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/MBS - São Tomás de Aquino e a Centralidade da Alma 1/13 21/5/2011 São Tomás de Aquino e a Centralidade da Alma Mario Bruno Sproviero I. Introdução A questão da alma era considerada na filosofia grega a questão mais sutil e difícil. A especulação filosófica grega foi herdada pela tradição cristã. Trata-se de saber o que é o homem. Conforme concebermos o homem, conceberemos o todo: é uma criatura de Deus (Sl 8,5) ou mero produto do acaso sem significado? Vamos nos concentrar nesse artigo na tradição cristã, procurando estabelecer as dificuldades surgidas ao confrontar a indagação filosófica cristã, pontificada em São Tomás de Aquino (1225 – 1274) e o exame dos dados bíblicos. A questão portanto que queremos colocar é se a imagem do homem que a filosofia cristã, segundo muitos, obtida da filosofia grega, ainda que cristianizada, coincide com a imagem do homem que seria obtida da Bíblia. Dada a complexidade do problema, além das simplificações necessárias, nos limitaremos a colocar a questão, insistindo que se trata de questão fundamental. Antecipamos que não é nada clara e bem estabelecida qual seja a antropologia bíblica, se forem considerados todos os dados (Hb 2,5-9). A prova são as diferentes concepções provenientes de várias confissões cristãs. II. Sistemas diversos De um modo geral, apresentam-se soluções monístas (um só princípio) e dualistas (dois princípios). Alguns propõe também soluções triádicas, conforme alguns textos de São Paulo (1 Ts 5, 23, Hb 4, 12), em que se menciona a tríade: corpo, alma e espírito. No entanto, não é necessário admitir três substâncias para acomodar-se aos dados bíblicos, já que uma única substância espiritual enquanto anima, ou dá vida, ao corpo, diz-se alma; enquanto princípio de operações próprias, a saber, intelecto e vontade, diz-se espírito. Deste modo, nunca se diz que um animal tenha espírito, nem de um anjo que tenha alma. Outra solução seria colocar a alma como forma corpórea. Nas soluções monístas, as principais são as materialistas e as idealistas. Para os materialistas, não há alma como substância espiritual; para os idealistas, o que é corpóreo é exteriorização do sujeito. No entanto, nas soluções monístas, o dualismo reflui na única substância, como podemos constatar neste trecho de Freud, bem no início de um compêndio de psicanálise. Freud nos diz que a psicanálise parte de um pressuposto fundamental, cuja discussão é de âmbito filosófico. A psique manifesta-se em dois aspectos, o cérebro e os atos conscientes. Estes são dados imediatos sem nenhuma mediação descritiva. E arremata: “Tudo o que permeia (o sistema nervoso e os atos conscientes) nos é desconhecido, uma relação direta entre os dois extremos de nosso saber não é dada.” 1 1 Freud, p. 9 “Alles dazwischen ist uns unbekannt, eine direkte Beziehung zwischen beiden Endpunkten unseres Wissens ist nicht gegeben.”

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São Tomás de Aquino e a Centralidade da Alma Mario Bruno Sproviero

I. Introdução A questão da alma era considerada na filosofia grega a questão mais sutil e difícil. A especulação filosófica grega foi herdada pela tradição cristã. Trata-se de saber o que é o homem. Conforme concebermos o homem, conceberemos o todo: é uma criatura de Deus (Sl 8,5) ou mero produto do acaso sem significado? Vamos nos concentrar nesse artigo na tradição cristã, procurando estabelecer as dificuldades surgidas ao confrontar a indagação filosófica cristã, pontificada em São Tomás de Aquino (1225 – 1274) e o exame dos dados bíblicos. A questão portanto que queremos colocar é se a imagem do homem que a filosofia cristã, segundo muitos, obtida da filosofia grega, ainda que cristianizada, coincide com a imagem do homem que seria obtida da Bíblia. Dada a complexidade do problema, além das simplificações necessárias, nos limitaremos a colocar a questão, insistindo que se trata de questão fundamental. Antecipamos que não é nada clara e bem estabelecida qual seja a antropologia bíblica, se forem considerados todos os dados (Hb 2,5-9). A prova são as diferentes concepções provenientes de várias confissões cristãs.

II. Sistemas diversos De um modo geral, apresentam-se soluções monístas (um só princípio) e dualistas (dois princípios).

Alguns propõe também soluções triádicas, conforme alguns textos de São Paulo (1 Ts 5, 23, Hb 4, 12), em que se menciona a tríade: corpo, alma e espírito. No entanto, não é necessário admitir três substâncias para acomodar-se aos dados bíblicos, já que uma única substância espiritual enquanto anima, ou dá vida, ao corpo, diz-se alma; enquanto princípio de operações próprias, a saber, intelecto e vontade, diz-se espírito. Deste modo, nunca se diz que um animal tenha espírito, nem de um anjo que tenha alma. Outra solução seria colocar a alma como forma corpórea. Nas soluções monístas, as principais são as materialistas e as idealistas. Para os materialistas, não há alma como substância espiritual; para os idealistas, o que é corpóreo é exteriorização do sujeito. No entanto, nas soluções monístas, o dualismo reflui na única substância, como podemos constatar neste trecho de Freud, bem no início de um compêndio de psicanálise. Freud nos diz que a psicanálise parte de um pressuposto fundamental, cuja discussão é de âmbito filosófico. A psique manifesta-se em dois aspectos, o cérebro e os atos conscientes. Estes são dados imediatos sem nenhuma mediação descritiva. E arremata: “Tudo o que permeia (o sistema nervoso e os atos conscientes) nos é desconhecido, uma relação direta entre os dois extremos de nosso saber não é dada.”1

