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Sínteses das Intuições: idealismo e empirismo na constituição da experiência kantiana Lucas Leitão Silveira Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação Lógica e Metafísica, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Filosofia. Orientador: Prof. Dr. Pedro Costa Rego Rio de Janeiro 2019

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Sínteses das Intuições: idealismo e empirismona constituição da experiência kantiana

Lucas Leitão Silveira

Tese de doutorado apresentada ao

Programa de Pós-Graduação Lógica

e Metafísica, Universidade Federal

do Rio de Janeiro (UFRJ), como

parte dos requisitos necessários à

obtenção do título de Doutor em

Filosofia.

Orientador: Prof. Dr. Pedro Costa Rego

Rio de Janeiro

2019

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Sínteses das Intuições: idealismo e empirismo naconstituição da experiência kantiana

Lucas Leitão Silveira

Tese de doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação Lógica e Metafísica,Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro(UFRJ), como parte dos requisitos necessários à obtenção de título de Doutor emFilosofia.

Aprovada por:

_________________________________________________________Prof. Dr. Pedro Costa Rego (UFRJ) – Orientador

________________________________________________________Prof. Dr. Guido A. de Almeida (UFRJ)

________________________________________________________Prof. Dr. Ulysses Pinheiro (UFRJ)

________________________________________________________Prof. Dr. Roberto Horácio de Sá Pereira (UFRJ)

________________________________________________________Prof. Dr. Luciano Nervo Codato (Unifesp)

________________________________________________________Prof. Dr. Germano Nogueira Prado (Pedro II)

Rio de Janeiro

31 de janeiro de 2019

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à memória de minha mãe

… amor eterno…

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Agradecimentos

À minha mãe e meus familiares pelo apoio incondicional.

Ao Pedro Rego, pelas discussões e paciência ao longo desses anos.

Aos professores Guido Almeida e Raul Landim que me introduziram à filosofiade Kant ainda na graduação, e aos demais professores do antigo Seminário de Filosofiada Linguagem e do que veio a ser o PPGLM, os quais foram imprescindíveis na minha

formação filosófica, em especial a Ulysses Pinheiro.

Ao professor Daniel Warren por ter me recebido no estágio sanduíche naUniversity of California, Berkeley.

Aos meus colegas de doutorado, em especial a Vinícius Carvalho e Danillo Leite.

À CAPES, pela bolsa concedida, que me permitiu dedicar-me exclusivamenteao doutorado.

À Alexandra Elbakyan e aos apoiadores do Sci-Hub e do LibGen, sem os quaiseu não teria acesso à maior parte da bibliografia consultada, o que possibilitou a

realização desta tese.

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Resumo

A tese de que o entendimento, mediante sínteses categoriais, desempenha um

papel na fabricação ou construção dos objetos empíricos, ou de modo mais amplo, da

própria experiência perceptiva, é uma das teses mais inovadoras e centrais da filosofia

kantiana, de modo que toda esta é afetada por como se compreende essa relação entre

entendimento e sensibilidade, entre categorias e intuições. Tal tese, de que o

entendimento faz os objetos, chamo de ‘idealismo construtivista’, para distingui-la de

outros sentidos de idealismo. A leitura dominante do kantismo interpreta esse idealismo

de um modo bastante extremo, dizendo que o entendimento faz os objetos na medida

em que faz toda intuição estruturada (como uma imagem), ou seja, segundo essa leitura,

cada representação sensível com a qual estamos familiarizados seria feita por sínteses

do intelecto, donde a caracterização dessa leitura como “intelectualista”. Na primeira

parte dessa tese apresento argumentos textuais e filosóficos contra tal leitura

intelectualista, defendendo em seguida que o idealismo construtivista de Kant é melhor

entendido e melhor fundamentado de outra forma, a saber, não como dizendo que o

entendimento faz cada intuição, mas apenas que ele liga e conecta as intuições no

tempo, formando uma série temporal. Como a leitura dominante do kantismo

intelectualiza e conceitualiza as intuições, dizendo que estas, assim como as qualidades

sensíveis que apresentam, são formadas pelo entendimento mediante regras particulares

de síntese, tal leitura impede uma apreciação do empirismo kantiano, i.e. do papel

daquilo que é meramente dado. Assim, na segunda parte desta tese, a partir do resultado

obtido, de que, nas suas qualidades empíricas particulares, as intuições devem-se apenas

à receptividade, volto-me aos textos de Kant para investigar sua teoria dos conceitos

empíricos e como eles são extraídos da intuição.

