(Herclito, fragmento 19)

1. O atual horizonte da planetarizao

1.1 necessrio buscar horizontes para compreendermos a comunicao. Com essa

tarefa, estamos hoje diante de fenmenos totalmente novos. Na poca atual, a comunicao

perpassa a vida cotidiana das pessoas de forma incondicional: antenas, celulares, jornais,

internet, aparelhos nanotecnolgicos expansores de nossos sentidos, criaes constantes de

novos meios e modos para nos comunicarmos num tempo nfimo, independente do espao

em que estejamos. As tecnologias de transmisso de dados esto em plena evoluo e o

indivduo, queiro ou no queira, vive cada vez mais dentro de um sistema planetrio de

comunicao. Nosso comportamento dirio est ligado a algum meio de comunicao,

dependemos, pensamos, sentimos com estes meios. Incondicionalmente, somos afetados

pelos meios de comunicao. Nossa condio de Ser homem, na sociedade atual, pode ser

descrita assim: Ser com os meios de comunicao.

Raramente h no planeta pessoas ou grupos humanos que no sejam expostos

diariamente a alguma informao mediada. Um homem se faz desta experincia e desta

experincia se faz uma sociedade, sendo a comunicao condio desta nova sociedade. Ela

oferece aos seus integrantes a oportunidade de participar de um novo sistema social, cujo

funcionamento se baseia na posse do maior nmero possvel de dados, formando na sua

base, estruturas sociais complexas. Alguns autores denominam este momento de sociedade

da comunicao, como por exemplo Lyotard em sua obra A condio ps-moderna, alm

de Lucien Sfez em sua obra Crtica da comunicao. H tambm outros pensadores que

aprofundam a questo para a filosofia (cf.1.1.2.1).

14

No possvel afirmar que o mundo o mesmo1. Todavia, este mundo nos desafia.

Para compreendermos os novos fenmenos da comunicao planetarizada, precisamos

buscar novos olhares, novas leituras e novos horizontes. A presena de uma outra

sociedade, um outro homem, outros valores, novas relaes exigem novos mtodos, novas

explicaes e novas interpretaes.

1.1.1 decorrente desta necessidade que constatamos que a cincia da comunicao

v-se em crise metodolgica diante do fenmeno contemporneo da comunicao. Os

atuais mtodos empricos de anlise, assim como a hermenutica tradicional, revelam-se

insuficientes diante do complexo sistema comunicacional, na presente sociedade. dentro

deste quadro que se justifica o objeto do presente estudo: a comunicao.

Enquanto mtodo, as suas indagaes-chave so as seguintes: possvel analisar

objetivamente o fenmeno da comunicao? possvel um mtodo racional-cientfico que

explique os fenmenos comunicacionais? Por exemplo: permanece a impossibilidade do

mtodo cientfico para averiguar a subjetividade, aferir ainda as intencionalidades, o

imaginrio. Averiguar se a mensagem X, dada ao sujeito B, pelo sujeito A, ainda continuar

X, aps sua assimilao e introjeo, ou ser X?

Enquanto cincia moderna, a comunicao encontra dificuldade para afirmar-se

como tal. Seus mtodos oriundos da sociologia, da psicologia, das matemticas

quantitativas e ou qualitativas, de certa forma a limitam, enquanto desenvolvimento de si

mesma. Fazendo desta uma disciplina dependente, a comunicao entendida como saber

interdisciplinar. Utiliza os mtodos sociolgicos para explicar certos fenmenos, ainda da

psicologia para interpretar estes mesmos fenmenos. A comunicao em si torna-se

1 Exemplo tpico dessas transformaes a progressiva importncia da internet na procura de

informaes. Conforme resultados de pesquisas do Instituto de Allensbach, na Alemanha, para

receber informaes, os jovens de 14 a 17 anos, recorreram nas seguintes propores ao uso da rede

mundial: em 1999: 18 %, em 2002: 52 %. No mesmo perodo, o uso dos meios clssicos como

revistas e jornais, diminuiu de 46% para 44% no que diz respeito s revistas; e de 38% para 37%

para os jornais. Conf: Allensbacher Markt-und Werbetrgeranalysen 1999-2002, em: STEINLE &

WIPPERMANN, Die neue Moral der Netzwerkkinder, Piper, Mnchen-Zrich, 2003. Obs.

Traduo do original por Daniela Blank.

15

subdesenvolvida quando necessita explicar os fenmenos tpicos da comunicao. Por

exemplo: o que a comunicao?

1.1.2 O mtodo cientfico moderno exige a matria (empiria). Esse mtodo

possibilita a objetividade, a aferio, o controle e a verificabilidade. Diante disto, a

comunicao cria modelos funcionais e verificveis, baseando-se em instrumentos

mensurveis como a linguagem, vigorando-se como cincia. A comunicao planetarizada,

diante deste imperativo, exige uma mudana do conceito de mtodo cientfico. Porm, a

questo da comunicao no est resolvida. Permanece a questo: o que a comunicao?

possvel comunicar-se?

Lewis Carroll, em seu livro Aventuras de Alice no pas das maravilhas, aponta para

algumas questes da comunicao, que vo alm do mtodo cientfico e da empiria

exigidos pela cincia.

Como, porm, nessa garrafa no estava escrito veneno, Alice se arriscou a provar e,

achando o gosto muito bom (na verdade, era uma espcie de sabor misto de torta de cereja,

creme, abacaxi, peru assado, puxa-puxa e torrada quente com manteiga), deu cabo dela num

instante. (2002, p. 17)

A questo da comunicao em Lewis Carrol afeta no somente a linguagem em si

...nessa garrafa no estava escrito veneno, onde a palavra veneno significa perigo de

vida a qualquer homem. A linguagem cumpre seu papel lgico e semntico. Porm, no d

conta do ...achando o gosto muito bom (na verdade, era uma espcie de sabor misto de

torta de cereja, creme, abacaxi, peru assado, puxa-puxa e torrada quente com manteiga). A

comunicao em Carrol, Aventuras de Alice no pas das maravilhas2 avana para as

complexidades: imaginrio, atemporal, criao, incorpreos, acontecimento etc.

2 A obra de Lewis Carrol Aventuras de Alice no pas das maravilhas uma obra esfrica, lida por

psiclogos, filsofos, matemticos, fsicos, crianas e tantos outros. Inquieta a comunicao em si,

pois: A obra de Lewis Carroll tem tudo para agradar ao leitor atual: livros para crianas, de

preferncia para meninas; palavras esplndidas, inslitas, esotricas; crivos, cdigos e

decodificaes; desenhos e fotos; um contedo psicanaltico profundo, um formalismo lgico e

lingstico exemplar. E para alm do prazer atual algo de diferente, um jogo do sentido e do no-

senso, um caos-cosmos. Mas as npcias da linguagem [grifo nosso] e do inconsciente foram j

16

A comunicao torna-se uma experincia, um acontecimento, uma novidade

dificilmente capturada pelos mecanismos das cincias lingsticas. Onde entra em cena o

imaginrio, o subjetivo, o sentir, o primitivo. O fenmeno comunicacional estranho, pois

novo, e faz esquecer como se fala direito (linguagem estruturada). Cada vez mais

estranhssimo!, exclamou Alice, a surpresa fora que por um instante realmente esqueceu

como se fala direito [grifo nosso] (idem, p. 19).

1.1.2.1 Neste trabalho, porm, no objetivo nosso debruarmos sobre a

problemtica do mtodo e sim da comunicao. Daremos prioridade filosofia como

caminho de explicao e interpretao do fenmeno da comunicao. A filosofia permite

olhares mltiplos, buscando o todo do fenmeno. Neste caminho relacional entre filosofia e

comunicao, estudiosos divergem quanto situao de uma e de outra, embora todos

concordem que a comunicao mantm estreita relao com a filosofia e vice-versa. H

aqueles que se ocuparam da filosofia da linguagem como Wittgenstein Tractatus lgico-

philosophicus, outros ainda com uma filosofia da comunicao como Karl-Otto Apel

Transformao da filosofia I: filosofia analtica, semitica, hermenutica e Transformao

da filosofia II: o a priori da comunidade de comunicao. Ciro Marcondes Filho, pensando

a comunicao a partir da filosofia, remete a comunicao ao campo da filosofia por

primeiro:

Ela projeto nova teoria da comunicao [acrscimo nosso] integra um projeto de lenta

maturao que buscou rever a reflexo sobre a comunicao desde os primeiros passos da

filosofia at nossos dias. Isso porque acreditamos que a comunicao pertence, em primeiro

lugar, ao campo da filosofia e somente depois aos campos derivados da lingstica,

semiologia, semitica e das teorias gerais de smbolos. E por pertencer antes ao campo da

filosofia, a comunicao jamais pode integrar outro campo, como os das linguagens; ao

contrrio, so as cincias da linguagem que devem subsumir-se ao campo mais amplo; as

contradas e celebradas de tantas maneias que preciso procurar o que foram precisamente em

Lewis Carroll, com o que reataram e o que celebraram nele, graas a ele. Gilles Deleuze em seus

estudos sobre o sentido ou teoria do sentido, atribui a Carroll lugar privilegiado. O lugar

privilegiado de Lewis Carroll provm do fato de que ele faz a primeira grande conta, a primeira

grande encenao dos paradoxos do sentido, ora recolhendo-os, ora renovando-os, ora inventando-

os, ora preparando-os (Gilles Deleuze, Lgica do sentido, prlogo).

