Sobre a “Municipalização da Cultura” a... · Considerar a cultura como um domínio entre...

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Sobre a “Municipalização da Cultura” Rui Matoso Agosto, 2017 Rui Matoso |ESTC – IPL | https://estc.academia.edu/RuiMatoso | [email protected]

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Sobrea

“Municipalizaçãoda Cultura”

Rui MatosoAgosto, 2017

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RESUMO

Em Portugal, a descentralização não encontra grandes raízes, à semelhança dos países comum historial de tradições autoritárias, porém, segundo afirmam os historiadores, o país possui umalonga tradição municipalista, consagrada na Constituição da Republica Portuguesa (CRP).

No eixo da política cultural de descentralização das artes do espectáculo, promovidadurante o ministério de Manuel Maria Carrilho, lançou-se o programa “Raízes - a cultura nasregiões”, foram criados os Centros Regionais de Arte do Espectáculo — do Alentejo (em Évora -1997) e das Beiras (em Viseu - 1998) e um programa de itinerância cultural, o “Rotas”. Em 1999,realizou-se a primeira “Convenção Cultural Autárquica”, onde terá sido aprovada, segundoCarrilho, uma «magna carta» da descentralização cultural.

Se verificarmos a tutela e a gestão dos equipamentos culturais de âmbito local, poderemosverificar que as bibliotecas, os museus, as galerias, os arquivos e os teatros, desde há muito quedependem, maioritariamente, da administração municipal.

PALAVRAS-CHAVE

Descentralização – Municipalização – Cultura – Reforma Administrativa - Democratização – Democracia Cultural

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1. CONTEXTUALIZAÇÃO GERAL

A esta relativamente crescente visibilidade do cultural, não chegou a responder uma política cultural que, de modo articulado e sistemático, acompanhasse

e estimulasse as mudanças emergentes na sociedade civil.Maria de Lurdes Lima dos Santos

Em fevereiro de 2017, o Conselho de Ministros aprovou o «pacote de Descentralização»1,

do qual consta a proposta de Lei 62/XIII2 que estabelece o quadro de transferência de

competências para as autarquias locais e para as entidades intermunicipais.

O histórico de legislação relativa à transferência de competências para as autarquias locais

remonta pelo menos a 1999 (Lei nº 159/99)3, cujo diploma foi revogado pelo(a) Lei n.º 75/20134,

de 12 de Setembro, o qual por sua vez sofreu alterações posteriores. A lei de 2013 mereceu na

altura uma acesa discussão pública, designada então como a «lei do ministro Relvas», tendo

inclusive sido chumbada pelo Tribunal Constitucional5.

A lei de 1999 (Artigo 13.º) atribuía já aos municípios e às freguesias competências no

domínio cultural:

i) Municípios: Património, cultura e ciência

ii) Freguesias: Cultura, tempos livres e desporto

No capítulo relativo às competências dos órgãos municipais, esta mesma lei definia no

artigo 20.º (Património, cultura e ciência):

1 — É da competência dos órgãos municipais o planeamento, a gestão e a realização de

investimentos públicos nos seguintes domínios:

a) Centros de cultura, centros de ciência, bibliotecas, teatros e museus municipais;

b) Património cultural, paisagístico e urbanístico do município.

2 — É igualmente da competência dos órgãos municipais:

a) Propor a classificação de imóveis, conjuntos ou sítios nos termos legais;

b) Proceder à classificação de imóveis conjuntos ou sítios considerados de interesse

municipal, assegurar a sua manutenção e recuperação;

c) Participar, mediante a celebração de protocolos com entidades públicas, particulares ou

cooperativas, na conservação e recuperação do património e das áreas classificadas;

1 http://www.portugal.gov.pt/pt/ministerios/madj/noticias/20170216-madj-descentralizacao.aspx 2 https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=41057 3 http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=1228&tabela=leis 4 http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=1990&tabela=leis 5 http://rr.sapo.pt/informacao_detalhe.aspx?fid=1&did=109106

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d) Organizar e manter actualizado um inventário do património cultural, urbanístico e

paisagístico existente na área do município;

e) Gerir museus, edifícios e sítios classificados, nos termos a definir por lei ;

f) Apoiar projectos e agentes culturais não profissionais;

g) Apoiar actividades culturais de interesse municipal;

h) Apoiar a construção e conservação de equipamentos culturais de âmbito local.

A legislação de 1999 previa que o município, mediante protocolo, pudesse transferir

atribuições para as freguesias em diversas áreas. No entanto, a lei de 2013 é mais específica e

refere que compete à junta de freguesia «apoiar atividades de natureza social, cultural, educativa,

desportiva, recreativa ou outra de interesse para a freguesia» (Artº 16º, alínea v).

Regressando à actualidade da proposta de Lei 62/XIII (2017), podemos verificar que no

domínio da cultura, e mais concretamente nos sectores do património e dos museus, a

ambiguidade da linguagem usada tem gerado preocupação nos profissionais do sector dos museus

e do património.

Proposta de Lei 62/XIII – Municípios

Novas competências: Cultura6

- Gerir, valorizar e conservar património cultural que, sendo classificado, se considere de

âmbito local;

- Gerir, valorizar e conservar os museus que não sejam museus nacionais;

- Autorizar e fiscalizar espetáculos de natureza artística;

- Autorizar a realização de espetáculos tauromáquicos.

Comparativamente à legislação anterior, é preciso ter em atenção que, apesar de revogada

a Lei n.º 159/99, não são prejudicadas as transferências e delegações de competências efetuadas

previamente à entrada em vigor da lei de 20137 . Assim, face às competências atribuídas pela lei de

1999, a proposta de Lei 62/XIII (2017) vem acrescentar competências na autorização e fiscalização

de espetáculos de natureza artística, mas que na realidade já podem ser realizadas em parceria

com a IGAC, através dos seus delegados municipais8.

No que se refere à autorização de realização de espetáculos tauromáquicos, na prática

trata-se de passar competências directas da IGAC (Inspeção-geral das Actividades Culturais) para as

Câmaras Municipais com todas as problemáticas que isso levanta, nomeadamente em relação ao

6 http://www.portugal.gov.pt/media/25261172/20170216-madj-descentralizacao.pdf 7 Artigo 3.º - Norma revogatória 8 https://www.igac.gov.pt/delegados-municipais-da-igac

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cumprimento legal da supervisão de espetáculos tauromáquicos.

Em Portugal, a descentralização não encontra grandes raízes, à semelhança dos países com

um historial de tradições autoritárias, porém, segundo afirmam os historiadores, o país possui uma

longa tradição municipalista, consagrada na Constituição da Republica Portuguesa (CRP).

Neste segundo milénio, a reorganização da Administração Pública conheceu dois programas

com impactos nas orgânicas das entidades culturais do Estado: em 2005, o “Programa de

Reestruturação da Administração Central do Estado” (PRACE); e, em 2011, o “Plano de Melhoria e

Redução da Administração Central do Estado” (PREMAC).

O início da desconcentração (pós 1974) de estruturas do Ministério da Cultura foi marcado

pela criação das Delegações Regionais em 1980, consolidadas como Direções Regionais de Cultura

(DRC), cuja última revisão da lei orgânica foi aprovada por exigência do PREMAC, em 20119.

No sector do Património e dos Museus Nacionais as alterações orgânicas provocadas pelo

PREMAC, conduziram à fusão entre Instituto dos Museus e da Conservação (IMC) e o Instituto de

Gestão do Património Arquitetónico e Arqueológico (IGESPAR), gerando a actual Direção-Geral do

Património Cultural. Esta fusão provocou ainda a passagem da tutela administrativa e das

atribuições do IMC para as respectivas DRC relativas aos Museus Nacionais localizados nos seus

territórios.

No âmbito supramunicipal, para além das competências das Comissões de Coordenação e

Desenvolvimento Regional (CCDR´s) instituídas em 200310, a Lei de 2013 deu origem à constituição

das Comunidades Intermunicipais (CIM), também elas com atribuições na área da cultura. Cabe às

CIM assegurar a articulação das atuações entre os municípios e os serviços da administração

central quanto à «Rede de equipamentos culturais, desportivos e de lazer», compete ao conselho

intermunicipal (Artº 90), a aprovação de um «Plano intermunicipal de gestão de redes de

equipamentos de saúde, educação, cultura e desporto».

Foram ainda criadas (em 2003) as Áreas Metropolitanas, reformuladas pela Lei nº 75/2013,

mantendo-se actualmente apenas duas: a Área Metropolitana do Porto e a Área Metropolitana de

Lisboa, com atribuições idênticas às CIM na área da cultura.

No eixo da política cultural de descentralização das artes do espectáculo, promovida

durante o ministério de Manuel Maria Carrilho, lançou-se o programa “Raízes - a cultura nas

regiões”, foram criados os Centros Regionais de Arte do Espectáculo — do Alentejo (em Évora -

9 http://culturanorte.pt/fotos/editor2/decreto-lei_114_2012_de_25_de_maio-organica_das_direcoes_regionais_da_cultura.pdf

10 http://www.ccdr-lvt.pt/pt/decreto-lei-104-2003-cria-as-ccdrs/716.htm

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1997) e das Beiras (em Viseu - 1998) e um programa de itinerância cultural, o “Rotas”. Em 1999,

realizou-se a primeira “Convenção Cultural Autárquica”11, onde terá sido aprovada, segundo

Carrilho12, uma «magna carta» da descentralização cultural.

