Sob a Lupa do Economista - Gonçalves, Rodrigues
-
Upload
krokasgandra -
Category
Documents
-
view
225 -
download
0
Transcript of Sob a Lupa do Economista - Gonçalves, Rodrigues
-
7/22/2019 Sob a Lupa do Economista - Gonalves, Rodrigues
1/15
-
7/22/2019 Sob a Lupa do Economista - Gonalves, Rodrigues
2/15
Prefcio
Oprofessor de matemtica em geral um sdico. Essa graveacusao de um professor de matemtica que ficou conhe-
cido em todo o Brasil pelo pseudnimo de Malba Tahan. Seu
livro mais conhecido, publicado na dcada de 1960, salvo engano, era
O Homem que Calculava, e eu o comprei em um sebo na Avenida Rangel
Pestana que queimava os livros da coleo a Cr$1. Era uma pechincha,
e quando obtive o livro de Malba Tahan cheguei ao Parque Dom Pedro
II, em pleno centro de So Paulo, com as pginas iniciais da primeira
histria lidas. Nunca mais me esqueci da histria dos camelos e de comoum sbio beduno deu seu camelo para promover uma diviso equnime
entre os pretendentes, e ainda sobraram dois camelos para ele. Esses ra-
bes eram mesmo fabulosos matemticos e eu j tinha aprendido que at
os algarismos arbicos haviam sido inventados por eles!!!
O fato que para mim o tal do Malba Tahan deveria ser um beduno
de tipo fsico semelhante s pessoas que mercadejavam na regio da Rua
25 de Maro, em So Paulo. Foi justamente l que conheci o srio, ou tur-co como todos eram chamados, inclusive os judeus , Abdallah Aschar,
um bem-intencionado militante do Partido Comunista Brasileiro. Foi o
turco, ou srio, que me disse que o genial autor de O Homem que Calculava,
que propunha problemas de aritmtica e lgebra, era um criativo profes-
sor brasileiro, Julio Csar de Mello e Souza, carioca que cutucava os seus
pares afirmando que eles gostavam de complicar tudo. A verdade que
fiquei um pouco decepcionado com o Malba Tahan que havia criado em
minha imaginao de menino de 14 anos; ele no tinha turbante, nemcamelos, nem vivia no deserto, nem fazia as oraes dos crentes em Al.
-
7/22/2019 Sob a Lupa do Economista - Gonalves, Rodrigues
3/15
O homem era brasileiro, mas escrevia como se cada problema de mate-
mtica ou lgebra fosse um conto das Mil e Uma Noites, que tambm
tinham me fascinado.
Alm de Malba Tahan, a matemtica que aprendi se deveu criati-
vidade de alguns professores. Em compensao, no aprendi nada com
outros, e cheguei mesmo a desconfiar que um ou outro no sabia o que
ensinava pretenso passageira de quem tomou vrias notas vermelhas
na matria. Depois, como professor de Histria, fui assistir s aulas de
matemtica do professor do cursinho Objetivo de So Paulo, Olivaldo
Pereira, e me encantei quando ele me mostrou que matemtica no era
aquele monte de clculos e frmulas que todos decoravam, e sim algo
mais intuitivo e belo.
Escrever fcil difcil. Falar fcil tambm. Ensinar com boa didtica muitomais, pois exige que o professor saiba muito e seja capaz de decodificar em
funo de seu pblico-alvo. Uma coisa falar para os sbios da Academia de
Viena, outra, para alunos do curso fundamental da periferia.
Assim como O Homem que Calculava fez muita gente de diversas ge-
raes ver a matemtica com outros olhos, este livro dos professores da
USP, Carlos Eduardo Soares Gonalves e Mauro Rodrigues, composto por
deliciosas crnicas que aplicam os conceitos da cincia econmica a diver-
sas situaes concretas, mostra ao leitor leigo que aprender sobre econo-
mia pode tambm ser algo divertido.
Herdoto Barbeiro
Escritor e jornalista da CBN e da TV Cultura
Bagdad, 19 da lua de Ramad de 1321
-
7/22/2019 Sob a Lupa do Economista - Gonalves, Rodrigues
4/15
Prlogo
Nosso objetivo ao mergulhar no desafio de escrever este livro foitrazer ao conhecimento do pblico geral, sob a forma de uma
leitura leve e acessvel, alguns resultados da pesquisa acadmica
recente na rea de Economia. Alm disso, o livro tem tambm a finalida-
de de ensinar uma srie de conceitos bsicos da teoria econmica, empre-
gando, para isso, exemplos inusitados do dia a dia.