Palavras-chave: síntese sensível; experiência kantiana; intuição; conceitos empíricos.

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Abstract

The thesis that the understanding, through categorical syntheses, plays a role in

the production or construction of empirical objects, or even of perceptual experience, is

one of the most central and innovative theses of Kant’s philosophy, to the extent that the

meaning of the latter is entirely dependent upon the way one comprehend the relation

between understanding and sensibility, between categories and intuitions. In order to

distinguish it from other kinds of idealism, I call ‘constructivist idealism’ this thesis

according to which the understanding produces objects. The prevailing reading of

Kant’s philosophy interprets such idealism in a very extreme fashion, arguing that

understanding produces objects to the extent that it produces every structured intuition

(like an image), that is, according to this reading each sensible representation would be

created by intellectual syntheses. In the first part of the thesis, I shall offer textual and

philosophical arguments against this intellectualist reading, and I shall defend that

Kant’s constructivist idealism is better interpreted as the doctrine according to which the

understanding links and connects intuitions in time, forming thereby a temporal series,

instead of creating each intuition. Since the prevailing reading intellectualizes and

conceptualizes intuitions – as though they, along with its sensible qualities, were

produced by the understanding by means of specific rules of syntheses, it becomes

impossible to accommodate Kant’s empiricism and the role of what is simply given in

experience to our empirical knowledge. Thus, in the second part, having hopefully

established that, in its specific empirical qualities, intuitions stem from sensibility alone,

I turn to Kant’s text and investigate how the theory of empirical concepts explains the

latter and the way they are abstracted from experience.

Key-words: sensible synthesis; Kantian experience; intuition; empirical concepts.

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Sumário

Introdução………………………………………………………………………. 9

Parte I. Idealismo construtivista: sínteses sensíveis

Introdução: o idealismo construtivista e a leitura intelectualista………………… 12

1. A rejeição da leitura intelectualista……………………………………………. 17

Problemas textuais da leitura intelectualista

1.1. Conflitos com a Estética Transcendental…………………………………… 17

1.2. Dados sensórios…………………………………………………………….. 20

1.3. Conflitos com a noção de síntese…………………………………………… 22

Problemas filosóficos da leitura intelectualista

1.4. Conceitos empíricos como regras de apreensão……………………………. 24

1.5. O argumento intelectualista (ou a falta de um) para o construtivismo…….. 28

2. O fundamento da síntese sensível e do idealismo construtivista……………… 32

2.1. A consciência do tempo e a exigência de uma síntese……………………… 33

Parte II. Realismo Empírico: características e conceitos empíricos

Introdução……………………………………………………………………….. 40

Matéria e forma das representações…………………………………………….. 41

Conceitos empíricos…………………………………………………………….. 44

Características (Merkmale)……………………………………………………… 45

Heterogeneidade das representações……………………………………………. 48

O particular, o universal, e a semelhança……………………………………….. 51

Crítica à teoria empirista dos conceitos (1): semelhanças………………………. 54

A forma da generalidade………………………………………………………… 60

Crítica à teoria empirista dos conceitos (2): recortes empíricos………………… 65

Conclusão 72

Referências bibliográficas……………………………………………………….. 77

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Lista de abreviaturas

As referências da Crítica da Razão Pura seguem o padrão A/B, concernentes

respectivamente à paginação da primeira e segunda edições originais. As referências às

demais obras de Kant são feitas pelo volume e página da edição da Academia. As

traduções baseiam-se nas edições referidas na bibliografia, mas com significativas

modificações.