Outros equipamentos culturais de envergadura nacional, com diferentes estatutos jurídicos,

integram o panorama cultural descentralizado no território nacional: Teatro Nacional de São João;

Museu de Arte Contemporânea (Serralves); Casa da Música, Centro Português de Fotografia,

Museu do Côa ou os museus integrados na Direção Geral do Património Cultural13. As três

orquestras regionais do Algarve, do Norte, e das Beiras, apesar de não serem tuteladas pelo

Estado, recebem financiamento14 especifico para o cumprimento da missão de preservação,

divulgação, descentralização e difusão da música erudita.

Se verificarmos a tutela e a gestão dos equipamentos culturais de âmbito local, poderemos

verificar que as bibliotecas, os museus, as galerias, os arquivos e os teatros, desde há muito que

dependem, maioritariamente, da administração municipal.

11 https://www.publico.pt/culturaipsilon/jornal/a-convencao-da-discordia-132242 12 http://www.manuelmariacarrilho.pt/atividade-pol%C3%ADtica.html 13 http://www.patrimoniocultural.gov.pt/pt/museus-e-monumentos/dgpc/ 14 Despacho Normativo 56/92, de 29 de Abril

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2. POLÍTICAS SECTORIAIS

Considerar a cultura como um domínio entre outros,

ou como um meio de adornar a vida para uma certa categoria de pessoas,

é enganar-se de século, é enganar-se de milénio.

Hoje, o papel da cultura é fornecer aos nossos contemporâneos os instrumentos

intelectuais e morais que lhes permitam sobreviver - nada de menos.

Amin Maalouf

2.1. PATRIMÓNIO CULTURAL: MUSEUS E MONUMENTOS

No sector dos Museus e do Património Cultural, as iniciativas governamentais de reformas

da administração pública: PRACE (2005) e PREMAC (2011), introduziram alterações profundas e

criticadas pelos profissionais do sector, designadamente a resultante da extinção e da fusão15,

promovida pelo PREMAC, entre o Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e

Arqueológico, I. P. (IGESPAR) e o Instituto dos Museus e da Conservação (IMC), dando origem à

Direção-Geral do Património Cultural16 , a qual passou também a incluir a Direcção Regional de

Cultura de Lisboa e Vale do Tejo.

A Lei-quadro dos Museus, diz que quaisquer entidades públicas e privadas podem criar

museus (Lei nº 47/2004 de 19 de Agosto, art. 5), mas de acordo com as Estatísticas da Cultura –

2015 (INE)17, num total de 388 museus, 191 são geridos pela administração pública local (ver

tabela 1). Ainda no domínio da política museológica é determinada pela sua configuração num

sistema organizado de museus, baseado na adesão voluntária em rede: “Rede Portuguesa de

Museus” (RPM)18.

15 http://www.dn.pt/economia/interior/governo-anuncia-nova-direccao-geral-do-patrimonio-cultural-1997788.html 16 http://www.patrimoniocultural.gov.pt/pt/ 17 https://www.ine.pt/xportal/xmain?

xpid=INE&xpgid=ine_publicacoes&PUBLICACOESpub_boui=277092494&PUBLICACOESmodo=2 18 http://www.patrimoniocultural.gov.pt/pt/museus-e-monumentos/rede-portuguesa/

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Tabela 1 – Tutela dos museus por tipologia de forma jurídica

Fonte: Estatísticas da Cultura – 2015 (INE)

No plano da salvaguarda e da valorização do património cultural, e da conservação e gestão

dos museus nacionais, a proposta do Governo relativa ao “pacote da descentralização” (Lei 62/XIII,

fevereiro de 2017) bem como o conjunto de medidas previstas no Programa do XXI Governo (2015-

2019)19 respeitantes à Reforma do Estado, veio reacender o clima de suspeita agravada no sector,

nomeadamente devido aos impactos e às alterações resultantes das transferência de

competências do Estado:

• A aposta no incremento da legitimação das autarquias e das Comissões de Coordenação e

Desenvolvimento Regional (CCDR);

• A descentralização para os municípios das competências de gestão dos serviços públicos;

• Um novo modelo de governação regional resultante da democratização das CCDR;

• A coerência territorial à administração desconcentrada do Estado que promoverá a

integração dos serviços desconcentrados do Estado nas CCDR.

19 http://www.portugal.gov.pt/pt/o-governo/prog-gc21/20151127-programa.aspx

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É também útil referir aqui que estas propostas de lei conducentes à desconcentração,

descentralização ou municipalização do Património Cultural, é contemporânea de um outro

projecto que visa promover a transformação do património em activo económico. O projeto

“Revive” abre o património ao investimento privado para desenvolvimento de projetos turísticos,

através da realização de concursos públicos. Um exemplo paradigmático dos perigos da

municipalização do património - num contexto de crise económica, de excesso de dívida pública e

numa visão economicista do património-, encontra-se na polémica do Forte de Peniche

(entretanto retirado20 do “Revive”), na qual o próprio presidente da Câmara Municipal de Peniche

foi um dos grandes defensores da inclusão do Forte de Peniche na lista dos monumentos a

concessionar a hotéis privados21.

Várias objeções e dúvidas vêm sendo colocadas, pelos agentes culturais e partidos políticos,

quanto à integração de serviços centrais nos serviços desconcentrados da administração central,

designadamente a integração nas CCDR das Direcções Regionais de Cultura e da Direcção-Geral do

Património Cultural22.

Os colóquios, conferências e debates sobre o Património Cultural e a Descentralização, e as

tomadas de posição deste sector, demonstram bem o conjunto de preocupações dos profissionais

e organizações do sector.

O “Fórum do Património 2017”23, parte de múltiplas questões em aberto, p.ex.: «Como se

garante, com as presentes propostas de descentralização, a implementação de uma política

nacional concertada com o objetivo de proteger e valorizar o Património Nacional tal como surge

definido na Lei de Bases do Património Cultural ou na própria Constituição?».

Uma notícia da Agência Lusa informa com maior detalhe acerca do projeto de Lei-Quadro

da Descentralização, do Governo, no setor da cultura, o qual prevê a transferência do exercício de

competências, para os municípios, nas áreas de "gestão, valorização e conservação do património

cultural que, sendo classificado, se considere de âmbito local"24, estando ainda previsto a afectação

de bens culturais, imóveis classificados e sobretudo castelos, às câmaras municipais.

O ICOMOS-Portugal considera especialmente preocupante as consequências de uma nova

descentralização/municipalização das competências vinculadas ao Património Cultural. Este receio

20 http://expresso.sapo.pt/politica/2016-11-10-Forte-de-Peniche-ja-nao-sera-concessionado 21 http://www.jn.pt/nacional/interior/hotel-privado-na-fortaleza-de-peniche-gera-polemica-5417267.html 22 http://www.dn.pt/lusa/interior/especialistas-em-patrimonio-cultural-criticam-falta-de-atencao-dos-governos-ao-

setor-8621608.html ; http://www.esquerda.net/artigo/assistimos-uma-captura-do-patrimonio-cultural-pelo-imobiliario/49708

23 http://www.forumdopatrimonio.pt/index.php/imprensa/51-o-patrimonio-cultural-e-a-descentralizacao 24 http://www.dn.pt/lusa/interior/descentralizacao-governo-estabelece-regras-para-o-setor-da-cultura-8510879.html

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é ainda mais efectivo se tivermos em conta que «nunca foi efectuado qualquer diagnóstico ao

Património Cultural Português, ou avaliação de resultados dos modelos jurídico e institucionais até

agora vigentes. Teria sido interessante, por exemplo, proceder a uma avaliação independente dos

museus cuja gestão foi nos últimos anos transferida para os municípios»25.

Nesse mesmo comunicado, o ICOMOS defende ainda que a transferências de competências

para as Autarquias Locais terá de ser acompanhada do reforço da fiscalização, designadamente

face a iniciativas autárquicas de concessão ou externalização de serviços e de bens patrimoniais.

De modo idêntico, a Federação dos Sindicatos da Função Pública (FPS) recusa a privatização, a

empresarialização ou a municipalização dos serviços culturais públicos, defendendo que se

mantenha o respeito pelo princípio público definido na Constituição da República Portuguesa26.

Casos recentemente mediatizados revelam na prática alguns destes perigos:

• Inquérito no Convento de Cristo por danos e suspeita de roubo

• Gravura rupestre vandalizada em Foz Côa

• Exposição de automóveis no Museu dos Coches é “altamente imprópria”

• Festas nos Jerónimos investigadas pelo Ministério Público

• Governo desiste de "privatizar" Fortaleza de Peniche

• Associação contra municipalização do Museu de Aveiro

As carências existentes nas equipas, serviços e infraestruturas (vigilância, gestão,

conservação, programação, mediação, ...) ao nível municipal é outra problemática partilhada pelo

ICOMOS, designadamente no que respeita à escassez de técnicos nesses serviços, bem como às

condições laborais dos trabalhadores da cultura que se encontram com contratos a termo

resolutivo incerto e que exercem funções que correspondem a necessidades permanentes dos

serviços. Em reunião de março de 2016 com a directora da DGPC, a FPS reivindicou o fim da

precariedade laboral no sector cultural: «o fim do recurso sistemático, ilegal e injusto à

precariedade, através dos contratos a termo, dos contratos de emprego inserção (CEIs) e do

voluntariado, para assegurar postos de trabalho que correspondem a necessidades

permanentes»27.