Tratamos aqui dos mais diversos temas, muitos deles largamente dis-
sociados dos assuntos abordados nos cadernos de economia dos jornais.
Queremos com isso: (i) mostrar a abrangncia da lgica econmica ecomo ela pode contribuir para o entendimento de diversos fenmenos
sociais, e (ii) transmitir uma variedade de conceitos econmicos de forma
divertida e agradvel ao leitor.
Diferentemente de outros trabalhos com objetivo similar, estrutura-
mos nosso livro em forma de textos curtos e autocontidos, que podem ser
saboreados pelo leitor em qualquer ordem.
-
7/22/2019 Sob a Lupa do Economista - Gonalves, Rodrigues
5/15
Sumrio
As maiores bilheterias do cinema . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .1A herana maldita da escravido . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .7
Harry Potter e o preo da passagem de avio . . . . . . . . . . . . . . .13
Dos mosquitos ao desenvolvimento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .16
Nosso amigo, o especulador . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .22
Adam Smith e os benefcios da globalizao . . . . . . . . . . . . . . . .26
A hecatombe financeira de 2008 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .31
Rins venda . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .37Diplomatas e ndios peruanos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .43
Mais comrcio, menos pases . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .50
1688 e 1904: o impacto sobre as taxas de juros . . . . . . . . . . . . . .53
O ovo e a galinha na economia do crime . . . . . . . . . . . . . . . . . .59
O contrabando a servio da sociedade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .64
Incentivos ao futebol arte? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .72
Deuses da chuva e da guerra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .77
A feia fumaa que sobe apagando as estrelas . . . . . . . . . . . . . . .82
Racionalidade individual e irracionalidade coletiva. . . . . . . . . . .90
A privatizao dos rinocerontes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .93
O outro lado das epidemias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .98
Malleus Maleficarum . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .102
Max Weber versusMartinho Lutero . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .107
Beleza importa? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .113
-
7/22/2019 Sob a Lupa do Economista - Gonalves, Rodrigues
6/15
Vermes e armas: benefcios e custos sociais . . . . . . . . . . . . . . . .117
Celebridades . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .120
O custo do tempo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .125
Impactos escondidos do 11/9 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .129
A vida e a morte do drago inflacionrio . . . . . . . . . . . . . . . . .131Dr. Fantstico e a crise financeira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .138
Felizes para sempre? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .142
Ligaes perigosas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .147
Grandes salrios I . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .152
Grandes salrios II . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .155
A proliferao dos cursos de MBA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .159
Frentistas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .164
Sobre filas e cambistas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .168
O fim dos CDs? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .174
Vinhos, pipocas e passagens areas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .179
O DNA destruidor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .182
Remdios para quem? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .187
QWERTY . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .193
Nas bordas da racionalidade econmica . . . . . . . . . . . . . . . . . .199
A maldio do vencedor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .207
Parece, mas no . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .213
Corrupo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .218
Terroristas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .224
Marcas de cerveja e nmero de candidatos . . . . . . . . . . . . . . . .230
-
7/22/2019 Sob a Lupa do Economista - Gonalves, Rodrigues
7/15
Rins venda 37
Rins venda
Na teoria econmica, lugar proeminente atribudo importnciadas trocas. As trocas permitem que as pessoas se especializem na
produo de alguns poucos bens e servios, vendam-nos no mer-
cado e, com o dinheiro recebido, comprem uma mirade de outros bens
que elas mesmas no produzem. Alm disso, a possibilidade de trocar
faz com que os bens na economia terminem nas mos das pessoas que
lhes atribuem maior valor. Se Carlos Eduardo, que no liga muito para
futebol, acha um ingresso para um jogo do Corinthians na calada, ele
vende-o para Mauro por um preo menor que o cobrado no guich. Am-bos saem ganhando e, no menos importante, o ingresso termina na mo
de quem o valoriza mais, o fantico Mauro.
Trocas no impostas por fora ou coero so ditas eficientes porque ne-
cessariamente beneficiam ambos os lados da barganha: quem vende e quem
compra. Esse resultado quase bvio, apesar de muitas vezes no ser bem
recebido entre os no economistas. Veja que se dada troca no fosse mutua-
mente benfica, ela deixaria de ocorrer, j que ao menos uma das partes notoparia a transao. O problema que algumas trocas so to assimtricas
que ferem nosso senso de justia. Ficamos revoltados, por exemplo, quando
um trabalhador em uma vila pobre da ndia vende 14 horas dirias de sua
fora de trabalho em troca de um salrio pfio de poucos dlares. Mas, apesar
disso, a verdade que essa troca o beneficiou, pois, apesar de muito ruim, era
provavelmente a melhor opo disponvel no momento.1
1O ideal para mudar esse quadro lamentvel ampliar as possibilidades de escolha dospobres, o que pode ser alcanado, por exemplo, ao melhorar sua qualificao profissional.