17

linguagens so [acrscimo prprio autor] um estudo setorial3. (O escavador de silncios:

formas de construir e de desconstruir sentidos na comunicao, 2004, p.11)

1.2 O horizonte de leitura e da pesquisa do presente trabalho permanece, assim, a

comunicao. No nos ocuparemos em definir o que comunicao. Uma outra pergunta,

anterior a esta, nos acompanha: o ser humano , ontologicamente, um ser capaz de se

comunicar? ou de outra forma: possvel a existncia da comunicao?

Para tanto, no nos preocuparemos com as relaes estabelecidas entre a

comunicao e outros saberes humanos, mas com a questo do prprio ser da comunicao.

Para ns, a comunicao elemento amalgamador da sociedade e do homem, fenmeno

constituinte da vida presente (1.1). Mais que aplicao tcnica e representaes sociais, a

comunicao compreende-se como problema, o que veremos abaixo (cf. 5).

1.2.1 Quando hoje nos deparamos com o termo comunicao, ficamos surpresos ao

verificar que este termo passou despercebido pelo gnio grego antigo, pelos medievais e

pelos modernos. Afirmamos despercebido no sentido de que a comunicao no foi

assumida como problema. Porm, desde quando a comunicao tornou-se um problema?4

Entender a comunicao como problema reconhecer o espao por ela ocupado na

3 O problema relacional entre filosofia e comunicao, diferentemente da relao entre filosofia e

cincia, amplamente debatido na modernidade, foi pouco abordado na filosofia moderna e

contempornea. Todavia este um problema que no aprofundaremos nesta pesquisa.

4 Eric Hobsbawm, enquanto historiador, no esta preocupado com a questo da comunicao em si,

porm nota fato comum era da comunicao: esquecimento. A destruio do passado ou

melhor, dos mecanismos sociais que vinculam nossa experincia pessoal das geraes passadas

um dos fenmenos mais caractersticos e lgubres do final do sculo XX. Quase todos os jovens

de hoje crescem numa espcie de presente contnuo [grifo nosso], sem qualquer relao orgnica

com o passado pblico da poca em que vivem. Por isso os historiadores, cujo ofcio lembrar o

que outros esqueceram, tornam-se mais importantes que nunca no fim do segundo milnio. Por esse

mesmo motivo, porm, eles tm de ser mais que simples cronistas, memorialistas e compiladores.

Em 1989 todos os governos do mundo, e particularmente todos os ministrios do Exterior do

mundo, ter-se-iam beneficiado de um seminrio sobre os acordos de paz firmados aps as duas

guerras mundiais, que a maioria deles aparentemente havia esquecido [idem]. Eric Hobsbawm.

Era dos extremos: o breve sculo XX 1914-1991, p. 13.

18

constituio da sociedade presente, na vida cotidiana das pessoas, no modo de produo e

no processo do conhecimento. Tal enfoque implica necessariamente reconhecer que

estamos hoje, em comparao s pocas passadas, diante de mudanas estruturais

fundamentais. Uma destas mudanas a acelerao do processo da evoluo social.

Vivemos hoje em sociedades de mudana constante. Elemento decisrio destas sociedades

em estado de constante mudana, porm, a comunicao. O termo comunicao aqui

utilizado remete ao conceito comum, empregado em emisso e recepo, signos,

codificao e decodificao de sinais e ou linguagens. Este conceito ser criticado nos

itens cinco e seis, mais especificamente na segunda parte deste trabalho. A comunicao

assumida em sua positividade na terceira parte desta dissertao.

A comunicao onipresente, comeando com os slogans e textos de propaganda

em canetas, broches, chinelos, folders, campanhas eleitorais presidenciais; da, ela passa

aos meios que se estruturam a partir da comunicao em si: jornais, revistas, televiso,

internet, rdio etc. Todo fenmeno ou objeto tocado pela comunicao. Em tudo est

fixado um signo. Esse fenmeno caracterizado por Jean-Franois Lyotard da seguinte

maneira:

O si mesmo pouco, mas no est isolado; tomado numa textura de relaes mais

complexa e mais mvel do que nunca. Est sempre, seja jovem ou velho, homem ou mulher,

rico ou pobre, colocado sobre ns dos circuitos de comunicao, por nfimos que sejam.

prefervel dizer: colocado nas posies pelas quais passam mensagens de natureza diversa. E

ele no est nunca, mesmo o mais desfavorecido, privado de poder sobre estas mensagens

que o atravessam posicionado-o, seja na posio de remetente, destinatrio ou referente. (A

condio ps-moderna, 2006, p. 28)

Lyotard evidencia a comunicao como sendo um problema do sistema

performtico. A comunicao constitui uma das teses lyotardianas divisora de guas entre o

moderno e o ps-moderno, tornado-se a textura ps-moderna desta sociedade e a condio

da mesma.

...numa sociedade em que a componente comunicacional torna-se cada dia mais evidente,

simultaneamente como realidade e como problema... Expondo-se este problema [a

componente comunicacional] em termos simples da teoria da comunicao, se estaria

esquecendo de duas coisas [problematiza Lyotard [1]]: as mensagens so dotadas de formas

19

e de efeitos bastante diferentes, conforme forem, por exemplo, denotativas, prescritivas,

avaliativas, performativas etc. certo que elas no operam apenas na medida em que

comunicam informaes. Reduzi-las a esta funo adotar uma perspectiva que privilegia

indevidamente o ponto de vista do sistema e seu nico interesse. Pois a mquina

ciberntica que funciona pela informao, mas, por exemplo, os fins que lhe so dados

quando de sua programao provm de enunciados prescritivos e avaliativos que ela no

corrigir no curso do funcionamento, por exemplo, a maximizao de suas performances.

Mas como garantir que a maximizao das performances constitui sempre o melhor fim para

o sistema social?... [2]... a teoria da informao em sua verso ciberntica trivial deixa de

lado um aspecto decisivo, j evidenciado, o aspecto agonstico. Os tomos so colocados em

encruzilhadas de relaes pragmticas, mas eles so tambm deslocados pelas mensagens

que os atravessam, num movimento perptuo. Cada parceiro de linguagem sofre por ocasio

dos golpes que lhe dizem respeito um deslocamento, uma alterao, seja qual for o seu

gnero, e isto no somente na qualidade de destinatrio e de referente, mas tambm como

remetente... (idem, 2006, p. 29-30)

1.2.1.1 A afirmao da comunicao como problema epistmico e humano imbrica-

se nas diversas reas de atuao comunicacional. Eric Hobsbawm observa a comunicao

como problema central na gestao do sculo XXI, um marco de profunda transformao

social.

Entre 1914 e o incio da dcada de 1990 o globo foi muito mais uma unidade operacional

nica, como no era e no poderia ter sido em 1914. Na verdade, para muitos propsitos,

notadamente em questes econmicas, o globo agora a unidade operacional bsica, e

unidade mais velha como as economias nacionais, definidas pelas polticas de Estados

territoriais, esto reduzidas a complicaes das atividades transnacionais. O estgio

alcanado na dcada de 1990 na construo da aldeia global expresso cunhada na

dcada de 1960 (McLuhan, 1962) no parecer muito adiantado aos observadores de

meados do sculo XXI, porm j havia transformado no apenas certas atividades

econmicas e tcnicas e as operaes da cincia, como ainda importantes aspectos da vida

privada, sobretudo devido inimaginvel acelerao das comunicaes e dos transportes.

Talvez a caracterstica mais impressionante do fim do sculo XX seja a tenso entre esse

processo de globalizao cada vez mais acelerado e a incapacidade conjunta das instituies

pblicas e do comportamento coletivo dos seres humanos de se acomodarem a ele.

curioso observar que o comportamento humano privado teve menos dificuldade para

20

adaptar-se ao mundo da televiso por satlite, ao correio eletrnico, s frias nas Seychelles

e ao emprego transocenico. (2006, p. 24)

2. O Sistema comunicacional planetrio

O primeiro passo nessa anlise , necessariamente, a questo sobre o que constitui

este sistema comunicacional planetrio? A priori, ele organicamente a elaborao da

sociedade interdependente. Notemos que h uma complexa interao entre os meios de

comunicao e as mais diversas reas da constituio social. Meios de comunicao e a

economia, a poltica, as religies, os meios de comunicao e sua re-inveno tecnolgica,

e a prpria comunicao. O que nos leva concluso do sistema planetrio de

comunicao: uma fora que se constitui permanentemente, ordenada para agir individual e

planetariamente sobrevive por si, racionalizada, performtica e independente de certa

materialidade. Esta fora transforma no s as interaes atuais. Ela decide tambm, e de

maneira decisiva, sobre a memria coletiva no s de famlias, mas de culturas inteiras.