Nuno Vassallo e Silva, Ex-Diretor Geral do Património, defende que «reduzir as entidades

tutelares do património a órgãos normativos - sem capacidade própria de intervenção, sem

25 http://www.icomos.pt/images/pdfs/2017/Contributo-Descentralizao.pdf 26 http://www.stfpcentro.pt/j/images/PDF/2016/Mar2016/Federacao_03Mar_Cultura.pdf 27 http://www.stfpcentro.pt/j/images/PDF/2016/Mar2016/Federacao_03Mar_Cultura.pdf

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capacidade de visão geral sobre o território nacional em que deveriam intervir - será esquartejar

qualquer meio de se afirmar uma política coerente para o património e, num ponto de vista mais

largo, para a uma política cultural em geral»28.

A Arqueóloga Jacinta Bugalhão, em Audição Parlamentar realizada em 2017-07-04, foi

peremptória ao afirmar que estas iniciativas legislativas «enceram um conjunto vasto de

problemáticas para a gestão pública do património cultural, temendo-se que possam

consubstanciar uma rotura de consequências não devidamente avaliadas nas políticas culturais

que vêm sendo adotadas desde dos anos 80 do século passado em respeito pelas convenções

internacionais e boas práticas. Parece óbvio que a concretização integral deste pacote, terá como

consequência, a prazo, o desaparecimento dos órgãos de tutela sobre o património cultural, de

âmbito nacional, especializados, essencialmente técnicos (com quadros técnica e cientificamente

competentes) e com autonomia técnica, com poderes vinculativos e competências de

superintendência, normalização, regulação, gestão da informação, que constituam um nível

diferenciado, hierarquicamente superior, de apoio à decisão política, situados no sector

governamental da Cultura»29.

O Sindicato dos Trabalhadores de Arqueologia também se pronunciou sobre as propostas

de descentralização de competências no âmbito do Património Cultural, salientando que a

transferência de atribuições das DRC para as CCDR´s possa «ser uma falsa descentralização, já que

as CCDR’s não reportam a qualquer entidade com membros eleitos pelos cidadãos no âmbito

regional. Deste modo, falham em aproximar o Estado e o Cidadão.»30

A ambiguidade semântica da formulação da proposta de Lei 62/XIII, é também razão para

suscitar suspeitas junto da comunidade científica. Segundo Luís Raposo, Presidente do ICOM -

Europa (Internacional Council of Museums), na redação desta lei, a ambiguidade dos conceitos

jurídicos31 é propositada, pois expressões como “os museus não nacionais” em vez de “museus de

tutela nacional” são intencionais e «visa precisamente poder transferir para as autarquias qualquer

museu dependente do Governo, desde que não classificado como “museu nacional”. Ou seja, o

conceito técnico e restrito de “museu nacional” é pura e simplesmente mandado para o caixote do

28 http://www.dn.pt/opiniao/opiniao-dn/convidados/interior/por-um-patrimonio-cultural-uno-e-protegido-5645196.html29 https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheAudicao.aspx?BID=105680 30 http://www.starq.info/ 31 « Artigo 94. Denominação de museus: 1 — A denominação de museu nacional compete ao Ministro da Cultura,

ouvido obrigatoriamente o Conselho de Museus; 2 — A denominação de museu nacional só pode ser utilizada pormuseus a quem tenha sido atribuída nos termos do número anterior; 3 — A denominação de museu municipal sópode ser utilizada por museu municipal ou por museus a quem o município autorize a utilização desta denominação»(Lei n. 47/2004, de 19 de Agosto - Lei Quadro dos Museus Portugueses)

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lixo, convertendo-se Portugal num país de opereta nesta matéria»32. De forma idêntica o ICOMOS-

Portugal, considera essencial clarificar, ou mesmo alterar, o conceito de «património classificado

de âmbito local».

Quanto à passagem de monumentos e museus para a tutela das autarquias, Paula Silva,

directora da Direção-Geral do Património Cultural (DGPC) disse que «há monumentos que têm um

caráter nacional [e outros] regional, e desde que essa hierarquização seja feita, nada impede a

passagem de tutela». Paula Silva, salvaguarda no entanto que «há monumentos e museus,

nomeadamente os nacionais, que têm de ficar na tutela da DGPC», e desdramatizou a questão

referindo que «esta passagem para os municípios já tem vindo a ser feita, na prática. Muitas

estruturas, tipo fortalezas e castelos estão debaixo da tutela dos municípios», lembrou, referindo

que, todavia, os processos de obras e de conservação têm de ser apresentados à DGPC33.

De facto, as polémicas existentes em torno desta ambiguidade vêm favorecer ainda mais a

passagem de tutelas de museus já requerida por alguns municípios. A vaga de municipalização de

museus começou com a extinção, via PREMAC (2011), do Instituto dos Museus e da Conservação.

No Orçamento do Estado para 2015, o Governo abriu a porta à municipalização de museus. Esta

alteração de tutela aparece sem nenhum procedimento associado, seja de avaliação técnica ou de

recursos financeiros34. O Museu da Guarda terá sido o primeiro a mudar de tutela (Julho 2015)

desde que o Governo de Passos Coelho anunciou o plano de transferência de competências para

as autarquias locais35. Em Aveiro, a Associação dos Amigos do Museu de Aveiro (AMUSA) defendeu

que o Museu de Aveiro permanecesse na esfera dos outros Museus Nacionais36, contudo o

executivo aprovou a municipalização do Museu Santa Joana (Museu de Aveiro) com voto de

qualidade do presidente, Ribau Esteves37.

Defendido também por diversos autarcas e partidos, é que só pode haver descentralização

com a entrega aos municípios do financiamento e dos recursos humanos suficientes38. Os autarcas

32 https://www.patrimonio.pt/index.php/por-dentro/1569-descentralizacao-e-regionalizacao-sera-pedir-muito-se-pedirmos-transparencia

33 https://www.noticiasaominuto.com/cultura/777666/descentralizacao-na-cultura-e-patrimonio-ainda-esta-por-decidir 34 o Grupo Parlamentar do Bloco de Esquerda propôs que a Assembleia da República recomendasse ao Governo a

suspensão de todos os processos de municipalização de museus. (http://www.beparlamento.net/recomenda-suspens%C3%A3o-da-municipaliza%C3%A7%C3%A3o-de-museus-at%C3%A9-uma-reavalia%C3%A7%C3%A3o-das-suas-cole%C3%A7%C3%B5es-para-atualiza)

35 https://www.publico.pt/2015/07/24/culturaipsilon/noticia/o-museu-da-guarda-passou-para-a-camara-a-procura-de-uma-nova-vida-1702918

36 http://www.dnoticias.pt/hemeroteca/503598-associacao-contra-municipalizacao-do-museu-de-aveiro-HPDN503598 37 http://www.noticiasdeaveiro.pt/pt/36115/aveiro-executivo-aprovou-municipalizacao-do-museu-santa-joana-com-

voto-de-quali/ 38 http://da.ambaal.pt/noticias/?id=10172

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dos comunidades intermunicipais, diz notícia do Jornal de Notícias39, querem saber quanto

receberão do Estado e se o Governo vai permitir que contratem mais pessoas para exercerem as

novas funções a descentralizar.

Apesar de as reivindicações financeiras dos autarcas serem plausíveis, a justiça desta

pretensão deve depender de uma rigorosa análise da gestão, das estratégias e das políticas

culturais dos municípios. No que respeita aos orçamentos para a cultura, sabe-se que as câmaras

municipais, no seu conjunto, investem mais do que o montante inscrito para a cultura no

Orçamento Geral do Estado. O Inquérito ao Financiamento Público das Atividades Culturais,

Criativas e Desportivas, de 201540, informa que as Câmaras Municipais afetaram 392,2 milhões de

euros às atividades culturais e criativas (mais 11% do que no ano anterior), destacando-se os

seguintes domínios: atividades interdisciplinares (24,8%); património cultural (24,5%); artes do

espetáculo (23,9%) e bibliotecas e arquivos (17,5%). Comparativamente, a proposta de Orçamento

do Estado para 2015, contou com 219,2 milhões de euros para a cultura41.

Investimentos crescentes em novas “entidades museológicas” municipais42, por exemplo,

na criação de “Centros Interpretativos”, demonstram uma vontade patrimonializante e uma

disponibilidade financeira dos municípios sem que muitas das vezes exista um plano museológico

concelhio ou uma estratégia sustentada dirigida ao património local. A mais recente tendência de

abrir “Centros Judaicos” um pouco por todo o país, leva-nos a questionar acerca da qualidade

patrimonial e museológica destes espaços em algumas zonas do país.

Em Torres Vedras, o “Centro de Interpretação da Cultura Judaica” - integrado na Rede de

Judiarias de Portugal -, inaugurado em maio de 2017, conta apenas com informação visual e textos

impressos nas paredes, sem exibir espólio documental ou outro tipo de vestígios. Torres Vedras

tem também já assegurado financiamento para o Museu / Centro de Artes do Carnaval, cuja

construção será iniciada em breve. Este mesmo município terá ainda em 2017 um novo museu

dedicado à memória do ciclista Joaquim Agostinho. Em 2015, foi anunciado pela imprensa nacional

que “Torres Vedras vai ter um Museu do Brinquedo”. Em julho de 2017, foi ainda inaugurado o

“Centro de Interpretação das Linhas de Torres”, situado na capela Forte de S. Vicente com um

investimento de 115 mil euros por parte da Câmara Municipal. Para além da motivação

eleitoralista destes investimentos, é notório em alguns destes casos a falta de visão estratégica e

39 http://www.jn.pt/nacional/interior/autarcas-querem-saber-quanto-receberao-do-estado-8482568.html 40 Fonte: INE- Estatísticas da Cultura - 201541 http://www.jornaldenegocios.pt/economia/financas-publicas/orcamento-do-

estado/detalhe/orcamento_da_cultura_sobe_de_198_milhoes_de_euros_para_219_milhoes_em_2015 42 Em 2015 O INE considerava a existência de 388 Museus para fins estatísticos.