-
7/22/2019 Sob a Lupa do Economista - Gonalves, Rodrigues
8/15
38 SOB A LUPA DO ECONOMISTA
O teorema sobre a eficincia das trocas no se restringe a transaes
de natureza puramente econmica por exemplo, a troca de um carro
por dinheiro. Ele se aplica tambm a outros mercados, como o polmico
mercado de rgos humanos.
Cerca de 30 mil brasileiros fazem parte de listas de espera por trans-
plantes de rins. Entretanto, o nmero de transplantes efetivamente rea-lizados bem menor: apenas 3.397 no ano de 2007, por exemplo.2A fila
longa: espera-se, em mdia, 5,5 anos por um rim perodo no qual um
paciente com insuficincia renal crnica deve se sujeitar a um penoso
tratamento de hemodilise.
Filas quase sempre refletem um descompasso entre demanda e oferta.
Nesse caso, no h rins suficientes para atender a todos que precisam
de um transplante. A escassez de oferta de rgos no exclusividadetupiniquim: no Reino Unido, uma pessoa espera em mdia 2 anos por
um rim; nos Estados Unidos, entre 3 e 5 anos,3ou seja, mesmo em pases
desenvolvidos, conseguir um rim em bom estado no nada fcil. Em
face disso, pergunta-se: Por que ento no existe um mercado de rins
funcionando eficientemente?
Veja o leitor que transplantes de rins possuem uma particularidade in-
teressante que os diferencia de outros tipos de transplantes: o rgo pode
ser doado por pessoas ainda vivas. Isso porque o doador pode levar umavida praticamente normal com apenas um rim (o maior risco da doao
o da operao). Essa peculiaridade deveria facilitar a vida de pessoas que
precisam de transplantes, mas a realidade , como vimos anteriormente,
bem menos alentadora.
Um dos problemas que encontrar uma pessoa saudvel e disposta a
doar um rim (normalmente um grande amigo ou membro da famlia do
doente) no garante que o transplante possa ser efetivamente conclu-do. Em particular, para reduzir ao mximo a probabilidade de rejeio
do rgo transplantado, paciente e doador devem ter tipos sanguneos e
tecidos compatveis.
2Dados da Associao Brasileira de Transplante de rgos: .3Ver Marinho, A.; Cardoso, S.S. e Almeida, V.V. (2007). Os Transplantes de rgosnos Estados Brasileiros. IPEA, Texto para discusso n. 1317, Tabela 1. Os dados para
Brasil dizem respeito ao ano de 2003, para transplantes realizados dentro do Sistemanico de Sade (SUS). Os dados para os Estados Unidos referem-se aos anos de 2001e 2002. Para o Reino Unido, consideram-se apenas adultos, no perodo 1999-2002.
-
7/22/2019 Sob a Lupa do Economista - Gonalves, Rodrigues
9/15
Rins venda 39
Assim, o nmero de transplantes baixo por dois motivos: (i) o gru-
po de pessoas prximas ao doente, dentre as quais poderia aparecer um
doador, reduzido, e (ii) h uma chance nada desprezvel de que o bom
samaritano desse pequeno crculo possua tipo sanguneo ou tecidos in-
compatveis com os do doente.
Dado que existe uma enorme demanda por rins no atendida, e queas pessoas podem levar a vida com apenas um rim, h, no mnimo, um
grande potencial para o surgimento de um mercado formal e impessoal
no qual esses rgos seriam transacionados entre pessoas que sequer se
conhecem. Como ningum seria obrigado a vender seu rim, nesse mer-
cado s ofertariam rgos aqueles cujo benefcio da venda o dinheiro
recebido fosse maior do que o custo de passar por uma operao e ter
que viver com um s rim. Uma pessoa de baixa renda, por exemplo, po-deria se beneficiar da venda de seu rim, usando o dinheiro para outras
finalidades de grande emergncia.4
No entanto, esse mercado, ou melhor, um mercado legalde rins, no
existe. A legislao brasileira, assim como a da maioria dos pases do mun-
do, probe a comercializao de rgos humanos em troca de montantes
monetrios. Dessa forma, na ausncia de um doador compatvel perten-
cente a seu crculo de amigos e familiares prximos, restar ao paciente
entrar na fila e esperar por um doador falecido ou tentar sua sorte nomercado negro de rgos.