1 Freud, p. 9 “Alles dazwischen ist uns unbekannt, eine direkte Beziehung zwischen beiden Endpunkten unseres Wissens ist nicht gegeben.”

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Mesmo sem síntese e grande insistência na unidade psicossomática, o que se tem, de fato, é mera adjacência. Como bem apresenta P. M. Barbado, alguns afirmam que ambos os fenômenos são independentes, ainda que haja certo paralelismo, cuja correspondência é também problemática: para uns, a correspondência entre a ordem fisiológica e a psicológica é completa; para outros, é só parcial. Para muitos há causalidade recíproca, para outros ainda, não há distinção entre os fenômenos psíquicos e os fisiológicos, mas são a mesma coisa sob dois pontos de vista distintos, como em Spinoza, em que corpo e espírito são uma mesma coisa, algumas vezes considerado sob o aspecto do pensamento e outras sob o aspecto da extensão. 2

Há também posições cristãs monístas, não porém a doutrina oficial da Igreja. Essas posições monístas cristãs criticam a concepção da imortalidade da alma, atribuindo-a a influência da filosofia grega. No entanto, são essas posições também baseadas em filosofias sensistas, principalmente em John Locke (1632 - 1704). Por exemplo, Joseph Priestley (1733-1804), em 1777, abandonando a concepção corpo-alma, e mantendo a concepção materialista do homem, procura conciliá-la com o teísmo 3.

No campo católico, Teilhard de Chardin (1881 – 1955) também é monista: uma mesma substância, em contínua evolução, em seu aspecto exterior é matéria, em seu aspecto interior é espírito. Quanto aos sistemas dualistas, estes admitem duas substâncias, uma material e outra espiritual. Também aqui há vários sistemas: o sistema de Platão, em que corpo e alma unem-se acidentalmente, ainda que a alma opere sobre o corpo como um motor; o sistema de Leibniz também sustenta a união recíproca e o sistema de Aristóteles defendendo a união substancial entre corpo e alma.

Quanto ao modo de operar de uma substância sobre a outra, há também muitas posições: motoristas, como Platão, Descartes, em que a alma move o corpo e os órgãos sensoriais movem a alma espiritual, sem indicar como; ocasionalistas, como Malebranche, em que não há ação recíproca, mas é Deus quem produz na alma impressões por ocasião das impressões sensoriais; paralelismo, como Leibniz, também não admitindo ação recíproca, mas cada substância opera por conta própria e Deus dispondo de tal maneira que há correspondência entre ambas, uma harmonia preestabelecida. Por fim, os interacionistas, admitindo o influxo recíproco entre alma e corpo, como Aristóteles e os escolásticos. Aqui também temos muitas posições: o averroísmo, admitindo uma forma substancial mortal no homem, a cogitativa, e uma forma universal e separada, o intelecto agente, comum a todos; os que defendem a união entre corpo e alma, como matéria e forma, assim como a matéria prima se une à forma substancial nos corpos inorgânicos. Aqui também podemos distinguir duas posições: a franciscana, com Duns Scotus (1266 – 1308) sustentando que a alma é forma substancial do corpo, mas não única, havendo outra, que chama forma corpórea, a qual se une diretamente com a matéria prima e com esta constitui o corpo orgânico, ao qual se une substancialmente a alma espiritual.

2 Barbado, 1o vol, p 631 3 Joseph Priesttey – Disquisitions Relating to Matter and Spirit, 1777

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Finalmente São Tomás e sua escola, sustentando a unidade da forma substancial, consideraremos principalmente esta doutrina bem como a de Scotus.4

III. Cristologia e Antropologia Depois de mencionarmos a grande variedade de posições, vamos considerar um ponto capital, a comparação entre Cristo e o homem. Gioacchino Ventura (1792 – 1861) considera que “mediante o mistério de encarnação que revelou em Jesus Cristo uma individualidade única, inefável, na qual Deus e o homem estão substancialmente unidos na unidade da pessoa do Verbo, chegou-se a entender que o homem não é outra coisa que um composto, no qual a alma e o corpo estão substancialmente unidos na unidade do ser da alma” 5, e comenta: “doutrina maravilhosa e de imensa importância, que contém toda a verdadeira filosofia, como também a verdadeira teologia e que Santo Atanásio compendiou nessas poucas palavras: No modo em que a alma racional e o corpo são um homem, assim Deus e o homem são um Jesus Cristo”. 6 Com essa fórmula notável, teríamos um paralelismo perfeito entre a antropologia e a cristologia: as heresias cristológicas seriam também falsas concepções antropológicas e vice-versa.

