Sobre a Fenomenologia de Husserl

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    ONTOLOGIA E EPISTEMOLOGIA

    NAS IDEEN -I DE HUSSERL E MAIS ALM

    Pedro M. S. Alves Universidade de Lisboa

    Faculdade de Letras Departamento e Centro de Filosofia

    RESUMO: Este artigo tem como tema uma reapreciao da ontologia e epistemologia de Husserl, esboadas no primeiro livro de Ideen. O ponto principal a teoria husserliana da essncia e da viso de essncia. Apresento a distino fundamental entre factos e essncias e, por sobre ela, a defesa de Husserl de um conhecimento a priori baseado na viso de essncia, bem como a sua repartio do domnio total do conhecimento a priori numa ontologia formal e num conjunto de ontologias regionais, materiais. Mostro como a teoria da viso de essncia apresentada nas Ideen d o flanco a vrias crticas, nomeadamente s que foram feitas por neo-kantianos como Rickert e Natorp. Na parte final, mostro como o conceito matemtico de um invariante sob um grupo de variaes foi o exemplo padro para a teoria amadurecida de Husserl acerca da viso eidtica.

    Palavras-chave: Ideen, ontologia, epistemologia, viso de essncia e invariante.

    ABSTRACT: This paper is concerned with the reappraisal of Husserls ontology and epistemology, sketched in the book one of Ideen. The main issue is Husserls theory of essences and essential insight. I present the fundamental distinction between facts and essences, and, over and above it, Husserls defense of an a priori knowledge based on essential insight, as well as his partition of the whole realm of a priori knowledge into a formal and a set of material, regional ontologies. I show how the theory of essential insight presented in Ideen gives rise to several criticisms, namely those who were done by Neo-Kantians like Rickert and Natorp. In the final part, I show how the mathematical concept of an invariant under a group of variations was the leading case for the mature Husserlian theory of eidetic insight.

    Keywords: Ideen, ontology, epistemology, vision of essence and invariant.

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    1. Analisando os primrdios de um trabalho inovador

    O primeiro volume de Ideen foi originalmente publicado por Edmund Husserl em 1913,

    e republicado sem alteraes em 1922 e 1928. Diferente das Logische Untersuchungen,

    sobretudo a sexta, Husserl no submeteu Ideen a uma profunda reviso durante sua longa

    vida. Alm disso, no plano original de Husserl, os dois volumes que seguiriam o primeiro

    livro no foram publicados at sua morte em 1938. E, mais ainda, o terceiro volume

    permaneceu em forma de rascunho, o qual pouco tem que ver com a edio pstuma de Ideen-

    III1. Por isso, o projeto de uma srie de trs livros anunciado em Ideen nunca foi alm do

    primeiro passo: uma introduo geral Fenomenologia.

    Foi um esforo em vo, ento? Todos sabem que no esse o caso. O primeiro volume

    de Ideen teve, por si s, uma espantosa influncia.

    Primeiro, aperfeioou a teoria da intencionalidade que a quinta investigao lgica

    apresentara. Conceitos como Sinn (ampliando o enfoque anterior no simples significado

    lingustico, Bedeutung), os lados notico e noemtico da intencionalidade (introduzindo o

    objeto como intencionado junto com o ato), o ltimo captulo sobre a fenomenologia da razo

    (levando a Fenomenologia da simples descrio dos atos de intencionais at a constituio da

    realidade), foram, todos eles, pontos de partida radicais a partir dos estreitos primeiros

    estgios do trabalho de Husserl.

    Segundo, o primeiro volume de Ideen foi tambm um esclarecimento acerca do lugar

    que a Fenomenologia deveria ocupar no universo do conhecimento. Para comear, a

    Fenomenologia no era um tipo de Psicologia descritiva, isto , uma cincia emprica baseada

    na experincia interior. Ademais, a Fenomenologia, corretamente entendida, deveria ser uma

    cincia de fundamentos para todo e qualquer outro conhecimento, dominando todas as demais

    cincias que pertencem atitude natural. Finalmente, a Fenomenologia era em si uma cincia

    de um domnio de ser, o domnio da conscincia e das suas vivncias transcendentalmente

    purificadas. Cada uma dessas colocaes ps Husserl em dificuldades com algum.

    Terceiro, havia nesse volume uma grande quantidade de desnorteantes novidades. Uma

    descoberta: o que Husserl chama de atitude natural e sua tese geral. Um novo mtodo: a

    epoch ou a parentetizao da tese da atitude natural. Um novo comeo, nunca antes

    1 Uma edio da Urfassung von Ideen II e Ideen III est sendo preparada por Dirk Fonfarra nos Arquivos Husserl de Colnia.

    berlinmunchen90Highlight

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    completamente desvendado: a conscincia pura como um domnio no-natural, no-mundano

    do ser positivo que, como Husserl enfatizou, era, como todo ser autntico, um ser individual.

    E, finalmente, uma posio firme nos debates filosficos: a Fenomenologia era uma nova

    verso, ou melhor, uma verso mais precisa do Idealismo, que mostrava o ser absoluto da

    conscincia pura perante o ser contingente do mundo por meio de um experimento mental

    sobre a concebibilidade de uma aniquilao do mundo (Weltvernichtung). Como todos

    sabem, esas inovaes tiveram a virtude de escandalizar quase todos os alunos de Husserl,

    no apenas no Crculo de Gttingen, mas mais alm, posteriormente dando origem s crticas

    agudas de Heidegger, Schtz, Merleau-Ponty, Sartre, e muitos outros.