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de sustentação dos projectos. Neste último caso em concreto, há duas situações que se prendem

com a actuação municipal no sector museológico e patrimonial. Uma, é relativa à forma como foi

“restaurada”, nos finais de 1980, a Capela de São Vicente (1267)43, envolta em polémica acerca das

opções muito pouco, ou nada, fundamentadas em técnicas de restauro e conservação apropriadas.

Outra, e no que se refere à construção de um novo “Centro de Interpretação das Linhas de Torres”,

este fora já anunciado em 2006 como um projecto “estilo Guggenheim” oferecido por um gabinete

de arquitectura à Câmara Municipal, a ser construido de raiz num outro local (Forte da Forca).

Neste brevíssimo “caso de estudo”, para além das despesas de capital investidas na

construção e requalificação das infraestruturas e na aquisição de equipamentos técnicos, seria

ainda necessário contabilizar a verba destinada às despesas correntes necessárias à manutenção e

gestão destes novos espaços culturais, bem como à contratação de pessoal especializado.

Assim, e repetindo que apesar das reivindicações financeiras dos autarcas no âmbito da

transferência de competências para os municípios, é de facto importante averiguar, a bem das

finanças públicas e dos impostos dos contribuintes, se de facto a exigência de mais financiamento

do Estado central se compadece com o rigor das políticas culturais locais, designadamente para o

sector dos museus e do património, e do cumprimento da sua missão de serviço público cultural.

Ou seja, em municípios que não possuem planos estratégicos de política cultural - nem publicados,

nem debatidos com a população -, que missão pública e que objectivos culturais se cumprem,

afinal, através da construção destes equipamentos?

2.2 BIBLIOTECAS E ARQUIVOS

No domínio das bibliotecas e da leitura pública, o programa da “Rede Nacional de

Bibliotecas Públicas” (RNBP)44 foi criado em 1987 com o objetivo dotar todos os municípios

portugueses de uma biblioteca, e aos quais compete a sua tutela e gestão. Actualmente existem

em Portugal cerca de 300 bibliotecas públicas municipais45, mas passados 30 anos da instituição

desta rede, devemos considerar que a envolvente contextual se alterou significativamente (social,

43 «...uma pequena capela, dedicada ao santo mártir, e cuja construção dataria do século XII (VIEIRA, Júlio, 1926), sendo referida pela primeira vez em 1267(...) Foi reconstruída, e sofreu obras importantes em finais da década de oitenta e início da década de noventa do século XX, a cargo da Câmara Municipal de Torres Vedras.» (http://www.patrimoniocultural.gov.pt/pt/patrimonio/patrimonio-imovel/pesquisa-do-patrimonio/classificado-ou-em-vias-de-classificacao/geral/view/73945/)

44 http://bibliotecas.dglab.gov.pt/ 45 http://www.somosbibliotecas.pt/

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tecnológica e culturalmente), pelo que urge redefinir estratégias e reformular a política cultural

para o sector46.

Os Arquivos Municipais beneficiaram durante algum tempo do “Programa de Apoio à Rede

de Arquivos Municipais” (PARAM), decisivo na qualificação destes arquivos após 1997. Contudo, a

política arquivística sofreu um revés desde que em 2012 o Arquivo Nacional da Torre do Tombo,

passou a integrar a Direcção Geral do Livro, Arquivos e Bibliotecas (DGLAB)47. A rede da DGLAB

integra apenas os arquivos que lhe estão dependentes de acordo com o Decreto-Lei n.º 103/2012,

ou seja, dois arquivos nacionais e 16 arquivos de âmbito regional deslocalizados ao nível do

distrito. Um diretório de Arquivos Municipais (edição do Grupo de Trabalho BAD dos AM) pode ser

consultado na plataforma em linha da Associação Portuguesa de Bibliotecários, Arquivistas e

Documentalistas48.

Sem pretender identificar completa e detalhadamente o conjunto das estruturas formais e

informais a operar no sector cultural49, podemos verificar que o serviço público de cultura à escala

municipal é ainda constituído por Centros Culturais e Galerias Municipais50, tipologias bastante

difundidas pelo território e criadas por decisão fundamentada nas competências políticas

intrínsecas à autonomia do poder local.

2.3 TEATROS E REDES

No caso dos Teatros Municipais, apesar de não existir ainda hoje uma efectiva rede

pública51, foi lançada em 1998 a designada “Rede Nacional de Teatros e Cineteatros”, no âmbito da

política cultural desenvolvida pelo XIII Governo Constitucional, sendo Ministro da Cultura, Manuel

Maria Carrilho. O objectivo do programa foi o de dotar as capitais de distrito com salas de

espectáculos, através de acções de construção, recuperação ou modernização. Nos municípios que

46 https://www.bad.pt/noticia/2015/04/23/repensar-a-rede-nacional-de-bibliotecas-publicas-reformulacao-da-politica-cultural-sectorial/

47 No âmbito do Plano de Redução e Melhoria da Administração Central (PREMAC), estabeleceu-se a orgânica daDireção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas, resultou da fusão da Direção -Geral do Livro e dasBibliotecas com a Direção-Geral dos Arquivos.

48 https://www.bad.pt/diretorio/?ait-dir-item-category=am 49 Para um conhecimento mais aprofundado e analítico, vide o estudo: Entidades culturais e artísticas em Portugal

(OAC, 2006)50 Galerias Municipais de Lisboa (http://www.egeac.pt/?post_type=equipamento&p=754)51 De forma a colmatar a inexistência de enquadramento legal que substancie uma “Rede Nacional de Teatros e

Cineteatros”, foi apresentando no Parlamento (2010) o projecto de Lei n.º 287/XI para a criação de uma “Rede deTeatros e Cine-Teatros Portugueses” (Bloco de Esquerda). Consulta online: http://bit.ly/2uHxLto

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não sendo capitais de distrito, a mesma tipologia de intervenção designou-se como “Rede

Municipal de Espaços Culturais” e visava igualmente a requalificação de salas de teatro.

Complementarmente, decorreu entre 1999 e 2002 o “Programa de Difusão das Artes do

Espectáculo” (PDAE), lançado pelo Instituto Português das Artes do Espectáculo, tendo por

objectivo democratizar o acesso das populações às produções artísticas, fazendo face às

assimetrias regionais. Na prática o PDAE procurava articular, através de uma Bolsa de Acções,o

plano da procura municipal (autarquias) com o da oferta (entidades proponentes, agentes culturais

profissionais), promovendo assim a programação regular nos equipamentos culturais dos

concelhos aderentes52.

O Decreto-Lei nº 225/2006, de 13 de Novembro53, veio estabelecer o regime de atribuição

de apoios financeiros do Estado a entidades ou pessoas singulares que exercem actividades de

carácter profissional de criação ou de programação, bem como criou o “Programa Território Artes”

(PTA), um programa de descentralização das artes e formação de públicos, que veio substituir o

seu antecessor PDAE, reconfigurado de forma a permitir outra densidade e amplitude

programática. Em harmonia com o Programa SIMPLEX (2006) da reforma da Administração

Pública, o PTA é implementado sob a forma de oficina virtual gerida pelo Instituto das Artes,

«disponibilizando em tempo real toda a informação relevante, tanto do lado da criação, como do

lado das infra-estruturas de programação, permitindo o ajuste contratualizado por essa via do tipo

de actividade, dos locais, do calendário e das condições técnicas e financeiras da sua realização»

(DL 225/2006).

No quadro da cooperação intermunicipal (Amadora, Loures, Odivelas, Vila Franca de Xira,

Sobral de Monte Agraço) é de relevar a originalidade do projeto de criação da “Associação de

Municípios para a Área Socio-cultural - AMASCULTURA” e do Centro Dramático Intermunicipal

Almeida Garrett - com componentes de produção artística, formação e animação cultural.

Formalmente constituída a 6 de Janeiro de 1988, a AMASCULTURA foi a primeira associação

intermunicipal de natureza sociocultural criada em Portugal54.

Ainda na vertente do associativismo autárquico, nasceram outros projectos de cooperação

cultural materializados sob influência do paradigma das redes. A ARTEMREDE, surgiu após o

estudo realizado em 2003 pela Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional de Lisboa e

Vale do Tejo (CCDR LVT), tendo sido constituída formalmente a 4 de janeiro de 2005 como

52 Para maior detalhe, vide: Lima dos Santos, 2004 e Centeno, 2012.53 https://www.dgartes.gov.pt/sites/default/files/files/decretolein2252006.pdf 54 Cf. Almeida, O. (1993). Amascultura um projecto inédito, in Boletim Cultural, n.º 6 novembro 93, p. 15-16, Loures:Ed. Câmara Municipal de Loures, 1993.