Porque a deciso quanto aos acontecimentos que sero guardados na memria cultural, no

depende mais dos membros humanos desta cultura. Ela, por grande parte, o resultado de

processos eletrnicos, redes tecnolgicas de transmisso e de interesses muitas vezes bem

diferentes dos verdadeiros interesses dos integrantes daquela cultura.

2.1 O sistema comunicacional planetrio possui uma base material constituda: a

aparelhagem miditica. Compreende-se aqui, primeiramente, toda a inveno e a

criatividade tecnolgica e nanotecnolgica. Aparelhos que buscam absolutizar o mundo e a

vida, dando a eles sentido e interpretao, apresentam snteses dos conhecimentos e das

informaes, de tal maneira que observamos o surgimento de uma nova tecnocracia.

Ressalta-se em tudo isso a importncia estratgica da tecnologia, preparada para atuar em

territrios lingsticos e culturais diversos.

... que agrupa os efeitos de massas prprios de uma populao, que procura controlar a srie

de eventos fortuitos que podem ocorrer numa massa viva; uma tecnologia que procura

controlar (eventualmente modificar) a probabilidade desses eventos, em todo caso,

compensar seus efeitos. (Adauto Novaes [Org.], O Homem-Mquina, So Paulo, 2003, p.78)

21

2.1.1 Desenvolve-se em torno deste sistema comunicacional planetrio uma

linguagem prpria. Esta no s a pretenso da universalizao de uma lngua, como por

exemplo, o ingls. a fixao de padres internacionais: clichs, pautas, temas, figuras etc.

Signos que se reproduzem, espectros que circulam pelas tecnologias miditicas

internacionais.

2.1.2 O sistema comunicacional planetrio altera ainda dois elementos constituintes

da vida humana: o tempo e o espao. Afeta nossas percepes, constituindo novas

subjetividades, fazendo-nos pertencentes cidade mundo, a oniscincia e a onipresena

nos dada pela relao que estabelecemos com os meios de comunicao. O sistema

comunicacional altera a relao sujeito / mundo, fazendo com que as percepes e as

ideaes sejam formadas a partir da informao (reconhecimento). Ainda: As coisas e os

fatos passaram a ser significaes construdas pela mediao dos meios de informao

(Franklin Leopoldo, leitura da primeira parte).

Todavia, acrescenta Niklas Luhmann, as informaes que mantenho relao, me

so dadas pelos meios de comunicao (cf. 1.1). Aquilo que sabemos sobre nossa

sociedade, ou mesmo sobre o mundo no qual vivemos, o sabemos pelos meios de

comunicao A realidade dos meios de comunicao, 2005, p.15. O ser que a est no

mundo um ser, necessariamente com os meios de comunicao.

Vilm Flusser, buscando entender o ser que a est, observa uma revoluo

fundamental. Flusser primeiramente afirma o ser de coisas que compunham o ambiente da

existncia do ser humano, desde latas de conserva, mquinas, imveis, flores, remdios e

outros. A natureza ontolgica destas coisas diversifica-se em contingncia s coisas

ltimas. O ser atm-se a estas coisas e as contm. Flusser observa o emergir de uma outra

coisa, a no-coisa, em sua obra O mundo codificado.

Mas essa situao infelizmente mudou. Agora irrompem no-coisas por todos os lados, e

invadem nosso espao suplantando as coisas. Essas no-coisas so denominadas

informaes. Podemos querer reagir a isso dizendo mas que contra senso!, pois as

informaes sempre existiram e, como a prpria palavra informao indica, trata-se de

formar em coisas. Todas as coisas contm informaes: livros e imagens, latas de

conserva e cigarros. Para que a informao se torne evidente, preciso apenas ler as coisas,

decifr-las. Sempre foi assim, no h nada de novo nisso. (2007, p. 54)

22

Da infere Flusser os inapreensveis:

...As informaes que hoje invadem nosso mundo e suplantam as coisas so de um tipo que

nunca existiu antes: so informaes imateriais (undingliche Informationen). As imagens

eletrnicas na tela de televiso, os dados armazenados no computador, os rolos de filmes e

microfilmes, hologramas e programas so to impalpveis (software) que qualquer

tentativa de agarr-los com as mos fracassa. Essas no-coisas so, no sentido preciso da

palavra, inapreensveis5. (idem)

Flusser aponta para um deslocamento existencial, das coisas para as no-coisas. O

ser alimenta-se destes inapreensveis, consome informaes e cria mquinas que

produzem as no-coisas em massa, de modo que estas se tornem mais baratas, acessveis a

todos (cf. p.56).

2.1.3 Frente a todo este sistema entrelaado da comunicao planetria surge logo a

indagao, qual, em ltima anlise, o grande desejo humano dentro dessa sociedade

comunicacional? Outra questo a ser enfrentada sobre o imprio das tecnologias e a sua

absolutizao.

O potencial para as combinaes entre a vida artificial, robtica, redes neurais e

manipulao gentica tamanho que nos leva a pensar que estamos nos aproximando de um

tempo em que a distino entre vida natural e artificial no ter mais onde se balizar. De

fato, tudo parece indicar que muitas funes vitais sero replicveis maquinalmente assim

como muitas mquinas adquiriro qualidades vitais. O efeito conjunto de todos esses

desenvolvimentos tem recebido o nome de ps-humanismo. Sob essa denominao, as

distines entre o artificial e o natural, o real e o simulado, o orgnico e o mecnico tm

sido levadas ao questionamento. (Lucia Santaella. Culturas e artes do ps-humano, 2003, p.

199)

Ainda espera-se:

5 A no-coisa para Flusser o inapreensvel. Porm o que o inapreensvel? Flusser afirma

ainda que este inapreensvel despreza do ponto de vista existencial a base material (cf. p. 55).

Cria-se um novo ambiente, mais impalpvel, mais nebuloso, mais fantasmagrico, e aquele que nele

quiser se orientar ter de partir desse carter espectral que lhe prprio (idem).

23

...um verdadeiro choque do futuro eclodido pelos campos recentes da pesquisa e do

desenvolvimento nas cincias e tecnologias biolgicas, da informao e dos materiais, como

a robtica, as nanotecnologias, a vida artificial, as redes neurais, a realidade virtual e as

redes planetrias de intercmbio de informaes. (Lucia Santaella. Linguagens lquidas na

era da mobilidade, 2007, p.70)

3. Absolutizao e universalizao do sistema comunicacional planetrio

3.1 Pascal, referindo-se questo da infinitude do universo, analogicamente

infinitude de Deus, afirma no fragmento 72: esfera cuja circunferncia est em toda parte e

o centro em nenhuma. Este fragmento interessante para pensarmos o sistema planetrio

de comunicao, onde o sistema comunicacional planetrio absoluto. Universalizou a si

mesmo, contm em si a verdade e o sentido, a existncia e o existente. Constitui uma

ontologia etrea, imortal, sntese do conhecimento; absoluto. Sistema que a tudo decodifica

e explica. Dando-nos a sensao de que ele esta esfera cuja circunferncia est em toda

parte e o centro em nenhuma. Assumindo caractersticas de oniscincia e onipresena.

Plato (427/428 347 a.C.) vive uma situao interessante, onde acontecia uma

revoluo cultural. Conflito entre a oralidade e a escrita. Na tradio antiga, a oralidade era

o meio de comunicao privilegiado. Por exemplo, Scrates confiara exclusivamente

oralidade dialtica sua mensagem, j os Sofistas privilegiaram a escrita. Aristteles, sem

reservas, adota a cultura da escrita (cf. Reale, Histria da filosofia: filosofia pag antiga,

Vol. I, p. 131).

Giovanni Reale, em sua obra Para uma nova interpretao de Plato pensa um

novo paradigma para interpretar Plato, justamente luz das Doutrinas no-escritas, que

Plato quis comunicar exclusivamente mediante a dimenso da oralidade dialtica (cf. p.

24). Este paradigma cria tenses entre as doutrinas escritas e as no-escritas de Plato.

Todavia, para Reale, justamente a doutrina no-escrita (cuja base a palavra: exerccio

do ouvir e do falar), que faz compreender os textos escritos de Plato6.

6 Notemos: Mas isso explica de modo preliminar, e perfeito, em que sentido e em que medida se

diferenciaram os dois paradigmas hermenuticos que hoje se afrontam: o primeiro sustenta (ou,

pelo menos, por muito tempo sustentou) a autonomia, ou seja, a autarquia total e decisiva dos

24

Esta tenso entre o meio de comunicao oral e o escrito sentida em sua obra

Fedro. Observemos o texto.

