Só Os Anjos Morrem Cedo _ John Dekowes

191

description

“SÓ OS ANJOS MORREM CEDO”Reg.Bn: 219.906Para se ler “Só os Anjos Morrem Cedo” é preciso largar os preconceitos de lado e deixar a mente fluir despreocupadamente.

Transcript of Só Os Anjos Morrem Cedo _ John Dekowes

Copyright:© 2002 John Dekowes

Capa e Projeto Gráfico do Autor

Registro BN: 15.480

[email protected]

Para meus filhos

Pablo e Tatiana.Companheiros de viagem.

John Dekowes

Só os AnjosMorrem Cedo

(Ficção Científica)

�Procurar e aprendernão passa de recordar�

Platão

ÍNDICE

Prólogo.................................. 04Capítulo Um........................... 33Capítulo Dois......................... 43Capítulo Três......................... 64Capítulo Quatro..................... 71Capítulo Cinco....................... 83Capítulo Seis - Das possibilidades domilagre.............................. 105Capítulo Sete........................ 123Capítulo Oito........................ 130Capítulo Nove....................... 141Capítulo Dez......................... 157Capítulo Onze....................... 165Capítulo Doze - Final............. 181

3

O planeta Altÿon fica na 68ª zonadimensional, perto da 5ª dobra cíclicada Constelação de Azthyiram na Galá-xia de Andryöen, a oeste do quadranteY. Os altÿonianos pertencem a umaraça, com profundas raízes místicas ereligiosas. Vivem acima e abaixo deuma crosta metálica de cor dourada elisa, que envolve todo o seu mundo. Aparte externa adquire aspectos cromá-ticos, quando a luz da estrela Canno-phus atravessa o horizonte, e a im-pressão que se tem à distância é de

PRÓLOGO

4

Só os Anjos Morrem Cedo

uma imensa bola reluzente, espalhan-do raios de energias pelo cosmo. Ou-trora, uma grande camada de massa,matéria sólida e outros elementos com-postos e ferruginosos envolviam porcompleto todo o planeta, numa exten-são de quase 200 km de profundida-de; mas aos poucos, sob o efeito deum fenômeno gravitacional aconteci-do na 3ª Dobra Cíclica, e do empuxede um sol desconhecido, essa camadafoi se deteriorando, levada pelas vio-lentas tempestades de areias... E as-sim, os ventos das monções periódi-cas foram aos poucos remodelando aspaisagens e regiões inteiras.

O povo de altÿon foi obrigado aprocurar por lugares mais seguros paramorar, e sobreviver às longas e mor-tais tempestades; e partiram numa fugadesesperada para as profundezas doplaneta.

5

John Dekowes

Quando as perfuratrizes com suasbrocas de Cristalion esbarraram comaquela parede metálica, e se estilha-çaram em milhares de fragmentos, foiuma loucura generalizada. Nem os rai-os de Solidiuny, nem os feixes cartó-ginos de energia Trylium conseguiramcausar nenhum dano àquela barreiraintransponível. Num rastreamentoprospectivo daquela camada, desco-briram grandes crateras ocultas hápouca distância, e dali em diante, gran-de parte do povo, passou a viver nointerior do planeta, abaixo da crosta.Atualmente, vivem entre uma contur-bada e violenta batalha contra osmaharnóides, e o temor de ir ao en-contro de seus deuses em pecado; porisso carregam em seus bornais, sím-bolos sagrados de tempos remotos, nabusca da proteção divina, pois acredi-tam que para cada estado da alma,

Só os Anjos Morrem Cedo

6

exista uma entidade que com o seupoder e volubilidade, lhes ofereçamguarida e proteção. Os altÿonianos sãoseres humanóides, bípedes, de pelemuito fina e alva, possuem cabeçasgrandes e orelhas pequenas, muitodesproporcionais a seus corpos fran-zinos. Usam uma espécie de óculoscom visor cromático infravermelho,cujas hastes são fixadas para o interi-or do canal auditivo, e vêem atravésdele, numa simbiose de som e cor, quese fundem bioquimicamente, criandouma visão bastante aguçada e térmicados objetos.

Dividem-se em duas classes. Aque-les que praticam a arte da guerra atéas últimas conseqüências, e que vi-vem em sofisticadas construções emforma de agulhas, soldadas no exteri-or do planeta, como se não lhes res-tassem nenhuma perspectiva futura, a

John Dekowes

7

não ser morrer heroicamente numcampo de batalha, e os que conver-gem para um paradoxo filosófico; iso-lados nas profundezas do mundo, bus-cando no sentido da vida a razão desuas existências. Procuram numa rotaparalela, um objetivo mais sagrado,que é encontrar no universo seres evo-luídos, com os quais possam partilharsuas experiências sensoriais e extra-corpóreas, e conhecerem os anseios,desejos, medos e sentimentos de ou-tras civilizações, e assim, possibilitá-los enxergarem caminhos e descober-tas infinitas. Faziam essa prospecçãopelo cosmo por meio de ondas telepá-ticas.

Tudo corria muito bem, até que sedefrontaram com os maharnóides. Emprincípio, foi apenas um contato arre-dio, como se ambas as partes tives-

Só os Anjos Morrem Cedo

8

sem medindo forças. Depois, quandotentaram uma aproximação do modousual, os maharnóides ergueram umapoderosa barreira de energia psíquicadesconhecida, mas com áreas fracascomo um labirinto. Os altÿonianos fo-ram penetrando por aqueles caminhos,se aprofundando ingenuamente porcada atalho, e descobriram tardiamen-te, que na medida em que se aprofun-davam mais para o interior daquelabarreira, iam ficando enfraquecidos. Osque pressentiram a armadilha recua-ram a tempo, mas sofreram seqüelasmentais muito sérias; e as conseqü-ências foram desastrosas devido agrande perda dos Sábios e dos cien-tistas mestres. Uma grande onda derevolta cobriu o planeta Altÿon, e asclasses que viviam se digladiando in-ternamente juntaram forças para com-bater o inimigo comum.

John Dekowes

9

Os maharnóides são seres com es-trutura bio-luminescentes e se alimen-tam da mais pura energia cósmica. Pos-suem as mais variadas formas, mas, amais conhecida é a que apresenta si-metria irradiada. Quando viajam peloespaço sideral, são protegidos por ca-rapaças simétricas, como enormes ca-ravelas, que acomodam em seu interi-or milhões de criaturas, e quando che-gam a algum planeta, ou sistema, es-sas estruturas se desfazem e cadamaharnóide adquire a sua própria ca-racterística. Como seres superiores,vagam pelo universo infinito, e não sefixam em nenhum mundo, dimensãoou lugar. Atravessam o universo semnenhum impecilho, e quando chegama algum planeta ou constelação, seapropriam daquilo que considerammais importantes e partem, levando oconhecimento, as memórias, as lem-

Só os Anjos Morrem Cedo

10

branças... E o que resta geralmente,são seres transformados em autôma-tos e desmemoriados, que vão se ani-quilando até a destruição total. Repro-duzem-se misteriosamente, mas semultiplicam numa velocidade fantásti-ca.

Depois de um longo período debatalhas perdidas para os maharnói-des, os altÿonianos descobriram quepodiam combate-los, revestindo seuscrânios internos com um composto desubstâncias minerais, como silicato decálcio, alumínio e philione, uma resi-na liquida encontrada no subsolo doplaneta Altÿon. E conseguiram isso,através de um complexo processo deosmose, iniciado por meio de uma sim-biose visual e que finalizava no indu-tor auditivo cerebral. E durante mui-tos confrontos obtiveram resultadospositivos, e até conseguiram por um

John Dekowes

11

determinado tempo neutralizar a car-ga psíquica inimiga.

E assim, mantiveram-se agarradosa esperança de sucesso contra osmaharnóides. Mas o povo de Altÿonnão percebeu o que realmente aconte-cia; estavam completamente iludidose equivocados com as aparentes vitó-rias, que chegaram a pensar que man-teriam para sempre aquela proteção;ainda mais em se lidando com seresde inteligência muito superior. Mas, oque realmente se percebia, e eles nãoqueriam enxergar, era apenas um pro-longamento... Ou retardamento do fi-nal; pois os maharnóides mantinhamum cerco ferrenho e intransponívelsobre o planeta, sendo que a claridaderefletida no solo altÿoniano era forne-cida pela bio-luminiscência do próprioinimigo. E então aconteceu...

Os maharnóides se dispersaram cé-

Só os Anjos Morrem Cedo

12

leres para fora da órbita do planeta,como se tivessem cansados da luta,abandonando a presa, desistindo dabatalha... Permitiram assim, por algunsminutos, que jorrasse com toda a in-tensidade, o brilho fulgurante da es-trela Cannophus, sob a superfície... Eos altÿonianos viram o quanto seumundo era bonito... Sentiam tardia-mente, uma pontada de arrependimen-to, por abandonarem Altÿon em trocade uma aventura... Mas não tiverammuito tempo para ficarem se lastiman-do, pois logo começaram a chegar ou-tros maharnóides; só que esses erammaiores, e se agrupavam em diversosnúcleos mentais, e deles saíam hastesque eram cercadas por uma intrincá-veis teia geometricamente perfeita, epor elas corriam pequenas partículasde energias coloridas. E aos milhõesavançaram e penetraram pela 68ª zona

John Dekowes

13

dimensional, contornaram a 5ª DobraCíclica da Constelação de Azthyiram,na Galáxia de Andriöen e surgiram naatmosfera do planeta Altÿon, lançan-do centelhas elétricas por todos oslados. E cada habitante foi sentindosendo esvaziado de suas emoções esentimentos, sugados de suas energi-as, e seus corpos drenados de toda aessência vital... E apenas flashes dememórias foram restando de suas lem-branças, até um vazio sombrio e totaltomar conta... E nada mais.

***

Os que conseguiram escapar, seocultaram nos profundos pântanos frí-gidos de cristais líquidos, dos mun-dos internos, habitados por parasitasKylliux1, mas sabiam também que erapor pouco tempo; antes que um gru-

Só os Anjos Morrem Cedo

14

po avançado de maharnóides viessembusca-los. Mas, enquanto tal não acon-tecia, - e eles não entendiam o porquê-, iam fugir furtivamente pelas bre-chas espaciais, em pequenas e ligei-ras naves de assalto. O único proble-ma dessas espaçonaves eram de sócobrirem curtas distâncias. Permane-ciam dentro de um perímetro seguro,entre o local de ataque e próximos doapoio estratégico; a nave mãe. Só queno momento inexistia tal apoio, e senão fossem abastecidas a tempo, emalgum planeta, serviriam como seuspróprios túmulos! Contudo, ao se ar-rojarem no espaço, pressentiam queos deuses lhes favoreciam, lhes indi-cavam um caminho muito além das

1 Kylliux � Seres vegetantes que nascem, crescem e morremsem saírem do mesmo lugar. Vivem em imensas colônias queem determinado tempo, se entredevoram, num canibalismo in-sano, e do resto, renasce uma nova geração, que mais tarde,procederá da mesma maneira.

John Dekowes

15

estrelas, e por isso, confiantes, numarota cega, partiam pelo hiperespaçonuma velocidade hidroprossônica,através de fendas temporais e distor-ções dimensionais, numa fuga louca einsana. Quanto mais distantes estives-sem dos maharnóides, melhor seriamsuas vidas.

***

Aos milhares, num grande círculo,eles aguardavam pacientemente. Vá-rios tipos de maharnóides num cercointransponível; interligados a algumaforça ainda muito maior. E justamen-te, o espaço deixado entre eles semovimentou, e como uma bolha seinflou, e em seguida, estourou silenci-osamente, e do seu interior, abriu-seum portal cósmico de onde saíram aspequenas naves de assaltos altÿonia-

Só os Anjos Morrem Cedo

16

nas. E desta vez não havia mais comoescapar, nem como retroceder, poisassim que a abertura chegou ao máxi-mo, muitos maharnóides já estavamem seu interior impedindo qualquerfuga. Parecia que sabiam o que esta-vam fazendo. Poderiam ter eliminadotodos durante o ataque ao planeta, masnão, foram deixando espaços para quepudessem empreender fugas. Como seestivessem agindo dentro de um pla-nejamento bem organizado.

***

Vortlan era um típico guerreiro al-tÿoniano; passara por todos os pro-cessos osmótico com o indutor, apren-der a utilizar em separado, cada subs-tância em porcentagens que variavamde mínima à máxima, e aplicava o phi-lione puro diretamente no cérebro, que

John Dekowes

17

lhe dava uma visão mais ampliada euma agilidade de pensamento maisveloz. Mas isso tudo era somente paraconhecer um pouco mais sobre os se-gredos mentais do seu povo e se res-guardava, neutralizando qualquer sen-sação de medo. Como guerreiro nãosentia essa sensação, mas depois quecomeçara a desvendar os mistérios dosseus antepassados, descobrira outrossentimentos ocultos e muito estranhosà sua formação militar. Ter medo erabaixar a guarda para o inimigo, e elenão pretendia se entregar tão depres-sa. Depois de analisar toda a situaçãotinha de agir instintivamente comoaprendera; raciocínio ágil, lógica infa-lível e rapidez nas soluções. O seu pla-no era ir se afastando sorrateiramen-te, se isolando do grupo prisioneiro,até ousar uma fuga suicída. E, semmuito pensar, acionou os motores em

Só os Anjos Morrem Cedo

18

força total, chegando até limite máxi-mo, e numa arremetida louca sumiuno horizonte abrindo um túnel eletro-magnético tempestivo fractal.

Era uma armadilha! Ao pular paraa outra dimensão, um grupo de mahar-nóides já o esperava. Apavorou-se!Estavam em todos os lugares! Mas nãofreiou; acionou os motores auxiliarescom o resto de combustível, e proje-tou-se em velocidade hidroprossônicapara qualquer lugar à sua frente, pe-netrando novamente em outro túnelfractal; e através dos seus óculos, per-cebia apenas traços bio-luminescentespassando, e que se grudavam as suasvestes, procurando um caminho parainvadirem a sua mente. Com o poucoque lhe sobrava de lucidez, viu que osinstrumentos esquadrinhavam um pe-queno sistema solar mais adiante. Di-recionou a nave para aquele quadran-

John Dekowes

19

te, no instante em que o indutor audi-tivo cerebral recebia um impacto fortede luz, e adquiria uma tonalidade di-ferente. Pressentiu a sua mente ir sen-do dominada, percebeu ainda, numátimo de segundo, quando a nave, noautomático, não obedecendo ao planode órbita para adentrar na atmosferado planeta, se chocou num baque for-te e violento contra o seu campo gra-vitacional. Depois, um brilho intensocegou-o momentaneamente, e, em se-guida, um calor sufocante tomou con-ta da cabina. Sentiu a sua mente sedesprender do corpo num solavanco,de forma bastante dolorida e bastanteviolenta... Durante a explosão, perce-bera quando fora arremessado comoum projétil contra a superfície de umestranho mundo azulado.Viu quandominúsculos pontos foram se transfor-mando em imensas cadeias de monta-

Só os Anjos Morrem Cedo

20

nhas, vales verdejantes, massa líquidaazulada, depois os contornos marronse acinzentados de grandes construçõesfiletadas. Entrou em desespêro quan-do o solo se aproximou, e aguardousilenciosamente o momento de ser ab-sorvido... Viu um imenso prédio bran-co com luzes ofuscantes se interpondono seu caminho... E tudo se tornouescuro.

***

Vortlan estava confuso. Que lugarera aquele? Que escuridão era aquela?Jamais havia sentido aquela espécie desentimento. Uma presença constante alio incomodava. Se fosse um maharnói-de já teria sido identificado pela suaestranha luz, aliás, já estaria morto...Mas não estava. Continuava vivo. Suamente permanecia intacta. Uma sensa-

John Dekowes

21

ção esquisita brotava bem no seu in-terior. Não conseguia localizar ondeestaria o maharnóide?

Novamente aquela presença estra-nha se fazia presente, mas não se mos-trava. Emoções muito fortes eram pro-jetadas sem sua mente... Anseios, de-sejos... Uma voz surgia, depois ima-gens como num relâmpago, se mistu-ravam numa profusão e se fundiam...Via-se sendo arremetido no vazio, eum corpo vindo ao seu encontro, de-pois somente um silencio tortuoso.Sim, uma espécie de corpo lhe serviade amparo, mas precisava ir além docorpo. Precisava saber onde estava.Uma imagem de um lugar desconheci-do surgiu; em seguida, uma paisagemmuito confusa, uma estrada passou emgrande velocidade... E novamente aescuridão. Estava prisioneiro dentro dealguma coisa viva. Captava as memó-

Só os Anjos Morrem Cedo

22

rias e impressões de algum ser... Maso que acontecera? Onde estava? Ocu-pava um espaço... Pressentia algo muitoforte se aproximando... Não pode semover quando aqueles sentimentos,aquelas emoções se apropriaram da suavontade, e então compreendeu, quemesmo contra a sua vontade, não po-deria evitar que aquela força agisse abel prazer. Entretanto, devia ficar pre-parado, pois havia alguma coisa pron-ta para explodir como uma estrela, quechegando ao limite de sua expansão,tentasse revelar ao cosmo todo o seuesplendor... Mas estava prisioneira dasua própria luz fulgurante. Necessita-va desabafar... Começava a identificaras energias que fluíam ao seu redor.Não eram de maharnóides. Apesar detoda a confusão, algo profundamenteemocional se aproximava... Não eramdesconhecidas aquelas impressões. E

John Dekowes

23

como um ser que sondava o universoem busca de experiências sutis, deoutros povos, se sentia completamen-te subjugado; enclausurado dentro deum corpo que não lhe correspondia,mas lhe atendia nos mais ínfimos de-sejos, e lhe mostrava o que eram sen-sações, memórias, lembranças, ansei-os, revoltas, choros, risos e outrasemoções que lhe eram completamentedesconhecidas. E só podia ficar, escu-tar, sentir e sonhar... Desconheciaaquele modo dele agir.

Vortlan estava atônito. Tentavavasculhar com a mente algo que pu-desse identificar... Por um instante umaimensa claridade ofuscou-lhe as vis-tas... Conseguiu vislumbrar alem docorpo o que se passava; seres estra-nhos com mascaras brancas se agi-tando ao seu redor, mas tudo no maisprofundo silencio. Sentia-se como se

Só os Anjos Morrem Cedo

24

estivesse aprisionado dentro de umacápsula transparente. De vez em quan-do voltava a escuridão completa, e eleforçava a mente... E novamente podever quando pegaram aquele corpo quelhe servia de hospedeiro (?), e coloca-ram-no numa espécie de leito, e de-pois lhe encheram de tubos... Espeta-ram agulhas e puseram bandagensapertadas pelos braços e pernas.