A/B Crítica da Razão Pura

CJ Crítica da Faculdade de Julgar

Dissertação de 1770   Formas e princípios dos mundos sensível e inteligível

Antr Antropologia de um ponto de vista pragmático

L. Jäsche Lógica de Jäsche

L. Dohna Lógica Dohna-Wundlacken (preleções de lógica)

Sobre uma Descoberta Sobre uma descoberta pela qual toda…

Fundamentos Fundamentos Metafísicos da Ciência da Natureza

Prol Prolegômenos a toda metafísica futura…

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Introdução

Como evitar que escrevamos sobre aquilo que não sabemos,ou que sabemos mal? É neste ponto necessariamente que

imaginamos ter algo a dizer. Só escrevemos na extremidadede nosso saber, nesta ponta extrema que separa nosso saber e

nossa ignorância, e que transforma um no outro. É só destemodo que somos determinados a escrever. Suprir a

ignorância é adiar a escrita para depois ou, antes, torná-laimpossível.

— Deleuze, Différence et Répétition

Essa distinção dos respectivos papéis desempenhadospelo que quer que resulte do impacto do mundo físico

nos nossos sentidos, e por aquilo que dizemos, oupensamos, ou ‘fazemos’ com o resultado de tal impacto,encontra-se de fato no coração da empreitada kantiana,

sobretudo para a clarificação do seu idealismo. — R. Pippin, Kant’s Theory of Form

O projeto de pesquisa que deu origem à presente tese propunha-se a examinar o

papel que a teoria de Kant atribui aos conceitos na constituição da experiência

perceptiva. Esse papel sempre me pareceu ter sido exagerado pelos comentadores, já

que contrastava imensamente com o que eu encontrava, ou melhor, não encontrava no

texto kantiano: revirava a Crítica da Razão Pura de cima a baixo e não via nem

tentativas de argumentos para teses tão fortes, nem mesmo parágrafos inteiros

dedicados ao menos à asserção ou explicação dessas teses que os comentadores

atribuíam a Kant; em vez disso, deparava-me no máximo com poucas frases isoladas

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que pareciam apontar na direção dessa leitura dominante. Por exemplo, no que concerne

às categorias, eu as via frequentemente interpretadas como intervindo na mais simples

intuição, com, por exemplo, Béatrice Longuenesse, falando por muitos, quando diz que

as categorias “são condições da própria apresentação de aparecimentos na intuição

sensível”. E, com relação aos conceitos empíricos, a função atribuída aos mesmos seria

não menos secundária para a constituição da experiência perceptiva kantiana, sendo

expressa exemplarmente por Henry Allison quando diz que “ter o conceito de casa é,

entre outras coisas, ter uma regra…para organizar os dados sensoriais recebidos na

percepção.”

Na primeira parte desta tese, exponho e critico essa interpretação dominante, a

qual intelectualiza toda representação sensível e, portanto, toda experiência perceptiva,

posicionando, consequentemente, a filosofia teórica kantiana num extremo idealista.

Essa crítica se baseia tanto em problemas textuais em que essa interpretação incorre

(como as noções de síntese e de dados sensórios que ela envolve) quanto em problemas

filosóficos (como o próprio funcionamento que ela exige dos conceitos, e o fato de

comprometer Kant com uma petição de princípio). Num segundo momento (ainda dessa

primeira parte), apresento o que seria o argumento de Kant em prol da tese de que o

entendimento desempenha uma função constitutiva relativamente à experiência

perceptiva, i.e. um argumento que mostraria que a experiência perceptiva requer

sínteses da espontaneidade. Assim, se o idealismo formal de Kant afirma que nossa

experiência tem tanto uma forma que lhe é conferida pela sensibilidade (o espaço e o

tempo), quanto uma forma conferida pelo entendimento (as categorias enquanto funções

de síntese), então, ao compreendermos propriamente qual é o seu argumento para a

introdução necessária de sínteses sensíveis e, deste modo, o que exatamente elas

sintetizam, compreendemos de modo novo a relação entre sensibilidade e entendimento

na constituição da experiência, engendrando assim uma compreensão diferente do

idealismo kantiano, que me parece melhor embasada e menos problemática do que a

feita pela leitura intelectualista dominante.