SCRATES

Mas quanto convenincia ou inconvenincia da escrita, em que condies bom

us-la e em quais despropositado, eis o que falta ainda examinar. No verdade?

FEDRO

, sim.

SCRATES

Sabes na verdade qual o melhor meio de agradar divindade em matria de

discursos, quer na prtica quer na teoria?

FEDRO

De maneira nenhuma. E tu?

SCRATES

(274c)7 Posso narrar pelo menos uma tradio dos Antigos. Mas a verdade sabem-

na eles. No entanto, se consegussemos descobri-la por ns mesmos, acaso precisaramos

ainda de nos preocupar com as opinies dos homens?

FEDRO

Pergunta ridcula a tua. Mas conta l o que afirmas ter ouvido dizer.

SCRATES

(274d) Pois ouvi contar que, perto de Nucratis, no Egito, havia um daqueles

deuses antigos do lugar, cujo smbolo sagrado era a ave a que chamam bis. O nome dessa

divindade era Theuth. Pois dizem que foi ele o primeiro a descobrir a cincia do nmero e

do clculo, a geometria e a astronomia, o jogo das damas e o dos dados e, sobretudo a

escrita.

(274e) O rei de todo o Egito nessa altura era Tamos, que habitava a grande cidade

da parte alta do pas que os Helenos chamam Tebas Egpcia e cujo deus Amon. Theuth foi

escritos, eliminando e reduzindo drasticamente a importncia e o alcance das Doutrinas no-

escritas. O segundo sustenta, ao invs, a correlao estrutural e essencial entre escrito e no-

escrito e a necessidade de referir-se ao no-escrito para compreender os escritos, e a

conseqncia necessidade de reler todo o Corpus Platonicum nessa chave, para poder reconstruir

uma viso global do pensamento de Plato (Giovanni Reale, Para uma nova interpretao de

Plato, 1997, p. 24).

7 Segundo marcao da obra referida, porm utilizadas no incio do pargrafo com exceo da 275b.

25

at ao seu palcio, mostrou-lhe os seus inventos e disse que precisavam ser distribudos aos

outros habitantes do Egito. O rei, no entanto, perguntou-lhe que utilidade tinha cada um

deles e, perante as explicaes do deus, conforme lhe parecessem bem ou mal formuladas, a

uma censura e a outra louvava. To numerosas foram na verdade ao que se diz as

observaes de Tamos apresentou a Theuth, a favor e contra cada um das artes, que seria

tarefa longa referi-las em pormenor.

Quando, porm, chegou ocasio da escrita, Theuth comentou: Este um ramo do

conhecimento, rei, que tornar os Egpcios mais sbios e de melhor memria. Est, pois

descoberto o remdio da memria e da sabedoria.

(275 a) Ao que o rei respondeu: Engenhosssimo Theuth, um homem capaz de criar os

fundamentos de uma arte, mas outro deve julgar que parte de dano e de utilidade possui para

quantos dele vo fazer uso. Ora tu neste momento, como pai da escrita que s, por lhe

quereres bem, apontas-lhe efeitos contrrios quelas que ela manifesta. que essa

descoberta provocar nas almas o esquecimento de quanto se aprende, devido falta de

exerccio da memria, porque, confiados na escrita, do exterior, por meio de sinais

estranhos, e no de dentro, graas a esforo prprio, que obtero as recordaes. Por

conseguinte, no descobriste um remdio para a memria, mas para a recordao. Aos

estudiosos oferece a aparncia da sabedoria e no a verdade, j que, recebendo, graas a ti,

grande quantidade de conhecimentos, sem necessidade de instruo, considerar-se-o muito

sabedores (275b), quando so ignorantes na sua maior parte e, alm disso, de trato difcil,

por terem a aparncia de sbios e no o serem verdadeiramente. (Plato, Fedro, 1997,

p.119 -121)

Comparando a situao descrita neste texto de Plato, com a situao

comunicacional atual, poderia-se dizer em termos de analogia, que Theuth re-inventa a

escrita em nossa sociedade, utilizando-se de novos artifcios como: imagem, sons,

tecnologias etc. A pretenso, porm, do atual sistema planetrio de comunicao, ultrapassa

em muito aquela do deus, ao qual Scrates se refere no texto acima. Porque o objetivo hoje,

uma inveno planetria, que d sentido a todos os homens, chamado sistema

comunicacional planetrio.

3.2 A grande esfera: mquina oracular

Na tentativa de aproximao do sistema comunicacional planetrio, destacamos dois

elementos que o sustentam: tecnologia e cultura.

26

3.2.1 Tecnologias e a comunicao

Um dos cenrios que compe o momento hodierno so as tecnologias. Ao gnero

humano tornou-se impossvel conceber a vida sem este instrumento. Imaginemos a

composio do tecido sociocultural hodierno: a maior parte das grandes formas de

organizao e produo do trabalho esto subsidiadas por alguma forma de tecnologia,

ligados desde a produo de pregos, aos satlites.

O desenvolvimento cientfico, principalmente em sua esfera aplicada, depende de

tecnologias mais precisas e poderosas. As tecnologias vo se aperfeioando em formas

nano, inteligentes, autnomas e sensoriais, gerando mais tecnologias e estas imbricadas em

cincias cada vez mais complexas.

Vilm Flusser em O Mundo codificado ao afirmar o Homo faber versus Homo

sapiens sapiens indica a fbrica como lugar para se conhecer o homem. Inferimos a fbrica

como lugar privilegiado da tecnologia. Considerando a histria humana como uma histria

da fabricao, Flusser distingue quatro perodos da histria: o das mos, das ferramentas,

das mquinas e dos aparelhos tcnicos, fazendo do homem um ser cada vez mais artificial

que natural. Para Flusser, o Homo faber est intimamente ligado s suas tecnologias e

aparelhos de fabricao ...aonde quer que v, ou onde quer que esteja, leva consigo os

aparelhos (ou levado por eles), e tudo o que faz ou sofre pode ser interpretado como uma

funo de um aparelho... (p. 41). As ferramentas, quanto mais complexas, mais abstratas

sero suas funes exigindo do homem faber novos saberes na sociedade ps-industrial e

ps-histrica (cf. p. 41).

Pode-se imaginar qual ser o aspecto das fbricas no futuro: sero como escolas. Devero

ser locais em que os homens aprendam como funcionam os aparelhos eletrnicos, de forma

que esses aparelhos possam depois, em lugar dos homens, promover a transformao da

natureza em cultura. E os homens do futuro, por sua vez, nas fbricas do futuro, aprendero

essa operao com aparelhos, em aparelhos e de aparelhos. (Vilm Flusser, O mundo

codificado, 2007, p. 42)

27

Outro elemento de importncia que possui como esteira a tecnologia, a

comunicao. Ao poder da comunicao nada mais est oculto: sentimentos, emoes,

odores, fatos nacionais e internacionais, catstrofes, governos, estados, etc. Todo o globo

est reduzido aos poderes das lentes, existe o que midiatizado e nada mais alm.

As tecnologias comunicacionais penetraram em todas as faculdades e ambientes do

humano. Ampliam, em alguns casos aperfeioam, principalmente as capacidades sensoriais

do humano, compondo uma outra realidade do planeta, da sociedade, do outro e do eu.

Para as tecnologias confluem reas do conhecimento humano, produzem novas

formas tecnolgicas e de conhecimentos. Por exemplo, para o desenvolvimento de

computadores, confluram reas da matemtica e da fsica, para desenvolvimento de certos

medicamentos, confluram reas da qumica, certas reas da biologia e da medicina.

3.2.1.1 Frankenstein, um Frankenstein tecnolgico nos ameaa. Pelo menos, ns o cremos.

Fazem-nos crer nisso. Passamos a viver num mundo de mquinas de transportar, de

fabricar, de pensar, Frankenstein, nosso duplo, aquele que criamos, assume sua autonomia e

em seguida o poder. Evidncia intuitiva imediatamente compensada por outra crena: graas

comunicao, podemos agora estabelecer um melhor contato com as naes, os grupos, os

indivduos, at com ns mesmos, j que as mquinas de pensar nos esclarecem acerca do

nosso prprio esprito. (Sfez, 1994, p.19)

Na frase acima, Sfez alerta-nos sobre o grau da crena que compe a sociedade

hodierna. Crena nos meios de comunicao para aproximar e diminuir os conflitos entre os

homens, crena nas tecnologias para solucionar os problemas sociais, crena nos meios

comunicacionais como centros de informao, etc. Voltando analogia entre este sistema

planetrio de comunicao e a perspectiva de Plato descobrimos, assim, mais um elemento

tpico. Notemos que, diante das verdades proferidas por orculos, Plato repreende Fedro,

sinalizando um grau de crena.