Como essa situao mudaria se nossos rins pudessem ser negociados
como bananas, em um mercado legal?
Consideremos um exemplo hipottico. Um indivduo X, cujo sangue
do tipo A, necessita de um transplante. Seu irmo, o indivduo Y, est
disposto a lhe doar um rim, porm possui sangue do tipo B, o que os tor-
na incompatveis e impossibilita a operao. A presena de um mercadoimpessoal bem organizado alteraria completamente esse quadro, mesmo
no tendo a famlia dinheiro em caixa para comprar um rim. Isso porque
Y poderia vender seu rim no mercado para outro doente com tipo san-
guneo compatvel no caso, tipo B ou O5 e, com os fundos levantados
4Proibir algum de vender seu rimsob o argumento de que o vendedor no sabe o que estfazendo menosprezar a compreenso das pessoas sobre os custos e benefcios de tal
ao.5Com um amplo mercado de rins operando legalmente, no seria nada difcil encon-trar tal comprador.
-
7/22/2019 Sob a Lupa do Economista - Gonalves, Rodrigues
10/15
40 SOB A LUPA DO ECONOMISTA
nessa transao, a famlia teria condies de comprar o rim de uma ter-
ceira pessoa, compatvel com as caractersticas do indivduo X (ou seja,
algum que possua sangue do tipo A ou AB).
Esse exemplo simples ilustra a perda de bem-estar associada proibi-
o do comrcio de rins, principalmente para os pacientes que necessitam
de transplantes. No caso esboado, dois transplantes deixariam de ser rea-lizados por conta da ilegalidade da operao. Ressalte-se que as alterna-
tivas para o paciente, quando essa troca proibida, no so muito alen-
tadoras: sofrer com a longa e dolorosa espera por um doador pstumo
ou recorrer ao arriscado mercado negro. Em particular, a alternativa do
mercado negro bastante complicada por dois motivos. Primeiro porque
bons mdicos raramente se dispem a arriscar suas reputaes realizando
cirurgias ilegais. Segundo porque o paciente ter enormes dificuldadespara recorrer Justia caso o rim comprado seja de m qualidade ou
ocorra erro ou negligncia mdica na operao, uma vez que tudo se
passa na ilegalidade.
Apesar dos argumentos levantados, a maioria das pessoas e ns no
somos excees v a possibilidade de comprar ou vender rgos em
transaes monetrias como algo repugnante e at mesmo antitico. Rins
no so bens como carros ou bananas, convenhamos. Cremos que essa
averso ao comrcio monetrio de rgos no deve ser desconsideradaem nome da eficincia associada existncia de tal mercado. Se acredi-
tarmos que as leis de um pas refletem de alguma forma as opinies de
seus cidados, a proibio ao comrcio de rins indica que a sociedade
prefere pagar o custo do sofrimento de pacientes que necessitam de trans-
plantes, a ter que conviver com o horror de colocar preos monetrios em
rgos humanos.6
No possvel, portanto, passar julgamento de valor a respeito da proi-bio, e a ns, economistas, cabe apenas indicar que a proibio tem tam-
bm custos importantes.
Entretanto, as trocas, principal fator gerador de ganhos de bem-estar
socioeconmico, nem sempre precisam ser realizadas via pagamentos
6Outros bens e servios por exemplo, drogas, servios sexuais e jogos de azar so-
frem proibies semelhantes sua comercializao. Para uma discusso sobre o im-pacto da repugnncia sobre o funcionamento dos mercados, ver Roth, A.E. (2007).Repugnance as a Constraint on Markets. Journal of Economic Perspectives21: 37-58.
-
7/22/2019 Sob a Lupa do Economista - Gonalves, Rodrigues
11/15
Rins venda 41
monetrios diretos. De fato, no caso dos transplantes, h uma alternativa
interessante que recentemente vem ganhando popularidade, pois permi-
te que se troquem rins sem que para isso sejam necessrios desembolsos
monetrios. A ideia consiste em impulsionar os transplantes por meio de
um mecanismo de trocas diretasde rins, intermediadas por uma institui-
o central em que so cadastrados pacientes e potenciais doadores. Algica que, para participar, uma pessoa com doena renal crnica no
precisa trazer dinheiro, mas sim algum disposto a doar um rim.7
Para facilitar a exposio do funcionamento desse mercado no mone-
trio, voltemos ao nosso exemplo com o paciente X (com sangue do tipo
A) e o potencial doador, seu familiar ou amigo Y (de tipo sanguneo B).