Seus olhos fecharam-se de vez. No-vamente, aquela presença alienígenase fazia presente, mas não se mostra-va. Percebia uma emoção muito fortelhe invadindo. Sensações que não es-tava acostumado a sentir, anseios...Desejos... Lembranças desconheci-das... Memórias de fatos passados...Estava mais que confuso! Uma voz numidioma desconhecido começou a falar,dominando todo o seu ser. Depois ou-tras em tons mais suaves, chamavam-

John Dekowes

25

no por outro nome que não conhecia.Imagens passavam num relâmpago semisturando, numa profusão, e se fun-diam com as suas... Lembrava-se cla-ramente do seu mundo, do seu plane-ta, dos seus amigos, mas começava amisturar tudo... Sentia uma ligeira in-certeza se era realmente quem pensa-va ser... Em poucos minutos muitasdúvidas surgiram. As memórias quecaptava, as emoções que sentia, ossentimentos que se apropriavam da suavontade, não lhe pertenciam... Ou?

***Não, alguma coisa estava errada.

Sabia perfeitamente quem era, ou quefora. Possuía suas lembranças guar-dadas, contudo, algo mais acontecia.Devia deixar de ser intransigente, eproceder como lhe passaram os ensi-namento. Aprendera que o universo é

Só os Anjos Morrem Cedo

26

só energia, e que ela estava em todosos corpos cósmicos. E que tudo se fun-do num só elemento divino. Ao setransmutar em energia, devia abando-nar os vícios da mente e deixar-se le-var para se unir às grandes forças douniverso, que se fundiam numa inte-ração cósmica una. Ergueu uma barreira mental, comofazia para se defender dos maharnói-des, mas notou que instantes depois,era absorvida por uma força muito maispoderosa. Novamente, ergueu outramais forte, buscando neutralizar qual-quer pseudofonte de energia mista. Ese repetiu tudo de novo. A absorçãoda barreira e agora, o pressentimentoda aproximação de um ser. Ser? Seusolhos se abriram numa fenda mínima,mas ele pode ver, um ser de olhos la-crimejantes vir se aproximando. Numinsight se lembrou de Lúhlü. A sua face

John Dekowes

27

suave, meiga, mas amuada; seus olhoslacrimejantes, o calor das suas mãosacariciando o seu rosto... E depois aescuridão, e depois o silêncio profun-do, como se tudo houvesse acabado,terminado, concluído.

O que estava acontecendo? Nãopodia ficar ali para sempre sem sabero que se passava. Então, relaxou, aban-donou todos os seus temores e deixouacontecer... Vir o que haveria de vir...E foi sendo literalmente sorvido; ab-sorvido por uma energia muito viva,ativa e extasiante. Contudo, sofredo-ra, cheia de receios, de medos, de sen-timentos frágeis, mas com uma perso-nalidade marcante. Uma luz assimcomo uma voz surgiu na sua mente...

�Sou Halcen, tenho 38 anos, estounesse estado vegetativo há muito tem-po. Durante todo esses anos, tenhoorado aos céus, suplicado por alguma

Só os Anjos Morrem Cedo

28

coisa que acabasse com este meu so-frimento... Porém, não queria morrersem antes confessar os meus anseios,meus desejos, minhas revoltas... mi-nhas lembranças que ficaram para trás,e que vão se perder com o tempo...�.

Vortlan percebia que estava sendoincumbido de uma missão impossível.Não se sentia confortável diante aque-la situação! Não podia se responsabili-zar daquela maneira com aquele Serque tinha um tempo/espaço muito su-til. Morrer com apenas 38 anos! A suavida não durava nem um segundo di-ante às possibilidades infinitas do uni-verso. Um período muito curto. Issolhe deixava completamente indefeso eperdido... O que existiria dentro de umalienígena daquela espécie? Precisavater muita precaução a esse respeito.Todo cuidado era pouco diante umacriatura que nem imaginava como se-

John Dekowes

29

ria. Também podia ser uma armadilha.Duvidava disso. A sua situação eramuito delicada. Quando os maharnói-des o descobrissem estaria em apu-ros, seria completamente eliminado! Eainda mais, a sua mente não fora tra-balhada e preparada para receber taistarefas. O seu pensamento lógico eraincompatível com as razões sentimen-tais; sempre impulsionado pela prati-cidade dos cálculos estratégicos deguerra... Não queria assumir algo queestava muito além do seu conhecimen-to, e que não podia suportar. Lutarcontra os maharnóides era circunstan-cial; absorver a mente de outro serimpunemente, era uma invasão amo-ral. Era transcender a liberdade depensamento... Mas por outro lado, asua condição de um intruso dentrodaquele corpo também não lhe permi-tia muitas escolhas, nem recusas... Se

Só os Anjos Morrem Cedo

30

quisesse manter-se oculto, precisavaser solidário, e o hospedeiro buscava asua ajuda...A ironia era ser o hospe-deiro dentro do seu próprio hóspede!

Cedeu a realidade dos fatos, e abai-xou a sua guarda. Então sentiu a fusãode suas mentes no mundo cósmico: eo humano alienígena começava a lherepassar seus valores, suas emoções,seus lamentos, seus desejos mais ínti-mos, seus sentimentos mais profun-dos para o outro alienígena se dispordeles como melhor lhe conviesse, ecumprisse assim a sua missão...

...Uma enxurrada de imagens sur-gia na sua mente, como se as estives-se vendo nas telas de um Visiocrons.Toda a vida daquela entidade era mos-trada ali como se estivessem sendoescritas com tinta Cyryl, e gravadas emsua mente alienígena da maneira maisrude que podia existir... Páginas e mais

John Dekowes

31

páginas surgiam numa leitura silenci-osa, e num idioma de caracteres des-conhecidos, mas que eram interpreta-dos de forma bem sintomática.

Só os Anjos Morrem Cedo

32

�O princípio é como um sonho. Mascomo todo sonho é passageiro, existeuma infinidade de começos. E um iní-cio não pode ser obliterado por causade mentes tacanhas, por mentes atra-sadas, por mentes perturbadas, pormentes insensíveis, por mentes desin-formadas, por mentes imbecis, pormentes calhordas e obtusas. E no prin-cipio era o caos. E depois de toda amixórdia formou-se o Belo Amorfo.Depois nasceram os homens em bus-ca dos sonhos e ilusões futuras.

CAPITULO UM

John Dekowes

33

Mas o sonho é como uma buscaconstante dos vendavais em verdespastagens, onde o sol é apenas o re-flexo dos caminhos escondidos dos so-nhos e ilusões futuras.

E quando o homem se esquece dasua natureza, tende para o absurdo.Ao longe, em seus desvarios, apelasempre para a inconstância permanentede nunca ser coeso com sua imagem esemelhança, mesmo quando se olhano espelho. E difícil é solicitar ajudado próximo, quando o mesmo estáimpossibilitado de desvendar seus pró-prios sonhos e constantemente, commedo de superar sua própria resistên-cia.

E o medo é o elo permanente en-tre a vida e a morte. Em si, a vida jáleva muitas vantagens sobre a morte;independente do ângulo em que sepercebe a observação. A vida é como

Só os Anjos Morrem Cedo

34

um rio que corre... Mas em mar aber-to, as águas se fundem, se entrela-çam, se mesclam, se confundem de-sabrochando em desejos inconfessá-veis, e no fim, depois de infinitas revi-ravoltas, tornam ao ponto de partida...Indubitavelmente, há explicações, háimplicações, metafísicas... Mas estoupouco me importando de que lado é amargem do rio. Quando se lança umapedra à distância, dependendo do ven-to, ela pode voltar a nossa cabeça. Aminha preocupação é tão grande emortal, que chego a verter lágrimas acântaro.

E por falar em morte, quando co-meçamos a pensar na dita figura, ob-servamos o desgaste de idéias, a queela irremediavelmente nos arremete,e percebemos que não tem cura, nãotem solução. É o nosso eterno conflitoexistencial...

John Dekowes

35

E uma coisa leva a outra, afinal, étudo uma questão de oportunidade. Écomo o piscar de olhos... O cego de-veria ser muito feliz... E, no entanto,vive querendo ver... Se vir, enxergar,olhar fosse a coisa mais importante domundo, o homem não procuraria seocultar na sombra. A vida ou a morte éassim mesmo. Quanto mais nos ocul-tamos, mais estamos próximos da re-alidade, e não adianta discordar dosfatos; se bem que discordar faz partedo cotidiano. O homem vive para dis-cordar. Quando não discorda, estámorto, enterrado e sepultado.

Mas pernicioso e inconseqüente éo vagido derradeiro da gota de orva-lho, quando o sol vem surgindo à les-te de qualquer lugar. Cheio de tensão,nervos à flor da pele, estrídulo e dis-tonal. Assim como o homem quandoretorna ao lar após um dia de trabalho

Só os Anjos Morrem Cedo

36

estafante. Reconfortante e salutar é umbanho fresco, depois sentar nos pen-samentos e sonhar... Sonhar com so-nhos e quimeras...

...Mas o sonho nunca acabou... In-felizmente ou felizmente, a realidade éuma fábrica de monstruosas e assus-tadoras fantasias. E aterradoras são asnoites mal dormidas, quando saímosem busca de nós mesmos, e só encon-tramos sombras amorfas noite aden-tro, perambulando feito calças balan-çando ao sabor do vento, penduradasnos varais da inconsciência. Mas o so-nho preocupa, machuca, dói como umpeso na consciência.

A inconstância da dor alivia a em-briaguez dos caprichos de mulher malamada, quando partem pelo mundoafora em busca de prazeres e orgas-mos belicosos. E quando sentem o san-gue virginal macular o lençol, choram

John Dekowes

37

feito donzelas remidas no colo da con-cupiscência. E depois descobrem, en-vergonhadas, que tudo não passou deum ciclo menstrual impróprio.

Não se pode deitar perfume nossonhos, pois volátil é o prazer sentidoem cada devaneio. Quando o ventosussurra nos ouvidos capciosos incon-fessáveis promessas, o vazio se pre-enche de vontades contumaz. E a tris-teza habita os olhos da gazela perdi-da... E o encontro tão esperado trans-forma-se em onírico pesadelo, e sóresta o silêncio dos lábios gélidos dasestátuas abandonadas, desamparadas,vadias e sôfregas nos jardins rotos dotempo.

E a necessidade constrói castelosde areia durante as noites mal dormi-das, e no êxtase de sucumbir aos des-velos da solidão, faz com que se per-cam os ideais pictóricos. E quando vem

38

Só os Anjos Morrem Cedo

o dia, majestoso e fugaz, a alegria semanifesta outra vez... E surge nova-mente o desejo, a ganância, a psicose,o prazer de possuir outra vez as expe-riências passadas. Contudo, nunca foipreciso navegar contra a maré, pois arazão não nos possibilita criar crocodi-los em perdidas esperanças... E nuncaé tarde para matar as saudades, quan-do as lembranças não podem ser es-quecidas. Mas velejar contra a maresiafaz do homem uma caixa de cimento...E o peso da idade, enobrece as horaspassadas no labor renhido, dos braçoscansados, de tanto pensar na busca dasaudade.

E os olhos gratinados de lágrimasdespertam para um desjejum insípido,frugal e cruel.

Louco é patinar em areias movedi-ças, quando não se tem a certeza dascoisas, e o esperto usa a criatividade

39

John Dekowes

para aplacar seu desejo; usa a criati-vidade da paixão para sublimar as de-lícias de um tresloucado desejo depossuir os sonhos, e as loucuras in-termediárias, entre a solidão e o apri-sionamento da lucidez, depois sai portaa fora imprimindo um sorriso de satis-fação néscia, e transforma o corpo numlupanar de sensações inconfessáveis.

E a descoberta do princípio indis-soluto é que faz com que chuva nãomacule o sonho dos noctívagos. E du-rante a noite, quando apenas o ho-mem sonha e desperta, é que surge anecessidade intrínseca de coabitar omundo selvagem em que vive, parapoder existir em paz, e em harmoniacom os votivos, inebriados com as sa-ídas mentirosas em deflexão das libé-lulas, esvoaçando pelas estrelas no-turnas perdidas em brilhos estéreis.Doce seria pernoitar entre seus braços

40

Só os Anjos Morrem Cedo

e esquecer que lá fora, desvairado, nasaudade do seu olhar, no esquecimentodo seu suspiro, e na sua solidão da suavoz, eu me perco consoante a sua som-bra que passa, e não quero sucumbirjamais aos desenganos tardios do �pol-tergeister�, que rebusca a sua imagemem rostos que passam rápidos, comoum relâmpago da eternidade, no brilhodos seus passos.

Queria inundar o seu ventre de es-trelas cadentes, e transformar o seu sernuma aurora boreal; mas o meu desejoé fremente, e osculo a luz que afaga asua imagem como um mágico que rea-liza o milagre do impossível em buscada perfeição.

***

41

John Dekowes

Vortlan estava confuso. Milhões deimagens desconexas invadiam a suaforma de pensar. Emoções estranhaslhe causavam um certo desconforto, enão havia nenhuma lógica. Era comose a sua alma se arremetesse no vazioinfinito sem alcançar nenhum objeti-vo, nenhum porto seguro... Uma ava-lanche se aproximava... Aquela almaalienígena lhe perturbava.

42

Só os Anjos Morrem Cedo

E o tempo enclausura o homem noseu próprio espaço. E quando se falaem tempo/espaço, divagamos na in-compreensão das intempéries cósmi-cas do insofismável vir-a-ser. Ocasio-nalmente, o homem se dependura namurada de sua inconsciência, e se perdeem lembranças. Quando pode, ilusio-na sua estadia em albergues solitári-os, mas quando se encontra aprisio-nado, vendo sua auto-imagem refleti-da no espelho, grita, berra, esperneiaaté voltar à realidade, e o tempo de-

CAPITULO DOIS

43

John Dekowes

sencadeia uma tempestade de memó-rias e lembranças passadas nos bra-ços do silêncio. É como querer pegaruma galinha e ela escapa-lhe das mãos,para precipitar-se atônita no espaçoreduzido de sua consciência. Diz-seque um elefante ocupa muito espaço.Imaginamos que a amplitude, latitudee longitude desse imenso animal, cujocorpo se nos oferece como modelo,caiba dentro do nosso pensamento...Interessante é pensar que transforma-mos toda idéia, fatos, ou coisas de di-mensões desproporcionais em minús-culas partículas de conhecimentos, eas projetamos em nós como últimorecurso.

O louco não concebe o seu tama-nho até ver a proporção da sua som-bra, e o homem não percebe a suagrandeza até observar o Universo, de-pois sai em busca de esclarecimento,

44

Só os Anjos Morrem Cedo

e torna-se pequeno, na medida em quevai descobrindo suas raízes. E via deregra, volta ao passado. Como eu, quebusco insandecidamente o futuro dosmeus passos, e me perco nos jardinsdas delícias, em cada esquina que tom-bo para além da minha imaginação.Sinto o coração palpitar, e meus dedossaltitantes e caritativos, buscando con-solos nos corpos estremecidos das do-ces virgens que nunca se orgasmaram,nem chegaram ao ápice de um gôzoestremecido de desejos lascivos e con-cupiscentes.

Mas eu te busco nas retortas espa-ciais, nos desencontros da vida, e an-seio estar com você, uma nesga de umátimo de tempo. Só me resta esse va-zio eqüidistante de nossos corpos quese tocam, se falam, mas se afastam deum comprometimento eterno. E os nos-sos olhos se encontram... Busco uma

45

John Dekowes

réstia de luz que nos ilumine em nos-sos encontros furtivos, e de repente,saio porta adentro na busca de beijoscarnívoros que me façam viver o oni-presente de sua vida.

Mas doce é caminhar entre espi-nhos, sabendo que se está usando sa-patos de segurança, com biqueiras deaço e tudo mais. É tão fácil ser sutilquando se está com a razão. Difícil éencarar a vida quando se está com acorda no pescoço. E geralmente, osheróis morrem covardemente em bus-ca de ideais sutis, enquanto que oscovardes se glorificam por serem per-severantes e coesos com suas realida-des. Às vezes eu me pergunto se opeixe voador sabe que está cometen-do suicídio quando esvoaça feito gai-vota por cima d�água? Serão os heróistão covardes a ponto de cederem suasvidas por causas justas? Ou serão os

46

Só os Anjos Morrem Cedo

covardes, os heróis por perpetuaremsua estirpe, e organizarem o time emcampo, não entregando a bola ao ini-migo, que apesar de inimigo, é tam-bém herói e covarde?

Porque o herói nunca dorme direi-to? Insônia? Indigestão? Será porquevive a espera de fazer um ato bravio eentrar para a história? O homem quan-do defende seus direitos, sua casa, seutrabalho, seus filhos, seus vícios, suasamantes, seu direito de defecar em paz,seu ir e vir, também é um herói; mes-mo quando às vezes, ele peca por de-sejar a mulher do próximo. E já não sepraticam mais atos de heroísmos comoantigamente. E, mesmo nos tempos davovó, bravura era passar por baixo deuma figueira à meia noite, ou dar umafacada numa bananeira à mesma hora,ou então cruzar o cemitério e ir ao cru-zeiro em alta hora. E o que mais...?

47

John Dekowes

E o covarde, tão deselegante, mal-trapilho, chafurdado na lama, escor-raçado pela plebe ignara, vandalizadopela sociedade é um incompreendido.Mísero mortal que não se descartou davida por uma causa nobre e justa, masaté quando uma causa é nobre e justa,a ponto de se oferecer em sacrifício? Ea justiça divina? Que o Senhor, na suainfinita bondade, se apiede de nossasoblações, de nossos medos e dos te-mores latentes em todos nós.

E o sonho não finda com o abrirdos olhos. Cada encontro é como umaquimera repleta de ejaculações preco-ces debaixo do tapete da sala. Cadaresquício de estrela rebuscado no fun-do da memória é como se sentisse pra-zer, volúpia da própria dor, ao entrarem êxtase. E não é masoquismo... Éapenas o desejo perene de sentir odesejo desejado até o orgasmo exis-

48

Só os Anjos Morrem Cedo

tencial. E seria até loucura venial, senós não sonhássemos que temos tudo.Terrível é permanecer na escuridãoapascentando ovelhas, enquanto o lobomal palita os dentes com os ossos danovilha desgarrada. Mas quando mevejo só, na solidão da noite, meus pen-samentos se entredevoram; pecam-se,se tornam lascivos, pecaminosos e onis-cientes da minha carnalidade, então,carnívoros, se alimentam das minhasidéias, minhas memórias, minhas ilu-sões, minhas quimeras, minhas letar-gias, minhas agonias, minhas glórias,minhas fracassadas vitórias, minhaslembranças...