    Todavia, gostaria de examinar algo que geralmente passa desapercebido quando lendo

    Ideen I. Refiro-me ao primeiro captulo, intitulado Facto e Essncia, e aos pargrafos

    subsequentes do segundo captulo da Parte Um, onde Husserl tenta refutar o Positivismo e o

    Empirismo. Paul Ricur escreveu que o primeiro captulo era un chapitre de logique,

    tomando a designao do ttulo da seo 17, onde se l Schluss der logischen Betrachtun-

    gen. Ele acrescenta que todo o captulo poderia ser desconsiderado (ou pelo menos feita uma

    leitura dinmica) numa abordagem inicial do trabalho, como se fosse um prembulo no

    essencial. Em seus comentrios, ele se pergunta em que sentido um ncleo lgico

    pressuposto aqui, se a Fenomenologia deve ser sem pressupostos (Ricur, 1996, 37).

    Todavia, a Parte Um, incluindo os dois primeiros captulos, intitulada Wesen und

    Wesenserkenntnis. No tem nada que ver com lgica em um sentido estrito e

    empobrecido, i.e., no sentido de uma simples lgica formal. O prprio Husserl explica a

    denominao utilizada. As consideraes so lgicas porque se desenvolvem num domnio

    de completa generalidade (Hua III-1 39), apreendendo as coisas como so verdadeiramente

    dadas pela intuio (III-1 40), num reino independente de qualquer teoria ou doutrina

    filosfica. Verificaes obtidas nesse campo, onde o respeito pela auto-doao das coisas

    mesmas reina incontestado, so, como Husserl enfatiza, princpios, e autnticas comeos

    tericos (III-1 40). Ento, se a Parte Um sobre essncia e conhecimento das essncias, ou

    especificamente o captulo sobre fatos e essncias, de todo sobre lgica, -o certamente no

    sentido de perscrutar o logos interno do ser luz dos tipos de conhecimentos intuitivos que

    dele temos. O mesmo dizer que os dois captulos da Parte Um so sobre:

    1. Uma ontologia: a partio, em termos de princpio, daquilo que em factos e es-

    sncias.

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    2. Um princpio fundamental para o conhecimento: a intuio, ou a auto-doao das

    coisas mesmas.

    3. E um projeto epistemolgico abrangendo todas as cincias de atitude dogmtica:

    acima das cincias empricas, a construo de um conjunto sistemtico de cincias

    relacionadas a um conhecimento a priori analtico-formal e sinttico-material.

    2. s portas da dimenso fenomenolgica

    So os pontos listados acima dependentes de uma fundamentao fenomenolgica

    posterior, como Ricur sugere? So eles meramente provisrios, no aguardo de uma

    justificao final ou de uma nova formulao, depois de atingido o nvel transcendental?

    Assim parece, dado que somente a dimenso transcendental pode em ltima anlise

    fundamentar as cincias naturais, tanto as empricas como as a priori, e mais uma vez dado

    que somente a dimenso transcendental pode mostrar que, por si mesmas, as coisas so como

    aparecem, de modo que, alm do que dado pela intuio originria, nada mais permanece

    escondido como um resduo de realidade oculta. Finalmente, somente a dimenso

    transcendental pode garantir a primazia da descrio sobre a construo, que orienta os

    argumentos de Husserl contra a cegueira s ideias do Empirismo e do Positivismo, expostos

    no segundo captulo da Parte Um (ver III-1 49).2

    No obstante, ser o caso de a Epistemologia e de a Ontologia de Husserl, esboadas na

    Parte Um, s terem significado dentro da dimenso transcendental, i.e., aps a epoche ter sido

    realizada? Acredito que exatamente o contrrio, e defend-lo-ei com duas simples

    justificativas.

    A primeira diretamente tomada de Husserl. Como ele diz (III-1 40), as distines

    iniciais entre fatos e essncias, intuio sensvel e intuio de essncia, conhecimento por

    experincia e conhecimento por ideao, contingncia e necessidade (ou melhor:

    universalidade), junto com a distino entre categorias formais e regies materiais, so todas

    necessrias a fim de definir adequadamente a Fenomenologia transcendental como uma

    eidtica especfica da regio no-natural conscincia, e (sugiro) para caracterizar o eidos-

    conscincia como uma essncia morfolgica (no-exata). No a reduo transcendental

    que traz essas diferenciaes. Ao contrrio, se aproveita delas. Ademais, o mtodo de ideao 2 O lema de Husserl : se as essncias so conceitos, ento os conceitos no so construes; se os conceitos so construes, ento as essncias no so conceitos.

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    uma ferramenta indispensvel para a investigao sistemtica das estruturas transcendentais

    da conscincia. Sem isso, as descries fenomenolgicas estariam mergulhadas na

    contingncia e particularidade, nunca alcanando o almejado status de leis essenciais

    universais. Em certo sentido, a fenomenologia transcendental est dependente de um mtodo

    que mais geral do que ela, e eventualmente sofrer com suas possveis limitaes ou

    deficincias.