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associação cultural sem fins lucrativos, e é composta por municípios associados e entidades

aderentes. A rede COMÉDIAS DO MINHO, criada em 2003, é resultado do investimento e da

colaboração de cinco municípios – Melgaço, Monção, Paredes de Coura, Valença e Vila Nova de

Cerveira – e do Teatro Noroeste. Pensada para promover a programação cultural e a produção

artística em rede, a 5 SENTIDOS foi criada em 2009 por cinco estruturas culturais do país, tendo

sido alargada para 10 parceiros em 2013. O QUADRILÁTERO CULTURAL é uma rede com actuação

nos municípios de Barcelos, Braga, Famalicão e Guimarães.

O conceito de “rede” aplicado aos equipamentos culturais, às cidades e a outras entidades,

vêm sendo cada vez mais utilizado em estratégias de acção colectiva. Mas podemos questionar,

nas circunstâncias que caracterizam a complexidade das sociedades contemporâneas, se esta nova

vaga de “redes sociotécnicas” cumpre a função de serem geradoras de comunidades

interpretativas e de praticantes culturais, nos seus territórios de influência. No entendimento de

Luiz Oosterbeek,

O ordenamento do território deve privilegiar menos as redes de equipamentos e mais as

redes de interesses interpessoais, concitando a participação das pessoas em processos de

cidadania activa. Entendemos que tal participação só poderá ser conquistada na medida

em que ocorra uma real transferência de poder para essas pessoas.

Tal não significa que os equipamentos não são necessários (são uma óbvia pré-condição),

mas apenas que antes de projectar equipamentos e espaços há que programar, de forma

participada e com base em análises prospectivas, redes de interesses. Neste quadro, é

essencial estar atento às novas dinâmicas locais e à criação de novas centralidades, que em

muitos casos demandarão equipamentos polivalentes.

Identificar os grupos humanos envolvidos, identificar o(s) seu(s) território(s) e escutar os

seus interesses é a base de um qualquer ordenamento eficiente, também no plano cultural

(Oosterbeek, 2007, p. 36).

Tendo em consideração esta crítica direcionada às redes centradas em equipamentos,

podemos verificar que, por exemplo, a Artemrede, no processo de revisão do seu Plano Estratégico

(2015-2010), modificou o seu posicionamento e a respectiva missão55, a qual passa a incidir sobre

a qualificação e o desenvolvimento dos territórios onde actua, defendendo que a dimensão

cultural deve integrar o centro das políticas públicas locais de desenvolvimento sustentável.

55 « A ARTEMREDE é um projecto de cooperação cultural que tem como missão promover a qualificação dosterritórios onde atua, valorizando o papel central dos teatros e de outros espaço culturais enquanto polosdinamizadores e promotores das artes e da cidadania.»

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3. DEMOCRATIZAÇÃO CULTURAL … E DEPOIS?

A verdade é que a maior parte das Câmaras tem desenhado para a cultura um programa,

mas este não é um programa político, não se integra numa estratégia que vem a ser prosseguida

ou que se propõe orientar, no futuro, os destinos e objectivos com que este sector se integra na

estrutura política global. É normalmente uma lista de objectos, em busca de investimentos

orientados para coisas...

José Maria Cabral Ferreira

As políticas de descentralização verificadas no sector da leitura pública (rede de

bibliotecas), na difusão das artes do espectáculo ou nos museus municipais, não geraram

automaticamente novas centralidades culturais no território nacional. Hoje é facilmente verificável

que a criação de novas centralidades depende, em grande medida, das estratégias e das políticas

culturais locais e das iniciativas organizadas por estruturas associativas, propiciadas por novos

equipamentos, projectos ou festivais que se tornaram referências no panorama contemporâneo da

oferta cultural e do entretenimento.

No entanto, ainda que com alguma precaução, é comum reconhecer que a descentralização

contribuiu para o desígnio da democratização cultural - um propósito fundado no aumento e na

descentralização da oferta, bem como na ampliação do número e perfil social dos praticantes

culturais. Contudo, a precaução a que aludimos deve-se muito ao problema, sobejamente

conhecido nos estudos da sociologia da cultura, referente à avaliação dos resultados e efeitos das

políticas apostadas na democratização através do aumento e descentralização da oferta cultural:

É o facto destas não gerarem automaticamente um alargamento social dos públicos (…)

alguns dos investimentos efectuados não se fizeram acompanhar de outros igualmente

indispensáveis para a valorização e mobilização das dinâmicas culturais locais, capazes de

incentivar a participação de populações menos familiarizadas com as artes e a cultura. Em

muitas cidades e concelhos onde se realizaram importantes investimentos infraestruturais

não existe ainda um retorno equilibrado relativamente à procura de bens e serviços aí

gerados (Gomes e Lourenço, 2009, pp. 12-13).

Por um lado, política cultural autárquica não se pode resumir à reprodução da política feita

à escala nacional, porque é ao nível dos territórios concretos que as “condições de cultura” têm de

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ser criadas, tendo em vista que a fruição e as práticas culturais se destinam a todos. E, por outro, a

dimensão cultural dos municípios, e mais propriamente das cidades que são sedes de concelho,

não se resume à existência de serviços públicos tutelados pelas autarquias (museus, galerias,

teatros, bibliotecas, arquivos,...).

Luís Raposo, em comunicação apresentada no Colóquio “Património Cultural – Políticas

Públicas”, defendeu que as políticas culturais relativas ao património cultural deveriam começar,

como devem todas as políticas começar, «pelo regresso audacioso aos valores democráticos de

participação cidadã (…) através de sistema de conselhos consultivos, do nível municipal ao nível

nacional, de monumentos e museus (ou de arte e arqueologia, como outrora se chamaram)»56.

O objectivo de democratizar a cultura «assume um lugar destacado no delineamento das

políticas públicas desde a instauração do regime democrático em Portugal» (Gomes e Lourenço,

2009, p. 25), numa primeira fase - até ao final dos anos 90 – através da construção e

descentralização de equipamentos culturais, e posteriormente com maior incidência na

democratização da oferta e da procura cultural conferida pela programação dos equipamentos e

da criação de serviços educativos.

A necessidade de se transcender o paradigma da democratização cultural, não significa

abandonar os objectivos visados pelo apoio público à criação artística, à sua mediação e difusão, e

à programação dos equipamentos culturais municipais. Antes pelo contrário, requer:

• Um aprofundamento das estratégias de alargamento da base social dos públicos;

• A redução das barreiras e a ampliação das condições de acesso à oferta cultural;

• A diversificação nos modos de recepção e de apropriação da arte e da cultura;

• A formação de novos públicos para a cultura;

• A dessacralização das formas de cultura cultivada (erudita), aproximando-a das populações

e dos seus quotidianos;

• A inclusão de novas expressões culturais e artísticas;

• O alargamento do universo dos criadores culturais e a dessacralização dos critérios de

hierarquização da produção intelectual e artística.

56 O texto completo pode ser lido no “Caderno Autárquico para a Cultura” (Bloco de Esquerda, 2017), aqui:https://torresvedrasweb.pt/abc/uploads/2017/08/caderno-autarquico_cultura_2017_BE.pdf

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A defesa da cidadania cultural activa, da participação cívica na definição de políticas

culturais, é o fundamento da Democracia Cultural e uma exigência de formulação de políticas

culturais após algum descrédito das políticas focadas na democratização cultural, que «pouco mais

conseguiram do que a salvaguarda do grande património e, em alguns melhores casos, a

proliferação de equipamentos culturais unidimensionais» (Lopes, 2007, p. 84).

Esta nova vaga de “territorialização das políticas culturais” lançada pelo actual Governo, foi

o tema debatido no “2º Fórum Político” da Artemrede, onde se defendeu que: «os municípios e os

agentes culturais devem pugnar por boas decisões políticas nesta matéria, não deixando de a ver

como uma oportunidade para reforçar o papel da cultura na construção de uma sociedade

democrática».

Apesar da vontade transformadora existente em alguns círculos políticos e culturais, deve

ficar claro desde logo que uma política cultural municipal não se pode resumir ao somatório das

políticas sectoriais (artes, património, industrias culturais,...). Existe toda uma vasta dimensão

sociocultural e antropológica que não pode ser descurada na formulação geral de políticas e

estratégias culturais municipais, e que engloba as práticas culturais, diversas e plurais, dos

cidadãos na relação com o território concreto em que habitam. Nesta acepção, o racional das

políticas públicas não se pode cingir à objectificação centrada nos produtos culturais (cultura como

substantivo) – oferta e procura -, mas tem de entender o cultural como adjectivo, i.e., enquanto

fenómeno “cultural” territorializado. Neste sentido, António Pinto Ribeiro defende que «o

“cultural” e a sua necessidade são muito mais do que a soma de objectos de arte ou de culto, de

produções, da patrimonialização do passado. O que o “cultural” é, principalmente, é um sistema

de relações entre as pessoas usando linguagens e formas de transmissão de conhecimento mais

simbólicas, materiais e imateriais, revisitando o passado e criando o futuro diariamente e em

permanência»57.