E o que seria do sonho, se não fos-se o apagar das luzes, que refletem anossa imagem no picadeiro indecenteda vida? Ilusões à parte, é difícil so-nhar quando se está endividado. É di-fícil sonhar quando se está amando. E

49

John Dekowes

difícil sonhar quando se está à beirado abismo. E, por mais que queiramossentir a sensação de uma noite bemdormida, nunca conseguimos lembrardo que sonhamos. E a sorte passa deraspão, com números mirabolantes, edepois somente o esquecimento.

Amar é participar do sonho. Qui-sera sonhar com você, transformandoo seu corpo num quasar, e me envol-vendo de energia e gozos deleitosos.Sonhar com você, beijar seus lábiosvoluptuosos e carentes, até descobrirquantas cáries você tem na boca. Masisso não importa. Transbordando dedesejos, de ansejos, de vontade loucade comer, sugaria até os farelos de pão,ou os resquícios de comida dos seuslábios, e idolatraria seus cabelos porocultarem petiscos apetitosos para ashoras ensossas.

50

Só os Anjos Morrem Cedo

Perdoa, meu amor, mas a fome étanta, que misturo poesia com feijão. Evocê, minha vida, é o prato principal.

Anoitece. E quando a noite vemchegando devagar, com esses horáriosdesencontrados de verão, eu me percofalando futilidades e amenidades, poisé necessário falar besteiras, babosei-ras e jogar conversa fora para se apu-rar o raciocínio crítico. O homem é umlouco, um doido varrido quando nãofaz uma doidice ou alivia a sua tensãoem algo tão absurdo, que até Deus põeem dúvida a sua criação. Se ele nãoexplodir de alguma maneira, se ele nãofizer alguma coisa que o desvie umpouco da sua rotina, ele enlouquece. Énecessária uma reflexão... E eu me sintonum mato sem cachorro.

A inteligência inibe os valores. Aburrice adultera e menospreza os cál-

51

John Dekowes

culos. A sensatez refuta o dom de con-ceber a criação. Por isso, o homem secorrompe, estupra a sua consciência,violenta sua vontade e sevicia a suarazão de ser. Porquê? Por que sim-plesmente ele não extravasa a sua ten-são num beijo, num abraço, num afa-go, num carinho. Mas quando o faz,beija beijando, ama amando, abraçaabraçando, afaga afagando e olhaolhando.

Contudo, não se fazem mais ho-mens como nos idos de antigamente,e nem antigamente se faziam homenscomo hoje, e nem nunca se fizeramhomens nem mulheres como hoje, nemontem nem antigamente, nem nunca-mente! Comparar homens e mulheresnão leva a nada; nem se chega a con-clusão nenhuma... É puro desperdíciode tempo!

Mas suave é permanecer ao seu52

Só os Anjos Morrem Cedo

redor, embriagado pelo seu perfume, eesperar as horas passarem num lam-pejo.

Às vezes me pergunto: o que dóimais, uma facada no peito ou um cora-ção partido? Acredito que nenhum nemoutro. Ambos se cicatrizam com o tem-po. A ferida se fecha em si, esconden-do toda dor e mistério. E enclausuradano silêncio, a mágoa se rende a pres-são do cotidiano e se esquece no fun-do da alma. E assim, passam-se os diasvão-se as noites frias, longas e impie-dosas. Voam-se os meses, os sonhosse volatizam. E os mendigos se acoto-velam debaixo das pontes, esfomea-dos, buscam nos lixos pedras de bri-lhantes para saciarem a sede, e brigamentre si pelos restos de caviar. Soço-bram esperanças. E depois, dos meio-fios da vida, mergulham desatinadossob as rodas de um carro, buscando

53

John Dekowes

refúgio no espírito.E o que dói mais?Dói saber que não se é mais ama-

do, dói saber que o romance acabou,dói saber que tudo não passou de umlêdo engano, dói descobrir que o amornasceu prematuro, dói revelar-se e sero ridículo no picadeiro, dói amar umcoração frio de esperanças, dói terlembranças e sabê-las em vão.

Insondáveis são os mistérios davida, mesmo quando não estamos nemaí para os acontecimentos. E, quandoapenas pretendemos viver a nossa vidaisoladamente, os desígnios do acasonos espreitam pelos caminhos, pelassombras, pelas brechas do tempo/es-paço do pensamento, e num arroubode surprêsa, nos projeta contra os fa-tos. Então, passamos a entender queviver é participar da vida, revoltadosou não; tudo o que supomos ser vital

54

Só os Anjos Morrem Cedo

para a gente, não passa de meros de-talhes para o nosso destino, e assim, oreal e o imaginário passam a convivercom o nosso cotidiano, sem estabele-cer regras nem normas. O real deixade ser real quando se torna imaginá-rio, e o imaginário deixa de ser imagi-nário quando se torna real. Mas quan-do o real é imaginário e o imaginário éreal? Como viver em realidade, quan-do tudo o que pensamos é imaginário?O que determina o imaginário quantorealidade, e o que predispõe o realquando é imaginário? Linhas tênues eilusórias superam todo o conceito, eparalelas em pontos de fuga, fazem-nos crer que apesar de tudo, os senti-mentos são reais e imaginários...

São reais quando afetam nossasvidas, transformando nossas emoçõesem cascalhos paranóicos e fragmentospsicóticos na busca do ego ferido? Ou

55

John Dekowes

são imaginários quando descobrimosque perdemos a noção do tempo ten-tando desvendar o que nunca passoude mero acaso?

Mas estar entre o real e o imaginá-rio, prefiro ficar pensando que tudoacontece por uma razão de ser. O ima-ginário antecipa o real, e o real, bem...O real é uma faca de dois gumes, to-talmente enferrujada, que se enterradiariamente nos sonhos de todos nós.

Contudo, real é o sentimento queantecede ao delírio de amor. Nada maistriste do que imaginarmos a realidadedas emoções passadas, e buscarmosno imaginário, situações acomodadase felizes para cada momento, mesmoquando não os foram. E buscar res-postas em memórias e lembrançaspassadas lanceta o coração de manei-ra fria e ríspida. O imaginário é conce-

56

Só os Anjos Morrem Cedo

ber sonhos felizes e romances espeta-culares, e o real é acordar e não ternada o que comer, e estar completa-mente sozinho, sem um amor, sem umapaixão, sem uma vida a dois, sem nin-guém...

Mas nem tudo na vida é um mar derosas... A lama também é monazítica efaz com que o homem, ou nós, relesmortais possamos ter compaixão de nósmesmos e dos outros... E me perguntosempre. As nossas relações, os nossosencontros são reais ou imaginários? Éimaginário quando apenas permanecemno campo dos encontros ou são reaisquando se transformam em emoções?

Há duas respostas. Um sentimentoé imaginário e o outro é real. O queinicia o relacionamento tem a realida-de objetiva em mente, e o que recebe,aceita o imaginário como princípio, atése tornarem cristalinas as intenções ora

57

John Dekowes

equivocadas. As emoções se funda-mentalizam em conceitos onde ape-nas o �sentir� se transforma em algoreal. Logo o amor não é coisa tangí-vel, é imaginário; mas que podemosfazer acontecer no real quando menosse espera. O que posso dizer? É o ver-dadeiro milagre da vida. E concluímosque a essência do amor está realmen-te no imaginário e nos fundamentosdo real.

O gostar, o se apaixonar, o amar...São partes de uma equação ambíguaassim como o odiar e o detestar. Separarmos para pensar, tudo em nossavida faz parte de um verdadeiro com-plô divino. O Senhor fez o homem,deu-lhe o imaginário e disse: Vai aFaça! Até aí ele (o homem) continuoupastando. Ir para onde? Fazer o quê?Quando? Porquê? Como? Acho quedepois deste questionamento constran-

58

Só os Anjos Morrem Cedo

gedor, o homem foi largado no mundopara descobrir sozinho de onde veio,para onde vai, como irá para tal lugar,como irá chegar lá, e porque está indopara não sei onde, e terminando os seusdias em lugar nenhum...

Fico pensando se devo chorar oucair na gargalhada amanhã. O fato é:até quando podemos resistir ao amor eao ódio? O quanto podemos suportaros sentimentos e as emoções? Somosfortes o bastante para agüentarmospacificamente as tragédias da vida?Possuímos amor o suficiente para nosapaixonarmos num desprendimentoaltruístico? Podemos dizer que somospessoas de bem, que não somos ego-ístas, que rezamos para o próximo,todos os dias, que oramos, que con-fessamos, que damos esmolas, quefazemos caridade, que amamos todomundo, que estamos sempre felizes,

59

John Dekowes

que não fazermos mal aos animais, quenão fazemos uma porção de coisas...Nós podemos acreditar quando dize-mos isso tudo do fundo do coração?Mas será realmente verdade? Entre fi-car olhando para cada um, prefiro con-tar estrelas... Mas aí me questiono.Aquela estrela que estou olhando, estalá em cima mesmo, ou é apenas a sualuz? E o real e o imaginário me fusti-gam numa comoção enlouquecedora,cheia de imaginação real. Afinal, eume pergunto: quando sou real e quan-do sou imaginário? O quanto sou reale o quanto sou imaginário? No real, háuma determinação do espaço/tempo.Toda a natureza, todos os seres do maisínfimo ao maior e mais poderoso daTerra, tem seus dias contados a partirdo nascimento. Tudo termina num lap-so de tempo, tudo se esvai como asgotas de orvalho, tudo perece como

60

Só os Anjos Morrem Cedo

as folhas de outono, tudo se extinguede forma abrupta e inconseqüente e,tudo num abrir e fechar de olhos setransforma em nada. Volta à estaca zero!E a vida gira ao redor do que é real eimaginário.

No imaginário tudo transcende àcatarse das emoções do real. O sonhofinito se torna imortal, e o pensamentosobrepuja os sentimentos mais pueris.Num abrir e fechar de olhos as ilusõesse eternizam na mente em busca desocorro, e se esfacelam contra as se-qüelas do passado. Viver o imaginárioé buscar sempre alternativas de sobre-vivências nas reentrâncias da paixãodo que é real.

Em que mundo, em que universoeu vivo?

Quando olho para o céu e observoas estrelas, imagino que você tambémdeve olhar para elas. Mas será que os

61

John Dekowes

seus pensamentos compactuam comos meus? Será que ao olhar aquelaimensidão, você pensa em mim? Nosmomentos em que passamos imagi-nando outros mundos, outros plane-tas... É bem difícil... Difícil é pensarem mim. Difícil é se lembrar de mim!Será que ainda se lembra que existo?Muito pouco provável... Provavelmen-te, não sou nem lembrança... Quiçáuma poeira cósmica.

Se cada estrela que brilha no fir-mamento é uma réstia de esperançaem cada coração, todas as vezes queolho para aquele céu estrelado, vejoque nem tudo está perdido... Cada vezmais, percebo que ainda existem pes-soas que acreditam na possibilidadedo milagre...

Céus! Em que mundo, em que uni-verso eu vivo?

62

Só os Anjos Morrem Cedo

***

Vortlan estava impaciente. Se osmaharnóides dominassem aquele pla-neta com certeza fundiriam suas men-tes com tantas interrogações, antes deaniquilarem por completo o sistema.Se aquela entidade que lhe passavatodas aquelas emoções, era realmenteum habitante daquele mundo, existi-am dúvidas e incertezas terríveis den-tro dela...

63

John Dekowes

Enfim, a porca torce o rabo! De-pois de muitas pesquisas e de uma gi-nástica fantástica, descobriu-se que acartilagem serve para cicatrizar melhoras operações de cirurgia plástica. Seráverdade? Qualquer dia vão revelar quenariz de porco, na falta de energia,serve de tomada. E o que mais? Comojá dizia o meu tatatatatataravô: Quemviver... Verão!

E verão muito mais, quando se forbuscar no verão passado as raízes, edescobrir que se está amando.

CAPITULO TRÊS

64

Só os Anjos Morrem Cedo

É amando que se descobre a ex-tensão do Universo, o caminho dasestrelas e toda a solidão do infinito.

É amando que se encontram osquasares em cada brilho de olhar, emcada som... A melodia melíflua e sua-ve da insondável natureza. Em cadabusca, um tocar constante de corposque se encontram e se afastam peloscosmos, e se roçam mais adiante numir e vir eterno. É amando que se desco-bre a profundidade dos desejos incon-tidos nos gestos que explodem em mi-ríades... E se escondem insatisfeitospara não magoar, para não ferir, paranão sentir medo de perder os senti-dos...

E depois voar, voar pelos espaçosinfindos em busca de envolvimentos,de loucuras que fazem o homem pen-sar em anseios proibidos e inconfessá-veis. E quando ele deixa de participar,

65

John Dekowes

ele fenece, gorgulha feito mariposa eestrebucha feito um animal ferido epronto!

PRONTO! E o homem é presa fácilde sua própria armadilha! Não há comoescapar... O amor, o ódio, displicên-cia, a rejeição, o nôjo, a desfaçatez, odesejo incontido, a fome, a solidão, odesprêzo, o silêncio fazem parte doseu cotidiano. Via de regra, ele vivebrigando por esta ou aquela questão,porque necessita, no fundo de suaalma, de um clima de suspense que ofaça chegar ao clímax, à catarse!

O amor só é amor quando os de-sejos se revelam; transformam-se emódio e solidão, em ciúmes e depoisem amor novamente. Amor por amorsimplesmente não existe. Ninguém queestá com a barriga cheia quer maiscomida. Nem quem está com fome,aceita um prato vazio. O amor é troca

66

Só os Anjos Morrem Cedo

de relação, de sentimentos, de ternu-ra, de carinho, de toques, de beijosfurtivos, de olhares mudos e gritan-tes... De abraços amiúdes e quase ca-rência total, que se completa com osilêncio dos lábios e dos afagos.

Queria eternizar toda a minha exis-tência quando estou ao seu lado, maso sonho é passageiro, e tão logo abroos olhos insones, vislumbro através davidraça, sombras amorfas rondandomeus pensamentos. E vejo que estousó... Só no silêncio dos espaços in-contáveis, que rebuscam seu aromanuma nesga de perfume, que se es-vaiu há milhares de anos-luz, nessaimensidão de pecados, que resfolegan-tes querem também participar de todaa essência eterna e permanecer uni-dos. Só quando busco a razão da mi-nha vida, é que percebo que estou só.Só como a solidão profunda dos seus

67

John Dekowes

olhos... Só como o mutismo da suavoz. Só, como os pássaros que voamem grupo, e se perdem no meio damultidão. Só como a esperança deouvir você falar... Só quando busco asua imagem, é que me deparo com oespelho frio e impessoal da sua som-bra furtiva, que se esfumaça em meioao temporal...

Sentir você... Sentir você é comose todo o calor do universo nos co-brisse, é como viver um transe de eter-na paixão, e de vez em quando, des-pertar para te olhar mais um pouqui-nho, e mergulhar fundo em nossasemoções até sucumbir extasiado, ma-ravilhado, realizado por nós mesmos.

Sentir você é como o sol que per-corre a relva, embalada pelas nuvensesparsas, que vem e vão, deixandoaquele calor morno e gostoso pelo seucorpo, que se espreguiça num espas-

68

Só os Anjos Morrem Cedo

mo de prazer e lassidão.Sentir você, beijar você é coabitar

um forte desejo de nunca querer maisseparar os lábios, com mêdo de per-der aquela vontade louca de querersempre mais... Beijar... Beijar... Bei-jar, despertar os anseios e os desejoslibertários do inconsciente. Apertarvocê contra o meu peito, beijar louca-mente, tresloucadamente, como umlouco que percebe a lucidez da suaimagem num espelho em pedaços, eprocura, insandecidamente, os olhos,a boca... Cada parte do corpo, comose fosse a última salvação. Adorar vocêé a coisa mais fantástica e inusitadadeste mundo. É como a abelha ado-rando aquela flor que lhe dá o pólen,que lhe oferece um cheiro mais har-monioso e sedoso, que lhe seduz...

Sentir você é um desejo enormede nunca querer se separar. Desunir-

69

John Dekowes

se! Romper-se! É sentir a vontade desorver todo o seu corpo num gole dechampanha, e deleitar-se embriagado,entre seus braços... E descobrir-seperdidamente apaixonado até pela nes-ga do seu olhar, que num gôzo supre-mo se extasia dolentemente, cheio deais...

***

Vortlan estava completamente per-dido. Havia uma mistura de descober-tas cósmicas e desejos alienígenas en-volvidos em tudo ali. Ele mesmo pos-suía vontades que estavam sendo re-veladas por aquele ser desconhecido.Até que ponto poderia suportar aquelasituação? Aquele ser clamava por coi-sas muito mais profundas do que sepodia imaginar.

70

Só os Anjos Morrem Cedo

O homem sente necessidades quesomente com novos incentivos podesuplantar tais etapas. E chego a con-clusão de que é a loucura, a única sa-ída para se avançar e superar o ma-rasmo que habita esse mundo. Nãoimporta ela como seja colocada naquestão. O louco arrisca, o louco temfé, o louco cria sensações que umamente sã nem se habilita a chegar. Olouco pode sonhar, pode sorrir e can-tar quando e onde quiser. O louco podeamar loucamente amando, sem nunca

CAPITULO QUATRO

71

John Dekowes

ter que pedir perdão; sem nunca terque dar satisfação ao mundo, porquebeijou esta ou aquela mulher. O loucobusca no sentido da vida, a sua razãode ser. O louco é o único que, inde-pendente da sua loucura, cria espaçosinfindos, axiomas que corroboramqualquer existência nefasta, e trans-formam círculos em mundos, retas emcurvas espaciais e curvas ácidas emcorações amantes.

A tendência do homem será tecerfuturamente, será tecer a sua próprialoucura criativa, tramar sua existênciadentro de parâmetros néscios para co-abitar com o seu próximo, e com elemesmo. O louco percebe a beleza dovazio escondido nos cantos arrediosdas almas insólitas. O brilho dos olhosperdidos em espaços ofuscantes quenada levam. O louco introspecta a hu-mildade pálida entre lábios ressequi-

72

Só os Anjos Morrem Cedo

dos à espreita de um beijo furtivo, e,às vezes, não é preciso ser louco parase ver como o amor é cego.