No entanto, logo podem colocar-se alguns problemas: a divindade e a humanidade de Cristo estão na relação de forma e matéria como a alma e o corpo do homem? E também, a alma e o corpo do homem formam uma unidade sem mistura de substâncias? Matteo Liberatore (1810 – 1892)7 em seu tratado sobre o composto humano, procura esclarecer a questão. Assim, quando discorre sobre a unidade do composto humano, recorre à comparação entre a alma unida ao corpo com o Verbo de Deus encarnado, a primeira natural, a outra sobrenatural 8, e que se esclarecem reciprocamente. Segundo Liberatore:

“Este paralelismo servirá também para mostrar como as idéias filosóficas, quando verdadeiras, ajudam não pouco para esclarecer os próprios domínios da fé, e com a

4 Barbado, 1o vol, p 632-634 5 Ventura, p 81 6 Ventura p 81. Esse símbolo é hoje atribuido ao Pseudo-Atanasio: “Nam sicut anima rationalis et caro unus est homo, ita Deus et homo unus est Christus.” (D76) 7 Na segunda metade do sec. XIX, depois de Descartes (1596-1650), a filosofia cristã voltou a ser restipulada. Tivemos a corrente ontologista com Antonio Rosmini (1797-1855) e Vicente Gioberti (1801-1852), a corrente tradicionalista com o já citado Ventura, que a diferença de outros tradicionalistas era tomista, e o chamado semi-racionalista triunfante, do qual deriva o neo-tomismo. Liberatore é um dos seus principais representantes, criticando principalmente o Ontologismo de Rosmini. Para o semi-racionalismo, este seria o termo médio entre o tradicionalismo e o racionalismo; para o tradicionalismo de Ventura, este seria o temo médio, entre o fideísmo e o racionalismo, sendo o semi-racionalismo o próprio racionalismo encoberto. 8 Aqui já surge um problema que segundo alguns teólogos, como veremos, a alma é criada no âmbito sobrenatural, não o corpo. Assim, a alma ou pertence à esfera sobrenatural, isto é, está unida a Deus, ou está morta, isto, é, separada de Deus.

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analogia que contêm em si, assinalam que o autor da natureza e da graça é o mesmo. Como da união da divindade com a humanidade na única subsistência do Verbo resulta a unidade de pessoa em Cristo; assim da união da alma com o corpo resulta a unidade de pessoa no homem. Persona hominis mixtura est animae et corporis: persona antem Christi mixtura est Dei et hominis 9 ... Mas como em Cristo a união das duas naturezas foi apenas pessoal, sem nenhuma transfusão permutável de ser e de propriedades de uma com a outra; a comunicações de idiomas não pode fazer-se entre essas naturezas”.

E esclarece em nota:

“O Filho de Deus pelo sacrossanto mistério da Encarnação de tal modo assumiu em unidade da hipóstase uma alma informando um corpo, que as duas naturezas humana e divina, não misturam nem confundem conjuntamente seus atributos. Assim foi definido no quinto Sínodo geral contra Eutiques e Dióscoro de um lado, que confundiram em Cristo as naturezas, e de Nestório e Teodoro de Mopsuéstia de outro lado, que distinguiram as pessoas.” 10

E aqui o ponto principal e crítico desse estudo: “Pelo contrário, no homem, além da unidade de pessoa, há verdadeira e direta coligação de natureza”.11

Liberatore especifica ainda mais tal diferença:

“A analogia e a diferença entre os dois termos da comparação estabelecida acima resultam de que em Cristo a reunião das duas naturezas procede da unidade de sua divina pessoa; pelo contrário, no homem a unidade da pessoa procede da reunião direta das duas naturezas. Portanto, as naturezas em Cristo, a divindade e a humanidade, podem permanecer, como de fato permanecem, incomunicáveis entre si, sem derrogar a unidade da pessoa; pelo contrário, no homem a alma e o corpo devem inserir-se de certo modo e combinar-se conjuntamente, em conseqüência de que da unidade de natureza resulte a unidade da pessoa.” 12

Considera depois Liberatore que a explicação de como se dá a união entre a alma e o corpo é um ponto árduo e escabroso que fez estremecer as veias e os pulsos de mais de um filósofo. E citando Santo Agostinho (Epístola CXXXVII ad Volusianum) chega a dizer que a união entre a alma e o corpo é ainda mais difícil de entender que a própria Encarnação do Verbo Eterno. Quanto a esse tópico, consideramos suficiente esta longa citação de Liberatore para enquadrar o problema que nos concerne. Eis que teríamos duas concepções divergentes, a do paralelismo completo, e a do paralelismo parcial, representados por Ventura e Liberatore, ambos tomistas.

9 Liberatore, p 21 e 22 10 Idem, p 22 11 Idem, p 22 12 Idem, p 23

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A questão fundamental é qual dessas concepções corresponde à imagem bíblica do homem, em que se distinguem também duas naturezas, o homem externo e o homem interno.