    Minha segunda justificativa uma consequncia da anterior. At certo ponto, a

    Ontologia e a Epistemologia de Husserl podem manter-se por si, sem serem totalmente

    absorvidas pela dimenso fenomenolgica transcendental. Ao contrrio das vises segundo as

    quais a fenomenologia transcendental, aberta pela epoche, a nica preocupao dos textos

    de Husserl, eu estou de acordo com David Woodruff Smith quando enfatiza que, no que

    chama de Sistema Filosfico de Husserl, h uma mtua relao e interferncias entre

    Filosofia da Lgica e Matemtica, Ontologia, Epistemologia, e Fenomenologia sensu stricto

    (i.e., o estudo da conscincia pura), ao invs de uma relao unilateral de fundamentao de

    todos na Fenomenologia transcendental (Smith, 2007, 44ss).

    Essa uma considerao geral, no entanto. Para ser mais preciso e detalhado, vou

    sustentar que:

    1. A Ontologia das essncias de Husserl no derivada da Fenomenologia trans-

    cendental, mas, ao contrrio, a Fenomenologia transcendental, como uma cincia

    da conscincia, que depende de sua instituio prvia.

    2. A tese epistemolgica de Husserl sobre um conhecimento a priori prescrevendo leis

    para cada cincia emprica sustenta-se totalmente em sua tese ontolgica sobre as

    essncias.

    3. A teoria da ideao de Husserl foi sua prpria emenda justificao kantiana para a

    possibilidade de um conhecimento a priori, ampliando este para um contedo

    material e, assim, colocando-os em conflito quer com o Neokantianismo quer com o

    Positivismo Lgico de Moritz Schlick, o qual, em seus primrdios, embarcou em

    uma feroz batalha contra o sinttico a priori (na verso kantiana).

    4. A questo mais profunda em jogo era a teoria de Husserl de viso eidtica (We-

    senserchauung).

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    3. Tomando outro caminho

    Assim, no vou entrar nas profundezas da anlise da conscincia. No vou discutir as

    consideraes de Husserl sobre subjetividade transcendental como o ncleo final da Filosofia,

    tambm. Em vez disso, vou concentrar-me na questo sobre a viso eidtica, sobre a suposta

    universalidade das leis eidticas, e sobre o status ontolgico das essncias como tais.

    As concepes de Husserl sobre a essncia e a viso eidtica constituem um tema em

    constante evoluo at o meado dos anos trinta, com se pode confirmar por uma simples

    inspeo no ltimo volume da Husserliana, Zur Lehre vom Wesen und zur Methode der

    eidetischen Variation. Com exceo de algumas seces importantes de Phnomenologische

    Psychologie, a melhor e mais plenamente desenvolvida exposio do tema foi apresentada em

    Erfahrung und Urteil, i.e., em um trabalho desenvolvido com Ludwig Landgrebe, o qual

    apareceu no final da carreira intelectual e da vida de Husserl.

    No primeiro captulo de Ideen, na base da distino entre fato e essncia, Husserl erige

    uma formidvel construo de toda a rea do conhecimento. Para resumir a estrutura

    principal, a viso de Husserl sobre o conhecimento implica:

    1. Dentro da atitude natural, uma distino entre as cincias retativas aos estados de

    coisas (Sachverhalten) contingentes e as relativas aos estados de coisas universais.

    2. A adscrio de objetos diferentes para cada uma delas: os fatos, para as primeiras, e

    as essncias, para as segundas.

    3. A unidade dos dois ramos, na medida em que as cincias de fatos dependem das

    cincias de essncias a fim de atingir a plena racionalidade no seu domnio prprio.

    4. A independncia das cincias de essncias em relao s cincias de fatos, no

    sentido de que, para saber algo sobre os estados de essncias, no preciso conhecer

    qualquer matria de fato.

    5. A diviso do conhecimento universal em um conjunto de ontologias materiais

    regionais, relacionadas aos diversos domnios do ser, como a natureza, a psique, a

    cultura, a sociedade etc., e uma regio formal vazia, relacionada forma objeto

    enquanto tal.

    6. A alegao de que h um conhecimento a priori material, que sinttico, relaci-

    onado ao sistema de ontologias regionais, assim como um conhecimento puramente

    formal, o qual analtico, abrangendo a lgica, a matemtica formal, a teoria dos

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    conjuntos e ateoria das multiplicidades sob o conceito envolvente de uma mathesis

    universalis.

    Essas alegaes so em parte compreensveis e incontroversas. Por exemplo, cincias

    como a Fsica incluem, por um lado, a familiaridade com fatos empricos e, por outro,

    cincias materiais nomolgicas como a Geometria Euclidiana ou a Cinemtica pura, e, num

    nvel mais elevado, fazem uso de conhecimento formal puro, como a Anlise, a lgebra, as

    geometrias formalizadas, e assim por diante. Como diz Husserl, toda factualidade contingente

    est referida a uma necessidade (III-1, 12). O neo-kantismo estava familiarizado com essa

    matematizao das cincias naturais, e o Positivismo Lgico iria muito em breve produzir

    uma explicao alternativa para esta situao, principalmente por Reichenbach e depois por

    Carnap.