O louco percebe na sutileza de umolhar o devaneio de um beijo. E o lou-co é o único que sabe, que a sombrade um elefante branco é mais suave ealcança a plenitude extrema, quandoo sol está a pino. Mas tudo faz partede um grande plano divino. É difícil seter uma idéia do que se propôs essaentidade máxima, ao conceber o Uni-verso. Em primeiro lugar, eu venho deuma escola, que não sei por que moti-vo, resolveu classificar o homem comoser humano, quando as baratas têmmuito mais consciência de suas limi-tações de sobrevivência do que ele.Se formos analisar os padrões moraisdo homem, é preferível manter-sercalado, negar a própria essência, a fa-zer tal denúncia. Mas enfim, enquanto

73

John Dekowes

nuvens brancas tomam conta do céu,aspergindo sobre nossas cabeças obrilho fosco e arredio do sol, que seesconde muito alem das nossas von-tades, tentamos decifrar os segredosdos olhares que já não se justificampor estarem lacrimejantes.

Bendito o dia em que descobri quea morte depende da vida para existir.E tem idiotas que morrem sem o sa-ber... E tem gente que se suicida des-conhecendo esse fator. Devíamos gri-tar, espernear, bradar aos berros paratodo mundo ouvir, alto e em bom som:VIVA A VIDA! Geralmente, as pessoassó se lembram de valorizar a vida,quando estão na dependência da mor-te ou de baixo astral. O cego gostariade enxergar, o maneta gostaria de to-car as coisas com a ponta dos dedos,saborear as sinuosas curvas femininascom toques mágicos e indescritíveis.

74

Só os Anjos Morrem Cedo

O perneta, o que não faria para delei-tar-se em longas caminhadas, correrprovas estelares, ir além dos cosmose, por fim, insinuar-se a passos lar-gos, nos meandros da inconstância.

Mas o homem sai porta a fora,impedindo o prosseguimento da reali-dade... Ou do imaginário?

O amor avilta e violenta a derra-deira vontade de beijar com paixão.

Quando me vejo perto daqueleslábios sedentos de beijos, carentes deafagos, ardentes de carícias, trôpegosde desejos, trêmulos de ânsias, frê-mulos de vontade e serenos de volú-pias, me afasto para não loucurar no-vamente, e cair ensimesmado aos seuspés, no silêncio do seu olhar lampe-jante. Rebusco na solidão das paredesa sua voz, que ainda restou aprisiona-da na sombra das trepadeiras que aque-cem a minha alma frígida de remor-

75

John Dekowes

sos. E me pergunto num ricto de inde-cisão e ódio: porque não soçobrar naloucura, e se aventurar na concupis-cência venial? Porque não provocar odesatino de transcender meus temo-res, e oscular de uma vez para sempreo retrato transparente dela em minhamente insana? Satisfazer os desejos!Descarrilar as manias e fobias do in-consciente, e se perder na imensidãodo Universo! Depois, açambarcar aeterna vontade de Ser realizado e cho-ra da de alegria.

A compreensão é apenas uma fa-diga do amor. O beijo é apenas umafatia do envolvimento lúdico de umapaixão; é o ocaso de uma desesperan-ça, é o contato frio, gélido de um de-samor... é a despedida furtiva de umalembrança... é uma desventurada pas-sarela.

Quisera, como quisera semear

76

Só os Anjos Morrem Cedo

meus dedos em seus cabelos de noiteeterna, pernoitar em seu corpo comoraízes puras e envolventes, e desco-brir-te como nunca, nos meus sonhose devaneios. Quisera, como quiseraque ao erguer meus olhos, descobris-se que estou viajando pelos seus, coma mesma intensidade com que rebus-co a minha alma, o âmago do meu ser.Quisera, como quisera que o tempoparasse, no momento em que a suasombra cobrisse o meu sol, e eu pu-desse me extasiar até não restar maisdesejo algum dentro de mim...

Quisera, como quisera... Passosefêmeros pernoitam na minha mente...Resquícios de sêmen... A janela semi-aberta transporta pelo ar o seu perfu-me adocicado e tênue, que vai se es-vaindo... Esvaindo... Esvaindo... Atéque só me faz lembrar com saudadedos seus movimentos diáfanos.

77

John Dekowes

Sonhar faz bem a saúde quando arealidade massacra a nossa conveni-ência passageira. A fuga se faz neces-sária quando nos sentimos entupidosde fatos que nunca nos levam a nada,e recrudescem a cada momento maisexperiências, mais dissabores por to-das as partes de nossa vida. São fuga-zes e quase ínfimos os nossos desejosque, quando os almejamos em dema-sia, tornam-se furtivos e arredios. En-tão, abrandamos nossas vontades, eaguardamos o tempo urgir e ceifarnossos desejos pela raiz.

Sonhar é bom.Ao despertar, enclausurado ainda

no desvairio onírico, reluto em abriros olhos para ver os céus, apascentara minha sombra na ravina, além dohorizonte, onde sol oculto pela cali-gem, menospreza minha visão.

...Às vezes me encontro num arco

78

Só os Anjos Morrem Cedo

íris e me perco inebriado ouvindo vo-zes que desconheço, e tento pesade-los cotidianos com figuras amorfasoriundas de tempos remotos, que ja-mais ousei imaginar. E um encontroocasional se transforma em realidademútua, que prospera em arroubos desentimentos, e finalizam em enlacesde carícias, beijos e abraços. Depois,o tempo se incube de transformar tudoem cotidiano e criatividade. Ineptoseria não aproveitar os sonhos queacontecem durante os temporais, pois,como num átimo, o prazer chega e seesvai em névoa ao amanhecer.

E, inebriado de rotundas imagensque se apossam de mim, confundo asdores de dente com as dores do parto,e parto mundo a fora, enrustido empensamentos nefandos que terminamem eussemia. E quando acordo nãosou mais inubo, forço a porta do meu

79

John Dekowes

ser e descubro que já não o sou hámuito tempo. Gostaria de ser maiscoercivo com a minha fatalidade, masnão tolero ficar chorando pelo leitederramado, mim idolatrando figurasartrópicas que se aproveitam da male-dicência para prosperar. E às vezes mepergunto: Será que o tempo dará umaoportunidade para que os descenden-tes se encontrem e saiam uma únicavez? Interessante quando colorimosnosso destino com matizes que con-fundem até o vosso fado. Como beberpara esquecer o passado ou o presen-te ou o futuro... Quem sabe?

...Inglorioso é o nosso futuro, poisnunca sabemo-lo quando no presenteou passado, então rebuscamos tres-loucados na fuligem da inconsciência,arquétipos pernósticos que nos iden-tifiquem com nós mesmos. É quandodescobrimos a nossa imagem e seme-

80

Só os Anjos Morrem Cedo

lhança com o criador. E não adiantafugirmos nem nos ocultarmos nas som-bras dos pesadelos, pois é certo essefatídico e tardio reencontro no presente,no passado ou quiçá no futuro. E nãoadianta deitar perfume nas feridas tem-porais, quando as cicatrizes não sequerem fechar. E não adianta verdejartodo o pasto, quando já se está com-pletamente envenenado pelo hálito doérebo. Humano ou intergalático, o queimporta são os momentos passadosjuntos, apenas apoiados na imagina-ção fértil dos rebanhos que executamuma ejaculatória precoce, em prol dosmitos e deuses, que já morreram ado-cicados nos lábios da indolência...

Imolar não seria a solução paraconspurcar os pecados, mas é neces-sários deitar-se em berços esplêndi-dos, e perder a inocência nos braçosmalfadados da sorte até o amanhecer.

81

John Dekowes

Depois é sonhar... Sonhar... Sonhar aténunca mais e deixar o sol raiar lá prosconfins de não sei aonde, belo e ful-gurante.

***

Vortlan se rebelava! Tinha que fu-gir dali. Aquele Ser já estava ultrapas-sando os limites da racionalidade. Assuas impressões perturbavam-no cadavez mais. Um amontoado de idéias,imagens... Uma confusão alucinante emedonha. Mas ele também sentia bemno seu interior, que também havia vi-venciado aquelas emoções quando es-tava em Altÿon. Percebia certassemelhanças...Nas revoltas... Nos pro-testos...

Só os Anjos Morrem Cedo

82

Hoje eu realmente transcendi oUniverso, e busquei outras formas devida em outras realidades. Talvez, as-sim, eu consiga descobrir o que há debom em você. Quando escrevo sobrenosso compromisso com a existênciae com todos os que nos cercam; nos-sos amigos, nossos inimigos, nossosdesafetos, nossos filhos, sinto-me ver-dadeiramente muito melhor. Por que oamor é uma paixão contínua, por maisque efêmero permanece enclausuradono desejo de querer sempre estar ao

CAPITULO CINCO

83

John Dekowes

seu lado, mesmo que por alguns mo-mentos. O pensamento retrocede e tudoretorna com clareza...

Mas em realidade eu vos digo: Tudoo que fizerdes ao Pai, o farás tambéma mim. Assim como eu vos criei, ELEtambém os criará. Com formas confu-sas e obtusas, para que tudo se con-funda no Universo, e não tenhamostempo de confrontar nossas vidas nomomento crucial. Mas, mesmo assim,com toda a simbiose, com toda a con-fusão existente, eu gostaria de me per-der em seu corpo. Não importando atéque ponto o ápice de nossos desejosesteja próximo de nossos movimentos,de nossos gestos. O que interessa é omovimento das mãos, do olhar que seperde na escuridão inconstante de nos-sas pupilas insossas.

Mas o que me aflige, não é a soli-dão que violenta o meu direito de pen-

Só os Anjos Morrem Cedo

84

sar, e sim a necessidade de se sentirsó, e ter milhões de vozes co-habitan-do a minha mente, todas querendo fa-lar, querendo reivindicar direitos, en-quanto escrevo. Então, minha consci-ência já se perdeu há milhões de anos-luz, em línguas estranhas, em idiomasdesconhecidos, e eu vivo apenas como conhecimento da ordem total do Uni-verso. É fácil ter uma consciência uni-versal e compreender a abstração men-tal.

As pessoas criam dentro de si re-domas psicossomáticas, e se implo-dem loucas de desejos. A verdadeiraforma de se entender a solidão seria acompreensão dos quasares. Perambu-lando por todo o Cosmo em busca deenergia transcendental, nas curvas eté-reas da inconstância, resto-me apenascomo um ente egoísta, que anseiacompartilhar de toda a existência jun-

John Dekowes

85

tinho a você. E os sábios arrotam má-ximas arrogantes, e se esquecem queo tempo passa, e tudo muda. O que éhoje uma vida, amanhã não passaráde um vazio inócuo. E lembranças nãopassam de desculpas fúteis, de umpassado insípido. A vulgaridade é obrade filósofos que pervertem a consci-ência, em prol de mazelas próprias.Seria mais simples o homem viver doseu labor do que construir castelos deareia. Entretanto, é mais interessantefazer axiomas do que alimentar umcego.

Mas, que se danem os cegos e osfilósofos! É vital que eu permaneçasóbrio diante do seu olhar embriaga-dor. E quando o seu corpo se contorcenuma melodia ímpar, eu me perco nasua sombra, e quando me reencontro,é muito tarde para alcançar os seuslábios sorridentes.

Só os Anjos Morrem Cedo

86

Dispo-me de todos os desejos, edivago entre ânsias e volúpias que so-fregam o meu corpo numa luta vulcâ-nica. A minha carnalidade palpita su-focada dentro de suas paredes melíflu-as e cremosas, e eu me questiono atéonde isso tudo vai parar, já que o tem-po para mim é exíguo. O prazer é ínfi-mo quando é inconstante no desejo quese apossa de cada pessoa. Contudo, éinfinito quando essa pessoa se abre aosanseios de uma paixão, inerente ou não.

A simbiose do amor é que fortale-ce a poesia em seu orgasmo final. Re-luta-se muito em assumir certas con-dições de vida, quando não se tem umcomportamento analítico da situação.Contudo, quando o indivíduo tem suaidentidade, sua condição social, tudofica mais fácil para o duelo derradeiro.Afinal, a fatalidade faz parte sucessi-vamente de cada personalidade psico-

John Dekowes

87

pata. O louco seria um doidivanas,comparado ao lusco-fusco neuróticodo seu olhar que perscruta o Universoobcecado por elefantes cor-de-rosa.Mas, o louco consegue flutuar no in-consciente de suas vontades, e o são,permanece calado dentro do seu mu-tismo, silenciado pela força do pavorque se avoluma, à medida que vai sen-tindo o desespêro da solidão mentalcrescendo dentro de si. Mas esse pro-cesso de loucura é muito lento. O ide-al é um procedimento mais insano, umaconduta que ultrapasse o código mo-ral e a ética formal de avaliação hu-mana. Então tudo combinará direiti-nho dentro dos moldes clínicos (ouquadros?), e a solução é o isolamentoexterno para uma condição interna, ouvice-versa.

Dizem que qualquer forma de amorvale a pena. Tenho lá minhas dúvidas,

88

Só os Anjos Morrem Cedo

pois, em sã consciência, o homem re-jeita qualquer forma de amar que vãoa clássica posição Papai e Mamãe. Deestiver errado, que me escrevam! Daúltima vez que fiz isso tive que mudarde residência, pois os visinhos não to-leravam o barulho da cama.

Mas o louco tem a sua mania deamar. De modo mais obsessivo, na suarazão de ver as coisas, ele se tornamais plausível ao contato humano,mais amigável ao gesto de aceitaçãosublime de seu fado. É mais real a soasublimação mental. É mais sutil na suarealidade. É mais obstinado no seuquerer. É mais demente do seu pontode fuga. É mais coeso com o seu direi-to de permanecer calado, e qualquercoisa que disser pode incrimina-lo. Temo direito de dar um telefonema paraum parente mais próximo... O advo-gado será gratuito. O Estado lhe dará

89

John Dekowes

um Defensor Público que de maneiraquestionável, procurará condena-lo demaneira perpetuamente perpétua. De-pois desfrutará das regalias que oscontribuintes esfomeados deixam parao seu bom lazer durante a sua prisão.Não deixa de ser uma forma de amor.Se formos observar pelo lado de fora(ou é pelo lado de dentro?), a casca émais grossa. Como tudo que a nature-za procura defender, a parte externa éaltamente grosseira, ríspida, áspera,dura, espessa, como a fachada do ho-mem que se esconde dentro de si mes-mo. Mas, quando abrimos, descobri-mos que é só emoção. E o que estragatudo é a insipidez e os gestos vagosdos eternos desencontros que se per-dem nos encontros furtivos. Mas mes-mo o louco tem direito de amar. Quemlhe tira esse direito, nega-lhe a suacondição de ser. E quando não há mais

90

Só os Anjos Morrem Cedo

alternativas, não há mais esperanças,não há mais beijinhos, não há maisadeus, não há mais olhares mudos, nãohá mais nada a declarar, somos aprisi-onados por desejos lascivos, e quandoa noite morre nos defrontamos com oderradeiro calor que emana de nossoscorpos, e descobrimos que nunca esti-vemos a sós.

A mentira é o dom da verdadeiraforma de amar. Mas amar, às vezes,não é mais importante que odiar. Amentira está aí; mamãe dizia que quan-do o homem quer, animal nenhum lan-ça mão. Naturalmente ela podia estarequivocada, pois confundiu mão compata. A mentira fortalece a verdadeenquanto mentira, e distorce o dom daseriedade enquanto falsidade anôma-la. Mentir às vezes faz bem à saúde eexalta o ego, mas decresce o espíritoempreendedor.

91

John Dekowes

O louco não precisa mentir, poissua irrealidade fantástica prescinde decorroboração. É mais fácil transpare-cer uma loucura senil do que um beijopérfido e vinil. Pra cada mentira há umcaso de desculpas existenciais, quedegeneram quase sempre em orgiasintelectuais, onde uma ameba sem cau-sa teria mais importância do que umrebento precoce.

E tardiamente vamos chegando àconclusão de que é preferível umamentira silenciosa, a uma verdade cheiade caprichos. Infinitas vezes, a morteé precedida de um ritual espúrio ementiroso, enquanto que a vida é sem-pre acompanhada de verdades carna-valescas. Mas em verdade eu vos digo,quando mentires a Mim também esta-rás mentindo ao Pai, e somente quan-do estiveres dizendo a verdade ao Ir-mão é que encontrarás o caminho do

92

Só os Anjos Morrem Cedo

céu. Nem uma cópula cerebral assu-mirá valores de procriação, pois os de-sejos incubados não proliferam em ber-ços esplêndidos. E a espécie vive embusca da contingência do Elo Perdido.Mesmo que essa procura incansávelencontre uma razão de ser, não haverámotivo aparente para uma continua-ção plausível, pois logo deixou de sê-lo. Não adianta querer sustentar so-nhos e quimeras, quando o susto quese leva ao olhar o espelho fá configuraum despeito à própria imagem e se-melhança do Criador.

E nunca mais queremos nos con-frontar com desejos descabidos nemcom vontades tresloucadas durante anoite. Quando isso acontece, as op-ções são muitas, mas nem todas obe-decem a um padrão genético, pois cadaconduta é individual e conclusiva den-tro de si mesma. Um problema, por

93

John Dekowes

mais complexo que seja, é soluciona-do à medida que o pensamento vaiadquirindo subsídios adicionados a raizda questão. Portanto, não existe me-nosprezo nem derrota no olhar de umcovarde, e sim admiração e respeitonas seqüelas do problema resolvido.Às vezes não importa a solução, e simos meios impostos que se tornam des-cabidos e atrozes. Para cada questãohá uma maneira de se chegar a umbom termo, sem que para isso sejanecessário se violentar. Mas nem porisso poderão achincalhar nem bagun-çar o modo de vida de todos, que an-seiam por novidades, e se permitempermissividades para viverem eterna-mente.

E eles não acreditam na eternida-de, apenas reforçam seus �modus vi-vendi�, para depois de maneiras gen-tis e afeiçoadas, se apossarem do di-

94

Só os Anjos Morrem Cedo

reito de ir e vir em todos os lugares. Aimportância de eternidade está na li-berdade de permanecer ou ficar aquiou acolá, mesmo que isso inflija asnormas da consciência. E, quando sefala em consciência, a profundidade doproblema é mais séria do que parece.O atrito oriundo de toda essa proble-mática seria facilmente detectável, seas soluções fossem mais genéricas enão irracionais nem humanitárias de-mais. Por isso, é que quando o homemsai porta a fora e se perde no mundo,acabou-se tudo. Mas eu nego! Mas eudigo que não. O princípio é não esta-belecer regras nem visões doentias dedoidivanas celerados.

