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PASTORAL CARCERÁRIA NACIONAL Praça Clovis Bevilacqua, 351, cj. 501 01018-000 - São Paulo - SP Tel (11) 3101-9419 – [email protected] - www.carceraria.org.br DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DE DIREITO DO DEPARTAMENTO DE INQUÉRITOS POLICIAIS E POLÍCIA JUDICIÁRIA DA CAPITAL O Núcleo Especializado de Situação Carcerária da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, representado pelos Defensores Públicos infrafirmados, bem como a Coordenação da Pastoral Carcerária, por meio de seu representante subscrito, vêm, respeitosamente, à presença de Vossa Excelência, oferecer NOTITIA CRIMINIS A fim de que sejam apurados os fatos narrados, bem como em busca da responsabilização legal de seus autores. 1/13

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São Paulo, 28 de março de 2006

PASTORAL CARCERÁRIA NACIONAL

Praça Clovis Bevilacqua, 351, cj. 501

01018-000 - São Paulo - SP

Tel (11) 3101-9419 – [email protected] - www.carceraria.org.br

Defensoria Pública

DO ESTADO DE SÃO PAULO

EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DE DIREITO DO DEPARTAMENTO DE INQUÉRITOS POLICIAIS E POLÍCIA JUDICIÁRIA DA CAPITAL

O Núcleo Especializado de Situação Carcerária da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, representado pelos Defensores Públicos infrafirmados, bem como a Coordenação da Pastoral Carcerária, por meio de seu representante subscrito, vêm, respeitosamente, à presença de Vossa Excelência, oferecer

NOTITIA CRIMINIS

A fim de que sejam apurados os fatos narrados, bem como em busca da responsabilização legal de seus autores.

No dia 31 julho de 2012, entre 5h00 e 20h00, agentes penitenciárias lotadas na unidade prisional feminina de Tupi Paulista, uma delas de nome DENISE, teriam submetido as presas GILZA ALVES, matrícula 714429-8, EDNEIA MARIA CÂNDIDO, matrícula 757957, VANESSA DE OLIVEIRA PEREIRA, matrícula 722698, KELSILENE DOS SANTOS, matrícula 726865, ROGERIANA DA SILVA, matrícula 712959, ANDREA NOGUEIRA, matrícula 712801, as quais estavam sob sua guarda e poder, a intenso sofrimento físico e mental, como medida de caráter preventivo, conduta esta tipificada no artigo 1º, inciso II da Lei 9.455/1997.

Em visita pastoral à Penitenciária Feminina de Santana (PFS), no dia 04 de agosto do ano corrente, o advogado da Pastoral Carcerária, Dr. José de Jesus Filho, e a coordenadora pastoral, Heidi Ann Cerneka, perceberam que as presas Gilza e Edneia ostentavam suas mãos esquerdas enfaixadas.

Indagadas sobre o que havia ocorrido, as supostas vítimas relataram haver sofrido lesões em decorrência da forma como foram transportadas da peniteciária feminina de Tupi Paulista a São Paulo: algemadas nos pés e nas mãos e constantemente sacudidas por freadas bruscas ou manobras violentas. Segundo as presas, elas se encontravam em trânsito a fim de serem ouvidas pelo juízo da 28ª Vara Criminal da Capital.

Se não bastasse a forma violenta como foram conduzidas, tratadas como se fossem carga, por 15 horas foram privadas de alimentação e do direito de realizar suas necessidades mais básicas: urinar, defecar, tomar banho e ver a luz do sol.

Segundo as presas, a demora no tempo da viagem se deu em virtude das constantes paradas dos policiais e agentes penitenciárias para se alimentarem e ir ao banheiro, direitos reconhecidos a si mesmos mas não às supostas vítimas.

Diante as reclamações das presas, tanto os policiais quanto as agentes teriam lhes dirigido ameaças, inclusive a de borrifar aerosol de pimenta sobre elas.

Perguntadas se foi realizado qualquer encaminhamento ou exame médico, as supostas vítimas informaram que não, mas que estavam sendo “medicadas” por enfermeiras da PFS.

A Pastoral Carcerária entrou, então, em contato com o Núcleo Especializado de Situação Carcerária da Defensoria Pública, que passou a denúncia de tortura aos defensores públicos atuantes na 28ª Vara Criminal da Capital, Dra. Paula Hungria Aagaard, Dr. Eric Guilherme Ferreira de Carvalho, e Dr. Luciano Dal Sasso Masson.

Os Defensores Públicos, então, ouviram as presas, bem como tiraram as fotografias que ora instruem a presente petição.

Reduzidos a termos os depoimentos das presas, verifica-se que elas efetivamente foram submetidas a intenso sofrimento físico e mental, com emprego de violência, o que chegou a resultar lesões corporais significativas, além do evidente detrimento psicológico.

A vítima Gilza Alves narrou que foi colocada no carro de transporte de presos, fechado e sem ventilação adequada, para uma viagem que durou cerca de 15 horas.

Apesar de haver 06 (seis) presas no carro, os agentes colocaram apenas uma garrafa de água de 2 (dois) litros para todas.

Durante todo o trajeto, não foi fornecida qualquer alimentação.

Ainda, foram constrangidas a urinar e defecar em um saco de lixo.

Informou que as agentes ameaçavam constantemente “jogar spray de pimenta” nas vítimas.

Ainda, disse que todas foram algemadas nas mãos e nos pés, sendo que o motorista fazia manobras bruscas, o que fez com que ela sofresse contusão séria no pulso.

Por fim, disse que os agentes estacionavam o carro em locais com muita incidência solar, parando por oras e por diversas vezes.

Por conta da desidratação, da falta de alimentação e da dor intensa, a vítima desmaiou em sua chegada a São Paulo.