IV. Magistério da Igreja Além de Heinrich Denziger, em seu Euchiridion Symbolorum, obra principal, há a obra do Dr. Ludwig Ott, Fundamentals of Catholic Dogma, cujos originais são em alemão, mas amplamente traduzidas. Quanto às partes essenciais da natureza humana temos:

“O homem consiste de duas partes essenciais – um corpo material e uma alma espiritual (De fide). O 4º Concílio Laterano e o Concílio Vaticano I ensinam esta doutrina: deinde (condidit creaturam) humanam quasi communem ex spiritu et corpore constitutam. D428, 1783.13

Com isso vemos que as soluções monistas não compaginam com o Magistério. Além dessa proposição dogmática, temos a que estabelece a relação entre corpo e alma:

“A alma racional é per se a forma essencial do corpo (De fide).” Segue-se o seguinte comentário:

“Corpo e alma estão conectados entre si, não apenas exteriormente como um recipiente e seu conteúdo, um navio e seu piloto (Platão, Descartes, Leibniz), mas como uma unidade natural intrínseca, de modo que a alma espiritual é por si mesma e essencialmente a forma do corpo. O Concílio de Viena (1311 -1312) condenou como herética: quod anima rationalis seu intellectiva non sit forma corporis humani per se et essentialiter. D 481, cf 738, 1655.

A decisão foi contra o teólogo franciscano João Olivi (+ 1298), que ensinou que a alma racional não era por si (imediatamente) a forma essencial do corpo, mas apenas mediatamente através da forma sensitiva e vegetativa que é dela realmente distinta. Isto destruiria a unidade essencial da natureza humana, substituindo-se por uma unidade dinâmica de operação.” E agora o mais importante: “Esta decisão do Concílio de Viena não implica em reconhecimento dogmático do ensino tomista da unicidade da forma substancial, ou do hilemorfismo aristotélico-escolástico.” 14

Com isso a questão continua aberta: a alma poderia ser imediatamente a forma do corpo, mas esse teria sua forma corpórea como a divindade de Cristo une-se à humanidade (corpo e alma). Assim também Duns Scotus vai requerer a presença de uma forma da corporeidade no caso em que nenhuma forma superior não esteja presente. 15

13 Ludwig Ott, p96, Denziger é abreviado por D 14 Ludwig Ott, p 97 15 Étienne Gilson, p 492 ss

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V. Escritura A extensão dos problemas ligados à Escritura sobre a alma e sua imortalidade é muito grande, havendo tanto posições monistas quanto dualistas e até triádicas. Como a tendência da moderna teologia é excluir ao máximo o pensamento grego – para nós indevidamente – não se fala mais de corpo e alma, mas de homem em sua unidade. Haveria também a discussão da imortalidade condicional e do aniquilamento. Uma característica dessas doutrinas é interpretar literalmente textos do Antigo Testamento e “espiritualmente” os do Novo Testamento. Encontramos a seguinte precisão numa Enciclopédia Judaica:

“Encontramos pela primeira vez a palavra “alma” no livro bíblico do Gênese, que relata como Deus formou Adão, o primeiro homem. Ele o fêz do pó, e “soprou em suas narinas o fôlego da vida; e o homem se tornou uma alma vivente.” Também bastante poético é o aforismo do Provérbio: “O espírito do homem é a lâmpada do Senhor. (Pv 20, 77)”.16

Para os que consideram que (nephesh) e espírito (ruach) apenas sopro, vento, hálito, então nunca ultrapassam o plano material, e consequentemente devem dizer que “Deus é vento”, “adorar Deus em vento e verdade” etc..

Em resumo, podemos dizer que no primeiro capítulo do Gênese, céu e terra fundamentam a dualidade criatural.

O Céu não é o firmamento criado no segundo dia. No Livro de Jó, apresenta-se Deus criando na presença dos anjos (Jó 38, 1-7). Enquanto os animais foram criados já com a respiração, o homem é formado do limo da terra e sua alma é criada especialmente por Deus. É importante constatar que o nome homem é dado a ambas as naturezas e também à pessoa em que ambas estão unidas. No Novo Testamento, nós temos o homem exterior e o homem interior (Ef. 3, 16 Ef 3, 16; 2 Co 4, 16; Rm 7, 22), duas naturezas aparentemente completas. Ainda poderíamos citar Ez (27, 1 ss) onde os membros mortos do corpo são despertados à vista da alma espiritual.

Mas a crítica principal em que queremos nos concentrar vem de um teólogo, frade capuchinho, o P. Martino M. Penasa, que entre outras obras, escreveu um comentário em quatro volumes do Livro do Apocalipse.17

“Por outro lado, os olhos coloridos impedem ver claro nestas coisas, ofuscando a vista, estão constituídos pelo conceito filosófico muito unitário da natureza humana: isto é, o medo do dualismo de matéria e espírito, dos quais saíram respectivamente o corpo humano e a alma humana de cada indivíduo no momento da concepção. Tal fixação filosófica provém em grande parte da explicação de São Tomás, derivada de Aristóteles, e não da Santa Escritura, para a qual a alma é concebida como forma do corpo, como seu princípio intelectivo, como ato primeiro do corpo físico, orgânico (cf. S.T. I, 975-76). É