Na segunda parte desta tese, exponho o que corresponde ao aspecto realista

empírico proporcionado por essa compreensão do idealismo kantiano. Esse aspecto

mais empirista da filosofia kantiana não pode ser corretamente apreciado na leitura

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dominante, uma vez que ela intelectualiza toda intuição e, consequentemente, toda

qualidade sensível que esta apresenta, tornando-as produtos do entendimento, em vez de

da mera receptividade. Como veremos, tal leitura termina por reduzir o dado — i.e.

aquilo que se encontra na sensibilidade independente do entendimento — a uma

matéria-prima bruta, da qual não podemos ter consciência e da qual nada poderíamos

conhecer. Enquanto isso, na interpretação que proponho, as intuições empíricas

independem de qualquer atividade do entendimento, sendo apenas o resultado imediato

da afecção dos sentidos, o que permite entender melhor a ideia de que a sensação (a

matéria destas intuições) seja identificada tantas vezes por Kant como a “realidade” ou

o “real no fenômeno” (vide as Antecipações da Percepção), assim como entender sua

insistência no papel fundamental que a receptividade desempenha em sua

epistemologia, o que seria impossível se a sensibilidade fornecesse ao entendimento

uma mera matéria-bruta indiferenciada.

Em suma, teríamos que a primeira parte da tese trata do aspecto idealista da

filosofia de Kant: a síntese sensível do entendimento, mostrando como a leitura

dominante seria falha e propondo uma outra interpretação no lugar. Já, a segunda parte,

trata do aspecto empirista da filosofia kantiana, daquilo que independe de sínteses (e

que é justamente o material, o elemento sintetizado): as intuições empíricas.

* * *

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Parte I. Idealismo construtivista: síntesessensíveis

“uma dificuldade séria está envolvida em qualquertentativa de explicar a produção de intuições; uma

dificuldade que, à primeira vista, parece envolver apenasa escolha de uma terminologia apropriada, mas logo

parece ameaçar a inteligibilidade de toda a Dedução.”

— H. Robinson, 1984, p. 407

O idealismo construtivista e a leitura intelectualista

A imagem corrente que se faz da filosofia teórica kantiana baseia-se em grande

medida na revolução copernicana preconizada por ela, isto é na concepção de que a

representação empírica de objetos não é recebida já pronta e constituída, mas antes, que

tal representação é, em parte, produzida pelo sujeito, na medida em que tanto a

sensibilidade possui formas sensíveis que condicionam a recepção quanto o

entendimento também possui formas que sintetizam e organizam o material da

sensibilidade, engendrando assim representações de objetos. Interessa-me aqui esse

aspecto “construtivista” do kantismo, que concerne o papel da espontaneidade na

formação da representação de objetos empíricos, e que é considerado como uma das

faces mais marcantes do idealismo kantiano, separando sua filosofia de toda tradição

que lhe precede, a qual considerava a representação de objetos e a experiência

perceptiva de modo geral como devendo-se inteiramente à receptividade dos sentidos.1

1 Com exceção talvez de Hume — apesar de que ele parece introduzir atividades mentais para explicarcertas crenças acerca da experiência, e não como constituindo a própria experiência perceptiva.

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A recusa desse “idealismo construtivista” numa interpretação da filosofia

kantiana significa relegar o entendimento e, consequentemente, as categorias a um papel

apenas “externo” à experiência perceptiva, que concerniria tão somente a um

pensamento sobre ou a um conhecimento acerca da mesma, sendo, portanto,

entendimento e categorias necessários somente para que formemos juízos sobre a

experiência (interpretando-a e classificando-a), mas de modo algum constitutivos da

mesma. Essa leitura tornaria o idealismo transcendental de Kant numa filosofia bem

mais convencional e demasiadamente próxima do empirismo clássico, distinguindo-se

deste fundamentalmente porque espaço e tempo seriam formas da sensibilidade e as

categorias formas do juízo, retirando portanto do entendimento qualquer função de