A vítima Kelsilene, igualmente, narrou que não foi disponibilizada alimentação ou água suficiente para as presas no trajeto de 15 horas.

Disse, ainda que, diante das reclamações, as agentes diziam, com escárnio, que precisavam parar para abastecer o carro, ou que o pneu havia furado, ou ainda que o carro estava quebrado.

Confirmou que as presas tinham que evacuar ou urinar em um saco de lixo, bem como que o calor era insuportável.

A vítima Ednéia confirmou todas as acusações. Informou ter presenciado quando as vítimas Vanessa e Gilza desmaiaram em decorrência dos maus tratos.

Por fim, Ednéia e Vanessa foram ouvidas, tendo dito que Vanessa sofreu fratura no braço esquerdo, por conta das manobras bruscas feitas intencionalmente e do fato de que ela estava algemada nas mãos e nos pés.

A vítima Rogeriana disse, além dos fatos narrados pelas demais vítimas, que durante o trajeto, apesar do calor infernal, todas foram obrigadas a permanecerem vestidas com um jaleco.

Por fim, a vítima Adriana confirmou integralmente a situação de tortura.

Diante dos fatos narrados, verifica-se ser clara a existência de indícios veementes da prática de tortura contra as vítimas.

A Lei Federal n. 8.653/1993 proíbe expressamente o transporte de presos nas condições descritas.

Ainda, A resolução n. 2, de 10 de junho de 2012, do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária do Ministério da Justiça dispõe ser proibido o transporte de presos em “condições que lhes causem sofrimentos físicos ou morais, sob pena de responsabilidade administrativa, civil e criminal”.

Ainda, o artigo 4º, parágrafo 1º, da mesma resolução dispõe a obrigação de fornecimento de água e alimentação suficiente, bem como o acesso a instalações sanitárias, o que, no caso, foi violado de forma patente.

Por fim, a lei n. 9.455/97,ao capitular o delito de tortura, assim estabelece:

Art. 1º Constitui crime de tortura:

II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.

Pena - reclusão, de dois a oito anos.

§ 1º Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal (g.n.)

O parágrafo 2º do mesmo artigo, ainda traz a forma omissiva do delito de tortura, imputada a quem tenha autoridade para evitar ou apurar o delito e não o faça: “Aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de evitá-las ou apurá-las, incorre na pena de detenção de um a quatro anos”.

A propósito, bom não olvidar que, conforme disposição do artigo 13 da Convenção das Nações Unidas Contra a Tortura, ratificada pelo Brasil em 1989:

Cada Estado Parte assegurará, a qualquer pessoa que alegue ter sido submetida a tortura em qualquer território sob sua jurisdição, o direito de apresentar queixa perante as autoridades competentes do referido Estado, que procederão imediatamente e com imparcialidade ao exame do seu caso. Serão tomadas medidas para assegurar a proteção dos queixosos e das testemunhas contra qualquer mau tratamento ou intimidação, em conseqüência da queixa apresentada ou do depoimento prestado.

Logo, de acordo com os fatos narrados, o delito de tortura parece plenamente verificado, ao menos para fins de instauração de procedimento para persecução penal.

Vejamos: as vítimas, pessoas presas e, portanto, sob a custódia do Estado e de agentes de segurança, foram submetidas a intenso sofrimento físico e mental pela prática de atos não previstos em lei e, aliás, proibidos nos termos da Lei n. 8.653/1993, regulamentada pela Resolução n. 2/2012 do CNPCP.

A utilização de algemas nos pés e nas mãos, as manobras bruscas, a privação de água e alimentos, as ameaças de utilização de “spray de pimenta”, a ausência de disponibilização de sanitário, o calor intenso, o escárnio e, por fim, as lesões corporais infligidas são fatos definitivamente não tolerados pela legislação vigente e, mesmo, sob a óptica do fundamento da dignidade da pessoa humana.

Logo, verificada a prática de delito, requer-se:

1 – Seja determinado imediatamente o encaminhamento das supostas vítimas para a realização do exame de corpo de delito;

2 – Seja requisitada a instauração de inquérito policial para a apuração dos fatos acima narrados;

3 – Seja requisitada perícia psicológica, a fim de aferir eventuais seqüelas do aludido crime de tortura, nos termos do “Manual para Investigação e Documentação Eficazes da Tortura e de outras Formas Cruéis, Desumanas ou Degradantes de Castigo ou Punição” (Protocolo de Istanbul);

4 – Oitiva judicial das vítimas;

5 – Sejam requisitadas da Administração Penitenciária informações acerca das agentes penitenciárias responsáveis pelo transporte e dos policiais militares que fizeram a escolta com as respectivas fotos para o devido reconhecimento pelas vítimas;

6 – Seja oficiado o Juízo responsável pela correição dos presídios a fim de promover a instauração de procedimento administrativo disciplinar, sem prejuízo da instauração de inquérito policial, a ser determinada por este juízo;

7 – Oitiva das testemunhas Heidi Ann Cerneka e José de Jesus Filho, cujo endereço se encontra no timbre da presente petição, bem como oitiva dos defensores públicos Dra. Paula Hungria Aagaard, Dr. Eric Guilherme Ferreira de Carvalho, e Dr. Luciano Dal Sasso Masson, a serem intimados por via da Defensoria Pública Geral do Estado de São Paulo.

Termos em que pedem deferimento.

São Paulo, 09 de agosto de 2012.

José de Jesus Filho

OABSP 215.217

Patrick Lemos Cacicedo

Defensor Público

Coordenação do Núcleo Especializado de Situação Carcerária

Bruno Shimizu

Defensor Público

Coordenação do Núcleo Especializado de Situação Carcerária

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