    O ponto controverso que Husserl

    a) No apenas quer assegurar uma cincia matemtica da natureza por meio de um

    conjunto de cincias relacionadas com o que ele chama de essncias exatas, como

    a teoria pura do movimento, a teoria pura do espao, do tempo, junto com a

    matemtica formal;

    b) Mas, alm disso, tambm pretende estender essa parte do conhecimento a priori ao

    que ele chama de essncias morfolgicas, de modo que no simplesmente o caso

    de indivduos e estados de coisas no-exatos da experincia serem matematizveis

    (por ideao), mas sim que h um conhecimento a priori destas supostas essncias,

    portanto, um conhecimento a priori que vai bem alm do domnio da matemtica

    formal e outras disciplinas matemticas materiais como a Geometria Euclidiana, a

    teoria pura do movimento, e assim por diante.

    c) Atribui, em Ideen, dois mtodos diferentes para cada ramo do conhecimento a

    priori: formalizao, para o primeiro, e generalizao, para o segundo, sustentando

    que eles so independentes na medida em que as leis materiais sintticas no podem

    ser consideradas como particularizaes das leis formais analticas.

    d) E faz toda a questo do conhecimento a priori, seja ela uma ontologia formal ou

    material, depender da tese epistemolgica de que vemos essncias assim como

    vemos indivduos na experincia, de modo que, assim como h indivduos e uma

    direta apreenso deles em uma experincia originariamente doadora chamada

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    percepo, h tambm essncias e uma direta apreenso delas no correspondente

    conhecimento originalmente doador, chamado ideao.

    Husserl torna explcita essa tese do paralelismo nas Ideen. Por exemplo, ele escreve:

    Antes de mais, essncia designa aquilo que encontrvel de antemo no ser prprio do

    indivduo enquanto seu quid. Cada quid desses pode ser, porm, posto em ideia. Uma

    intuio de experincia ou individual pode ser transformada em intuio de essncia (ideao)

    uma possibilidade que no deve ser entendida como possibilidade emprica, mas sim como

    possibilidade essencial. O visto ser, ento, o eidos, ou essncia pura correspondente. (III-1,

    13)3

    Algumas linhas depois, ele continua:

    A essncia (eidos) um objecto de ndole nova. Assim como o dado da intuio individual ou

    de experincia um objecto individual, assim o dado da intuio de essncia uma essncia

    pura.

    No se est aqui perante uma analogia meramente superficial, mas perante algo radicalmente

    comum. Tambm a intuio de essncia rigorosamente intuio, assim como o objecto eid-

    tico rigorosamente objecto. A generalizao dos conceitos correlativos intuio e objecto

    no uma ocorrncia arbitrria, mas antes forosamente exigida pela natureza das coisas. A

    intuio emprica conscincia de um objecto individual, e, enquanto intuitiva, tr-lo

    doao, enquanto percepo, tr-lo doao original, conscincia de captar o objecto

    originalmente, na sua mesmidade corporal. Precisamente da mesma maneira, a intuio da

    essncia conscincia de qualquer coisa, de um objecto, de qualquer coisa sobre a qual ela

    lana o seu olhar e que nela se d em si mesmo. (III-1, 14-15)

    E o conhecido pargrafo 24 traz tudo isso a seu ponto culminante:

    Toda intuio originariamente doadora uma fonte de direito do conhecimento, tudo o que se

    nos d originariamente (por assim dizer, na sua realidade corporal) na "intuio" h que tom-

    lo como aquilo que se nos d, mas tambm apenas nos [44] limites em que se d. Vemos bem

    que nenhuma teoria poderia haurir a sua verdade a no ser dos dados originrios. Isto, porm,

    3 Todas as tradues feitas neste artigo so de minha autoria e responsabilidade.

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    particularmente vlido para a espcie dos conhecimentos gerais a que habitualmente se

    restringe a palavra princpio. (III-1, 52)

    4. Algumas crticas inevitveis

    Trata-se, portanto, de uma questo acerca do ver, acerca do que h para ver, do que

    ver uma essncia, e de que maneira tal objecto se mostra ou d a ver. Ver transmite uma

    metfora esttica uma simples presena diante de nosso olhar, como se houvesse um

    espectador e um espetculo. Mas o ver fenomenolgico algo como um olhar imvel?

    Sabemos que no. Pelo contrrio, os objetos apresentam-se a si mesmos em uma atividade

    propriamente nossa e continuamente adiam o momento final de uma doao completa. Na

    verdade, tal se passa com a intuio inadequada, a qual prevalece em toda doao de

    transcendncias. A intuio inadequada d origem formao de conceitos empricos de

    tipos, e os juzos e a formulao de leis gerais depende do raciocnio indutivo, sempre aberto

    reviso. Husserl reconhece que o mesmo processo sempre em curso, aberto sobre uma

    intuio sem um momento final de completude, pode tambm ocorrer na viso eidtica (III-1,

    13-14). Ento, como podemos construir, com base nesse ver, leis universais, as quais no so

    suscetveis de reviso e excluem qualquer exceo? (Voltaremos a isso.)

    Alm disso, h, por fim, a questo de saber se o conhecimento de princpios pode ser

    apresentado a partir da ideia de um contato com os objetos, i.e., como uma intuio, seja

    adequada ou inadequada. Como Husserl expe em Ideen, quando, por exemplo, ouvimos um

    som, intumos um objeto acstico sensvel e, ao mesmo tempo, co-intumos (no

    tematicamente) a essncia som enquanto tal. Esse ver diretamente a essncia ocorre antes

    de qualquer pensamento predicativo (III-1,15). Husserl d uma caracterizao mnima das

    essncias: elas so objetos em sentido lgico, i.e., so os sujeitos de proposies verdadeiras

    ou falsas, e, como tais, so dadas antes dos juzos enquanto objetos-acerca-dos-quais se

    julga (Gegenstnde-worber). No final do primeiro captulo, Husserl define gneros e

    espcies como entidades abstratas, no-reais e no-independentes, embora haja abstratos

    acerca de objetos concretos (e.g., o eidos corpo fsico) e acerca de objetos abstratos (e.g., o

    eidos qualidade sensvel). Esse o ncleo do fenmeno ver X (e Y) como vermelho,

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    depois ver X (e Y) como casos de vermelho, finalmente, ver o vermelho enquanto tal4 que

    desencadeia toda a elaborao subsequente de Husserl sobre a visada editica direta e o

    conhecimento a priori.