E certas delas [as verdades], meu amigo, referem que, no santurio de Zeus em Dodona, os

primeiros orculos saram de um carvalho. que aos homens de outrora visto que no

eram sbios como vs os jovens , na sua simplicidade bastava-lhes ouvir um carvalho e

uma rocha, conquanto que proferissem verdades. Para ti, porm, talvez seja importante saber

28

quem fala e de que pas , uma vez que no te basta examinar se as coisas so verdadeiras

ou de outro modo. (Fedro, 1997, p. 121)

3.2.2 Cultura

Cultura nesta situao funcionaria como elemento amalgamador social. Ela est

entre o hard e o software, seria a produo desta relao. A cultura advinda desta gerao

faz-nos crer que os problemas do mundo se resolvero de forma cada vez mais

performtica, maquinria e instrumental. A prpria presena do homem no mais

importante ou suficiente para sanar os problemas terrestres.

A cultura das tecnologias provoca certa acelerao nos hbitos cotidianos das

pessoas, transformando desejos e afetos. Um destes comportamentos o consumo de novas

tecnologias. Fazer parte desta cultura significa por um lado, possuir aparelhos tecnolgicos

sempre mais atualizados, e por outro lado, assumir as competncias necessrias para o

manejamento de toda esta tecnologia. A conseqncia disso uma complexificao

progressiva das relaes sociais e uma mudana cada vez mais acentuada das condies,

dentro das quais o ser humano deve agir e situar-se. Com isto, porm, estamos

especificamente diante da gnese de uma nova cultura. Cultura esta, que faz sua aposta,

bem ressaltada por Marcondes Filho.

A civilizao que vem chegando aposta no super-homem e na super-humanidade. Teremos

supercorpos geneticamente perfeitos, informaticamente equipados com sensores e prteses,

superambientes isolados dos vrus e das pestes, supersociedades computadorizadas em que

tudo administrado, corrigido, perfeito. A utopia eleva o mstico estatura do factvel.

(SuperCiber,1997, p. 04)

O poder discursivo da cultura tecnolgica sedutor. A esfera maquinria

constituinte da sociedade comunicativa generalizada est embebida em outro tempo e

espao: imagtico, espectral e durante. O espao global est submetido s dinmicas das

tecnologias de transportes. Exploram-se outras dimenses da matria, geram-se espaos

ciber. Por outro lado, o tempo funde-se no espao e o espao no tempo, constituindo novos

sentidos e smbolos: a grande mquina esfrica. Sinaliza-se o desenvolvimento de outras

naturezas.

29

O desenvolvimento da robtica vem nos mostrando que os robs no possuem mais

mentalidades prontas, pr-definidas, fruto de relaes matemticas que somente permitem

ao rob saber o que lhe foi inserido na memria (Simes, 1999, 2001). Hoje se vislumbra

um futuro no qual os robs tm a capacidade de aprender com o meio em que vivem, tm

capacidade de observar e adquirir conhecimento, da mesma forma que os humanos, que ao

longo dos anos, atravs da observao e da reflexo, tm a possibilidade de conhecer e

interpret-lo. Na mesma direo, Sal Restivo (2001), socilogo que trabalha no MIT

(Massachussets Institute of Techology), afirma que Mquinas eletromecnicas se tornaro

to susceptveis a uma vida interna assim como os humanos a partir do momento que eles

tiverem desenvolvido linguagem, conversao e percepo isto , quando eles tiverem

desenvolvido uma vida social. Abrir-se-ia campo para a sociologia (inteligncia artificial

social), elaborando modelos e simulaes para ver como os agentes se socializam.

(Fernandes Teixeira, A mente segundo Dennet, p. 23-24)

O sistema comunicacional planetrio gera uma cultura prpria de si mesmo,

naturalmente construindo sentido. Plato, confrontado na sua poca com um fenmeno

anlogo, a inveno e utilizao da escrita em seu tempo, assemelha-se pintura. Esta

pintura (signo) se apresenta na cultura atual como seres vivos, que, questionados,

respondem com um silncio cheio de gravidade. A cultura do sistema comunicacional

planetrio atual parece comunicar e para isso que ela existe. Os seus elementos

estruturais, porm, revelam uma nica coisa e sempre a mesma, at parece que o

pensamento anima o que dizem.

As coisas dentro do sistema comunicacional planetrio (cultura), uma vez

produzidas, rolam por todos os lugares, falam a quem querem e a quem no quer ouvir,

sempre do mesmo modo.

isso precisamente, Fedro, o que a escrita tem de estranho e que a torna muito semelhante

pintura. Os produtos desta apresentam-se na verdade como seres vivos, mas, se lhes

perguntares alguma coisa, respondem-te com um silncio cheio de gravidade. O mesmo

sucede tambm com os discursos escritos. Poder parecer-te que o pensamento anima o que

dizem; no entanto, se, movido pelo desejo de aprender, os interrogares sobre o que acabam

de dizer, revelam-te uma nica coisa e sempre a mesma. E uma vez escrito, cada discurso

rola por todos os lugares, apresentando-se sempre do mesmo modo, tanto a quem o deseja

ouvir como ainda a quem no mostra interesse algum. No sabe, por outro lado, a quem

30

deve falar e a quem no deve. Alm disso, maltratado e insultado injustamente, necessita

sempre da ajuda do seu autor, uma vez que no capaz de se defender e socorrer a si

mesmo. (Plato, Fedro, 1997, p.122)

3.3 O que isso? A coisa

Vilm Flusser, em O mundo codificado, observa a imaterialidade. Segundo Flusser,

a hyl (madeira/matria) opem-se morph8 (forma) ... O mundo material (materielle

Welt) aquilo que guarnece as formas com estofo, o recheio (Fullsel) das formas... (cf.

p. 24). A matria, segundo esta teoria do conhecimento, um preenchimento transitrio de

formas atemporais. Conclui-se: ...O movimento percebido pelos sentidos (aquilo que

material nos corpos) aparente e a frmula deduzida teoricamente (aquilo que formal nos

corpos) real... (cf. p. 26). Para Flusser, o que prevalece hoje em dia a morph, esta

abrasada pelos equipamentos tcnicos e representada em imagens ou frmulas matemticas.

O imprio da forma se d quando se projetam formas para conter a matria.

A questo abrasadora , portanto, a seguinte: antigamente (desde Plato, ou mesmo antes

dele) o que importava era configurar a matria existente para torn-la visvel, mas agora o

que est em jogo preencher com matria uma torrente de forma que brotam a partir de uma

perspectiva terica e de nossos equipamentos tcnicos, com a finalidade de materializar

essas formas. Antigamente, o que estava em causa era a ordenao formal do mundo

aparente da matria, mas agora o que importa tornar aparente um mundo altamente

codificado em nmeros, um mundo das formas que se multiplicam incontrolavelmente.

(2007, p. 31)

Flusser chama esta forma de no-coisa (cf. item 2.1.2), pois lhe falta a matria,

sendo esta imaterial. A coisa nos insere neste momento da humanidade, que por um

lado traz angstias, mas por outro, grandes realizaes, superando o tempo e o espao. Por

outro lado, a coisa dilui-se, gerando uma infinidade de smbolos e no constri sentidos. A

coisa traz para seu centro uma quantidade de informao ilimitada, ao mesmo tempo no

8 A decodificao das coisas em signos nos da a impresso que no sistema planetrio de

comunicao tudo voltil, tudo se dissipa, as coisas se compem e se decompem

instantaneamente, constituindo caracterstica do fenmeno comunicacional hodierno.

31

temos acesso a todas. Podemos afirmar que a coisa inaugura o ciclo ciberntico. Neste

ciclo ciberntico, as coisas da coisa apenas so.

A coisa reveste-se de inmeras realidades, conseqentemente expande a prpria

realidade da coisa. So realidades matrizes. Quando estamos com a Alice no pas das

maravilhas, inseridos, mergulhados e embebidos deste mundo as coisas so aquilo que ali

percebemos, com sentido e lgica. Alice assentando-se com a Lebre de Marco, o

Chapeleiro e o Caxinguel trava um dilogo interessante sobre o Tempo (cf. p. 67-75). O

Chapeleiro, aps discusso arrefecida, indaga Que dia do ms hoje? Alice acha o

instrumento de marcao engraado, pois marca o dia do ms e no a hora. O Chapeleiro

questiona o tempo de Alice, ... o seu relgio marca o ano? No. Responde Alice.

Justifica o Chapeleiro: ...mas, porque continua sendo o mesmo ano por muito tempo

seguido (p. 69). O Chapeleiro e Alice, embora falando a mesma lngua, percebem e

vivem em tempos diferentes. Os acontecimentos neste tempo so surpreendentes.

E desde aquele momento, continuou o Chapeleiro, desolado, ele no faz o que

peo! Agora, so sempre seis horas.