E a dor de cabeça que sentimos éuma explosão de luzes e fogos de arti-fícios em nossas mentes, mas seriamais fácil se, após todas essas dores,houvesse algo construtivo, como se

John Dekowes

95

nossa mente nos vislumbrasse umanova visão do Universo. É triste e la-mentável o retrocesso que acontecequando o homem sente dor. Volta àsraízes.

E há dois mil decênios que buscouma maneira de aliviar a minha dor decabeça, mas só encontro alívio quan-do me projeto nos quasares e me tor-no UNO no espaço infinito. A dor quan-do é controlada, deixa o corpo flutuarno nada preenchido de formas amor-fas. Então podemos perceber o quantoé simplório a nossa conformação. Nos-sos átomos se mesclam com a forçados cosmos, e a nossa mente obedeceapenas às vontades latentes em nossoser. A dor, quando não é sentida demaneira masoca nem de modo sádico,eleva o nosso espírito a planos astraisdivinos. E acalma os espasmos góti-cos de nossas lembranças. Mas sentir

96

Só os Anjos Morrem Cedo

dor não faz bem. A dor ocasiona umacomoção cerebral que, se não contro-lada, advém como conseqüência umataque mortal. E então tudo se deteri-ora, tudo se desmorona, tudo se lique-faz, tudo se perde no tempo.

Como o homem nunca estabeleceuum sentido maior da vida, a morte é aúnica e absoluta como fim em si mes-ma. Sua consciência cósmica não ul-trapassa além do muro de seu vizinho.Afinal, ele não possui consciência cós-mica, nem consciência coletiva, e ra-ríssimos possuem uma visão ampla detoda a plenitude do Universo. E o sen-timento se torna mais racional dentrode uma racionalidade egocêntrica, queé incompreensível para o homem emsi, que apenas sente os prazeres ime-diatos, quando o orgasmo que se temnum átimo de tempo transpõe todas asbarreiras do infinitivo. Depois, o ne-

97

John Dekowes

gror consciente que habita, é apenas oêxtase perene de um descanso mere-cido.

Às vezes o homem tenta fazer milloucuras, mas não percebe que a na-tureza é contra.

Mas, destas loucuras todas, o pe-cado é a coisa mais gostosa que exis-te. Os anjos e arcanjos temem-no, maiseu a própria vida. Gozado eu falandoem vida, quando o pecado os leva aoprincípio da morte. Mas pecar é tãobom, pecar é tão benéfico, pecar é tãoextasiante, pecar é tão gratificante.Pecar nos leva aos céus. E acreditarque há pessoas que morrem de medode pecar, quando em realidade apenasignoram o bom sentido pecativo.Quando se está em pecado, mergulha-se num turbilhão de sensações estra-nhas e adstringentes. Não se possibi-lita a ninguém ficar esperando o ocaso

98

Só os Anjos Morrem Cedo

dos acontecimentos. E a conseqüênciaé um constante alerta dos sentidos,para o prazer que advém em ondas atéo ápice do gozo.

É doce e suave o beijar de seuslábios melífluos e ingênuos. Solitárioe pernicioso é permanecer à espera deum abraço, quando todos os olharesse dispersam no silêncio de seu olhar...e reacender antigas recordações, é umaforma de estar em constante pecado.

E eu acho que o sentimento é umafuga determinada. As pessoas confun-dem sentimentos reais com sensaçõesmomentâneas, e comumente ocorre umdesequilíbrio e uma confusão danada.Loucura é a maneira com que, senti-mentalmente, todo mundo procura apa-ziguar seus ânimos. Geralmente seocultam debaixo de sentimentos escu-sos e transformam amizades em com-plôs. O sentimento sempre está em

John Dekowes

99

primeiro lugar numa amizade. E tudovai por água a baixo na menor infide-lidade ocorrida. A falta de segurança eo desinteresse fazem com que tudo setransforme em desilusões, até se che-gar ao descasa, ao desapontamento eao vazio íntimo do olhar. E a solidãotransforma idéias vazias em substan-ciosas tendências de odiar. E os mo-dos, as maneiras, as formas de se uti-lizar tais pensamentos existem demontão. E a aplicação é a mais sutil-mente aplicada possível. E sem nuncaestabelecer um padrão objetivo e con-tundente. Quando se odeia, não existeoutra maneira de demonstrar o ódiosem se fazer o mal. O bem e o mal secorrespondem como forças intrínsecas.Uma sente a necessidade da outra cor-relatamente, sentimentalmente ou hu-manamente. Ignorar um é pressentir apresença do outro e assim vice-versa.

100

Só os Anjos Morrem Cedo

A dualidade entre um e outro é genéri-ca em outros casos, comumente. Nãohá concessão entre as partes. O amorque emana de uma pessoa é corres-pondido unilateralmente por outra demaneira equívoca, pois seu compro-metimento em relação à proposta an-terior não é, às vezes, justificada pelosmesmos anseios de outrem. Isso querdizer que equivale a dois pesos e umamedida.

No eqüidistante comportamentohumano, as figuras se transformam emcomplexos e pedantes adornos, deses-truturados pelo simbolismo caótico daincompreensão dos valores. Mas nemtudo parece estar perdido, quando so-mente as lágrimas podem suavizar orosto duro e cruel de um assassino. Eo que parecia ser amargo e insosso pordentro, engana até o mais hábil peritoem exobiologia. O que vale, em si, é a

John Dekowes

101

reação psicossomática revestida decarisma de um líder nato, quando exa-ta o caráter sofismático de um filósofoou arrota banalidades carentes de ob-jetividade, e todo mundo baba em de-lírio. A falta de líder transforma umpaís, num verdadeiro caos. O que on-tem foi um mandamento, hoje nãopassa de lixo. E todo lixo é reciclado,e de repente, descobre-se que aquelemandamento, aquele texto tão conci-so, tão cheio de valores morais e vir-tuais não passa de uma mescla pasto-sa, que se destina ao verdadeiro lim-pa-bundas, ou seja, papel higiênico.E, quando o país está em caos, os lu-náticos tomam o poder. E um lunáticono poder é o mesmo que uma bombaatômica nas mãos de uma criança.

E o Senhor na sua infinita bonda-de a tudo permite como experiência,enquanto não convoca as forças uni-

Só os Anjos Morrem Cedo

102

versais para mudar os desejos insanosdo homem. E de vez em quando, Eleadere à brincadeira, e dá dons místi-cos à plebe ignara. Depois, senta-se àespera dos acontecimentos. Geralmentedecepciona-se. Geralmente não encon-tra alternativa. Geralmente se deixalevar pelo pessimismo. Geralmente seenclausura envergonhado pelo desper-dício, e percebe quão venial e vulgarestava sendo, ao admitir erros e fra-cassos. Geralmente chega à conclusãode que sua obra é um fracasso totalcomo continuidade da espécie. Geral-mente nem busca permutar valores,pois nada pode conceder sem prejudi-car a imortalidade da alma. Geralmen-te acoberta a devassidão do espírito,cultivando lendas e fantasias na mentedo homem, para que ele viva de espe-ranças, ânsias e volúpias. Geralmenteele pensa em acabar com tudo, mas

John Dekowes

103

acredita sempre numa melhoria, e porisso dá tempo ao tempo e assim pas-sam-se milênios... Geralmente Ele par-ticipa do Egocentrismo universal embusca da paz celestial.

***

CÉUS! Suportar tais pensamentos,tal afronta às suas profundas convic-ções ia muito alem do limite de suasforças. Não podia simplesmente ludi-briar, ou esquecer suas ideologias, ese abandonar àquelas idéias que inva-diam de forma desequilibrada a suaconsciência. Mas não conseguia reagircomo deveria aquela mente alieníge-na!

Só os Anjos Morrem Cedo

104

Das possibilidades do milagre...

O poeta ensandecido pela polui-ção visual se esconde nos sonhos deostracismo. Só não decapita as pala-vras porque é delas que sobrevive. Eseria inóspito de sua parte rimar suamorte com acidez dos pensamentos.Então permanece irresoluto, esperan-do acontecer como todo mundo, e tor-na-se parte comum do cotidiano e setorna um eterno alvorecer. Descontí-nuo somente por causa do vagido be-ligerante de agorinha mesmo. Mas nemtudo é perdição quando as prosas e os

CAPITULO SEIS

105

John Dekowes

Só os Anjos Morrem Cedo

versos se metrificam na insolência davida. E tudo é poesia no instante finalda gota de orvalho. Quando o limiteda realidade se confronta com a eter-na juventude do vir-a-ser, a próprianatureza pródiga de surpresas não es-conde um desconforto momentâneo doacaso vindouro.

E o grito intermitente, que provo-ca as sensações mais estranhas aoouvido, muta-se. E o silêncio é maisapavorante, pois, em realidade, todosos ruídos, eqüidistantes ou não, trans-forma o que era um mero chiado numamelodia infernal e inconsciente. E amemória não passa de um coletor derefugos excretorais.

Não se pode pregar uma mentiraquando todo mundo sabe que a verda-de é uma coisa séria. Sério, seria oconceito da mentira. Afinal, o que pos-sivelmente é mentira para um não pas-

106

sa de uma verdade para outros, e oque é verdade para um homem, nãopassa de uma deslavada mentira parauma mulher. E mesmo que os dois con-ceitos se justaponham, permanecerãosurreais, enigmáticos e por demaisantagônicos. Aos olhos de cada um, anatureza se traveste de maneiras dife-rentes, e por causa e efeito dessa vari-ação antropomórfica é que o universose modifica, se reestrutura permanen-temente. Recicla-se invariavelmente acada dois decênios. Se houvesse umaestabilidade conceitual, a eternidadeseria possível, num abrir e fechar deolhos.

O dualismo mágico existente frus-tra até ao maior ser superior das galá-xias. Não consegue entender como cri-aturas que se consideram inteligentesse deixam levar por tantas mesquinha-rias, arrogâncias e sentimentos es-

107

John Dekowes

Só os Anjos Morrem Cedo

drúxulos e por demais estapafúrdiosaté para eles mesmos.

Em si, é uma síntese da mediocri-dade. Constrói um mundo de coisas,fazem leis e depois defecam em cimade tudo que fizeram sem o menor amor,sem o menor afeto. Um círculo vicio-so, que se não for corrigido, acabarácom a raça humana em pouco tempo.Mas ele já percebeu isso, há muito emuito tempo.

Ao homem, falta-lhe o senso doridículo.

Por mais que a corda lhe aperte opescoço, mais acredita na possibilida-de do milagre. E por incrível que pare-ça, por uma razão desconhecida, sem-pre consegue se safar do garroteamen-to. E, sem pensar muito, parte paraoutra tragédia. E quando principia acompreender a razão de ser da sua vida,já está à beira da morte. Comumente,

108

não existe filósofo na juventude, nemnunca existirá enquanto não se apren-der a exobiologia passiva. Onde cadaum é fruto de outrem e todos são par-tes de um Tudo. O amor é parte ine-rente desse crescimento, não impor-tando como seja aplicado. A lógica doenvolvimento sexual possibilita ummelhor entrosamento cerebral entre osseres humanos. O calor que emanafortalece a aura cósmica de cada ente,e por si só, revigora a energia dosquasares, que em troca equilibram osCosmos.

E quando anoitece? Quando anoi-tece, o dia se entrega aos desvariosinsanos dos ventos quentes que vêmdo esquecimento e tudo se transfor-ma. E começa tudo novamente, talcomo no princípio.

Gostaria de apascentar meu sernestas tetas tão macias como nuvens

109

John Dekowes

Só os Anjos Morrem Cedo

de verão. E saciar a minha sede nessaboca pequena e aconchegante, sorven-do a sua saliva como vinho inebriante,e depois, gozar prazeres cheios de pe-quenos ais com uma sensualidade alu-cinante, e me perpetuar no seu corporepleto de pecados...

Gostaria de eternizar entre os meusdedos, seus cabelos que se confun-dem com a noite morna, e percorrerminha língua ávida de ansejos por ca-minhos diferentes e recheados de frê-mitos gemidos, até o regaço negro eviçoso, e me perder nesta noite eter-na, entre o gozo floreado de tremoreslascivos e a languidez mórbida de suaspernas perdidas no amanhã, e não su-cumbir jamais, sem antes mordiscarsuavemente seus seios túmidos, queaspergem néctar entre meus lábiossôfregos e tarados... E depois... E de-pois nossas línguas se falando, e num

110

mesmo idioma, nossos corpos se en-contrando na mesma falésia, nossasmãos se procurando num eterno de-sencontro e nossos sexos gritantes seaprofundando nos confins do Univer-so, insaciáveis e angustiantes até oocaso.

E o orgasmo vem chegando lenta-mente, profundamente, infinitamentelerdo e, quando vai se aproximandodo sol, as estrelas se tornam diminu-tas por causa da claridade ofuscante.E o calor insano se torna energia pura,e, numa exaltação perene, cheia denoites estrelares e quasares perdidosno infinito, o sêmem jorrado, comoum cometa vagabundo, nos peitoscomo um regato entre montanhas, noumbigo coevo e mudo e em toda aextensão de seu corpo parco. Depoisde selado o pacto e o descanso mere-cido, tudo recomeça poeticamente.

111

John Dekowes

Só os Anjos Morrem Cedo

Você me toma em suas mãos lân-guidas, me oferece seus lábios carnu-dos, gentis e sedosos, e eu me percona imaginação, me confundo em mi-nha mente, me contorço de espasmose novos ais, e novamente vou sucum-bindo na inconstância das coisas aomeu redor, até não poder mais. Então,você cavalga em mim, como há muitonão tenho idéia. E lambo seu suor sal-gado de mar e sufoco seus lábios nosmeus, descobrindo novos fôlegos alen-tosos, e sussurro soluços inconfessá-veis ao seu ouvido e, enquanto vocêescoiceia a montaria, partimos assimpela estrada do além, até nunca mais...E novamente...

E quando anoitece?Quando anoitece é que o pensa-

mento fica turvo e as lembranças res-tam perdidas nas memórias do tempo.Incontáveis tremores percorrem o meu

112

corpo das últimas conseqüências e mevejo perdido na ambigüidade da exis-tência. É quando anoitece que minhasidéias se recobram do desconforto di-ário e se tornam mais dinâmicas e maisfantásticas.

Se a primeira impressão é a quefica devemos então mudar a maneirade pensar. Pois quando se trata de sen-timentos temos de permanecer inalte-ráveis. Se bem que normalmente tudose encaixe perfeitamente dentro de umarazão de ser. Eu, pessoalmente, comi-go mesmo, egoistegocêntrico comosou, sem estabelecer nenhum parâme-tro qualitativo nem quantitativo nempaliativo nem relativo nem reflexivonem introspectivo nem seletivo nemnegativo nem apelativo nem extorsivonem de uma maneira ou de outra, metorno o centro das coisas, dentro docontexto estrutural do conhecimento

113

John Dekowes

Só os Anjos Morrem Cedo

dos padrões humanos.Afinal, não é à toa que a cobra

engole o sapo.A esperteza é regra básica para toda

a humanidade, só vivem maus peda-ços quem rói o osso, quem suga o san-gue até o fim, quem se esquece delevantar e dorme noites infindas, quembreca o carro além da curva, quemanoitece antes de prevaricar (?), quemesvazia o cálice antes do brinde, quemmorre antes de viver, quem padeceantes de se medicar, quem engole an-tes de mastigar, quem se tortura antesde ser feliz, quem acredita na vidaantes de crer em si mesmo, quem sor-ri sem nunca ter sofrido, quem passauma metade da vida se lastimando e aoutra metade se lamentando, quem sedesespera sem nunca ter esperança,quem acredita no azar sem pensar nasorte, quem cai sem antes tropeçar,

114

quem pensa em ir sem antes ter ido,quem beija sem antes ter acariciado,quem embriaga sem nunca ter bebido,quem fica banguela sem nunca termordido...

Enfim, só é feliz quem se aprovei-tou de tudo e nunca se esqueceu da(o) parceira (o). São de suma impor-tância esses detalhes (os parênteses éque determinam as finalidades intrín-secas e as prerrogativas sexuais), poissó ao homem é dado pensar tantasbesteiras sem a mínima compostura.E o mínimo que se pode esperar dealguém é um pouco de senso crítico.Mas, em verdade, é muito difícil sefalar em mínimo, quando o nosso pró-prio sistema planetário é ínfimo nagrandeza do Universo. Mas não vai sersó por causa disso que o homem vaisair por aí a fora, esfaqueando e ati-rando em tudo que se mexer. Há muito

115

John Dekowes

Só os Anjos Morrem Cedo

maior nos padrões do mínimo, do quena grandiosidade do Universo. Nin-guém nasceu aqui porque quis e o in-teressante é que todo mundo sabe dis-so, mas continuam negando. Desde oprincípio, quando o homem ainda nemsabia o que fazer com as mãos e ospés enlouqueceu ao perceber seu re-flexo na água. Enlouquecer não é bemo termo certo, mas, como ele tambémnão sabia se expressar, ficou escritonos anais do tempo com esse tom. Odesconhecido é algo apavorante. Pode-se conhecer toda a razão do Ser, masnunca a extensão do desconhecido. Asurpresa e o êxtase estão na maneirade encarar o negror, sem muito alardeou quaisquer jactâncias. O pobre coi-tado do homem teme a sua própriasombra. E aí, caímos na velha históriado valente guerreiro e do covarde. Dápara acreditar que o valente seja tal-

116

vez, por acaso, um maníaco depressi-vo. É, pois com toda essa valentia temque possuir um trauma, uma doençamental, um cérebro de noz, uma do-entia superioridade, uma mente pos-sessiva, uma deficiência qualquer umego perdido, em complexo pseudo-emotivo. E o covarde? Bem, o covardese resguarda sempre da tempestade, eespera a calmaria de tempos melhorespara se tornar herói. Preserva-se emsi mesmo para uma oportunidade maispropícia poder golpear astuciosamen-te pelas costas. Se a vítima não perce-be quem o golpeou, acreditará na fa-talidade, e, se por acaso vir o algoz,não o acreditará tão covarde por tê-loatacado.