16 Biblioteca de Cultura Judaica, Vol IV, p 24 17 Citaremos sempre o segundo volume de sua obra, e colocaremos entre parênteses o número da página. O nome deste volume: P. Martino M. Penasa, Introduzione all’Apocalipse, 2º vol. Edição do Autor, Padova, 1988

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uma espécie de monofisismo antropológico, que se evita os extremos de Averroés e de Platão, não dá conta, porém, da atitude do homem diante de Deus e da atividade pedagógica de Deus em relação ao homem. São Tomás considera o corpo humano como coisa estranha à teologia.” (320) E de modo peremptório:

“Nestas coisas, São Tomás deve ser abandonado como Santo Agostinho na questão de Parusia.” (320)

Um exemplo desse “desvio” de considerar a fusão entre corpo e alma muito íntima, ocorre na interpretação de São Paulo, em que se interpreta “espírito” como o Espírito Santo e a “carne” como o egoísmo do homem.

“Ao contrário, São Paulo entende por “espírito” a substância espiritual do homem, como entidade por subsistente, ornada pela graça inserida em Cristo mediante a fé e a caridade, por obra do Espírito Santificador, destinada ao Paraíso, depois da separação do corpo, e da eventual purificação no Purgatório. “Por “carne” entende-se a substância corpórea do homem, feita de carne e ossos semelhantes a dos “animais”, orientadora de todo seu comportamento, para o bem-estar da vida atual no mundo cósmico em que nascer. E isto por efeito do pecado original.” (320) “Também, pela linguagem figurada à base de metonímia, a carne inclui também o princípio intelectivo de homem, a sua razão enquanto orientada para os bens terrenos. Nesse caso, a palavra “carne” indica o homem carnal, orientado para os bens “da carne”, como seu fim e sua fonte de felicidade. Trata-se da psique, em oposição ao espírito. O homem é feito de espírito, psique e corpo. E a psique é escrava dos sentidos e dos músculos.” (320)

Nota o P. Penasa que a crítica inflexível que se faz a essa concepção é de maniqueísmo e de angelismo. Seria maniqueísmo num dualismo de substâncias sem unidade substancial, o que não é o caso; seria angelismo se o corpo não pertencesse à natureza humana. Para resumir, antes de tratarmos do angelismo, o que resultaria é que a verdadeira luta interior do homem ficaria escamoteada, e não se poderia entender o Apocalipse: de um lado, a espiritualização do homem, pela ressurreição paulatina de sua alma, desde a morte até a primeira ressurreição (a da alma) a seu estado sobrenatural e a elevação do corpo de seu estado natural a sobrenatural, a segunda ressurreição (a do corpo), o Reino de Deus; do outro lado, a não ressurreição da alma (a morte primeira) e com isso a total animalização do homem, a morte segunda (corpo e alma no lago de fogo), o reino da besta.

Ora, a revelação do homem dá-se paulatinamente nas Escrituras, atingindo dimensões insuspeitas, principalmente na Carta aos Hebreus e no Apocalipse.

Além do famoso trecho em que Deus criou o homem à sua imagem e semelhança (Gn 1,27), o outro texto fundamental está no Salmo 8.

Assim comenta a Constituição Pastoral “Gaudium et Spes”:

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“Pois as Sagradas Escrituras ensinam que o homem foi criado à imagem de Deus”, capaz de conhecer e amar seu Criador, que o constitui senhor de todas as coisas terrenas (Gn 1,26, Sab 2, 23) para que as admirasse e usasse, glorificando a Deus (Eclo, 17, 3-10). “O que é o homem para dele vos lembrardes? Ou o que é o filho do homem para que vos ocupeis com ele? Entretanto, vós o fizeste pouco inferior aos anjos, coroando-o de honra e glória. Destes-lhe o poder sobre as obras de vossas mãos, Vós lhe submetestes toda a criação” (Sl 8, 5-7). (G.S 12).

Depois o trecho famoso do Evangelho:

“Na ressurreição, os homens não terão mulheres nem as mulheres maridos, mas serão como os anjos de Deus no céu” (Mt 22, 30).

Ora, na Epístola aos Hebreus, principalmente nos capítulos 1 e 2, revela-se uma surpreendente relação entre os homens e os anjos. Estes, criados naturalmente superiores ao homem, tendem a ser superados ou igualados, escatologicamente. Vejamos:

“Alguém em certa passagem afirmou: Que é o homem para que dele te lembres, ou o filho do homem, para que o visites? Por pouco tempo o colocaste inferior aos anjos; de glória e de honra o coroaste e sujeitaste a seus pés todas as coisas.” (Hb 2, 6-8) “Não são todos os anjos espíritos ao serviço de Deus que lhes confia missões para o bem daqueles que devem herdar a salvação.” (Hb 1, 14).

Note-se o “todos”.