Por outro lado, o fenómeno cultural é também concebido como um campo58 povoado de

diversas forças e poderes que nele actuam quotidianamente, designadamente o poder político

57 https://www.publico.pt/2014/08/15/culturaipsilon/noticia/perguntas-sobre-politica-cultural-1666490 58 Campo, na teoria proposta por Pierre Bourdieu representa um espaço simbólico, atravessado por poderes dos

agentes que determinam, validam, legitimam representações. O poder simbólico estabelece uma classificação dossignos, do que é adequado, do que pertence ou não a um código de valores. No campo da arte, por exemplo, a lutasimbólica determina o que é erudito, ou o que pertence à indústria cultural. Determina também quais valores e quaisrituais de consagração as constituem, e como elas são delineadas dentro de cada estrutura. No campo, local empíricode socialização, o habitus constituído pelo poder simbólico surge como todo e consegue impor significaçõesdatando-as como legítimas. Os símbolos afirmam-se, assim, na noção de prática, como os instrumentos porexcelência de integração social, tornando possível a reprodução da ordem estabelecida.(https://pt.wikipedia.org/wiki/Campo_(sociologia))

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com os seus discursos e formas de actuação (ausentes ou presentes, formais ou informais), mas

também as hierarquias e as estratificações culturais, as assimetrias de acesso, as visões do mundo,

os estilos de vida ou gostos estéticos e culturais, etc., ou seja, múltiplas configurações que

interagem entre si e modulam um determinado contexto cultural dinâmico e complexo.

A perspectiva de um “mundo da vida”59 cultural e simbólico, em que a cultura aparece

como condição necessária da existência humana, das sociedades e das cidades, é o que podemos

designar como “esfera pública cultural” e parte integrante do espaço público da cidade e da

cidadania. Assim, visto que cidade e cultura são interdependentes, afirmar o “direito à cultura”

equivale a afirmar o “direito à cidade”, o direito à participação e à construção da vida pública -

fazer cidade -, pois sem cidade não há cultura, e vice-versa.

Se quisermos ser mais rigorosos na análise do binómio cidade-cultura, que aqui nos

interessa particularmente, termos de incluir um outro elemento que no fundo será o mais

importante na formação democrática das políticas culturais: as pessoas e as “comunidades

interpretativas”, os colectivos, os públicos...nos seus modos diversos de relação com a cultura com

os seus hábitos e práticas culturais.

Não querendo menosprezar a dimensão corporal das práticas e dos consumos culturais, é

basilar que o fenómeno cultural é fundamentalmente um processo simbólico de construção

colectiva das subjectividades (transindividuação colectiva e individuação psicológica). Deste modo,

é a mente individual (consciência) o cerne do desenvolvimento humano – desde logo através da

aprendizagem da(s) língua(s) e das linguagens na infância. O que nos permite afirmar que o

cérebro, essa “esponja cultural”, tem igualmente de fazer parte integrante da equação, ou do

trinómio: cidade-cultura-cérebro.

A partir deste trinómio poderemos ainda desenvolver um aspecto mais detalhado dos

contextos urbanos contemporâneos, e que se prende com a expansão da esfera cibernética, isto é,

com o ambiente tecnológico em que estamos imersos, e que constantemente nos afecta, na era da

ubiquidade computacional60. O modelo computacional das Smart Cities, é já hoje o paradigma da

computação urbana e do controlo dos fluxos de informação entre cidadãos-ciborgues e a “Internet

das coisas” impregnada no meio ambiente. Passaríamos a ter então um quadrinómio: Cidade-

cultura-cérebro-cibernética, e a ter de lidar com conceitos, mais ou menos pertinentes, como

“sociedade de informação”, “capitalismo cognitivo” ou “sociedade do conhecimento”. O sistema

59 Vide: Teoria da Ação Comunicativa (Jürgen Habermas)60 Neste âmbito não esqueçamos o que dizia Marshal Mchluan, que os media (as tecnologias de comunicação einformação em geral) agem como extensões do nosso sistema nervoso central.

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das redes telemáticas e a inserção dos territórios geográficos nos fluxos culturais globais - de

homogeneização e heterogeneização (globalização cultural)-, estruturam a (hiper)realidade

quotidiana que habitamos, segundo cinco “paisagens” postuladas por Arjun Appadurai:

etnopaisagens, mediapaisagens, tecnopaisagens, financiopaisagens e ideopaisagens61. Por entre

estes fluxos, o poder dos oligarcas da globalização financeira exerce-se segundo novos modos de

soberania e governação à escala mundial.

Tudo isto para afirmar que a “municipalização da cultura” na sua vertente de formulação de

estratégias para a cultura e de políticas culturais de âmbito local, não deve ignorar que as cidades,

as pessoas e a produção contemporânea da subjectividade, se encontram sob a alçada de uma

panóplia de dispositivos técnicos e de governação complexos, que por um lado constrangem a

acção social, mas que também libertam, capacitam e expandem os horizontes de expectativa dos

cidadãos, dos agentes, dos públicos e dos praticantes culturais.

Consequentemente, a cultura – enquanto matéria de política pública – é, no quadro

conceptual da “Democracia Cultural”, entendida como capacidade activa de cidadania, ou seja,

como conjunto de ferramentas simbólicas e conceptuais que os membros de uma comunidade

necessitam para lidar com a realidade difusa do mundo contemporâneo e para elaborar novas

estratégias de vida colectiva.

Podemos tentar agora resumir alguns tópicos para reflexão em torno da formulação de

políticas culturais locais ancorada nos princípios da democracia cultural:

• A cultura enquanto meio de desenvolvimento da autonomia dos cidadãos é uma

ferramenta da participação cívica;

• A cidadania cultural é uma dimensão fulcral da democracia local contemporânea;

• A cultura não é apenas um produto para consumo/fruição/acesso, é também um processo

de construção simbólica, de capacitação e emancipação das populações;

• «Falar de políticas culturais públicas é falar de condições de liberdade e de cidadania em

sociedades democráticas» (Lopes, 2007, p. 59);

• Na interação cultura-cidade podemos ver a mais complexa forma das realizações humanas

(no plural), favorecendo a vitalidade e a diversidade cultural, a coesão social; a valorização

dos indivíduos, do quotidiano e dos espaços públicos socialmente apropriados.

• «Os serviços culturais de âmbito autárquico devem assumir o inestimável papel de

catalisador activo» (Pinto, 1994, p.772);

61 Appadurai, Arjun (2004). Dimensões Culturais da Globalização. Lisboa: Editorial Teorema.

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• Estimulo ao pluralismo e à diversidade cultural;

• Revitalização da esfera pública cultural – vitalidade cultural urbana;

• Defesa e promoção dos Direitos Culturais62;

• (...)

62 http://www.culturalrights.net/

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4. MUNICIPALIZAÇÃO DA CULTURA E POLÍTICAS CULTURAIS LOCAIS

- COMENTÁRIOS E PROPOSTAS

The strongest barrier to the recognition of human cultural activity isthis immediate and regular conversion of experience into finished products.

Raymond Williams

A vida urbana supõe que aconteçam encontros, confrontos e diferenças,

conhecimento e reconhecimento recíprocos (em que se inclui o combate ideológico

e político) dos modos de viver, patterns que coexistem na cidade.

Henri Lefebvre

Para além das questões formais e jurídicas, e dos problemas de gestão e salvaguarda,

originadas pela descentralização de competências, das tutelas dos equipamentos e do património

cultural, há uma outra área de intervenção pública que se vem revelando ser mais complexa de

resolver, e que se prende com a existência de políticas e estratégias municipais para a cultura.

Dado que estas só podem ser implementadas por iniciativa do executivo autárquico, devido

ao direito administrativo que fundamenta a autonomia do poder local e o princípio de

subsidiariedade (Art. 6º,CRP), a decisão e o modo como tais políticas são, ou não, efectivadas,

dependerá maioritariamente dos actores sociais e dos movimentos sociopolíticos locais. A

realidade evidencia que «à escala geral, as câmaras municipais têm sido mais receptoras do que

produtoras de política cultural» (Silva, 2007, p. 14).

A sociologia portuguesa já analisou suficientemente o campo das “políticas culturais locais”,

para ficarmos esclarecidos acerca de quão frágil é o estado das mesmas, bem como dos seus vícios

e modalidades de instrumentalização. Um dos fenómenos observáveis resulta da tradicional

acumulação de poderes na figura do Presidente da Câmara (presidencialismo ou cesarismo local) ,

designadamente no desejo de incluir a dimensão estética nas opções políticas, desejo esse

incompatível com o princípio da separação entre a ideologia ou o gosto pessoal e a função da

governação democrática, tal como previsto no nº 2 do Art 43º da CRP: «O Estado não pode

programar a educação e a cultura segundo quaisquer directrizes filosóficas, estéticas, políticas,

ideológicas ou religiosas.». Porém, ainda hoje são prolíficos casos onde é notória a “mão invisível”

dos autarcas na definição de programações(projetos, eventos, actividades,..) e na escolha directa

de obras de arte pública, como se se tratasse de um qualquer direito natural ou régio.

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O forte intervencionismo do poder local, legitimado em boa parte pela debilidade da

sociedade civil, cria redes clientelares e mesmo efeitos perversos de imposição arbitrária de

segmentos particulares de gosto. Não são assim tão raras as vezes em que a política cultural da

autarquia, refletindo o presidencialismo municipalista, é o reflexo pouco subtil do gosto do seu

responsável máximo (Lopes, 2007).

Referências aos aspectos negativos das políticas municipais63 são referidas em diversos

trabalhos sociológicos, vejamos apenas algumas citações de “Como abordar as políticas culturais

autárquicas?” (Silva, 2007) e de “Políticas culturais locais: contributos para um modelo de análise.”