Alice teve uma idia luminosa. por isso que h tanta loua de ch na mesa?,

perguntou.

, por isso, suspirou o Chapeleiro; sempre hora do ch, e no temos tempo

de lavar a loua nos intervalos.

Ento ficam mudando de um lugar para outro em crculos, no ?, disse Alice.

Exatamente, concordou o Chapeleiro, medida que a loua se suja.

Mas o que acontece quando chegam de novo ao recomeo? Alice se aventurou a

perguntar? (Lewis Carrol, Aventuras de Alice no pas das maravilhas, 2002, p. 72)

Notemos que no estamos negando a existncia das coisas na coisa. As

informaes, signos, imagens a esto no ciberespace, telenovelas, jornais e outros meios

de comunicao, porm esto ali diferentemente. Numa espcie de eterno contnuo ficam

mudando de um lugar para o outro em crculos. Truman, no filme O show de Truman,

desde sua infncia, viveu em tempo e espao, percebidos, sentidos e vividos por ele;

constituindo seu ser de tal maneira que aquela era sua realidade. At que em certo momento

seu barco perfura este cenrio, esta imagem, este signo e ele descobre outras realidades.

32

Trumam deixa de mudar de um lugar para outro em crculos (cf. filme O show de

Truman: o show da vida, Paramount Pictures, 1998).

3.3.1 Imaginemos todas as coisas do mundo diludas no sistema comunicacional

planetrio a coisa.

@ X # % ~

^ ` z 9 = 0 [ \ , m y j l

/ . , \ [ ; * & ^ % $ \ , m y

Em expanso, a cultura comunicacional generalizada rompe limites, totalmente

virtual, espao e tempo seriam categorias em suspenso. Somente o presente eterno. Cada

smbolo representa um mundo e em cada mundo, outros mundos. Por exemplo, o

quadrado representa o mercado de compra e venda de veculos no planeta. Os crculos,

os meios radiofnicos de comunicao. O m as universidades, o X as obras clssicas. O

T, filmes pornogrficos. Enfim, o mundo conhecido estaria disponvel mediante uma

plataforma digital mundial.

33

Os navegadores da grande coisa estariam educados nesta linguagem universal.

Ns nos determinaramos como sujeitos plugados do eterno presente. Ora, existir significa

estar nesta grande mquina. O planeta dar-se-ia no entrelaamento desta grande sociedade

de comunicao. A economia planetria move-se por esta esteira tecnolgica

comunicacional. Enfim, teramos uma sociedade e um ser humano composto por esta

grande mquina oracular.

3.3.2 Gianni Vattimo destaca como sintoma dos tempos a sociedade de

comunicao generalizada, a sociedade dos mass media. Marca a passagem de um perodo

da histria humana para outro, como se convencionou: modernidade ps-modernidade

(cf. 2.0).

Pois bem, eu considero, pelo contrrio, que o termo ps-moderno tem um sentido; e que este

sentido esta ligado ao facto da sociedade em que vivemos ser uma sociedade de

comunicao generalizada, a sociedade mass media. (Sociedade transparente, 1992, p. 7)

Nesta era da imaterialidade, as formas (Flusser) tendem a multiplicar-se, porm,

desejam a carne ou a matria. Buscam manifestar-se, ter uma existncia, pois a matria

(corpo) lhe ausente.

Podemos ter no futuro, bem pouco tempo, qualquer coisa como 500 canais de televiso. E

que isto realmente notvel, digamos do ponto de vista sei l, do que quiser, divertimento,

conhecimento, informao, cultura digamos. Podemos imaginar at, embora eu tenha

dvidas sobre isso. E Eu disse pois: acho isso importantssimo realmente. Vamos imaginar

que recebamos em casa 500 jornais todos os dias. Se eu fizesse uma coisa destas as pessoas

diriam que eu estava louco. Como posso ler 500 jornais todos os dias? Que concluso tiro eu

da leitura de 500 jornais todos os dias? Claro, impossvel! Nem eu tenho tempo para isso,

nem teria proveito nenhum se me entrassem em minha casa at 500 jornais. (Jos Saramago,

Janela da alma, 2003, 00:59:02 00:59:53).

4. Qual a condio do homem diante do sistema planetrio de comunicao?

Em meio a este sistema planetrio de comunicao e ao imprio das tecnologias,

nos perguntamos sobre o homem. Qual a condio do homem dentro do sistema

planetrio de comunicao?

34

Primeiramente, Flusser nos lembra a condio natural fundamental do ser humano

no mundo, antes do prprio sistema planetrio de comunicao, um ser-a para a morte.

Para Flusser, a comunicao uma maquiagem para nossa condio de mortais. A

comunicao anima coisas e objetos, relaes e cenas magicamente, quando a realidade a

morte e o isolamento de cada um.

O objetivo da comunicao humana nos fazer esquecer desse contexto insignificante em

que nos encontramos completamente sozinhos e incomunicveis , ou seja, nos fazer

esquecer desse mundo em que ocupamos uma cela solitria e em que somos condenados

morte o mundo da natureza. A comunicao humana um artifcio cuja inteno nos

fazer esquecer a brutal falta de sentido de uma vida condenada morte. Sob a perspectiva da

natureza, o homem um animal solitrio que sabe que vai morrer e que na hora de sua

morte est sozinho. Cada um tem de morrer sozinho por si mesmo. E, potencialmente, cada

hora a hora da morte. Sem dvida no possvel viver com esse conhecimento da solido

fundamental e sem sentido. A comunicao humana tece o vu do mundo codificado, o vu

da arte, da cincia, da filosofia e da religio, ao redor de ns, e o tece com pontos cada vez

mais apertados, para que esqueamos nossa prpria solido e nossa morte, e tambm a

morte daqueles que amamos. (Vilm Flusser, O mundo codificado, 2007, p. 90-91)

Para Flusser, a comunicao surge como condio contranatural do homem

condenado morte. Quando nos perguntamos sobre a condio do homem dentro deste

sistema planetrio de comunicao, estamos nos perguntado: O homem que a est pode se

comunicar? Este homem tem algo a dizer de si mesmo? Alm de si, ele tem um outro para

dialogar?

Plato em sua alegoria da caverna (cf. texto ref. itens 3 e 4), ao tratar sobre o

conhecimento do mundo e das realidades deste mundo, fala de seres que vivem em uma

caverna, homens que ali vivem desde sua infncia aferrados em grilhes que lhes

possibilitam apenas um olhar. A luz de uma fogueira projeta, no fundo desta caverna,

objetos (que ultrapassam a altura do muro) como: esttuas de homens e de animais. Estas

imagens so animadas por vozes e ou silncio dos seus carregadores. A situao destes

homens saber o que as representaes lhes oferecem: imagem.

Produz-se a representao de fatos A, A1, A2, A3, A4, A5... So discursos que

retroalimentam, por exemplo, a grande mquina esfrica comunicativa planetria,

reproduzindo-se de forma cclica. A impresso que roemos os prprios ossos,

35

alimentamo-nos das prprias fezes. Os homens na caverna do Plato estavam agrilhoados

a esta mesma lgica. Jos Saramago v a possibilidade de ampliao desta lgica, ainda

uma intensificao de objetos luz da fogueira de Plato.

Vivemos todos numa espcie de luna-park. Luna-park audiovisual onde os sons se

multiplicam, onde as imagens se multiplicam e onde ns mais ou menos creio eu... Cada vez

mais o sentido perdido. Perdido em primeiro lugar de ns prprios e em segundo lugar

perdido em relao com o mundo, acabamos por circular a sem saber muito bem, nem o

que somos, nem para que servimos, nem que sentido tem a existncia. Janela da alma,

Jos Saramago, 2003, 01:00:56 01:41)

Ainda sobre o homem deste sistema planetrio de comunicao, apontemos duas

caractersticas.

4.1 Desconexo da vida

O engendramento cultural cclico, no qual estamos embebidos, faz com que nos

distanciemos do tempo presente. Esta grande obra da cultura tecnolgica miditica no

deixa morrer coisas do passado e faz-nos viver coisas do futuro, menos o presente. Assim

como os homens na caverna de Plato, no sabemos nem de ns mesmos nem do mundo,

apenas das imagens.

A grande astcia desconectarmos do tempo presente e automaticamente da vida.

Notemos que o tempo e o acontecimento das coisas na caverna de Plato so diferentes.

Um tempo e acontecimento para as imagens, outro tempo e acontecimento para os

objetos. O que faz enxergar melhor, na caverna de Plato, o ser das coisas, onde elas

acontecem. Portanto, quanto mais distante deste ser, menos sabemos. Quanto mais prximo

dele, mais sabemos.

Infiltra-se em nossos sentidos, em nossos desejos, em nossa conscincia, em nosso

processo de liberdade, em nossa alma a obra da cultura miditica com tudo o que ela

possui. Falamos de coisas que no so nossas! Vivemos coisas que no so nossas!