“Não foi tampouco aos anjos que Deus submeteu o mundo vindouro, de que falamos”. (Hb 2, 5)

Aqui, alguns interpretam mundo vindouro como o mundo depois da Encarnação. No Apocalipse, o trecho em que o anjo considera-se conservo de João que queria reverenciá-lo:

“Mas ele me disse: “Não faças isto! Sou um servo como tu e teus irmãos, os profetas, e aqueles que guardam as palavras deste livro prosta-te diante de Deus”. (Ap 22, 9)

Mas o trecho mais estranho, e que é mal traduzido, é o que identifica a medida do homem com a do anjo:

“E mediu a muralha: cento e quarenta e quatro côvados, conforme a medida de homem que é de anjo. (Ap 21, 17). Em grego: ανθρωπου, о εστιυ αγγελου. Em latim: “mensura hominis, quae est angelis.”

A mencionada Constituição Pastoral “Gaudium et Spis” (22), num dos trechos mais polêmicos e de diferentes interpretações, mas bem nesta linha da Epístola aos Hebreus, afirma:

“Imagem de Deus invisível (Col 1, 15), Ele (Cristo) é o homem perfeito, que restituiu aos filhos de Adão a semelhança divina, deformada desde o primeiro

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pecado. Como a natureza humana foi “Ele assumida, não aniquilada, por isso mesmo também foi em nós elevada a uma dignidade sublime. Com efeito, por Sua encarnação, o Filho de Deus uniu-Se de algum modo a todo homem. Trabalhou com mãos humanas, pensou com inteligência humana, agiu com vontade humana, amou com coração humano. Nascida da Virgem Maria, tornou-Se verdadeiramente um de nós, semelhante a nós, em tudo, exceto no pecado.” (Hb 4, 15)

Não interpretando este trecho como indicando que todo ser humano é salvo, consistindo sua ascese na tomada de consciência dessa salvação, o trecho revela o sublime destino do homem, sua dignidade incomparável por unir-se de modo especial ao Filho de Deus, está vem na linha da espiritualização do cosmo material, não excluindo a perda de sua dignidade no reino da besta, pecado que então superaria o dos anjos caídos.

Terminamos esse tópico, notando que selecionamos alguns textos, principalmente os que mais se relacionam com nossa problemática. No entanto, o conjunto de textos concernentes às questões da alma e do homem uma visão unitária, já que se há grandes dificuldades para conceber a interação entre pensamento e extensão, entre espírito e matéria, entre corpo e alma, quanto mais uma concepção que compreenda o paralelismo entre cristologia e antropologia.

A criação da alma e sua infusão são simultâneas em relação a alma, pois a criação refere-se ao princípio e a infusão à carne em que é infundida (S.T. 1-2, 83, 1 ad 4). A tese de Orígenes que afirma que as almas foram criadas ao mesmo tempo e não antecede a do corpo. (S.T. 1, 118, 3)

Poderíamos concluir tentando descrever o paralelismo: O Verbo Eterno assume a natureza humana unindo-se hipostaticamente a ela, sem confusão de substâncias; a alma humana criada quando nasce o corpo animal assume a natureza animal unindo-se substancialmente a ele.

Fica então a questão calorosamente debatida na escolástica, se a alma informa a matéria prima ou se informa a matéria já revestida da forma da corporeidade.

VI. São Tomás Das obras de São Tomás, a questão está exposta principalmente na Suma Teológica (1, questões 75 e 76); nos Comentários de São Tomás ao “De Anima” de Aristóteles (Livro Segundo I e II) e ainda nas Quaestiones Disputatae: De Anima. Também não seria possível tratar, nem minimamente, toda a extensão e complexidades destes textos. Um famoso autor neo-tomista, Cornelio Fabro (1911-1995) escreveu um erudito tratado sobre o tema (L’Anima) 18 o que se nota nesta obra é que o autor considera, em síntese e com grande competência, todo o pensamento filosófico ocidental, mesmo aprofundando questões relativas à religião grega como o orfismo. Também são considerados os dados fundamentais da psicologia. Considera, é bem verdade, a psicologia

18 Cornelio Fabro

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bíblica e patrística, mas concede à psicologia bíblica apenas duas páginas (163 a 165). Parece então ter razão o P. Penasa, ao dizer que filósofos cristãos tiraram sua concepção de Aristóteles e não da Bíblia. O que Fabro faz é aplicar à Bíblia sua concepção aristotélico-tomista sem considerar a problemática. Para dar um paralelo, o célebre Etienne Gilson (1884-1978) em sua obra: Constantes philosophiques de l´être19, dedica seu Oitavo Capítulo, Yahweh e os gramáticos, a defender toda a filosofia tomista da exegese moderna do trecho Exo 3, 13-15 (Eu Sou Aquele que Sou) em que se procura cortar a passagem bíblica com a concepção do Ipsum Esse Subsistens. O que Gilson procura fazer não é mostrar que o texto tenha essa intenção, mas que de modo algum a exclua. Com o problema da alma deveria ser feito o mesmo, porque é em caso contrário, teríamos uma filosofia cristã sem fundamentos bíblicos.