(Silva, Babo e Guerra, 2015):

• Consensualismo: «invocando interesses concelhios supostamente evidentes e,

portanto, imunes à divergência de opinião, tende a despolitizar a acção camarária,

apresentando-a como uma espécie de emanação necessária da vontade

comunitária» (2007); «O que sobressai é a reduzida capacidade da acção cultural

autárquica para gerar diferenciação ideológica — e, portanto, identificação política,

no sentido forte da palavra, isto é, como um conjunto de opções, objectivos e

processos que se distingue e confronta com conjuntos alternativos» (Silva, 2007);

• Clientelismo: «Os laços entre os eleitos e as associações, coletividades e outros

agentes culturais — e, num contexto fortemente presidencialista e dependente de

redes relacionais» (Silva, 2007); Maria de Lourdes Lima dos Santos, afirma que «a

pessoalização do poder acentua-se, agindo os eleitos em função de lógicas

carismático-demagógicas, clientelares e partidárias e prevalecendo, por isso, uma

visão paternalista» (Santos, 1998)

• Presidencialismo: «Sistema de governo de pendor presidencialista e em que a

maioria tem grande capacidade de cooptação das oposições» (Silva, Babo e Guerra,

2015); «confere um poder reforçado ao presidente de câmara na construção e

gestão das redes sociais e na definição de finalidades e procedimentos (…) a acção

63 « As estruturas de governo e de administração urbana, muito particularmente as de governo local/municipal, tantasvezes reconhecidas – um justo reconhecimento, actualmente em grave processo de desvalorização – como um dosmaiores sucessos do Portugal democrático, mostram estar hoje em sério risco de incapacidade e mesmo dedescrédito. São diversas as razões deste risco, mas poder-se-ão destacar três. Primeiro, por uma parte consideráveldo poder local se encontrar aprisionado por aparelhos partidários com estratégias laterais e parcelares muitas vezesdistintas das que poderiam prosseguir objectivos mais colectivos (…) Sendo particularmente sentida a falta deespaços e de processos de participação dos cidadãos na vida da sua cidade, que se cingem quase exclusivamente aosprocessos eleitorais que decorrem de quatro em quatro anos – alturas em que se debate a cidade, especialmente nosmedia, para no dia seguinte às eleições tudo parecer voltar aos mesmos ritmos. E quando, paralelamente, os quadrosculturais e a própria expressão da cidadania, em Portugal, parecem também eles estar a configurar novas formas enovos processos de consciencialização, de responsabilidade e de mobilização.» (Seixas, 2013, pp. 44-45)

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política local é muito personalizada na figura do presidente de câmara.» (Silva,

2007); «os actores locais são mais receptores do que formadores de políticas»

(Silva, 2007);

• “Fontismo cultural local”: «uma pronunciada e contínua ênfase no investimento na

obra física — e na obra física de média e grande dimensão, o “equipamento

cultural”. Aproveitando o acesso a fundos nacionais ou europeus e mesmo

desviando para aí alguns dos recursos próprios do orçamento municipal...» (Silva,

2007)

Sendo a democracia cultural considerada como uma «política cultural de terceira geração»

(Lopes, 2007, p. 95), articulada em torno do direito à cultura e da «dignificação da vida social,

política e ontológica de todas as linguagens e formas de expressão cultural e na abertura de

reportórios e de campos possíveis» (Lopes, 2007, p. 97), torna-se um poderoso instrumento de

reversão das inércias inibidoras de uma participação mais organizada e prolífica na vida social.

No combate ao recalcamento da participação dos cidadãos nos assuntos da coisa pública64,

ganham relevância os mecanismos que suscitem a re-democratização das instituições culturais65

(serviços públicos de cultura) no sentido de ampliar os processos e os canais de participação dos

diversos públicos, das práticas e das formas de socialização cultural. Na sua aplicação concreta,

este desiderato realizar-se-á com a inclusão dos cidadãos em projectos e acções, tais como: na

investigação e produção de conhecimento66, na programação e produção de conteúdos, na

animação e mediação sociocultural, etc.

A nossa insistência na inclusão e participação dos munícipes nos sistemas de governança

cultural local, deve-se a dois aspectos intimamente relacionados. Por um lado, os(as) cidadãos(ãs)

enquanto “públicos da cultura” assumem-se hoje como omnívoros, com disposições afectivas,

capitais culturais, e gostos ecléticos plurais, formando comunidades interpretativas que nem

sempre se cruzam, mas que poderiam facilmente cruzar-se e até hibridizar-se num contexto

urbano favorável que fornecesse as condições de cultura necessárias ao seu desenvolvimento. Por

64 «Revitalização de energias cívicas tendencialmente recalcadas por lógicas de dominação e reprodução presentes nassociedades contemporâneas, o que já remete para uma discussão sobre as novas exigências de participaçãodemocrática» (Pinto, 1995, pp.192-207)

65 Ver o caso do programa austríaco: “Truth is concrete - a marathon camp on artistic strategies in politics and political strategies in art.” (http://www.truthisconcrete.org/)

66 É assinalável o caso do Museu da Batalha e da institucionalização da "investigação participada" (http://www.museubatalha.com/noticias-noticias-mccb/78/investigacao-participada-sobre-as-minas-de-carvao-da-batalha)

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outro, enquanto criadores e produtores culturais, os(as) cidadãos(ãs) em geral têm, mais do que

nunca, acesso à democratização das tecnologias de produção simbólica.

De acordo com Pier Luigi Sacco (2011), a importância estratégica da participação cultural

activa - no contexto da sua noção de Cultura 3.0 - é intrínseca à expansão massiva do grupo de

produtores culturais, deste modo torna-se cada vez mais difícil distinguir entre produtores e

consumidores culturais, é pois uma questão de permuta de papéis sociais que cada indivíduo

assume no seu quotidiano. A característica fundamental da Cultura 3.0 é, portanto, a

transformação do público (que ainda é a referência da fase "clássica" da indústria cultural) em

praticante (definindo assim um novo, difuso e cada vez mais múltiplo conceito de autoria e de

propriedade intelectual). O acesso a novas experiências estéticas e culturais é um desafio e um

incentivo para que os indivíduos desenvolvam as capacidades criativas na assimilação e

manipulação dos conteúdos culturais a que vão sendo expostos. Os padrões de recepção passiva

das indústrias culturais "clássicas" são agora substituídos por ferramentas de recepção simbólica

(inter)activas.

A participação cultural activa refere-se portanto a uma situação na qual os indivíduos não

se limitam a absorver passivamente os estímulos culturais, mas são motivados a utilizar as suas

habilidades e talentos na produção cultural. Assim, não se trata somente de ouvir música, mas de

tocar e compor; nem apenas de ler textos, mas de os escrever, e assim por diante. Um efeito

pertinente da participação activa é que os indivíduos não são simplesmente expostos a

experiências culturais, mas mergulham nas regras que as geram, eles têm que aprender a

descodificar o "código-fonte" que está por trás da geração do significado cultural. A participação

activa, por outro lado, promove mais interesse e curiosidade na exploração de experiências

culturais e de bens produzidos por outros, numa dinâmica de “feedback positivo”, onde cada

componente reforça o outro, gerando formas mais intrincadas e complexas de sociabilidade

cultural.

Ao nível local, a Cultura 3.0 significa o potencial de desenvolvimento cultural e criativo dos

territórios e a capacidade de estimular novas dinâmicas de produção de conteúdos culturais e

novos modos de acesso à cultura. É também a partir desta visão que a Agenda 21 da Cultura

(A21C) encoraja as cidades a elaborar estratégias culturais a longo prazo e convida o sistema

cultural a influenciar os principais instrumentos de planeamento urbano.

No contexto de uma estratégia mais coerente e abrangente de coordenação sistemática de

todos os efeitos indirectos da produção e da participação cultural, seria muito importante orientar

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projectos de revitalização cultural com uma abordagem proactiva e participada que promova e

desenvolva as competências locais, os meios criativos e os recursos endógenos, ao invés de se

concentrar em formas de entretenimento instrumentais e inautênticas para benefício da suposta

competitividade territorial e das “classes criativas”.

Neste debate em torno da “criatividade” (cidades, indústrias, economias e classes criativas),

há décadas que Richard Florida se assumiu como guru da economia criativa em todo o mundo,

inclusive em Portugal. Foi ouvido e "operacionalizado" por autarcas em demanda da ultima

tendência do "urbanismo criativo e inteligente". O vírus ideológico da "classe criativa", afinal

parecia tão belo quanto o da "mão invisível", e haveria certamente de pôr a funcionar a economia

criativa. Por outro lado, os críticos de Florida sempre soubemos que esta era mais uma narrativa

do capitalismo neoliberal para alavancar investimentos em imobiliário. Agora, finalmente, Richard

Florida assume publicamente o seu mea culpa67.

Na sua relação com as políticas culturais locais ancoradas na democracia cultural e na

participação cultural activa, as ideias de Florida aplicadas superficialmente como modelo pronto-

a-consumir, produziram aquilo que designámos como “o problema do salto quântico”. Se

pensarmos no desenvolvimento estratigráfico/diacrónico das políticas culturais em Portugal, na

sua relação com a cultura e cidade, podemos considerar que não se verifica (na maioria dos

municípios) a existência de políticas culturais locais comprometidas com a democracia e a

cidadania cultural. Ora, não estando essa camada ainda sedimentada na governança cultural

municipal, e tendo sido disseminada, mais recentemente, a tendência das economias criativas a

partir do modelo “Richard Florida”, dá-se um “salto quântico” entre a ausência da democracia

cultural e a emergência da “cidade criativa” como modelo economicista da produção cultural.