Sentimos coisas que no so nossas! Somos arrebatados e envenenados para o sono da obra

de cultura da grande mquina e l tornamo-nos cadveres. Cadavricos, meio vivos, meio

36

mortos, ciclicamente existimos. Participamos da grande encenao do sistema planetrio de

comunicao, promovida pela obra desta cultura miditica. Os homens da caverna de Plato

tambm estavam sem vida, sem o ato de acontecer das coisas.

H coisas que, s vezes, nos fazem ficar perturbados, mas que ainda assim no nos

fazem pensar. So coisas que acontecem no dentro desta obra de cultura cclica da bolha

mundial mas, ao mesmo tempo, so conseqncias desta. Coisas que no estavam no

programa cultural, embora poderiam ser previstas como: terrorismos, choques das grandes

religies, fundamentalismos, fim dos recursos naturais como a gua... Estes fenmenos nos

oferecem um outro senso de realidade, ainda plasmados na grande bolha da obra miditica.

4.2 No pensar

Plato coloca homens em sua caverna, habituados a ver e dar sentido s coisas, de

uma nica forma. ...esto ali desde crianas com as pernas e o pescoo em correntes, de

modo que devam permanecer parados e olhar somente diante de si(cf. alegoria da

caverna, ref. itens 3 e 4). Esta cultura e suas obras causaram um silncio assustador na

humanidade, inibindo o pensar.

Temos de repetir os discursos e destes fazer novas representaes: B, B1, B2, B3,

B4, B5, B6, B7 um ato de reverberao ao infinito. Observamos silenciosamente.

Quando observamos, o mximo que a obra de cultura nos autoriza fazer um comentrio.

Quando, raramente, surge algum pensador ou homem da arte, este louco. As

coisas que ele fala so irreais, longe das coisas em que estamos embebidos. Plato traz de

sua caverna um homem luz. Esta passagem causa dores ao homem. Ele passa a ter

acesso s outras realidades do mundo, passa a ver o mundo por mais de um olhar e percebe

os acontecimentos com maior intensidade. Todavia, este homem, ao retornar para a

caverna, logo re-acostuma-se com as sombras, narrando coisas estranhas aos outros.

A obra de cultura hodierna promove comodidades que habilitam os seres para o

consumo. Os homens mais venerados so aqueles que consomem. Deuses so aqueles que

consomem coisas da obra desta cultura que outros jamais consumiro, embora os desejem

como dolos, como por exemplo, estar nas telas dos grandes meios de comunicao

mundiais.

37

A obra de cultura nos plasma de tal maneira que passamos a sonhar. Nada mais

trabalhado e explorado na mquina esfrica do que a seduo dos sentidos. Por estas veias

aplica-se em nossa alma o veneno para o no pensar.

Est anunciada a tragdia maior: no pensar. E, de resto, ser essa invaso

generalizada que dar testemunho da existncia de uma forma simblica na qual somos

aprisionados (L. Sfez, Crtica da comunicao, 2000, p. 13).

A condio humana dentro deste sistema planetrio de comunicao, quando inibe o

pensar, abre espao para o discurso e, como conseqncia, suprime o dilogo, problema

primeiro da comunicao.

Nunca antes na histria a comunicao foi to boa e funcionou de forma to extensiva e to

intensiva como hoje. O que as pessoas pensam na dificuldade de produzir dilogos

efetivos, isto , de trocar informaes com o objetivo e adquirir novas informaes. E essa

dificuldade deve ser conduzida diretamente ao funcionamento hoje em dia to perfeito da

comunicao, a saber, deve ser dirigida para a onipresena dos discursos predominantes,

que tornam todo o dilogo impossvel e ao mesmo tempo desnecessrio. (Vilm Flusser, O

mundo codificado, 2007, p. 98)

5. Comunicao como problema

Os itens tratados acima nos colocam diante do fenmeno da comunicao: sistema

comunicacional planetrio. Nosso objetivo, nesta primeira etapa desta dissertao, no

necessariamente ter ou definir um conceito de comunicao. No buscamos eleger tericos

e cnones para a comunicao. Nosso desejo assumir a comunicao no como

fenmeno, mas sim como problema. J enunciado, temos um horizonte que o sistema

comunicacional planetrio. Neste sistema tudo est interligado, interdependente e

necessariamente tudo se comunica. No somente as pessoas por natureza primeira se

comunicam, mas uma segunda natureza, a tecnolgica se comunica. o sistema da

comunicao como imperativo: tudo se comunica. Todo este sistema planetrio est

regido pelo signo da comunicao em suas mais diversas facetas: linguagem, imagem, som,

sensaes, cores, odores, etc. Existir e comunicar so o mesmo. Ontologicamente, o ser que

a est, um ser para a comunicao.

38

O sistema comunicacional planetrio o horizonte que utilizamos para olhar a

comunicao. Porm, no a este fenmeno que pretendemos nos deter, problema

secundrio da comunicao e sim na relao Eu e o Outro, dentro deste horizonte. A

questo fundamental que se impe : Eu e o Outro nos comunicamos? de outra forma: o ser

humano , ontologicamente, um ser capaz de se comunicar? ainda: possvel a existncia

da comunicao? Este o problema da comunicao do qual trataremos na segunda parte

desta dissertao.

A reflexo at aqui desenvolvida conduziu-nos concluso de que o essencial na

comunicao no so a tecnologia, os meios sofisticados de comunicao, a linguagem, os

signos performticos e outros recursos, mas sim o homem. Portanto, definimos este como

problema primeiro da comunicao.

No filme Denise est chamando, notamos a radical mudana comportamental dos

indivduos quando atravessados por algum meio de comunicao. Todos os personagens

mantm vnculos de amizades, se falam constantemente, sabem um do outro e mantm

hbitos sociais. Jerry e Brbara mantm relaes sexuais, Denise e Martim tm uma filha

em comum, Afrodite. Quando Gail morre em acidente rodovirio, todos os componentes do

crculo so afetados. Porm, o filme deixa claro um abismo intransponvel entre eles, um

silncio absurdo, uma insuportvel in-comunicao9. Cada um fechado em si.

5.1 O sistema planetrio de comunicao encobre uma dvida suscitada por poucos

estudiosos. At que ponto de fato nos comunicamos? (Ciro Marcondes Filho, 2004), O

espelho e a mscara (idem, 2002), O escavador de silncios (idem, 2004), A

improbabilidade da comunicao (Niklas Luhmann, 1999), Critica da comunicao

(Lucien Sfez, 2000). Esta dvida, cravada no corao do sistema planetrio de

9 Um pouco mais atualizado com as mutaes tecnolgicas, o filme de Sofia Coppola, Encontros e

desencontros, traz este drama do eu diante do outro. Estranhamente este filme pensado dentro de

um dos ambientes da sociedade planetria de comunicao, onde tudo se comunica.

Paradoxalmente, Bob Harris e Charlotte, um diante do outro, no face a face, buscam romper a

solido do ser.

39

comunicao, torna-se um problema a ser pensado, como problema essencial da

comunicao:10

a incomunicabilidade humana.

O sistema planetrio de comunicao implanta-se justamente nesta hiptese: os

homens no se comunicam. Este o problema fundamental entre Eu e o Outro. O Eu diante

do Outro no v, no sente, no percebe o Outro como o Outro em sua diferena radical. H

entre o Eu e o Outro a incomunicao. Esta incomunicao uma questo da humanidade,

pois cada vez mais afastados uns dos outros ou intermediados por alguma tcnica de

comunicao, perdemos em nos tornar humanos, pois nos fechamos ao Outro. Percebemos

a sua imagem, porm matamos a sua alteridade.

5.1.1 O ponto de partida para as reflexes a seguir seria, assim, a hiptese acima

formulada. Hiptese esta que se revela como sendo a grande contradio do sistema

planetrio de comunicao: a in-comunicao. Criam-se certezas e dogmas inquestionveis

dentro destes sistemas, onde tudo parece transparente e comunicvel. As coisas, os homens,

os fenmenos mostram-se animados por esta fora mgica ainda anmica, onde tudo est

significado e, portanto passvel de comunicao. Todo o cosmo est inscrito em signos,

passveis de leitura. Constitui uma lei animada pelo grande esprito do mundo da

comunicao. Cada tomo, molcula ou fenmeno reserva em si uma linguagem, um

cdigo. Nossa inteligncia capta esta linguagem e a interpreta, decodifica e significa.

Traduz-se todo o cosmo e a ao humana, inclusive o prprio homem, por um meio

de comunicao. As lentes constituem-se como a bola ou olho mgico. V-se o

passado, o presente e o futuro. Tudo est capturado, classificado, nomeado, dogmatizado.