    Contudo, temos aqui uma explanao correta? Neo-kantianos como Paul Natorp e

    Heinrich Rickert argumentam contra isso. Rickert faz uma distino bvia entre estar

    familiarizado com alguma coisa (kennen) e conhecimento cientfico de algo (Erkenntnis). Na

    sua opinio, a ideia de um conhecimento pr-predicativo, no-discursivo, comprimido numa

    simples intuio, auto-contraditria, porque o conhecimento sempre implica uma

    reformulao do dado por meio de conceitos e de juzos que dissectam, articulam e conectam

    o que, na intuio, apresentado de uma s vez, mit einem Schlage, a fim de captar o que

    essencial (Rickert, 1934, 149). Rickert reconhece que, na intuio, h elementos de

    generalidade. Mas somente pensando ativamente possvel compreender a estrutura essencial

    do dado. Assim, Rickert conclui: atravs de nosso acto de conhecimento, necessariamente

    reformulamos o material dado na intuio [e isto] inevitvel para todo e qualquer

    conhecimento que pretende atingir a essncia geral de uma coisa (Rickert, 1934, 150). No

    que viso eidtica diz respeito, Husserl , para Rickert, um caso claro de uma tendncia

    filosfica que ele rejeita sob o ttulo genrico de intuicionismo. A crtica de Natorp vai no

    mesmo sentido: falar sobre intuio de essncias pode ser aceito somente como uma

    maneira de enfatizar que, no conhecimento a priori, no criamos arbitrariamente estruturas

    intelectuais, mas seguimos um caminho que nos imposto pelas coisas que consideramos. E,

    como intrprete de Plato, ele enfatiza que o Platonismo de Husserl demasiado curto,

    permanecendo no primeiro nvel de uma estrutura rgida e fixa de eide, nunca atingindo o

    ponto supremo da doutrina de Plato, colocando os eide em movimento e liquefazendo-os na

    continuidade ltima do processo do pensamento (Natorp, 1973, 44).

    Como Andrea Staiti afirmou, a crtica neo-kantina sobre a Wesenschau de Husserl

    condensa-se em dois pontos: primeiro, o conhecimento eidtico no pode ser de todo

    intuitivo, e, segundo, o conhecimento eidtico deve ser processual (Staiti, 2013, 78).

    4 Erfahrung und Urteil mostrar meticulosamente que eles nem so a mesma coisa, nem esto contidos um no outro, e como e por que meio se pode passar do primeiro para o segundo e o terceiro. Ver EU, ( 81 b), pg. 388-390.

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    5. O ltimo movimento de Husserl alm de Ideen

    O criticismo neo-kantiano acertou o alvo. Em Ideen, Husserl

    1. Descreveu uma organizao um tanto aristotlica, esttica, entre eide, passando dos

    gneros supremos de cada regio para as mais baixas singularidades eidticas

    atravs de um processo de especializao ou, inversamente, a partir dos mais

    baixos eide para os gneros supremos, atravs de um processo de generalizao;

    consequentemente, os eide dentro de um gnero supremo tm entre eles relaes de

    subordinao e incluso, formando um hierarquia fixa.

    2. Atribuiu aos gneros supremos dentro de cada regio e suas respectivas extenses

    eidticas (que so outros eide) relaes de dependncia unilateral ou bilateral, de

    disjuno e conjuno.

    3. Atribuiu a todo conjunto de regies materiais relaes de fundamentao ou in-

    dependncia (por exemplo, a regio psique fundada na regio corpo-somtico

    (Leibkrper), e esta ltima novamente na regio simples natureza).

    Isso equivale a reconhecer que as essncias constituem uma estrutura estvel e imvel,

    como Natorp notou.

    No entanto, ele nunca deixa claro duas pesadas questes:

    a) A fim de delinear claramente o contedo de uma essncia, a intuio de um nico

    indivduo (seja na experincia ou na fantasia) e a ideao so suficientes, ou

    devemos compar-lo com outros indivduos para captar semelhanas, ampliando ou

    reduzindo o contedo primeiro? Neste caso, como saber com certeza que toda a

    gama de possibilidades foi analisada, de modo a poder terminar o processo? Este o

    problema da paragem. Ele tem uma relao prxima com a alegao de Rickert de

    que, a fim de apreender uma essncia, uma grande quantidade de atividade

    discursiva metdica exigida.

    b) Pode o pensamento eidtico atingir um estgio de absoluta independncia das

    intuies individuais, ou permanece para sempre dependente delas? Em outras

    palavras: a fim de apreender uma nova essncia, devemos sempre comear com uma

    experincia individual (ou quase experincia na fantasia) ou, ao contrrio, podemos

    tambm alcanar possveis novos indivduos nunca experienciados antes atravs da

    liberdade e autonomia do pensamento eidtico, o qual, nesse caso, poderia levar-nos

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    [ 14 ]

    de um eidos j conhecido para a descoberta de novos eide? Nesta questo ecoa a

    objeo de Natorp.