Ainda assim, a proposta de Florida não está isolada quanto a uma visão da “cidade criativa”,

Charles Landry, Franco Bianchini e Phil Woods congregam, de algum modo, uma outra formulação

de criatividade como produto amplamente social. Em comum, estes autores, afirmam que as

cidades têm um recurso crucial: as suas pessoas. A inteligência humana, os desejos, as motivações

ou a imaginação. Quando estes atributos se juntam num lugar, estabelecem um creative milieu

(contexto urbano criativo). Uma cidade que encoraja as pessoas a trabalharem com a sua

imaginação vai muito para além do paradigma da engenharia urbana, preocupa-se portanto com a

forma como as diferenças de opinião podem ser negociadas, e a partir daí gerar desenvolvimentos.

No relatório intitulado “The role of the arts and culture in urban processes”, Phil Woods

67 https://jacobinmag.com/2017/08/new-urban-crisis-review-richard-florida

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defendia que:

Planning for culture or planning with culture, or place making with culture. It’s still not

cultural planning. Investors have hijacked the notion of the creative city, where cool

people are doing cool things.

Planning with a cultural sensibility is about real issues, real people this is what we need

to.How can poor people be included, and what can poor people teach us, so we genuinely

try to mix with people who do not read spreadsheets and bullets point?

A key question is why this bottom-up initiative did not work and became institutionalized?

Richard Florida’s well-known book, The Rise of The Creative Class, switched the agenda

and he developed a top-down for the elite rather than for everybody. That is a narrowing

of the notion of creativity.

Importa ainda, no que se refere às políticas e às práticas intrínsecas ao “desenvolvimento

sustentável”, colocar a dimensão cultural das políticas públicas na reconfiguração do paradigma de

desenvolvimento (humano) sustentável, que passe a incluir a cultura como quarto pilar, em

paralelo e em interação com as dimensões económica, social e ambiental. Este é também o o

desígnio da Agenda 21 da Cultura.

Como referido anteriormente, a intervenção dos Governos centrais na formulação de

políticas locais é negada Constitucionalmente (Art. 6º,CRP). Contudo, em alguns países, os órgãos

da administração central fomentam parcerias com as autarquias locais, e é nesse sentido que a

Artemrede (2º Fórum Político) propõe: «2. Estabelecer convenções entre o Governo e as

Autarquias: Testando novos modelos de implementação de políticas culturais de ativação

territorial e de participação das populações».

No Brasil, a “Política Nacional de Cultura Viva”, criada em 2014, visa garantir a «ampliação

do acesso da população aos meios de produção, circulação e fruição cultural a partir do Ministério

da Cultura, e em parceria com governos estaduais e municipais e por outras instituições, como

escolas e universidades».

Em Inglaterra, o Arts Council implementou o “Local government, partnerships and place”,

que visa promover o florescimento de contextos culturais locais mais resilientes.

Em alternativa à iniciativa estatal, a rede francesa “Réseau culture 21”, uma associação

independente fundada em 2009, trabalha na promoção da diversidade e dos direitos culturais em

todas as políticas públicas ao nível local, com base na Agenda 21 da Cultura e na Declaração de

Friburgo.

Neste âmbito das parcerias entre Estado central e administração local, a nossa proposta

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passa pela estruturação de um plano para a “Promoção de Políticas e Estratégias Culturais Locais",

o qual seria implementado entre o governo e os municípios aderentes, através de protocolos

associados ao respectivo apoio financeiro. Os municípios teriam de se comprometer a desenvolver

políticas e estratégias participadas e publicamente discutidas, conjugando princípios e valores de

democracia cultural e de direitos culturais (amplamente divulgados pela A21C). Os protocolos

seriam acompanhados de objectivos, metas, monitorização e avaliação dos planos. Entre outros

aspectos, os protocolos seriam dirigidos a fins, tais como:

• Formação e profissionalização de quadros técnicos e administrativos (gestão, produção, mediação,

programação...);

• Desenvolvimento de processos participativos na elaboração e governança de políticas e estratégias

culturais locais;

• Apoio à estruturação de redes culturais municipais;

• Criação de Bolsa de Espaços Disponíveis e de Bolsa de Recursos Logísticos e Técnicos;

• Criação de gabinetes locais de apoio a projectos culturais e criativos;

• Apoio a projectos específicos de promoção do diálogo intercultural;

• Formação e desenvolvimento de públicos e alargamento da base social dos públicos;

• Qualificação e expansão de serviços educativos;

• Apoio a programas e projectos intersectoriais: educação/cultura/património/...;

• Desenvolvimento da economia cultural e criativa;

• Desenvolvimento e integração da cultura técnica e científica;

• Criação de Conselho Municipal de Cultura / Fórum Cultural Municipal;

• Democratização de equipamentos e instituições culturais, promovendo a participação e a

colaboração dos agentes culturais de modo transparente e equânime;

• Promoção regular de debates e sessões de trabalho entre agentes culturais e administração pública,

descentralizados nas Juntas de Freguesia;

• Eliminação das barreiras e promoção do acesso aos equipamentos e eventos culturais;

• Incentivo à criação de plataformas digitais culturais;

• Facilitação de uso de imóveis devolutos (públicos e privados);

• Facilitar a apropriação de Espaços Públicos Urbanos para as “artes de rua”;

• Diversificar apoios e incentivar a pluralidade dos projectos culturais (ex: artistas emergentes;

experimentação e investigação; jovens produtores culturais; activismo cultural; …).

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Anexo

Proposta de processo de planeamento estratégico participativo em contexto local68

A derradeira finalidade de uma política cultural é a de enriquecer o universo de

possibilidades abertas às práticas culturais dos cidadãos, intervindo sobre as condições que

estruturam essas mesmas práticas:

• Condições de produção e criação cultural em sentido amplo;

• Condições de conservação, preservação e valorização do património cultural material e

imaterial,

• Condições para a valorização da produção plural dos conhecimentos e das subjectividades;

• Condições de acessibilidade universal aos serviços e bens culturais ;

• Condições de fruição das artes e dos equipamentos culturais em diferentes modalidades e

intensidades;

• Condições de participação política e de cidadania activa.

No actual contexto da governança cultural, o Município de Lisboa configura um valioso

caso de estudo no que se refere à conjugação entre a Agenda 21 da Cultura - Lisboa é Cidade-

Piloto da Agenda 21 para a Cultura69 - e um Plano Estratégico para a Cultura, documentado em

“Estratégias para a Cultura da Cidade de Lisboa” (2017).

Fase 1 – Emergência de uma vontade coletiva de mudança

Instituição e valorização do “Conselho Municipal de Cultura”, o qual deve funcionar como

uma instituição pública gerida coletivamente pela administração local, pelos agentes

culturais e cidadãos interessados, organizados em assembleia e em grupos de trabalho

sectoriais;

Adoção dos princípios e compromissos constitutivos da Agenda 21 da Cultura – os

municípios podem aderir formalmente a esta “carta” (ver www.agenda21culture.net);

É importante nesta fase coligir os documentos estratégicos municipais de cultura já

existentes (cartas de património, diagnósticos, planos estratégicos, etc..) e fazer uma

síntese dos mesmos.

68 Fonte: Matoso, Rui (2013). «Políticas Culturais e Democracias Locais». In Revista Práticas de Animação. Ano 7 – Número 6, Outubro de 2013.

69 http://www.agenda21culture.net/our-cities/pilot-cities

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Fase 2 – Análise da situação e diagnóstico

Analise documental das fontes de informação já disponíveis relativas à caracterização

demográfica do município;

Realizar entrevistas a informadores privilegiados: responsáveis políticos, agentes culturais,

directores municipais de cultura, directores de equipamentos culturais, personalidades,

artistas, produtores, gestores, …;

Realizar fóruns sectoriais de consulta;

Mapeamento do Ecossistema Cultural - recursos culturais do concelho (Património Material

e Imaterial, Equipamentos Culturais, Associativismo, Artistas, Artesãos, Indústrias Criativas,

Produtores Culturais, Projectos, Festas Populares, Grande Eventos,...);

Análise das dinâmicas culturais: programações e actividades desenvolvidas por entidades

públicas e privadas;

Elaborar o diagnóstico (SWOT): pontos fortes, pontos fracos, oportunidades e ameaças.

Fase 3 – Estabelecer as prioridades para a intervenção, reflexão estratégica e formulação

de medidas e projectos

Partindo do diagnóstico elaborado na fase anterior, e tendo em consideração o

mapeamento de recursos efectuada, é possível promover a reflexão e identificar as áreas

de intervenção prioritárias;

Definir eixos e objectivos estratégicos de intervenção;

Criar grupos de trabalho sectoriais/temáticos para brainstorming de elaboração e

priorização de medidas e projectos.

Fase 4 – Implementação e monitorização

Definir orçamentos e fontes de financiamento para a implementação das medidas e

projectos;

Definir bateria de indicadores de monitorização e avaliação70;

Definir calendários de execução;

Desenvolver mecanismos participativos de acompanhamento da execução, monitorização e

avaliação de resultados.

70 Guía para la evaluación de las políticas culturales locales / Sistema de indicadores para la evaluación de las políticas culturales locales en el marco de la Agenda 21 de la cultura. http://www.femp.es/files/566-762-archivo/Gu%C3%ADa_indicadores%20final.pdf

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