síntese sensível que seria construtiva/constitutiva da experiência perceptiva, cabendo-

lhe somente uma modesta função judicativa que opera sobre essa (e não internamente à

mesma).2

Tal leitura extremamente empirista parece reduzir o objetivo da dedução

transcendental ao da dedução metafísica — de acordo com o §26, por exemplo, na

dedução metafísica seria mostrado que as categorias têm origem a priori e são “funções

lógicas universais do pensamento”, enquanto na dedução transcendental seria

estabelecido que as categorias “prescrevem leis à natureza e até mesmo tornam possível

esta”. A insuficiência dessa leitura para os propósitos de Kant, penso ser claramente

manifestada tanto no final da dedução-B quanto no da dedução-A:

Eu não poderia dizer: o efeito está ligado à causa no objeto(isto é, necessariamente), mas apenas que eu sou disposto detal modo a não poder pensar esta representação senão comoconectada assim. Isso é precisamente o que o cético maisdeseja. (§27, B168, ênfase minha)

2 Tal, por exemplo, é a leitura de Karl Ameriks, Lucy Allais, Roberto Horácio Pereira, Paulo Licht,entre outros. Allais (2009) reconhece que sua interpretação do idealismo transcendental é“extremamente deflacionária”, debilitando o papel das categorias “na constituição de objetos”, demodo que o idealismo transcendental estaria “completamente estabelecido na Estética”. Ameriks emseu artigo de 1978, ‘Kant’s Transcendental Deduction as a Regressive Argument’ e também em seulivro mais recente (2003, p. 11) já defendia que as categorias são condições apenas do conhecimentoempírico presumido, i.e. condições de juízos que erguem pretensão de verdade. O professor RobertoHorácio Pereira, em sua leitura não-conceitualista da dedução-B, afirma que “As categorias sãocondições para a recognição (pensamento e juízo) de que aquilo que é dado existeindependentemente da mente” (2016, p. , ênfase minha). Paulo Licht sugere que as categorias servemapenas para “produzir sentido e conferir significado” àquilo que é dado (2012, p. 176).

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O entendimento não é, portanto, meramente uma faculdadede fazer regras mediante comparação dos fenômenos; elepróprio é a legislação para a natureza, isto é, sementendimento não haveria natureza alguma. (A126)

A ideia é portanto que não basta estabelecer que as categorias são condição do

pensamento ou dos juízos cognitivos; em vez disso, é preciso provar que elas conectam

as próprias representações sensíveis, desempenhando uma função de síntese sensível,

pela qual elas constituem “a forma intelectual do objeto [fenomênico]” (A129), pois se

não pudéssemos “determinar a constituição de um objeto” (ibid), não poderíamos ter

dele nenhum conhecimento a priori. Ou seja, a função de síntese sensível das categorias

é condição da realidade objetiva dos juízos de experiência (que envolvem as categorias

de substância e causalidade), sendo preciso provar que o entendimento é legislador da

natureza, tornando-a possível (ao constituir sua forma intelectual geral), pois, segundo

Kant, é somente porque colocamos as categorias na natureza, que podemos conhecê-la

a priori.

O problema é que, para dar conta desse idealismo construtivista – essa ideia de

que constituímos o objeto e a natureza –, a maioria dos comentadores vê-se obrigada a

defender uma leitura de Kant que, acompanhando Michel Fichant (1997, pp. 24 e 36),

podemos chamar de intelectualista; tal leitura se caracteriza pela afirmação de que as

sínteses da espontaneidade são condição de nossas intuições sensíveis (por exemplo,

condições da formação da imagem que tenho da estante de livros à minha frente); ou

seja, são ‘intelectualistas’ as leituras que afirmam que até nossas intuições dependem de

atividades do intelecto. É fácil ver como uma leitura que afirma que as intuições

dependem de sínteses (as quais em última instância seriam provadas serem categoriais)

consegue estabelecer que as categorias são condições constitutivas da própria

experiência perceptiva e dos objetos que nela encontramos, uma vez que toda

experiência requer intuições. Esse acredito ser o maior apelo do intelectualismo, pois ele

daria conta do construtivismo de Kant, dizendo todavia que é preciso arraigá-lo de

modo mais profundo do que o texto da Crítica aparenta fazê-lo à primeira vista, i.e.

segundo essas leituras, o construtivismo parece requerer que o entendimento esteja

operando já a partir do nível mais básico da experiência perceptiva: o das meras

intuições sensíveis.