    A sada para essas definincias foi encontrada por Husserl a meio dos anos vinte. Em

    1924, no segundo artigo para Kaizo, e em 1925, em suas lies sobre a psicologia

    fenomenolgica, o longo processo iniciado na teoria da intuio geral ou abstrao

    ideativa, nas Logische Untersuchungen, e, de seguida, continuado na teoria da viso

    eidtica, apresentada em Ideen, estava atingindo um ponto final de maturao. Os pargrafos

    atinentes a esse tema em Erfahrung und Urteil foram, ento, treze anos depois, uma

    apresentao sistemtica de uma parte do mtodo que tomou quase trinta anos para atingir sua

    forma madura.

    O ponto decisivo foi a introduo do conceito de variao e, principalmente, do

    conceito completar de invarincia. Dirk Fonfarra sugere que o primeiro conceito pode ser

    rastreado at o pargrafo 8 de Ideen-III, escrito em 1912 (Hua XLI, XXVIII), uma vez que

    Husserl desenvolve algumas reflexes em que se mostra que ele estava perto da concepo de

    uma variao eidtica. Alm disso, Husserl falou expressamente sobre uma variao

    eidtica em um manuscrito de agosto de 1912 (Hua XLI, 57) sobre a relao entre

    Fenomenologia e psicologias descritiva e explicativa. No entanto, ele no entrou em detalhes

    sobre isso. Dieter Lohmar entende que a introduo, por parte de Husserl, da teoria da

    variao eidtica em meados dos anos vinte constitui um esclarecimento das exposies

    anteriores (Lohmar, 2005). Certamente, inegvel que h elementos de continuidade e, em

    seguida, uma clarificao final. No entanto, a teoria recm-elaborada de livre variao na

    fantasia, a fim de apreender o invariante como eidos, foi, no meu ponto de vista, uma

    autntica descoberta quando comparada com a teoria da viso eidtica exposta em Ideen.

    6. Procurando pelo invariante as razes de um conceito crucial

    No segundo artigo para Kaizo, Husserl apresenta um esquema robusto de um sistema

    completo de um conhecimento a priori com base no conceito de viso eidtica (Wesenschau),

    o qual, como estava escrevendo na mesma poca, o genuno mtodo para a captao do a

    priori (Hua IX, 72). O artigo para Kaizo enfatiza os procedimentos cannicos subsequentes

    para ver e conhecer predicativamente uma essncia. O que impressiona mais que a

    Matemtica o exemplo-guia apresentado, e o caso paradigmtico em toda a exposio de

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    [ 15 ]

    Husserl. E minha suposio que, embora no apresentados no artigo de Kaizo, onde somente

    o conceito de livre variao aparece, o conceito de um invariante sob o sistema de livre

    variao, introduzido nas lies sobre Psicologia, tem suas razes na teoria cientfica do

    tempo, nomeadamente na Matemtica e na Fsica, onde a busca pelo invariante sob um grupo

    de transformaes foi uma importante ferramenta.

    Na realidade, a invarincia foi um conceito relacionado Teoria dos Grupos, a qual, em

    uma parte importante, foi desenvolvida no contexto da Geometria no-euclidiana por Felix

    Klein. Sophus Lie tambm fez uma contribuio importante. A Teoria do Invariante foi

    tambm desenvolvida no contexto da lgebra abstrata. O colega de Husserl em Gttingen,

    David Hilbert, cuja Grundlagen der Geometrie foi o modelo de Husserl para uma cincia

    formal axiomtica, deu uma grande contribuio para este tema. Depois, tambm em

    Gttingen, na mesma poca em que Hilbert estava lidando com a base matemtica da

    Relatividade Geral, Emmy Noether publicou um teorema que muito importante para

    investigao da correspondncia entre alguns invariantes e leis de conservao da Fsica. No

    preciso dizer que o conceito de invariante estava se tornando uma ferramenta central na

    Fsica, onde, por exemplo, as leis da Natureza foram formuladas como estruturas invariantes

    subjacentes a qualquer transformao possvel, tal como a mudana de referenciais. A

    velocidade da luz foi formulada precisamente como um invariante para qualquer referencial.

    As transformadas de Lorentz mostraram tambm que os intervalos de espao-tempo eram

    invariantes para quaisquer referenciais arbitrariamente considerados, ao passo que as

    distncias entre os eventos no espao e no tempo no o eram. Nos anos 80, Herman Weyl, que

    na poca estava obsessivamente convencido que a Fenomenologia transcendental era o nico

    fundamento para a cincia matemtica da natureza, construiu, baseado na Relatividade Geral,

    a primeira unificao entre Eletromagnetismo e Gravidade precisamente em torno do conceito

    de Eichinvarianz, i.e., invarincia de escala, posteriormente chamada de gage-theory. No

    preciso dizer quo perto Weyl e Husserl estavam nos primeiros anos dos anos 20. Oskar

    Becker, a grande esperana de Husserl para a epistemologia fenomenolgica das cincias

    formais e naturais, trabalhou diretamente com Weyl. Todas essas conquistas acadmicas, a

    maioria delas em Gttingen, pertenceram ao universo intelectual de Husserl.