Basicamente, o que a central de cadastro faz buscar, dentro de seu
vasto banco de dados, outro par paciente-doador compatvel com o pri-meiro, permitindo assim a ocorrncia de dois transplantes de rgos: uma
verdadeira troca de rim por rim. Por exemplo, encontra-se um paciente
W, com tipo sanguneo B, cujo doador, seu primo Z, possui tipo sangu-
neo A. Apesar de cada par X e Y; W e Z ser composto por indivduos
incompatveisentresi, o sistema garante que haja compatibilidade entre
pares, possibilitando a realizao de dois transplantes: Z doar seu rim
para o desconhecido X, enquanto Y doar seu rim para o desconhecido
W.8Quanto maior o nmero de participantes no banco de dados, melho-res as chances desse arranjo funcionar.9
O esquema ainda requer que ambos os transplantes sejam realizados
ao mesmo tempo para minimizar o risco de que o primeiro a receber o
rim no cumpra sua parte na troca. Por exemplo, se o paciente X rece-
besse o transplante primeiro, o indivduo Y poderia posteriormente se
7Note que o par , necessariamente, de pessoas incompatveis. Caso contrrio, elasfariam o transplante entre si e no precisariam, assim, participar desse esquema.8Os indivduos devem ser compatveis com relao a tipo sanguneo e tecidos. Parasimplificar o argumento, estamos supondo que apenas a compatibilidade no tipo san-guneo relevante para determinar a possibilidade de um transplante de rim.9 Nos Estados Unidos, diversas associaes se desenvolveram nos ltimos anospara organizar esquemas do tipo. Para mais detalhes, veja e . O trabalho conjunto demdicos e economistas foi instrumental para o estabelecimento do grupo da re-
gio norte-americana de New England. Ver . Para a lite-ratura na rea de Economia, veja .
-
7/22/2019 Sob a Lupa do Economista - Gonalves, Rodrigues
12/15
42 SOB A LUPA DO ECONOMISTA
recusar a doar seu rim para o paciente W. Dessa forma, o par X-Y sairia
ganhando, pois X conseguiria um rim saudvel sem que Y precisasse se
sujeitar a uma cirurgia. Essa possibilidade de trapaa pode afetar adversa-
mente os incentivos das pessoas a participarem do esquema, colocando-o
em risco. A simultaneidade das cirurgias impede que isso ocorra.
Note que, nesse novo modelo, h troca de rgos entre pessoas queno possuem necessariamente uma relao familiar ou afetiva, da mesma
forma que ocorreria no caso do mercado monetrio de rins.10A diferena
fundamental que no h contrapartida de dinheiro, o que torna a tran-
sao socialmente aceitvel. Colhem-se os ganhos das trocas de mercado
sem se ferir a tica.
No momento em que este texto foi finalizado, esse arranjo ainda no
havia chegado ao Brasil. O que estamos esperando?
10
A vantagem das trocas impessoais que elas permitem uma expanso da escala domercado afinal de contas, h muito mais pessoas no mundo do que nosso crculode amizades.
-
7/22/2019 Sob a Lupa do Economista - Gonalves, Rodrigues
13/15
90 SOB A LUPA DO ECONOMISTA
Racionalidade individual e
irracionalidade coletiva
Oexemplo vem do Prmio Nobel Thomas Schelling, mas a cena
conhecida: o trnsito comea a parar e as pessoas a pr as ca-
beas para fora da janela. Alguns metros frente, um acidente
bloqueia a pista da mo contrria, mas o engarrafamento na pista livre
to grande quanto o da pista bloqueada. Isso porque quase todo mundo
diminui a velocidade para olhar de perto o carro capotado a poucos me-
tros. O interessante que cada curioso bisbilhota a viso do automvel
acidentado por meros 5 segundos, mas por conta dessa atitude, cada um
na fila se atrasa cerca de 30 minutos.
Trinta minutos perdidos no trnsito tempo demais, mesmo para os
muito curiosos. Assim, seria claramente melhor para todos se menos gen-
te parasse para olhar. Mas ponha-se no lugar de quem est exatamente
ao lado do carro capotado e j esperou na fila por mais de 29 minutos.