É muito sutil ser covarde ou heróiem determinadas situações. Acreditoque o homem em si, não é covarde ouherói por que quer. Devem existir mo-

117

John Dekowes

Só os Anjos Morrem Cedo

tivos vários para que haja desse modo.Acho que tudo não passa de uma ques-tão de oportunidade. O oportunistaaproveita-se das situações para se pre-valecer do momento. Quando todomundo está basbaque, ei-lo, que sur-ge, confiante e auto-suficiente para oque der e vier. Pronto para traçar des-de a menina moça até a velhota de105 anos. Pois dizem que o sexo femi-nino nunca enruga; o resto do corpovira pelanca, mas ela está sempre novae sempre pronta para o acasalamento,ou melhor, para o ato votivo, ou me-lhor, para começão, ou melhor, parameteção, ou melhor, para a procria-ção, ou melhor, para a fudeção, oumelhor, para se juntar mijador commijador, ou melhor, depois que o tem-po já se tornou sem esperança e todasas probabilidades se esfumaçaram e odesejo ainda permaneceu, partir para

118

as amantes (as mãos), e com elas sa-ciar-se num escuro qualquer sonhan-do com a mulher mais bonita ou aaventura mais recente. Assim é a vida...É difícil dormir quando não se tempensamentos passados, nem memóri-as para se dar um riso qualquer; mes-mo quando todas as relembranças seperderam num turbilhão de recorda-ções, num canto da cotovia, nem como choro de uma criança nem com oladrar de um cachorro que apenas quercarinho. O tempo consome todas asnossas mais íntimas vontades, poisquando queremos pernoitar com asmais dóceis lembranças, só nos restao gosto ácido de uma derrota e o suoramargo que desfia sobre nosso rosto,levando dor, desespero e silêncio.

Ficamos sentindo aquele vazio exe-crável que violenta o nosso ser dei-xando a nossa alma por um fio da exis-

119

John Dekowes

Só os Anjos Morrem Cedo

tência.E quando descobrimos a nossa

vontade de viver, tudo se rompe comuma represa e nos inunda intempesti-vamente, não nos dando tempo de re-fletir. É sempre assim. Quando as coi-sas nos acontecem, ou nos vem aospoucos, em pingadinhos ou então setransforma numa avalanche que nos éimpossível conter. A derrota ou o su-cesso, a vida ou a morte, o beijo ou ocuspe na cara. Nada chega comedidoquando nos é dado por merecimento.O homem, quando faz amor, acaricia,faz afagos e vai logo penetrando. Amulher, quando faz amor, nunca espe-ra o homem pra gozar, e goza duas,três vezes ou mais. Mas isso faz parteda sua sexualidade. Enquanto o infelizgorgoleja suores de tensão, despojan-do a sua carnalidade dentro da mulherpara ter um espasmo, a fêmea solta

120

soluços de gozos e deleites. Mas antesassim do que o contrário.

Não quero ficar agora discutindosexualidade de ninguém. O importan-te mesmo é saber que no momentoexato tudo deve acontecer, sem com-plexos nem manias, nem fobias, nemnada. O importante é ter muito amorpara dar, muito carinho para acariciar,muita vontade de trocar afagos e mui-to ânimo para não se afogar em lem-branças passadas e pôr tudo a perder.Pois, tanto no homem como a na mu-lher, isso tem muito a ver. E as compa-rações de aventuras anteriores, às ve-zes, buscam ser mais fortes que a domomento.

E o que poderia ser uma desco-berta se torna um pesadelo...E todo otesão some, se esvai pelo esgoto!

***

121

John Dekowes

Só os Anjos Morrem Cedo

Vortlan estava impassível! Poderiasuportar ataques ferrenhos dos mahar-nóides, pois sabia onde se encontra-vam, como se comportavam, e reagi-ria de acordo, mas naquele exato mo-mento, perdido num emaranhado deemoções e sentimentos, gostaria deembater uma fuga dali, mas sentia-sepreso, enclausurado numa existênciatotalmente surreal: entre as suas lem-branças e as daquele ser completamen-te doidivanas... O que poderia fazer?

122

Dizem que a mulher, pra ser umespanto, tem que ser muito boa. Eu,por mim, tenho cá meus motivos paraficar quietinho no meu canto. Não digosim nem não, muito pelo contrário.Afinal, Deus, na sua infinita bondade,dá carne moída para se comer de pali-tinho a quem tem fome, e regala compernis e outras iguarias a quem já estásaciado. Assim é a vida, assim é o des-tino das coisas.

E quando se pergunta porque aIgreja prega a pobreza e vive coberta

CAPITULO SETE

123

John Dekowes

Só os Anjos Morrem Cedo

de ouro, é só questionar suas raízes.Será que Pedro, ao lançar a pedra fun-damental da primeira igreja, não des-cobriu uma mina de ouro? Será que ascatacumbas em que os católicos seescondiam não eram um filão oculto?E que os católicos que pereceram nasarenas, que viraram comidas de leão eforam figuras principais nos festinseram apenas fantoches ou bodes expi-atórios de uma estrutura montada bemno fundo do cristianismo? A exemploda Igreja, temos outras religiões quesão ramificações da católica e que, deuma maneira ou de outra, têm o mes-mo quinhão monetário e vivem pre-gando acintosamente a pobreza, a di-visão dos bens, mas a porcentagemmaior fica sempre com a Igreja, ousinagoga, ou... Seja lá o que for.

Afinal, quando se fala da massahumana do povo ignorante e tacanho

124

que mal sabe que nasceu, que mal sabesoletrar seu próprio nome, que malsabe pensar direito, se tem uma des-culpa. A religião influencia e fanatizamais que a política e o poder. Enquan-to a política e o poder fazem demago-gia com um prato de comida, a reli-gião dá alimento. Enquanto política eo poder antagonizam a miséria, a reli-gião dá a cobertura para o frio. En-quanto a política e o poder sugam eviolentam o homem mísero, a religiãoo acolhe com rezas e promessas devida eterna. O lado positivo da políticaé que o povo acredita em dias felizes,quando na realidade cada dia que sepassa mais aumentam as suas neces-sidades primordiais. A política e o po-der tolhem seus direitos de cidadão,cerceiam sua liberdade de ir-e-vir, pro-íbem-no de trabalhar condignamente,impedem-no de levar para casa uma

125

John Dekowes

Só os Anjos Morrem Cedo

comida decente, impingindo-o ao de-sespêro, à loucura, à vadiagem, à va-gabundagem, ao roubo, ao assassina-to, e depois o prendem como margi-nal, extirpando-o assim como pariasocial.

E onde entra a religião? O lado po-sitivo da religião é que ela aproveita ofiasco, o fracasso, a indisplicência, opouco caso, a covardia deliberada, ocaos, o descrédito, a morbidez e a fal-ta de consciência da política e do po-der, e faz o seu pé-de-meia. Onde háum governo derrotado e pusilânime, areligião está forte e cheia de idéias.Onde há um povo esfomeado e cheiode esperança, lá está a religião recon-fortante e acolhedora. Onde há umhomem desempregado e à beira dosuicídio, a religião lá se encontra deportas abertas para um conselho e umaposição social.

126

Mas a religião, seita, culto ou cren-ça que pratica isso tudo não é oportu-nista nem urubu em cima da carniçanão; apenas aproveita a brecha deixa-da pela política e o poder, e cai sobreo povo com tudo o que possui, e compromessas e oportunidades.. E quemestá com razão? Quem pode se julgarerrado, quando as necessidades im-portantes de sobrevivência são deixa-das de lado em prol de uma políticacorrupta cheia de interesses e de umpoder faccioso? O que importa ao povoé comida e morada decente. A religiãoé a resposta aos questionamentos es-pirituais e emocionais. Enquanto a po-lítica e o poder colocam o povo na pran-cha e os deixam aos tubarões, as reli-giões, as seitas, as crenças, os cultosse aproximam com a pedra da salva-ção, e com botes salva vidas, vão re-colhendo os despojos humanos e fa-

127

John Dekowes

Só os Anjos Morrem Cedo

zendo a cabeça de cada um aos tran-cos e barrancos.

E depois não tem mais jeito. En-trou, entrou; para sair, só deixandotudo o que possui. E com razão. Quemdá, aos pobres empresta. E depois sóvão recebendo com juros e correçãomonetária: os dízimos, as prendas, osázimos da vida, que não passam so-mente de uma cobrança das religiõesao povo descrente, que se alimentamde fé e da esperança pela vida eterna.Enquanto a política e o poder lhes ti-ram o dinheiro através de impostos semlhes dar nada, causando revolta e des-contentamento, as religiões procedemda mesma maneira, mas aplicam apersuasão e o triunfo de só atravésdelas se chegar ao reino eterno.

Enquanto houver Deus no céu, uru-bu não come couve.

128

***

Vortlan estava estupefato. Porquetudo tinha que ser assim? Tanto ques-tionamento, tantas interrogações? Por-que tantos desafios? Porque tanta re-beldia dentro daquele Ser? Não tinhahavido ainda um instante sequer decandura... de carinho. Só existiam má-goas, sofrimentos... Nenhuma réstia deesperança? Será que em todos os se-res daquele mundo não existia um pou-co de paz? Harmonia? Felicidade?

129

John Dekowes

Só os Anjos Morrem Cedo

A inversatilidade da inversão nãoé inversa porque o inverso do avessoé invertido à medida que se propõesituação de inversabilidade.

É o cúmulo falarmos de inversos,quando o Universo paralelo nos res-tringe a pequenos espaços intempo-rais do avesso. E o tempo sucumbe àsprimazias e mazelas de tudo o que éinvertido dentro da extemporalidadeequinocial das situações melindrosas.E quando a gente se projeta no espe-lho e nosso reflexo não inverte os ma-

CAPITULO OITO

130

neirismos, mas apenas aumentam ostrajeitos, então nos equilibramos nosilêncio estático das manobras aleató-rias de nossas sombras contra os mu-ros da vida.

Mas, quando se fala em inversão,não devemos esquecer que a sorte fazparte da inversatilidade humana. Elanunca surge nos momentos propíciosde quem precisa, e sim o inverso. Quemjá tem muito, mais possui. E eu ficome questionando porque o Senhor nasua infinita bondade, nunca me bafe-jou com uma réstia de sorte, nuncaescarrou sobre mim uma nesga de es-perança monetária, nunca conspurcousobre meus pensamentos númerosbenditos do jogo semanal. Nunca cus-piu em meu rosto um erário maior alémdas minhas necessidades. E, às vezes,eu me indago porquê ainda tenho fécega no meu destino. Pra muitos, as

131

John Dekowes

Só os Anjos Morrem Cedo

esperanças já se perderam nos idosde antigamente. Pra outros, só ficou ogosto amargo da derrota e dos credo-res à porta. E eu ainda acredito no in-sólito fado do meu mundo, onde ape-nas numa questão de oportunidadecoloquial, tudo se ajustará e se reali-zará a contento. A meu ver, é quaseuma piada de otimista e pessimista. Opessimista ganha um saco de areia efica questionando suposições absur-das e negativas, enquanto o otimista,apenas com um palito de fósforo gas-to, imagina que ganhou uma floresta.E, é quando acontece genericamente oinverso do avesso. Para quem nuncateve uma carta marcada como eu, ondeapenas a existência trabalha rente aomuro da sobrevivência, o que vier élucro certo. Dessa maneira, quandoproponho situações de inversalidadeaparente, gasto o que não posso para

132

regenerar o problema drástico, meconfundo em contradições de alternân-cias logísticas. Pobre de mim, que pro-curo com parcos recursos acalentarsonhos e quimeras de impossíveis re-alizações. E no momento em que arealidade torna-se mais forte, quandoa fome aperta mais para o lado maisfraco, as necessidades ficam mais pre-mentes e as esperanças já sucumbi-ram numa lata de lixo, começo a per-ceber quão sórdido é o meu papel.

O mistério da fé, o mistério da San-tíssima Trindade, o mistério da virgemMaria, o mistério da aliança do bem edo mal, o mistério da concepção deCristo, o mistério do crime que nuncaaconteceu. Mistério da sorte que be-neficia a todos menos a mim, míseromortal. Mas talvez, eu não seja tãomísero mortal assim. A saga de minhavida é um corolário de dúvidas exis-

133

John Dekowes

Só os Anjos Morrem Cedo

tenciais, que suponho eu, implicamoutros tantos mistérios. Mas, supondoque participando de todos os mistéri-os, deve haver ou haverá de algummodo uma réstia de esperança no fimdo túnel, quiçá uma recompensa. Aminha impaciência humana não mepermite tanta demora, pois a minhavida se esvai aos poucos. E gostariade aproveitar do bom e do melhor an-tes de partir para outras realidades.Gostaria de desfrutar das delícias dojardim de Alá, antes de pernoitar emalbergues desconhecidos. Gostaria degozar das supimpezas terrenas antesde virar pó. Mas antes de tudo, queaconteça agora, imediatamente, en-quanto estou lúcido de idéias, enquantoainda estou na tenra idade da razão,enquanto ainda estou jovem e poten-te, enquanto ainda busco fantasias nocotidiano, enquanto ainda acredito na

134

eternidade, porque depois não me in-teressa mais. Quando me tornar velhoe alquebrado, o mundo irá se aprovei-tar de mim; irá sugar toda a minhainteligência e arrotar no meu rosto quejá estou velho e acabado, e que o meutempo já era, sem nenhum pudor oudescaramento.

Mesmo que tenha toda uma eter-nidade pela frente, a minha loucura, aminha insanidade não ficará lúcida parasempre. Gostaria de inverter essa si-tuação, de sobremaneira que o avessoexperimentasse todo esse dissabor depermanecer ignorado pelos bafejos dasorte.

E o homem parte mundo a fora embusca da sorte. Sofre as agruras dotempo, luta por um lugar melhor aosol e se descobre albino. Que o sol otortura, o sacrifica, o martiriza; entãoretorna ao lar, ensimesmado, e deixa

135

John Dekowes

Só os Anjos Morrem Cedo

o pensamento correr frouxo por aven-turas mil. E até descobre que a sortenão é tudo, quando não se tem felici-dade.

Mas sorte é sobejos de sacrifícios;felicidade é conseqüência. Logo dedu-zo que, é necessário uma dose muitogrande de dores, sofrimentos e derra-deiras lágrimas, para depois vir a feli-cidade, a abundância, a fartura. Poisbem... mas como sabemos o quantoque já sofremos bastante?

Logicamente que não existe nenhu-ma lógica nas redundâncias dos pul-sares, nem envolvimento pragmáticonas escolhas cabalísticas dos númeroda sorte. Há sim, um entrosamentoaurístico entre a síntese da razão purae a síntese da gnóstica razão prática.

Por mim, não ficaria muito preo-cupado se a sorte começasse a sorrirpara o meu lado, e eu pudesse corres-

136

ponder a esses laivos rompantes. Mas,antes que a idade refute a minha razãode ser, permaneceria por um bom sé-culo às expensas de desejos proibidose perdulários. Depois seriam outrasvontades a discutir. Mas, por mais queinterfiramos nos contrários, as situa-ções se invertem tresloucadamente, eentão fugimos contristados para den-tro de nós mesmos, buscando o res-quício insípido da solidão vulgar. E oavesso disso tudo seria o contrário dis-soluto da surrealidade com que plan-tamos nossos sonhos e nossas vonta-des. Mas permanecer calado diante detanta injustiça, é compactuar com odescalabro com que se sorteiam astômbolas do universo; e depois é ficara espera de que, no cair da noite, pordebaixo do pano, sobre algo para to-dos nós.

E, eu me resto com aquela acidez137

John Dekowes

Só os Anjos Morrem Cedo

cadavérica, cheio de espasmos e con-torções nauseabundas, só por causade irregularidades das quais não par-ticipei. Mas, quando a consciência nãoestá limpa, o sono não existe comodescanso, e sim, apenas como a desi-nência consubstancial de um terrível efatídico pesadelo. Tardiamente desco-brimos que a sorte é ambígua e in-constantemente prolixa.

Eu não exijo muito do meu fado,apenas a certeza absoluta de que es-tou no caminho divinamente correto,pois senão tiver um objetivo, os cami-nhos para mim serão meros caprichosgeológicos, e tudo obedecerá aos in-teresses essenciais e puramente ime-diatistas para a minha sobrevivência.Nada de precipitação quando se tem aconsciência da certeza e a honestida-de da recompensa. É até interessantequando se pressupõe a criação de no-

138

vos valores que se aglutinam a novarealidade. E os novos problemas queacontecem no reverso das situações,implica toda a consciência numa avas-saladora tragédia.

Afinal, porque devemos nos preo-cupar com o que passou, quando onosso presente ainda se ressente dasnecessidades mais prementes de ago-rinha pouco? É tão difícil se acostumarcom novos sentimentos quando nãoestamos preparados para assumi-losassim, de imediato. É tudo tão confu-so, tão esdrúxulo a espontaneidade queirrompe de nossas mentes, e até a sim-plicidade do olhar se torna tímido e osorriso sereno.

E começa um novo ciclo, e princi-pia um novo começo e se inicia umanova aventura.

***139

John Dekowes

Só os Anjos Morrem Cedo

Verdadeiramente, Vortlan percebiaque aquele alienígena não tinha nadade diferente dele. Buscavam os mes-mos valores, possuíam as mesmas ân-sias e desejos... os derradeiros sonhos;viviam também em constantes expec-tativas...

140

A proximidade coloquial de deter-minados diálogos proporcionam e su-gerem ao homem cometer determina-das situações insólitas de inconveni-ências. E da loucura para o delírio, émero acaso de possessão emocional.A partir do momento em que se en-contram, se deparam, se confrontam,se aproximam momentaneamente,num lampejo as possibilidades do de-sastre se tornam mais viáveis, maisevidentes, e nada impede que hajamdesencantos na vida individual de cada

CAPITULO NOVE

141

John Dekowes

Só os Anjos Morrem Cedo

um. Os rompimentos, indubitavelmenterefletem refluxos refluentes e reflexi-vos que terminam em melancolia! E osolhares quando se voltam, já são com-promissados com seus comportamen-tos fugidios e passageiros, mesmo nosmomentos de maior aceitação mútua.

Apesar de se perceber que os de-sencantos do cotidiano não fazem partedos mistérios da vida, paralelamenteuma outra realidade, com encantos milfloresce a cada segundo.