    Ao todo, desconsiderando tecnicidades matemticas, podemos estabelecer um conceito

    intuitivo de invarincia como um elemento que permanece inalterado sob um sistema de livres

    variaes. Para determinar um invariante, devemos (i) tomar um caso inicial, (ii) definir uma

    regra para produzir variaes livremente e, finalmente, (iii) ter um critrio de determinao,

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    para alm da srie de variaes, do invariante, e saber que ele ir permanecer, para que a

    produo de qualquer nova variao possa chegar ao seu termo. Dois exemplos simples. Que

    se tome trs nmeros positivos consecutivos, multiplique-se cada um por um nmero positivo

    e, depois ver-se- que a transformao de x, y e z em ax, ay e az conserva a ordem de relao

    entre eles: se x

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    d) Que, em tal variao, a nica limitao que a variedade de casos seja mantida

    sob a identidade do conceito inicial;

    e) Que, finalmente, as assees matemticas dizem respeito ao que permanece

    invariante diante das variaes, i.e., a essncia, sejam essas asseres sobre o

    eidos em si mesmo (por exemplo: o tringulo ...), ou sobre a totalidade

    singularidades eidticas que esto sob elas (por exemplo: em geral, todos os

    tringulos so...).

    5. E, principalmente, que no h razo para limitar s Matemticas o mtodo de viso

    eidtica.

    6. De modo que um sistema completo de cincias eidticas desenvolvido cobre a

    totalidade de seres possveis, incluindo essncias no exatas como Humanidade,

    Cultura, Sociedade etc., mesmo que, em tais ontologias de essncias no-

    exatas, o mtodo especfico e o inteiro tipo de teorias apriorsticas possa e deva

    ser, finalmente, bastante diferente (Hua XXVII, 18).

    Em Phnomenologische Psychologie, Husserl acentua esta mesma referencialidade da

    Matemtica para o mtodo de viso eidtica, ao mesmo tempo que lamenta o prejuzo funesto

    que limita o conhecimento a priori apenas esfera do conhecimento matemtico. No fim do

    pargrafo 9 e no incio do 10, escreve:

    Do memso modo, a captao do a priori, a aco interna da ideao no para todos ns

    estranha na medida em que todos aprendemos pelo menos um pouco de matemtica e, com isso,

    adquirimos, pela nossa prpria aco, inteleco matemtica. Mas nunca nos ensinaram a olhar

    para a intimidade do agir matemtico e a ver como, por via disso, as universalidades brotam a

    partir das necessidades. [Porque o mtodo da ideao] cresceu a partir das grandezas e dos

    nmeros e, durante milnios, s a foi exercitado, deu origem ao preconceito firmemente

    enraizado de que um tal mtodo apriorstico s poderia ser exercitado na esfera matemtica (e

    na esfera, estreitamente entrelaada, do lgico formal). (Hua IX 87-88)

    Ento, como disse acima, Husserl tomou um importante ferramenta intelectual, que

    estava no ar entre os matemticos e fsicos, e generalizou-a para lidar com o conhecimento

    a priori em todos os domnios, entronizando-a como o mtodo para todas as regies

    ontolgicas. Ao faz-lo e este o avano decisivo em relao a Ideen , ele mostrou duas

    coisas importantes. Primeiro, que a viso eidtica um mtodo genuno de descoberta, capaz

    de obter novos eide a partir de um eidos prvio, e dinamicamente passar de um para o outro,

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    exibindo-os na continuidade global do pensamento. Isso pra as crticas de Natorp. Segundo,

    que h uma grande quantidade de procedimentos metodolgicos necessrios a fim de alcanar

    um eidos na base de conceito incial, no plenamente determinado, de modo que a intuio

    eidtica um resultado, e no o comeo do processo cognitivo. Isso responde a objeo de

    Rickert.

    7. Consideraes finais sobre viso eidtica

    Concluo com algumas observaes sobre a reelaborao da busca dos invariantes feita

    por Husserl. Na verdade, vale a pena notar a extensa reconstruo filosfica que Husserl faz.

    No se trata, portanto, de uma questo de simples aplicao de um mtodo previamente

    fixado, mas de uma reformulao que abre para uma nova dimenso, cruzando as fronteiras

    da Matemtica e alcanando o domnio das regies ontolgicas materiais. Isso foi uma mtua

    fecundao entre a Matemtica, a Epistemologia geral e a Filosofia.

    O mtodo de viso eidtica de Husserl segue as seguintes etapas:

    1. Tomar um exemplo como modelo (Urbild) num pensamento neutralizado, no

    posicional (o qual pode ser um indivduo dado numa experincia atual, mas logo

    convertido em pura possibilidade);

    2. Vari-lo vontade (beliebig), de acordo com uma regra, produzindo uma srie de

    cpias (Nachbilden) repensadas (umgedachte) ou fingidas (umfingiert);

    3. Considerar a coincidncia de sobreposio (berschibende Deckung) que pas-

    sivamente constituda entre os membros durante a variao;

    4. Parar a produo de novas variaes assim que ocorre a tomada de conscincia de

    que o depsito coincidente vai permanecer, uma tomada de conscincia que toma a

    forma de um assim por diante (und so weiter);

    5. Apreender tematicamente o invariante como eidos, ou essncia geral, permanecendo

    ao longo da srie e destacando-se dela como uma unidade ideal.

    Minhas consideraes finais so as seguintes:

    Ad. 1. A variao se move no domnio das possibilidades puras, cancelando qualquer

    posio da realidade. Isso j um tipo de pensamento neutralizado que independente da

    epoche transcendental. Ele especfico para a reduo eidtica. Quando a epoche

    transcendental realizada, at as possibilidades puras que a reduo eidtica considera so

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    postas entre parnteses, certo. No obstante, no preciso esperar pela reduo

    transcendental a fim desenvolver um pensamento que esteja livre de qualquer vinculao a

    uma realidade atual.