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Essa questão pode ser colocada nos termos do seguinte dilema: ou (i) a

espontaneidade e as categorias são condições constitutivas da experiência, mas para isso

elas têm de ser condições da própria intuição sensível; ou (ii) a espontaneidade não é

condição das nossas intuições, mas então ela e as categorias são relegadas a condições

apenas das reflexões judicativas tardias, as quais podem ser feitas acerca da experiência

perceptiva a fim de classificá-la ou reconhecê-la, não sendo entretanto constitutivas da

mesma. Em outras palavras, a escolha seria entre abraçar o construtivismo e cair num

idealismo extremo que intelectualiza toda representação sensível, ou rejeitar o

construtivismo e cair num empirismo extremo no qual o entendimento não desempenha

nenhum papel na constituição da experiência perceptiva.

O que é pressuposto nesse dilema — que o idealismo construtivista de Kant

(i.e. que o entendimento desempenha um papel constitutivo da experiência perceptiva)

só é possível mediante a aceitação do intelectualismo (i.e. que o entendimento seja

constitutivo já da própria intuição) — parece-me aceito não só pelos intérpretes

intelectualistas que defendem um idealismo extremo, mas também pelos que defendem

um empirismo extremo (uma vez que estes, ao rejeitarem a leitura intelectualista,

terminam, em sua maioria, por rejeitar também o construtivismo de Kant, jogando fora

o bebê junto com a água). Pretendo, num primeiro momento, posicionando-me ao lado

dos intérpretes empiristas, mostrar que a leitura intelectualista é insustentável; e, num

segundo momento, afastando-me desses últimos, pretendo recusar o pressuposto do

dilema, mostrando como uma interpretação de Kant que, ao mesmo tempo, recusa o

intelectualismo e faz jus ao idealismo construtivista, é não somente possível, como

também que ela torna esse idealismo filosoficamente mais cogente, além de mostrar-se

exegeticamente mais zelosa para com o texto kantiano.

* * *

Antes de prosseguir, observo rapidamente que a questão do intelectualismo

aqui tratada não se confunde com o debate recente entre conceitualismo e não-

conceitualismo. Obviamente, essas questões estão relacionadas, e quem defende que as

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intuições dependem de sínteses também costuma também defender que elas são de

algum modo conceituais, mas essas questões são independentes.3 O debate acerca do

conceitualismo foi tomado emprestado de discussões de filósofos contemporâneos de

inspiração kantiana como Sellars e McDowell, e que estavam preocupados

principalmente com a questão da justificação do conhecimento empírico, defendendo

que dados brutos não-conceituais, não podem servir como justificação, pois não fazem

parte do “espaço lógico das razões” (como diz Sellars), e que acreditar nisso seria cair

no “Mito do Dado”. Mas a transposição dessa questão para Kant não se dá de forma

inequívoca, gerando confusão pela falta de acordo quanto ao que exatamente tais

caracterizações significam e pelo aporte de muitos termos estranhos à filosofia kantiana.

Em contrapartida, a questão do intelectualismo ocorre num nível mais fundamental

dentro da filosofia de Kant, e concerne de certa maneira à natureza da intuição

empírica, i.e. se ela é formada por sínteses e, portanto, depende do intelecto, ou se não

exige nada mais do que a receptividade.

* * *

3 Lucy Allais (2009, pp. 394-5), por exemplo, apesar de sua enfática defesa de uma interpretação não-conceitualista, afirma que as intuições dependem de um “processamento ou síntese” que não seria“conceitualizante”. Isso contudo parece-me apenas uma solução artificial para dar conta das inúmeraspassagens onde Kant trata de uma síntese sensível, mas que transforma a noção de síntese em algomeramente mecânico (um “processamento”), que dificilmente Kant poderia atribuir à espontaneidade,em vez da receptividade.