Este sistema de comunicao introjeta-se em nossa subjetividade: congela-nos, doutrina e

induz o olhar. Nada mais percebemos no mundo por ns mesmos. Sentimos e vivemos

pelos signos. Nossos desejos, gostos, emoes esto tocados por alguma forma de

comunicao. O que nos resta essencialmente de humano?11

10

Notemos que esta suspeita a incomunicabilidade humana est presente, no explicitamente, na

antiguidade grega. Herclito, fragmento 19, Plato em sua obra Fedro e outros que retomaremos na

segunda parte.

11 Jean-Marc Frry, ao situar o debate filosfico contemporneo relacionando pensadores como

Frege, Dewey, Wittgenstein, Heidegger e ainda Rorty, Putman, Habermas, Apel, coloca como

questo ontolgica o fundamento da razo e da verdade. Ferry nota na filosofia moderna e

40

A partir dos pressupostos apresentados nas reflexes acima, suspeitamos da

afirmao tudo se comunica ou os homens se comunicam dentro do sistema planetrio

de comunicao. Para sistematizar essa dvida, observemos cinco teses que problematizam

nossas afirmaes.

contemporneas figuras da subjetividade e da intersubjetividade (Descartes, Kant, Hegel etc.) onde

se destacaram os problemas da conscincia, reflexo e da linguagem, e, atualmente, o problema da

comunicao.

A filosofia no pode impunemente ignorar este trajeto. Ela no poderia, a no ser correndo o risco de

provincializar-se, desinteressar-se pelo novo paradigma: o da razo comunicativa, no horizonte do qual as

tradicionais questes da filosofia, da antinomia da verdade fundao ltima da razo, se atualizam sob o signo

de um pensamento que se quer ps-metafsico. ( Filosofia da comunicao, 2007, p.7)

Em sua filosofia da comunicao, Jean-Marc Ferry, identificando posturas filosficas em

Habermas, Apel e Wellmer, v em A. Wellmer no trato a antinomia da verdade uma teoria da

comunicao (idem, p. 21). Embora a comunicao pensada por Ferry crive-se na razo

exclusivamente, diferentemente do conceito entendido por ns nesta pesquisa, salientamos sua

originalidade filosfica.

Quando comunicamos, expomos ou escrevemos alguma coisa, apresentamos inevitavelmente

pretenses verdade, ou pelo menos (...) pretenses validade de diversas ordens. Ora, se eu o fao de

maneira sria, tenho a expectativa de que o outro, quem quer que ele seja, tenha boas razes para estar

de acordo como afirmei, sob a condio de que ele ou ela compreende o que eu disse e possua

suficientes informaes, competncias, capacidades de julgamento etc. Neste caso, pressuponho eu

minha pretenso validade se preste perfeitamente para um entendimento intersubjetivo fundado sobre

boas razes. Porm, se acontecer, entretanto, que algum se oponha, apoiando-se em slidos

argumentos, aquilo que estou afirmando, s me resta ento retirar minha pretenso validade, ou pelo

menos admitir que a dvida justificada... (A. Wellmer, Vrite, contingence et modernit, in J.

Poulain, De la vrit. Pragmatisme, historicisme et relativisme, Paris, Albin Michel, p. 177-178),

(idem, p. 21-22).

Wellmer reconhece comunidades lingsticas, cientficas ou culturais no que se refere

possibilidade de justificar as pretenses ao verdadeiro. Margeia-se por um lado certo relativismo

seja ele cultural ou lingstico e por outro o absolutismo metafsico na definio de verdade.

Ressaltamos, todavia, a preocupao da filosofia com a comunicao, donde uma filosofia da

comunicao inevitvel.

41

6. Cinco teses problematizadoras da comunicao.

Ciro Marcondes Filho desenvolve teses, problematizando a comunicao.

Pontuemos a partir de sua obra At que ponto de fato nos comunicamos? (p. 84ss) estas

cinco teses.

6.1

Tese 1

No nos comunicamos pela lngua estruturada, porque ela mascara a

comunicao.

Esta primeira tese parte da afirmao: Na origem da civilizao, no est a fala,

mas os sentimentos (p. 84). Esta foi a primeira forma de contato entre os humanos: sentir.

No incio no havia a linguagem, apenas as coisas. A linguagem surge como subproduto,

impessoal, neutro e desvinculante (idem). A linguagem surge como lgica, racional e

analtica, contrapondo o mundo pictrico, formas, cores, ritmos e sons.

Esta primeira forma de comunicao entre os homens fonte inspiradora, de

constante originalidade. Baseia-se em existncia individual e interior. Toda forma de

vivncia interior ser expressa e objetivada via linguagem.

A linguagem nos leva a crer que nossas sensaes so invariveis, fixas; a palavra, que

arquiva o que h de estvel, de comum e, conseqentemente, de impessoal nas impresses

da humanidade, destri ou, pelo menos, oculta as impresses delicadas e fugidias de nossa

conscincia individual. (idem)

Esta primeira tese conclui da linguagem:

...a linguagem vulgariza, gregariza, um recurso para manter a vontade reativa (niilista) e a

serenidade. forma de apassivar, de amortecer. Contra a angstia do mundo e seu caos,

contra as contradies desconcertantes, a linguagem aparece para reduzir tudo a categorias,

a a casos idnticos. (idem)

42

6.2

Tese 2

No existe comunicao porque somos sistemas fechados.

Esta segunda tese a mais contundente. No nos comunicamos, somos sistemas

fechados, por princpio ou natureza. Os sistemas so lubrificados para diminuir o grau de

irritao entre si e conservar a auto-sobrevivncia. O sistema sempre volta a si mesmo: ela

se adapta por dentro, segundo seus prprios meios (p. 86). A sada encontrada para

performatizar as trocas a tcnica. Retomaremos esta tese na segunda parte de nosso

trabalho.

6.3

Tese 3

As comunicaes so antes extralingsticas e promovidas pela interao humana.

Esta terceira tese desemboca no chamado solipsismo. Campo de impenetrabilidade

absoluta no outro (p. 91) e tambm em cada um de si mesmo. Afirma-se o princpio que

todo homem s. Quando criana, o eu est diludo na constituio do todo (ambiente

externo), sente-se uma nica coisa com o todo. No h separao (estado primrio da tese

1). Paulatinamente, obrigado pelo crescimento, o eu interno separa-se do mundo objetivo.

Nesta separao est a objetividade em relao ao mundo e tambm ao outro. Esta

conscincia de si a faz saber que est no mundo (p. 90). Nota-se um esquecimento do eu

subjetivo (estado primeiro), em funo da objetividade do mundo.

Somos seres do si mesmo (solipsismo) naturalmente, todavia o que nos faz

comunicar? No a linguagem. Sim, a carne do mundo (p. 91). Partilhamos um mesmo

ambiente, mesmo mundo. A comunicao ocorre por via da interao entre os homens. H

algo comum, mas construdo a partir de um fundo de subjetividade de cada um (p. 92).

43

Permanece nesta tese 3 a afirmao crucial para a comunicao, retomaremos no

prximo captulo, nossa interioridade permanece inatingvel pelo outro (p. 91). Por maior

que seja o grau de interao dos homens, h um espao onde no h como a comunicao

penetrar. No sabemos como o outro recebe nossas palavras, gestos, sentimentos,

acontecimentos, imagens, sons, etc. H uma negao radical da comunicao. Este no h

comunicao a dificuldade primeira.

6.4

Tese 4

Na linguagem estruturada, a comunicao torna-se ritualizada, no diz nada, por

isso buscamos outras formas, menos ineficazes. Por exemplo, no silncio, no toque fsico,

nos ambientes.

H uma angstia em cada homem. O seu eu de fato, si mesmo original, no

conhecido, falado. A linguagem ou outras formas de comunicao estruturadas, imagens,

sons e outros signos no o expressam. Quando estes meios de comunicao entram em

cena, apenas arranham, murmuram e ensaiam sobre o ser.

O ser busca outros canais para estar no mundo, manifestar-se; revelar-se. Abre-se a

possibilidade para a comunicao. Entram em cena os olhos, a face, os gestos; manifesta-

se o corpo.

A comunicao, assumida como possibilidade na tese 4, no resolve o problema da

tese 2, cuja afirmao: No existe comunicao porque somos sistemas fechados. E

ainda a afirmao da tese 3: nossa interioridade permanece inatingvel pelo outro. Ambas,

continuam sem resposta cabal.

6.5

Tese 5

H labirintos na comunicao, pelos quais a realizao da comunicao o poder

de driblar a proibio de se comunicar imposta pela sociedade da comunicao..

44

Entende-se a sociedade da comunicao os grandes sistemas sociais: rdio,

televises, jornais, revistas, divulgao pblica e comercial (sistema comunicacional

planetrio cf. 2.0). Paradoxalmente, estes sistemas afirmam a sociedade da comunicao,

todavia eles no comunicam. H um solipsismo oficializado na cultur