Para ele, reduzir a velocidade agora custa apenas 5 segundos de atraso os minutos perdidos no podem ser recuperados. Por que ento no
saciar a curiosidade mrbida, dado que o custo dessa ao reflete-se em
quem est atrs na fila, um desconhecido qualquer?
Sob o ponto de vista individual, parar para bisbilhotar a deciso ra-
cional e egosta de quem j chegou cena do acidente. Todavia, com
todos pensando assim, o resultado final um atraso de 30 minutos para
cada um. Ou seja, a consequncia da racionalidade individual algo que
podemos chamar de irracionalidade coletiva. Todos perdem e, ainda as-
sim, impossvel evitar o resultado indesejado. Nesse caso, o livre mer-
-
7/22/2019 Sob a Lupa do Economista - Gonalves, Rodrigues
14/15
Racionalidade individual e irracionalidade coletiva 91
cado (pessoas escolhendo o que melhor para elas) no suficiente para
equacionar a questo.
Uma maneira fcil de resolver o imbrglio estabelecer uma multa
para os curiosos de planto: por exemplo, reduziu a velocidade e atrapa-
lhou a vida dos outros, R$50 de infrao. Com esse arranjo, a sociedade
estaria melhor porque, agora, atrasar a vida de quem vem depois tem
custos bem concretos.
Veja que possvel que, ainda assim, algumas pessoas continuassem
parando para tirar uma foto do acidente, pagando, para isso, R$50 de
multa. Mas isso no seria algo ruim ou uma falha da soluo via multa.
Por que no? Porque reduzir a velocidade para ver o acidente vale mais
que R$50 para um dado cidado, ento de fato eficiente que esse curio-
so insacivel atrase um pouquinho o trnsito dos que vm atrs. Afinalde contas, o bem-estar do curioso tambm deve ser levado em conta no
cmputo do bem-estar da sociedade. Alm disso, ele est pagando pela
inconvenincia gerada.
O fato que sem a lei que multa quem desacelera, atrapalhar os ou-
tros tem custo zero. A custo zero, ser curioso muito fcil, gerando uma
enormidade de curiosos.
Das ruas para os lares, por que a conta de gua nos apartamentos , em
geral, mais alta que nas casas? Pelo mesmo fenmeno de irracionalidade
coletiva descrito anteriormente. Que incentivos tem um morador de um
prdio, onde a gua est includa no valor do condomnio, a reduzir o
tempo de seu prazeroso banho quente se, assim procedendo, ele no se
apropria plenamente de sua economia?
De fato, ao consumir menos gua, o morador do prdio faz um favor
a todos. Contudo, ele mesmo ganha pouco com isso. O motivo simples:
sua economia, que vem ao custo de algum sacrifcio pessoal, repartida em termos de conta de gua coletiva menor entre todos os outros mo-
radores. Claramente, essa partilha de benefcios afeta adversamente seus
incentivos a fazer sacrifcios, coisa que no ocorre nas casas, onde a conta
reflete to somente seus prprios hbitos.
O pior que mesmo que todos os outros moradores do prdio estejam
tomando banhos curtos, o melhor sob o ponto de vista individual conti-
nua a ser banhar-se vontade, pois a conta mais gorda no recai sobre
quem a gera exclusivamente; ela dividida entre todos os condminos.
Com todos raciocinando assim, o desperdcio no chuveiro torna-se praxe
-
7/22/2019 Sob a Lupa do Economista - Gonalves, Rodrigues
15/15
92 SOB A LUPA DO ECONOMISTA
difundida e uma bela conta de gua bate porta de todos no final do ms.
Os poucos que, por altrusmo ou conscincia, se sacrificaram em nome do
bem comum, ficaro provavelmente to revoltados com a fatura que, no
prximo ms, passaro a escovar os dentes com a torneira aberta.
H, felizmente, uma soluo fcil para o problema do consumo ex-
cessivo de gua nos prdios: basta individualizar as contas, tornando os
prdios similares s casas nesse quesito.
J sabe agora o leitor por que a conta do bar nas reunies dos amigos
da faculdade no fim de ano sempre to salgada? Nesses eventos, nin-
gum tem incentivos a conter suas demandas de usque e camaro, visto
que os custos so repartidos sempre entre todos. O triste que essa racio-
nalidade individual leva, no fim da noite, ao desespero coletivo e at mes-
mo a eventuais celeumas. Melhor ento evitar problemas, agendando oencontro do prximo ano em um bar com comandas individualizadas.