De tempos em tempos, a naturezatenta se modificar para melhor. Modi-fica-se dentro do seu próprio exoeco-sistema, se reestrutura e mantém-seestabilizada. E uma outra transforma-ção acontece na medida em que o ho-mem cresce e vai desestabilizando seupróprio habitat, criando para si umaarmadilha mortal. A fatalidade é o es-pectro crucial do seu trabalho de des-

142

truição, e perece instantaneamente,quando deveria permanecer por maisalgum tempo, alem dos séculos. A tra-gédia acontece em conseqüência daproximidade coloquial do homem coma natureza e o Criador. Não existe umaintimidade muito coesa nem harmoni-osa entre essa Tríade. Para dizer a ver-dade, o que aconteceu foi um simplespacto que partiu da relutância do ho-mem em não querer favores, e nem anatureza em favorece-lo. Nesse con-flito, apenas o Criador manteve-sealheio a toda essa situação deixando-a acontecer; e a história participou semo ciclo vicioso, e nunca se repetiu demaneira idealista. No entendimentoconceitual e alternativo ou filosofal, aunião entre as partes criou uma carna-lidade simbiótica, que simplificou aexistência.

E o homem vez ou outra, faz uma

143

John Dekowes

Só os Anjos Morrem Cedo

das dele. Como se considera a obraprima do Criador, considera a nature-za apenas subserviente, e se esquecedos compromissos assumidos no pas-sado. A natureza, então, para ser lem-brada, convulsiona fenômenos tempo-rais e ninguém mais a esquece.

No final, tudo se equipara volun-tariamente, e depois que a própria tra-gédia termina todo mundo começa apensar com mais calma, e percebemque o mundo, a natureza, o Criadornão são tão cruéis e vingativos comose lhes apresentam.

E o sonho é uma réstia de espe-rança nas perdidas esperanças do ho-mem.

E quando tudo está realmente per-dido, surge de algum lugar uma pro-posta tentadora, e a recompensa, ape-sar de tardia, reconforta. Dentro dospreceitos universais, a natureza não

144

alija nenhuma criatura quando não éagredida. E, mesmo ocorrendo, comocomumente acontece, a ferida com otempo é sanada com o esquecimento.E os dias por demais cansativos e es-tafantes, se tornam benevolentes aofísico e a alma.

E o sonho é um alento quando ospesadelos e delírios do cotidiano sãoum peso na consciência.

A inconstância do eterno amanhe-cer, transforma o amanhã enclausura-do em perdidas esperanças, num revi-ver de rebrilhos senis e alegrias tres-loucadas de desejos. O despertar domágico, o renascer da esperança, oeterno vir-a-ser do homem que per-manece em pecado e implora vida eter-na, contudo, sem esperanças na vida;o recaminhar por novos caminhos per-didos nos confins das lembranças, é oaval do infortúnio que teceu entre a

145

John Dekowes

Só os Anjos Morrem Cedo

morte e o libelo, já corrompido pormãos sujas e nepóticas. Seria tudomais fácil se a compreensão das pala-vras, o entendimento dos sentimen-tos, o acariciar dos olhos, o roçar dosbeijos, o toque dos dedos, o contatosutil das mãos, o afagar carinhoso doscabelos, o ouvir mudo das sílabas, osilêncio carente da solidão e o destêr-ro insípido e forçado de nossas men-tes, não fossem tão obsecadamenteforçados às situações da vida; não fos-sem tão neuróticamente exigindo re-paração dos erros humanos, não fos-sem tão despoticamente impingindovalores sobre torturas, não fossem tãonéscios a ponto de subverter o prazerde viver pela negação de si mesmo,não fossem o tiro no escuro que per-petra o final de qualquer um; a vidaseria bem mais fácil de se viver. A so-lidão que acoberta o grito preso na

146

garganta leva o homem a cometer lou-curas.

Sua exaltação de poder é fanatis-mo obsessivo e beligerante na propor-ção em que vai criando raízes degene-radas e mentalidades recíprocas deabsorções destrutivas.

Para mim, é mais fácil criar autô-matos desde o nascimento que forçaruma educação malograda e subservi-ente. Tudo é ilógico. A vida não temlógica sem a morte; a morte não temlógica sem o nascimento, o nascimen-to não tem lógica sem a fecundação, afecundação não tem lógica sem o amor,o amor não tem lógica sem a uniãodas partes, e as partes não têm lógi-cas sem o conteúdo do TODO, único,exclusivo, obsessivo, recessivo, pro-lativo e fixativo. Não basta saber dasnecessidades das partes, se não hou-ver carências de conteúdo pragmático

147

John Dekowes

Só os Anjos Morrem Cedo

em sua índole coercitiva.E o remorso não é um sentimento

vingativo. É volátil em sua maneira deabsorver as reações momentâneas... eintuitivas dentro de um padrão maisprofundo. As lembranças são partes deum passado cheio de remorsos e pe-sadelos. E os pesadelos se afiguramem primeiro plano do sentimento, poisas noites mal dormidas relembram ro-mances não conquistados, aventurasperdidas, beijos negaceados, brigasinúteis, carinhos, carícias abortadascom toques de mãos, sonhos e quime-ras esvanecidos pelo silêncio e pelomedo.

E o remorso marca profundamen-te o ser humano. Toda a sua vida sem-pre foi prenúncio de passado. O pre-sente só se faz presente no exato mo-mento em que se pensa, em que sefaz, em que se age, em que se beija,

148

em que se planeja o futuro, em que sedevota a vida a alguma coisa; depoisé passado novamente. E o remorsotorna-se presença consciente a todahora, pois representa o passado. Nãoque o passado seja um constante re-morso, mas as memórias de um tem-po passado sempre deixam transpare-cer algo que não foi feito ou aprovei-tado como deveria ser, ou as reaçõesnão seriam mais as mesmas, ou nãose procurariam ocultar tanto os senti-mentos assim, a cada momento davida.

Com o tempo, a gente vai ficandodesconfiado de que à medida em queo tempo flui, os sentimentos vão setornando mais amenos, e com isso,tudo o que ocorre ao nosso redor écotidiano... e o cotidiano não é maisdo que uma forma de se abafar o re-morso.

149

John Dekowes

Só os Anjos Morrem Cedo

Mas existe uma proximidade colo-quial entre o passado e o remorso. Háuma proximidade coloquial em tudo oque é vivo ou inanimado. Para se teruma idéia, qualquer coisa tem a suacara metade, ou aqui ou em qualquerparte do Universo. Qualquer coisa temo seu suposto antagônico, qualquercoisa tem o seu avesso, qualquer coi-sa tem o seu oposto, qualquer coisatem o seu reverso do contrário, e tudofacilitado para que o que é suposta-mente difícil e sacrificante, se tornefácil e edificante. A lua possui o seuaspecto coloquial com o sol, a noitecom o dia, o bem com o mal, o machocom a fêmea, mas, o mais interessan-te é que nunca há uma unidade única,não há uma conformação só, não háuma união, uma unificação de encon-tros, pois como tudo o que existe nes-te mundo, dois opostos se modificam

150

no ápice o encontro, e os desencon-tros se tornam perenes. E não há cau-sas perdidas, apenas teorias arquiva-das para sempre, mas com remotas ougrandes possibilidades de serem úteisalgum dia. Quem sabe?

A proximidade coloquial sugereuma concussão celestial do Senhor, nasua infinita bondade, e os anjos, ar-canjos e serafins. Como os anjos es-tão mais próximos das divisas terre-nas, como são maleáveis e solícitos,como são benevolentes e caritativos,como são previdentes e super-prote-tores, dão-nos a entender que um pas-so para se chegar ao Criador é atravésdeles. Como Ele é a nossa alma gê-mea, nossa cara metade, nada comosolicitar um confronto, um diálogofranco e aberto para se aparar certasarestas, digo, questionar tendênciasdivinas, digo, acertar os ponteiros,

151

John Dekowes

Só os Anjos Morrem Cedo

digo, pôr o pingo nos is, digo, soluci-onar certas questões pendentes desdeo princípio do nada... Esclarecer o por-quê do triúnviro patriarcal: Pai, Filhoe Espírito Santo, e na ordem mais bai-xa, anjos, querubins e serafins, e naordem especial os santos, orixás e fei-ticeiros?

Supondo-se que podemos acredi-tar que os anjos não possuam sexo, eque o sexo é apenas uma definiçãoanacrônica de um estado físico apa-rente, devemos, então, entender quetudo não passa de um mal entendidodivino (?). Quando ouvimos dizer quesomos feitos à imagem e semelhançado Criador, supomos que a nossa clas-sificação biológica é uma degenera-ção da espécie astral. Não que o nossoCriador, cuja imagem conhecida sejaum esmêro de perfeição (?), mas quenão é o nosso Criador, e sim o nosso

152

irmão mais velho, queira que volte-mos à estaca zero. Teorias, dúvidas,teses e tudo não nos levam a caminhonenhum. Assim como todos os cami-nhos são estranhos às nossas necessi-dades imediatas, nós perdemos a no-ção do ser quando especulamos sobreas nossas origens. Quando indagamosporque somos assim, biologicamente,fisicamente e cerebralmente, questio-namos verdadeiramente até que pontovai a nossa semelhança com o Criador.Já que na questão da sexualidade, osanjos, os arcanjos, os querubins e se-rafins não possuem sexo, e como nóstambém temos origens próximas aoCriador, mas, dada a nossa condiçãofísica, nos fragmentamos sexualmen-te em macho e fêmeas, ainda dá o quepensar a respeito. Se somos, a suaimagem e semelhança, há um ato fa-lho em algum lugar. Há incompreen-

153

John Dekowes

Só os Anjos Morrem Cedo

são em alguma linha do segmento. Seo Senhor, na sua infinita bondade, forassexuado, como os anjos, em sua li-nhagem mais próxima, então, nós so-mos uma constante mutação, uma eter-na desventura, de viver buscando mol-des de um Criador amorfo, somos umapilhéria!

Mas se, por outro lado, ELE nãofor assexuado e apenas direcionar asespécies para este ou aquele sexo, temque haver um conhecimento de causa.Se tudo se origina DELE, se tudo secria NELE, se tudo se projeta atravésDELE; o principio da matéria é ELE, aforma, a essência é somente ELE, en-tão o nosso Criador é consequente-mente uma anomalia! É hermafrodita!

É compreensível. É alentador.Por isso que tudo na vida tem seus

contrários opostos e a proximidadecoloquial nada mais é do que uma ade-

154

quação tardia dos sentimentos, da ra-zão, do olhar.

Mas ainda nos resta um consolo.Ao morrermos, poderemos tirar essasdúvidas. Não me apetece nem um pou-co morrer para ficar sabendo. A eter-nidade é mais extasiante! E as benes-ses da vida são mais gratificantes. Sebem que, às vezes, a morte não secoadune com esse pensamento...

***

ERHU-DHYN, Senhor Deus, em suasanta sabedoria, perdoaria esse infi-el?! Afinal, se existiam dúvidas naque-le Ser quanto ao seu Deus, nele nãohaviam nenhuma... Como duvidar deuma divindade? Como questionar so-bre as obras de um Deus? Como desa-creditar do poder de ERHU-DHYN,Deus, Todo Poderoso? E como era o

155

John Dekowes

Só os Anjos Morrem Cedo

nome daquele deus que o alienígenareplicava? Apenas Deus! Um Ente divi-no, inominável! Ele falava da proximi-dade coloquial entre o Deus e a criatu-ra, mas ao mesmo tempo, cogitavasobre a distancia para atingi-lo, atra-vés de entidades menores... Mas poroutro lado, se conectava com o seuDeus, com tanta intimidade, que che-gava a devassar a sua descendênciadivina!!!

Seu Deus tinha nome: ERHU-DHYN!Senhor de todo o Universo e Criadorde todas as coisas viventes! Soberanoabsoluto dos Cosmos. Bondoso, mastambém muito cruel e impiedoso.

156

Desde o principio dos tempos queo homem tem verdadeira adoração poralguma coisa. Quando não é por elemesmo num frenesi narcisístico, éconsequentemente, por objetos outransforma sua idolação por algumaparte do corpo humano, ou quando nãoo é por ele todo. Simbolismos à parte,chega quase a ser uma psicose que oleva às raias da insandice. E gostarmuito é uma efemeridade, que se des-gosta logo após passar a vontade.Querer, já não é tão importante quan-

CAPITULO DEZ

157

John Dekowes

Só os Anjos Morrem Cedo

do a voracidade dos desejos sucumbi-ram na desinência do tempo. Os atra-tivos são pertinentes ao subconscien-te, que sufocados por interesses re-pentinos, vão sendo isolados todo odia. E a verdadeira paixão é mais acin-tosa na medida em que as fantasiascriam ambientes propícios às aventu-ras, e depois, é só apascentar o corponuma cama bem macia, se enrolar emlençóis de cetim e sonhar... deixandoa imaginação livre, leve e solta.

Mas o motivo disso tudo, é quesensivelmente, todos nós temos nos-sos desejos, nossas vontades, nossasadorações, nossas fixações, nossaspsicoses, nossas paixões reprimidas,nossos momentos de desvairados,insanos, e loucos arroubos de satisfa-zer nossos mais íntimos e prementesanseios, saciando assim por completoa nossa sede. E juntando tudo isso,

158

sempre nos resta a esperança das rea-lizações. E os gostos são os mais es-tranhos possíveis, as vontades sãomais esdrúxulas possíveis, e quandose fixa o desejo na nossa memória, jánão nos restam mais esperanças. Equando chega a paixão, as flores doimenso jardim estão mais floridas echeirosas, e a sensibilidade aflora portodo o corpo. E as paixões são maisimportantes quando se afinam com amúsica que embala os sonhos, com osanseios que reconfortam no silêncio elibertam nossa alma de poeta. E háquem diga que não tem paixões, nãotem desejos, não sente atração, nãotem adoração, não tem fixação, nãotem vontades, não tem psicose, nãotem nada! E a esses vazios ambulan-tes, a esses sacos de pusilanimidade,a esses vácuos excretorais, a essesparasitas, só restam um consolo...

159

John Dekowes

Só os Anjos Morrem Cedo

Meus pêsames. Chafurdem suas reti-cências nas fossas da vida, se percamem confabulações neuróticas. (...)E quem não devota um pézinho perfu-mado? Quem não tem verdadeira pai-xão por um tornozelo bem torneado?Quem não abdica de tudo por náde-gas bem fornidas? Quem não chega àsraias do crime por um par de seiosbenevolentes ou pequenos e dóceis?Quem não vai à loucura por causa deum rosto suave e meigo? Todo mundotem o seu período de ocaso. Todomundo tem seu tempo de lassidão, todomundo devora com os olhos tudo oque se lhe afronta, escolhendo assim,as suas premissas básicas.

E como não poderia deixar de ser,sou um ser humano, também tenho aminha paixão: umbigos! Céus, comosou! Existem uma infinidade de umbi-gos que me deixam fascinados. Se

160

Deus, na sua infinita bondade, fez amulher com todo o capricho que lhe épeculiar, foi no umbigo que Eledemostrou toda a sua sensibilidade. AQuinta essência de toda uma transfor-mação do belo. Cada umbigo é umsonho, é magia decantada em poesiae pureza cósmica!

Umbigos coevos. Embigos mudos.Imbigos rotundos!

Umbigos que gritam. Embigos quesussurram. Imbigos murmuram.

Em cada umbigo está contido todaa feminilidade da mulher. Não importaser ela bonita ou feia, jovem ou velha,branca ou negra, morena ou amarela,verde ou roxa, ou seja lá que cor. Oque importa são os contornos suavesdo umbigo, que surgem como umamelodia imortal, como um canto har-monioso e profundo que penetrante vaiaté ao fundo da minha alma, arran-

161

John Dekowes

Só os Anjos Morrem Cedo

cando gemidos pungentes de êxtase eletargia...

Sou um mísero mortal que desco-briu um recanto, um pequeno buracono corpo sedoso onde posso deleitar-me horas a fios em contemplação dasdivinas formas. Quando penso naque-la simples covinha no meio do corpo,meu ser devaneia perdido em sonhosumbilicais!

E o que me importa se o chamamde embigo, umbigo ou imbigo? Ocharme da mulher está no umbigo, abeleza da fêmea está no embigo, e asensualidade mulher está no imbigo.Como se soubesse do segredo mági-co, ela encobre-o, esconde-o a setechaves ou deixa-o à mostra para queolhares esfomeados e devassos, chei-os de pensamentos pecaminosos go-zem suas fantasias. Eles não possuemo apuro nem a candura dos meus olhos.

162

São brutais e indecentes! Pobres hu-manos... Sinto-me penalizado por ta-manha falta de perceptibilidade. Comofoi que até agora ninguém percebeu oquão majestoso é aquele pequeno ori-fício, do qual é a fonte primordial denossa existência? Sim, pois o umbigoé apenas uma cicatriz do cordão um-bilical, desmistificado. Sem ele nãoteríamos vida... quero dizer, não rece-beríamos as vitaminas e proteínas ne-cessárias para a manutenção da nossacurta existência.

Porque as coisas mais belas domundo sempre passam desapercebi-das? Porque ninguém nunca perdeu umpouco de tempo para mirar o seu um-bigo? Mulheres! Não importa que se-jam botões ou flores murchas, nãoimporta que já amaram ou foram ama-das, o que importa é o que represen-tam. Um turbilhão de magia e mistéri-

163

John Dekowes

Só os Anjos Morrem Cedo

os indevassáveis, enclausurados nosilencioso e ardente orifício encanta-do. A ti, mulher formosa, te dedico aminha insignificante sabedoria de mor-tal. A ti, regato de inconfundíveis se-gredos, te dedico toda a transforma-ção magnânima e onipotente como ocentro do universo...

...E os parvos e idiotas com sorri-sos de gozações, elocubram suas pai-xões tardias e tropeçam em suas pró-prias boçalidades...

***

Vortlan compreendia os mais ínti-mos desejos daquele ser mortal.Transparecia em cada palavra e pen-samento, sem o menor pudor, toda assuas vontades, agora prisioneiras erevoltas.

164

O silêncio e a solidão que percebobem no fundo de seus olhos negrosrevelam que o fim, por que esteja dis-tante, se aproxima vertiginosamente.E o momento é esse para as despedi-das, para os beijos, para os abraços,para as confissões, para os desfechosestratégicos no escurinho do cinema.E nada de choro, nada de soluços re-cortados de lembranças tardias, nadade timidez, nada de saudades, nadade sorrisos trêmulos, nada de olharesencobertos de tristezas, nada de parti-

CAPITULO ONZE

165

John Dekowes

Só os Anjos Morrem Cedo

das bruscas para bem longe do mun-do. Enfim... Nada que possa transpa-recer que um dia iria acontecer real-mente uma ruptura infinita.