Não há dúvida que São Tomás teve que manter a doutrina de Aristóteles, que era dominante em sua época, mas, como em outros casos procurou adaptá-la e cristianizá-la. Um exemplo está na questão em que os aristotélicos afirmavam que a alma é ato do corpo, com o que a alma não seria uma substância, mas uma simples modificação do corpo, como a matéria do vaso é sua forma. Vejamos o texto:

“Aristóteles não diz somente que a alma é “ato de do corpo”, mas que é “ato de um corpo físico, orgânico, que tem potencialmente vida”, e que tal potência “não exclui a alma”. Daí se vê que naquilo cuja alma é chamada ato, está também incluída a alma; do mesmo modo que dizemos que o valor é ato do corpo luminoso, não porque um corpo seja luminoso sem a luz, mas porque o luminoso é tal pela luz. E nesse sentido diz-se que “a alma é ato do corpo” etc., já que pela alma é corpo e é orgânico e tem vida em potência. Não obstante, o ato primeiro diz-se em potência em relação ao segundo, que é a operação. Pois tal potência não expele, isto é, não exclui de si a alma.” (S.T. 1 q 26 a 4 ad 1)

Essa contorção é feita para aparar as arestas do aristotelismo. Não é necessário considerar, porém um corpo com duas almas, mas um corpo, matéria e forma, e uma alma espiritual. São Tomas.

1. O homem interior é sua parte intelectiva, mas externamente considerado é sua parte sensitiva pelo corpo (S.T. 1, 75, 4, ad 1; 2-2, 25, 7c) e o específico de seu entendimento (ST 1-2, 317) A parte intelectiva é uma faculdade da alma não sendo portanto o homem interior sua alma. 2. Nenhuma criatura irracional é imagem de Deus nem feita à sua imagem (ST 1, 45, 7c). Com isso, a imagem de Deus seria constituída apenas pelas faculdades superiores: intelecto e vontade.

19 Em sua versão italiana: Costanti filosofiche dell’Essere

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3. Absolutamente falando, o anjo é uma imagem mais expressiva de Deus que o homem, mas relativamente falando, é o contrário (ST 1, 93, 3). A difícil relação entre anjos e homem é bem constatada.

Outro ponto interessante é que a alma racional recebe a existência de Deus no corpo e não antes (1 q 90 a 4).

Para as tendências platonistas no Cristianismo, a alma poderia ser criada quando o corpo surge, mas por assim dizer, um átimo fora do corpo e nele imediatamente infundido.

Não há necessidade de mais desdobramentos porque a posição de São Tomás é clara: no homem não pode haver outra alma que a racional, nem outra forma substancial e é impossível haver muitas almas num mesmo corpo.

VII. Conclusões 1. O levantamento de alguns textos fundamentais nos permite avaliar a importância

e complexidade da questão. Pode ser considerada a questão fundante e que permitiu o início da filosofia cristã. A sua especificidade estaria na concepção do homem a partir da cristologia e reciprocamente. Mas parece bem mais difícil manter o paralelismo do que se supõe. Tratando-se da unidade de dois princípios, pode-se exagerar a dualidade à custa da unidade ou da unidade à custa da unidade. Neste último caso, mesmo admitindo dois princípios, um deles acaba assimilando o outro, como no monofisismo, em que mesmo quando se admitem as duas naturezas a divina e a humana, uma delas absorve a outro: na antiguidade, a divina absorvendo a humana, hodiernamente, a humana escondendo a divina.

É fundamental comparar a antropologia filosófica cristã com a antropologia bíblica. O perigo é que muitas vezes o confronto não é entre a antropologia tomista e a bíblica, mas entre a tomista e pseudo-antropologias bíblicas, obtidas de pressupostos filosóficos, estes sim incompatíveis com a imagem bíblica.

Assim, em muitos casos estes pressupostos subjacentes permanecem implícitos. Não é difícil apontar os dois sistemas principais: empirismo e idealismo.

2. O grande número de sistemas demonstra com perplexidade a grande perplexidade do homem compreender-se a si mesmo.

Por isso, concentrar-se na imagem do homem revelada na Bíblia, pode ser norteador. 3. O símbolo atanasiano (ou pseudo-atanasiano) é essencial para a antropologia e

para a cristologia. Deveria, segundo nosso parecer, ser a cristologia a fundamentar a antropologia, e não o contrário.

4. Os concílios estabelecem as duas partes essenciais do homem, o corpo e a alma espiritual, bem como ser a alma espiritual a forma essencial do corpo. É preciso ficar nesse padrão. Pode-se, no entanto, admitir no corpo uma forma corpórea.

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5. A Sagrada Escritura, cujas hodiernas interpretações salientam a unidade, tendendo ao monismo, nos revela, principalmente na Epístola aos Hebreus (2)20 mostra que o ser do homem só se revelará no fim da história, já que a dimensão é vertiginosa. A comparação com os anjos é muito importante, ainda que a intenção principal seja evitar os abusos do culto angélico.