    Ad.2. A variao baseada no raciocnio contrafactual. Isso equivale a imaginar que um

    A, o qual a e b, poderia ao invs ser c e d, enquanto continua a ser A. Isso expande as

    reflexes introdutrias de Husserl no pargrafo 2 de Ideen, onde afirma que um indivduo,

    que de fato um a, poderia ser, por sua prpria essncia, b ou c (III-1, 12). Os verbos que

    os textos maduros usam so precisamente umfingieren e umdenken. O caso de partida, que

    contrafactualmente variado, , certamente, uma pura possibilidade como modelo, e no uma

    realidade experienciada (ou melhor, pode ser uma realidade, mas convertida em pura

    possibilidade assim que a variao comea). Ora isso equivale a dizer que a variao produz

    na fantasia uma srie de indivduos mutuamente incompatveis. Erfahrung und Urteil

    chamar a isso uma unidade hbrida (Husserl, 1985, 417). Esses indivduos, enquanto

    possibilidades contrafactualmente obtidas, no pertencem ao mesmo mundo possvel. Na

    medida em que outros indivduos co-variam com a variao do primeiro, as variaes

    produzem um sistema de experincias possveis onde, comeando com a experincia de um

    indivduo, possvel conceber as co-variaes correspondentes de um outro indivduo

    correlacionado com o primeiro na unidade de uma experincias possvel. Isso pode ser

    alargado ao conjunto aberto de todos os indicduos que co-variam com a variao do primeiro.

    Essa a origem do conceito fenomenolgico de uma multiplicidade de mundos possveis. Ele

    tem que ver com possibilidades puras (no com possibilidades reais), obtidas por variao na

    fantasia, e com a ideia de um sistema de co-variaes na unidade de uma experincia

    concordante.

    Alm disso, a variao vontade, e no arbitrria. A distino crucial. A fim de

    variar, precisamos saber o que estamos procurando. Por exemplo, o som d no uma

    variao de vermelho, se estamos procurando pelo eidos cor; no entanto, pode ser uma

    possvel variao de vermelho, se estamos procurando pelo eidos qualidade sensvel.

    Quando estamos lidando com questes no triviais, esse problema sobre a regra para a

    variao, dependente do assunto a investigar, acaba por ser uma questo muito importante.

    Ad. 3 e 4. Quando lidamos com essncias exatas, temos procedimentos seguros a fim de

    saber quando o invariante obtido e a produo de novos exemplos pode chegar a um termo.

    No entanto, nas essncias no-exatas, morfolgicas, o ponto terminal pode ser elusivo. No

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    temos um critrio claro aqui, e todo o processo depende das habilidades do pesquisador para

    produzir um rico conjunto de exemplos imaginados.

    Por exemplo, quando variamos na fantasia para procurar o eidos organismo vivo,

    quais so os limites da variao, e como podemos saber com certeza que um invariante para o

    infinito conjunto de possibilidades foi atingido? Se, como Husserl sustenta, esse processo de

    formao conceitual necessrio para construir as fundaes conceituais a priori de cada

    cincia emprica, temos aqui um ponto fraco cravado no corao do mtodo de captao de

    essncias.

    Ad. 5 Finalmente, qualquer eidos tem validade para todos os mundos possveis. Essa

    sua universalidade. Mesmo que, em um mundo possvel, no haja qualquer individuo que

    instancie certo eidos, isso no o invalida. Pelo contrrio, ele subsiste no domnio dos objetos

    ideiais e h proposies verdadeiras sobre ele nesse mundo possvel, mesmo que ningum

    esteja em condies de as expressar.

    Ao contrrio, no h critrio fenomenolgico para a identidade trans-mundial entre

    indivduos.

    Mas este um tema controverso que devemos adiar para outra ocasio.

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    REFERNCIAS

    Husserl, Edmund (Hua III-1) Ideen zu einer reinen Phnomenologie und phnomenolo-gischen Philosophie. Erstes Buch: Allgemeine Einfhrungin die reine Phnomenologie 1. Halbband: Text der 1.-3. Auflage. The Hague, Netherlands: Martinus Nijhoff, 1977. Husserl, Edmund (Hua IX) Phnomenologische Psychologie. Vorlesungen Sommerse-mester. 1925. The Hague, Netherlands: Martinus Nijhoff, 1968.

    Husserl, Edmund (Hua XXVII) Aufstze und Vortrge. 1922-1937. The Hague, Neth-erlands: Kluwer Academic Publishers, 1988.

    Husserl, Edmund (Hua XLI) Zur Lehre vom Wesen und zur Methode der eidetischen Variation. Texte aus dem Nachlass (1891-1935). New York: Springer, 2012.

    Lohmar, Dieter 2005. Die phnomenologische Wesensschau und ihre Przisierung als eidetische Variation, in: Phnomenologische Forschungen 10, pp. 65-91.

    Natorp, Paul 1973. Husserls Ideen zu einer reinen Phnomenologie, in Husserl. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft.

    Rickert, Heinrich 1934. Kennen und Erkennen. Kritische Bemerkungen zum theoretischen Intuitionismus. Kant Studien 39, pp. 139-55. Ricoeur, Paul 1996. A Key to Husserls Ideas I. Milwaukee: Marquette University Press. Smith, David Woodruff 2007. Husserl. London: Routledge.

    Staiti, Andrea 2013. The Ideen and the Neo-Kantianism in Husserls Ideen. Dordrecht: Springer, pp. 71-90.