Mas seus olhos trágicos e profun-dos refletem em mim, como buracosnegros de um revolver, pronto a desti-lar a luz fria e mortal contra a minhaalma extasiada e prisioneira da es-sência.

Mas o sonho é uma partida semfim. É um constante caminhar infindo.E a cada momento, as distâncias vãose tornando impossíveis de serem com-pletadas; os trajetos vão se tornandomais íngremes e tortuosos, e o cansa-ço e a fadiga vão se tornando maisintensos, e as recordações vão se per-dendo pelos caminhos desmemoriadosda nossa existência, que faz o tempose perder pelas curvas e encruzilhadasdo cotidiano. Jamais, em tempo algum,

166

em lugar nenhum as premissas tem-porais foram tão almejadas quantoagora. Sim, houve já um tempo, umlugar em que o fim era apenas umanecessidade de continuação. Um mo-tivo aparente, mas primordial, quecomparado às finalidades atuais, seriao mesmo que um regurgito. Os princí-pios básicos da lei da sobrevivênciasubjugam os valores morais e o con-ceito primitivo da civilidade. Matar oumorrer? Antes, era matar para sobre-viver... Hoje, é morrer para a vida eterna(?). As necessidades básicas já não sãotão importantes quando forças exter-nas pressionam e impingem o homema lutar apenas por valores mínimos,quando toda a sua vida é importante.

Mas o fim é uma proposta, ao pas-so que uma finalidade é apenas umaespécie de intermediação entre conse-qüência e ato. E quanto o fim justifica

167

John Dekowes

Só os Anjos Morrem Cedo

os meios, é sinal de que alguma coisanão está bem. Alguém, em algum lu-gar, está perdendo. Num jogo ou apostalúdica, ninguém faz um lance para per-der. Ou quando perde, perde pelo sim-ples fator de que já existe a intençãode ganhos fartos e compen-sadoresmais além. Assim, desde o princípio éque nada se coaduna em perfeita har-monia.

O caos projetou-se de uma talmaneira que o fim já não representanenhum conceito de salvação. As con-jecturas para a solução do problemasão tão estapafúrdias que a vergonhaaté embaça as lentes do meu óculos.

Acreditamos, geralmente, que o fimnão é o final reticente de nossos atos.Contudo, nunca questionamos a fina-lidade dos princípios que habitualmentebaseamos nossas razões para os pro-blemas que se apresentam. Afronta-

168

mos sim, um questionamento maisanalítico da eternidade e sentimosmuito medo, entretanto, o medo nosdá força para as ambigüidades circuns-tanciais. Em si, o fim é quando acaboude vez, é quando terminou, é quandofindou, é quando o eterno ser se en-rascou numa cama de gato, e se estre-pou estatelado,

Depois de um vôo rasante no chãocheio de cacos de vidros, e foi chorarseu pranto derradeiro debaixo da saiada mamãe. E o que importo o fim,quando no inicio era a maior confu-são? E quando o assunto em pauta,não está aberto a discussões, rever-tem-se às situações, e comenta-seentre uma bebida e outra, da badernacelestial ocorrida há algum tempo.

Mas o que importa realmente, é aimportância importante e majestosa dofim. Às vezes, queremos dar um basta

169

John Dekowes

Só os Anjos Morrem Cedo

e pronto. Tudo acabou! Porém não éassim. Não basta terminar e dizer queacabou. O fim, para dizer a verdade,não termina logo depois da esquina,ou depois de um porre, ou depois deuma trombada, ou depois de uma bri-ga de namorados, ou depois de umdia, ou depois de uma noite, ou de-pois de um romance. Agora, fim fimfim mesmo, é quando não resta maisnenhuma esperança; é quando a fitade cinema chegou ao final, é quando asede foi saciada, é quando a músicanunca mais tocou.

E a gota de orvalho na queda, rom-pe a barreira de sua integridade física,e se consome de ocasos metafísicos. Eassim começa o dia. Uma realidadecheia de fantasias e muito louca, queprincipia no limiar indissoluto da man-sidão impávida da claridade, que ator-mentada num tom lúdico, anseia já

170

pelo entardecer. E o rastro ácido dei-xado como uma estrada infinda, ter-mina num precipício brusco e indecen-te, que se perde nos sonhos da ma-nhã. E assim é a vida, e assim é si-gnificativamente a morte.

E assim como todo animal, deixauma trilha para capturar a sua presa, ohomem, também capitula diante o seunefasto e inexorável fim. Sem apelo esem lamúrias. Sem apelo seria um atode bravura e sem lamúria seria um atode heroísmo, e como o homem não édado a muitas excentricidades imedi-atistas, se aproveita das situaçõesmomentâneas, escapulindo do crivometafísico do fim. Mas nem por isso,se torna um super homem, ou um imor-tal por muito tempo. Nem por muitotempo ele é herói, nem por muito tem-po ele é covarde, nem por muito tem-po ele é subserviente, nem por muito

171

John Dekowes

Só os Anjos Morrem Cedo

tempo ele é servil, nem por muito tem-po ele é um palhaço, nem por muitotempo ele é vivo, mas no fim, ele épor muito tempo morto. E passa aoesquecimento temporal, e passa paraa vida eterna nas lembranças históri-cas dos que vivem através as gera-ções, os coetâneos. E as memóriasestabelecem a conexão catalisadora derecordações dos passados eqüidistan-tes. E as memórias fazem a eterna ne-cessidade de viver mais forte, maisvoluntariosa e mais enérgica.

A existência jamais sucumbe às fi-nalidades preconceituosas e anômalas,que divergem do sentido de viver. Emtudo, quando não existe uma ruptura,as prerrogativas são mais importan-tes, porque não pressionam a maneirade ser, e, a existência se torna pacíficae coesa dentro do Ser.

Tão logo o fim se aproxima, as idéi-

172

as ficam mais claras, e o remorso emo-tivo aflora à pele, o sentido da vida setorna mais latente, a visão turva ficamais límpida, os olhos se perdem emvestígios e resquícios de lembrançastardias, os lábios esboçam sorrisospesarosos e contristados, os dedosrebuscam suaves contornos em rostosvagos e lembrançosos, que reforçamas reminiscências de outrora, as lagri-mas soçobram psicóticas e obsessivaspor faces sedosas e serenas, por sem-blantes duros e magoados com a vida.

A insensibilidade goteja a mesmi-ce verbal dos tempos finais, e na horado acerto de contas, os arrependimen-tos retornam sorrateiros e maledicen-tes. E a consciência pródiga em ocul-tar segredos mais íntimos, em escon-der os simulacros do mistério da ver-dadeira fé, em mascarar os preceitos epreconceitos, se revela de maneira vil,

173

John Dekowes

Só os Anjos Morrem Cedo

torpe e vulgar. E a situação momentâ-nea fica tão confusa, tão caótica, quese tem que empurrar goela abaixo ocotidiano.

E quando se pensa que o sonhotermina no abrir dos olhos, com o che-gar do dia, com as realizações realiza-das, com os desejos satisfeitos, ledoengano.

O sonho faz parte da nossa vida,faz parte da nossa mente, faz parte donosso espírito, faz parte da nossa alma,faz parte do nosso sonho... Faz partedo nosso fim. E o sonho nunca é pas-sageiro, os passos sim, se perdem naimensidão do infinito em largas pas-sadas até o cansaço se fazer presente,então, volta-se a ser um astro-rebento(?).

Em verdade eu vos digo, aqueleque caminha a passos largos, nuncamata o tempo, apenas cumpre as ne-

174

cessidades inerentes ao seu espaço. Enunca saberão o que aconteceu com asombra perdida na escuridão do in-consciente. E nunca poderão saciar asede em fontes de águas cristalinas,pois a pressa mistura os sentimentos,e transforma a pureza em lodaçal. Enunca verão o nascimento do filho pró-digo, pois o gozo mundano não temdestino. E nunca pressentirão ao me-nos o latejar vital das formas, pois otempo será escasso para os carinhos eafagos. E nunca sentirão o sentimentodas lágrimas, pois o ar ácido é gélidonão permitirá tais sensações. E quan-do chegar o fim será apenas mais umaconseqüência do fastio inóspito e fru-gal do fim.

Em si mesmo, o fim é o eternofinal. Não existe outro modo ou outraforma de finalizar sem ser o derradei-ro término. Existe uma infinidade de

175

John Dekowes

extermínios, mas só um fim. Existe umaincomensurável vivacidade nos gestosde adeus, mas uma única finalidade.Existem infinitas maneiras de beijos,mas somente um fim recíproco. O fimnão justifica os meios, porem de fo-ram inexorável, os meios justificam umúnico fim.

E um único fim, não é mais do queo começo de alguma coisa, não é maisdo que o principio de uma nova reali-dade, não é mais do que uma reavali-ação de todos os princípios morais,religiosos e universais.

Não é mais do que dizer acabou,terminou, finalizou

Só os Anjos Morrem Cedo

176

-HALCEN!

-HALCEN!

-HALCEN!

Só os Anjos Morrem Cedo

-HALCEN! HALCEN! HALCEN! -gritou Vortlan. E sua voz ecoou numimenso vazio, reverberando pelo silên-cio do infinito. Tinha a impressão deque o corpo onde estava aprisionado,perdia as forças vitais, a energia... Esucumbia... Ele começava a pressentira solidão.

180

FINAL

Vortlan descobrira uma coisa de-pois dessas experiências, sentia-secomo um inimigo dele mesmo: umverdadeiro maharnóide. O seu espíritode guerreiro envergonhado pelas ati-tudes tomadas, e por tudo o que acon-tecera, abaixava a cabeça, e retirava oseu óculos, desconectando o seu in-dutor cerebral, e sumindo para sem-pre, sozinho pelo universo, numa fugacheia de humilhação e carregada dosentimento de desprêzo por si mes-mo. Era muito triste ter de pensar;

CAPITULO DOZE

181

John Dekowes

Só os Anjos Morrem Cedo

abandonar a luta, os princípios milita-res que foram a base da sua existên-cia, por uma rixa inglória. Contudo,havia uma coisa bastante diferente queainda não conseguira atinar. Não eracomo estava acostumado a ver. Osmaharnóides iam muito mais além.Seus hábitos possuíam um padrão:princípio, meio e fim. A sua visão eratotalmente incompreensível... Eles le-vavam a lógica muito alem do seu co-nhecimento. Como soldado, compre-endia a tática inimiga, contudo, esta-va com os pensamentos voltados paraas emoções, para um aspecto circuns-tancialmente psicológico, cheio de con-ceitos metafísicos. Sentia-se perdido.Concebia agora, que cada indivíduo aomorrer, carregava suas memórias, suaslembranças mais íntimas.Assim como absorvera a memória deHalcen, também possuía a sua, que

182

estava em total conflito naquele mo-mento. Uma situação que transcendiaa compreensão espiritual, e por algunsinstantes via-se num paradoxo filosó-fico constrangedor. Não tinha o direitode invadir a privacidade de ninguém!Mas por outro lado, brigava por valo-res morais inexistentes. Mas como fi-caria tudo aquilo que acumulara den-tro de si? Para onde iriam as lembran-ças de Halcen e as suas? Qual seria ofim de tudo aquilo? Como ficariam asexperiências passadas, com relação àsgerações futuras, para que não come-tessem os mesmos erros? Uma incóg-nita pairava sobre a sua cabeça. Por-que estaria se preocupando agora comas gerações futuras, se não sabia nemcomo se safar daquela situação pre-sente, e na qual estava totalmente en-volvido!

Sentia as forças se esvaírem e suas

183

John Dekowes

Só os Anjos Morrem Cedo

energias sendo atraídas para fora da-quele corpo. Era um grande alívio.

- A libertação, finalmente! Excla-mou. O corpo de Halcen jazia na pe-numbra, em meio a luzes vermelhas eesverdeadas que piscavam alucinada-mente. Independentemente, indiferentea toda aquela confusão, Halcen lheconfortara e ensinara muitas coisas.Prisioneiro daquele corpo era uma pre-sa fácil para todos os tipos de invaso-res que se fizessem naquele planeta.As suas estruturas de carbono não pro-tegiam nada! Serviam apenas para alocomoção. Em si, eram criaturas fra-gilizadas por sentimentos e emoções...Sem nenhum conteúdo mais forte queos protegessem de qualquer invasão;e tinha como sina: viver para morrer,sem nenhuma chance de uma existên-cia maior. Morriam cedo, e mal come-çavam a viver � quando chegavam no

184

momento em que deveriam ultrapas-sar os limites do corpo, - sucumbiamde modo dramático, morriam cedo feitoos anjos; desconhecendo completa-mente pra onde iam, depois de passartoda uma vida tentando descobrir deonde vinham...

Seu corpo alçou altura, mas nãochegou a ir tão longe. Viu-se cercadopor uma legião de maharnóides. Escu-tou uma voz suave, que parecia ter miltons diferentes, e em outros tantosidiomas... Mas compreendia perfeita-mente aquela que preenchia a sua es-sência. Seu nome soava com muitacandura... A voz o impressionava pelaforma amigável que lhe chamava...Muito diferente.

�Vortlan... Vortlan... Vortlan... nós,os maharnóides, apenas preservamosas memórias e lembranças de cadapovo... Não somos o pensamento car-

185

John Dekowes

Só os Anjos Morrem Cedo

nívoro das raças, como vocês imagi-nam. Não consumimos... apenas guar-damos para um objetivo muito maior.Cada ser que morre em todo o univer-so tem a sua mente preservada pornós. Qual a finalidade? Assim comoexiste a morte, há também cosmos,mundos, planetas, galáxias inteiras emconstante gênesis, para serem habita-dos por criaturas das mais diversasordens e formas de organismos, quesão gerados por processos inconcebi-velmente divinos... Mas nós, os mahar-nóides, fazemos parte desta inteligên-cia cósmica que coordena o Universo...Somos portadores de todo o conheci-mento, e levamos para cada criaturamemórias e lembranças de outras civi-lizações, para que ao evoluírem, cres-çam maduras e experientes, e não co-metam os mesmos erros ao forjaremidéias semelhantes... Você sabe, bem

186

no seu interior, o que habita no seuâmago são bilhões de células organi-zadas de outras raças, espécimes...�.

�Vortlan... Vortlan... nós, osmaharnóides, somos apenas os lavra-dores do universo... apenas podamospara fortalecer as raízes das novas ge-rações... apenas cultivamos as raçasdo cosmo...�.

As milhares de vozes, às vezes serepetiam como num eco infinito, paradepois retornarem no mesmo tom co-nhecido.

�Este ser lhe passou todas as suasexperiências que vivenciou durante asua vida. Tudo será absorvido juntocom as suas memórias e preservadoatravés de você. Mas em outro mun-do, em outro tempo, em outro lugar,em outro universo, como parte do cres-cimento e evolução de outra raça. Porisso, quando a mente deste novo Ser

187

John Dekowes

vagar em sonhos e devaneios, ela teráa impressão de já ter conhecido outrospovos, viajado por lugares exóticos eestranhos... E quando esse Ser mor-rer, suas lembranças, assim como suasexperiências serão aglutinadas a ou-tra... É desta maneira que milhares decivilizações, raças, povos deste univer-so infindo são constituídos. Tudo se-gue um ciclo vital e divino. Nada podeimpedir esse processo. Nós somos ape-nas uma infinita parte de um Todo, queestá dentro de cada ser possuidor des-ta inteligência cósmica, portanto, quan-do um dia orar para os céus, você nãoestará mais do que, numa súplica, que-rendo voltar às suas raízes e se tornaruno... Não fica se questionando, poisquando menos perceber, descobrirátudo e desvendará todo o mistério...�.

E a voz em uníssono foi sumindonum eco, quase num sussurro. Os

John Dekowes

188

maharnóides não estavam mais ali, oumelhor, suas luzes de rosa metálico,agora estavam brancas, intensas e ir-radiantes...

Até o último instante, antes de serenvolvido pela luz, pela forte energiaque vinha dos maharnóides, seus pen-samentos eram cortados por imagensde Altÿon e da Terra. Eram as últimaslembranças, resquícios de memórias,restos de visões do passado...

�Se um dia suas lembranças sevoltarem para um lugar distante, seupeito se encher de solidão, seus olhosexplodirem em lágrimas, e você chorarsem saber o porque, pode ter certezade que é a saudade de voltar para oseu mundo, que este Ser enclausura-do no seu corpo está sentindo...�

Vortlan agora sabia; tinha a abso-luta certeza de que tudo o que fizeradesde o instante em que deixara o seu

189

Só os Anjos Morrem Cedo

planeta, fora tudo planejado, organi-zado, feito de acordo com o que esta-va já estabelecido por um plano divi-no. Erhu-Dhyn era perfeito em suasabedoria, e poderoso na sua criação.O seu corpo cósmico fundia-se ao da-quele ser, para juntos se tornarem unona concepção de outro ser em outradimensão... Em algum lugar distantedo espaço sideral.

Fim

Madrugada - Terça feira. 12/12/000 - 01:16h.

Só os Anjos Morrem Cedo

190

Para se ler �Só os AnjosMorrem Cedo� o novo livro de fic-ção científica do escritor John Deko-wes, é preciso largar os preconcei-tos de lado, despojar-se de valoresmorais e religiosos já irraigados pelotempo, deixar a mente fluir despreo-cupadamente, para poder então, en-tender e encarar a catarse humanaque é revelada por Halcen, um serhumano em fase terminal de vida, eque não quer ir ao encontro da mor-te sem antes confessar a alguém osseus medos, desejos e anseios que ainda estão muitofortes dentro de si.

Essa oportunidade surge, quando o seu corpo éinvadido por um ser alienígena, chamado Vortlan; umguerreiro do planeta Altÿon localizado na 68ª zona di-mensional, e que foge do seu mundo dominado pelosMaharnóides � seres de estruturas bio-luminescentes esugadores de energia cósmica.

�Só os Anjos Morrem Cedo� de John Dekowesvasculha a alma e os sentimentos humanos de um modofrio, cruel, impiedoso e sem nenhum pudor. E, às vezes,o próprio leitor vai se confundir com o que está lendo: asemoções serão suas, de Halcen ou do alienígena?

JOHN DEKOWES

Só os AnjosMorrem Cedo

Só os AnjosMorrem Cedo

Só os AnjosMorrem Cedo

CA

PA: J

ohn

Dek

owes