6. A questão que o P. Penasa coloca é São Tomás deve ser abandonado, claro que só nesse ponto, pois sua concepção aristotélica de homem, composto de matéria e forma não se adapta à concepção bíblica. Com isso, concepções filosóficas inserem-se nos dados bíblicos. Será que podemos considerar o homem externo como matéria e o homem interno como forma? Como interpretar este trecho de São Paulo:

“Esta é a razão por que não desfalecemos, mas ainda que se destrua em nós o homem exterior, todavia o interior se vai renovando de dia a dia.” (2 Cor 4, 16) Ou este outro texto, em que bem se retrata a luta entre o homem interior (alma) e o exterior (corpo)21: “Porque segundo o homem interior, tendo prazer na lei de Deus, mas sinto nos meus membros outra lei que repugna à lei do meu espírito, e que me faz cativo na lei do pecado que está nos meus membros. (Rm 7, 22, 23)

Deve-se observar que diante desses dados bíblicos, a posição de Duns Scotus, nesse caso, não parece tão descartável. Como a intenção desse artigo é colocar o problema, não vamos nos pronunciar. A moderna exegese bíblica, em geral nos dá, porém, uma imagem ainda mais monísta. Claro que se deve descartar o platonismo, em que a finalidade do homem é separar a sua alma do seu corpo. Aqui a alma não está substancialmente unida ao corpo, do qual se separa temporariamente na morte. Escatologicamente, então, ou ela se une a Deus espiritualizando corpo, ou se separa de Deus animalizando-se com o corpo. Não é, no entanto, nada fácil demonstrar a compatibilidade ou não da concepção tomista com a bíblica.

7. Concluímos que o tema central da reflexão filosófica, deve ser: “O que é o homem explicado pela Palavra de Deus.

Podemos estabelecer este quadro final. Excluindo as soluções monistas e as dualistas com união acidental, teríamos as dualistas com união substancial. Aqui podemos estabelecer a seguinte divisão:

1. duas substâncias incompletas interpenetrando-se; 2. duas substâncias completas substancialmente unidas sem fusão de substâncias

como a divindade e a humanidade de Cristo. O problema colocado é se o último

20 No início da Reforma houve publicações do Novo Testamento sem a Epístola de São Tiago, a Epístola de São Judas, a Epístola aos Hebreus, e inclusive do Apocalipse! O autor da carta ser São Paulo ou não (para o P. Penasa é o próprio) não deveria desvalorizá-la 21 Na religião chinesa antiga, o homem era constituído pelo corpo shēn 身, alma terrestre pò魄, e alma celeste hún 魂. Nessa concepção poética-simbólica, ao morrer, a alma celeste voltava ao Céu, unindo-se às dos antepassados, enquanto a terrestre acompanhava os destinos do corpo, ainda que constituída de matéria sutil. Essa concepção corresponde a de corpo (shēn) com sua forma corpórea (pò), unidos a alma espiritual (hún).

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caso pode ser concebido como matéria e forma, e em caso afirmativo se com a forma corpórea ou não. Ora, a tendência hoje é monista evolucionista e projeta-se na exegese bíblica numa espécie de monofisismo. Da definição aristotélica do homem como animal racional, teríamos a do homem com espírito(22) encarnado, não reencarnado, em que o corpo faz parte de sua natureza, do qual se separa na morte, provisoriamente, mas com o qual se une na ressurreição para sempre.

Bibliografia 1) AQUINO, Tomás – Comentario al “De Anima” Edizioni Abete, Roma, 1975

2) AQUINO, Tomás – Quaestiones Disputatae (2 vol). Marietti, Roma, 1949 3) AQUINO, Tomás – Suma Teológica. B.A.C., Madrid, 1960

4) BARBADO, Manuel. Estúdios psicológicos de Psicologia Experimental (3 vol). Instituto “Luis Viver” de Filosofia, Madrid, 1946

5) Compêndio do Vaticano II, Editora Vozes, Petrópolis, 2000 6) FABRO, Cornélio, L’Anima. Edivi, Roma, 2005.

6) FREUD, Sigmund – Abriss der Psychoanalyse – Fisher Bücherei, Frankfurt am Main, 1970

7) GILSON, Etienne – Costanti Filosofiche dell’Essere. Massimo, Milano, 1993 8) LIBERATORE, Matteo – Del Composto Umano. Cività Cattolica, Roma, 1862

9) LIVINGSTON, John – Materialistic Adventism, exposed and refuted. Wesleiyan Methodist Publishing House, New York, 1887.

10) MARTIN, Walter. The kingdom of of the Cults. Bethany House, Minneapolis, 2003 10) PENASA, Martino. Introduzione all’Apocalisse (4 vol) Edição do Autor, Padova, 1987

11) PRIESTLEY, Joseph – Disquisitions relating to Matter and Spirit, Calne, 1777. (Kessinger Puclishing’s Rare Prints. www.kessinger.net

12) ROSMINI, Antonio Serbati – Psychologie (3 vol). Perrin, Paris, 1888 13) ROTH CECIL – Enciclopédia Judaica. Editora Tradução, Rio de Janeiro, 1967

14) VENTURA, Gioacchino – La Tradizione e i Semi-pelagiani della Filosofia, ossia, il Semi-razionalismo svalato. Carlo Turati, Milano, 1857

22 Anjo não indica substância, mas função: o homem não é anjo, espírito puro.

Obs: todas as traduções são de nossa autoria.