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1. A rejeição da leitura intelectualista

Problemas textuais da leitura intelectualista

Conflitos com a Estética Transcendental

A caracterização que propus aqui de uma leitura intelectualista é bastante

ampla, dizendo apenas que é uma leitura que afirma que nossas intuições requerem

sínteses da espontaneidade. Assim, é claro que ela comporta interpretações da filosofia

kantiana que no detalhe são bastante diferentes, como por exemplo, as de Hermann

Cohen, Ernst Cassirer, Kemp Smith, H. J. de Vleeschauwer, Dieter Henrich, Robert

Pippin, Henry Allison, Wayne Waxman, Béatrice Longuenesse, Hoke Robinson, James

Van Cleeve, Hannah Ginsborg, Mario Caimi, entre outros.4 Mesmo Schopenhauer, no

4 Cito algumas passagens desses comentadores que expressam de modo sucinto tal interpretação:Cohen: “a intuição pura supõe a mediação do pensamento, do entendimento ao qual a unificação dodiverso deve ser atribuída” (1917, p. 66n/22n). Kemp Smith: a “função primária” das categorias é“tornar possíveis as intuições” (1918, p.133).Vleeschauwer: “Observemos que é preciso concluirlogicamente desse texto que as categorias são também as condições a priori da intuição, e que aintuição é também condicionada pelas funções intelectuais” (1936, p. 191); “a função intelectual deveintervir na mais simples intuição, de modo que todo elemento empírico já está revestido por um dosmodos da espontaneidade” (ibid. p. 244). G. Schrader: “A dedução das categorias consiste emmostrar que elas são as condições formais da possibilidade do espaço e do tempo” (1958, p. 271).Robinson: “aprenderemos na Dedução, que as categorias se aplicam não somente na formação dejuízos, mas também na formação de intuições” (1986, p. 48). Waxman: “espaço e tempo, junto com odiverso que eles contêm, são para Kant integralmente produtos da imaginação, e, de modo algum,dados do sentido” (1991, p. 33). Longuenesse: “essas funções [lógicas]…são condições daapresentação mesma de aparências na intuição sensível” (1998, p. 28), e “devemos concluir que oespaço e o tempo descritos na Estética Transcendental são produtos da síntese figurativa daimaginação” (p. 216). Van Cleeve: “a representação mesmo da mais ínfima extensão espacial ouduração temporal seriam na visão de Kant atingidas mediante síntese” (1999, p. 85). Ginsborg: “Kantdeixa claro que as intuições puras do espaço e do tempo que ele descreve na Estética … dependem dasíntese imaginativa, que é responsável por sua unidade. A síntese portanto parece estar implicada naposse de intuições, tanto empíricas quanto puras” (2008, p. 66; cf. também, 2006, pp. 37-8). Caimi:“a ação da imaginação não se limita à reprodução, nem à representação do que está ausente; mas elaintervém na apreensão do que está presente (como impressão) na sensibilidade”; “as categorias seaplicam efetivamente à qualquer coisa de estranha ao pensamento: elas se aplicam à intuiçãoefetivamente dada, ainda que pura” (2007, pp. 87-88).

Como essas citações deixam claro, muitas dessas interpretações intelectualistas defendem teses maisespecíficas, seja de que as intuições dependem de uma síntese segundo as categorias, ou que mesmo

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apêndice de seu O Mundo como Vontade e Representação (intitulado ‘Crítica da

Filosofia Kantiana’), já defendia uma leitura intelectualista, ao mesmo tempo em que

reconhecia seu caráter problemático afirmando de modo peculiar que “a intuição é de

fato intelectual, justamente o que Kant nega” (1859, 1:525).

Essas interpretações variam, por exemplo, quanto a que tipo de síntese que

seria exigida para a formação de intuições — podendo tratar-se de: (i) sínteses cegas;

(ii) sínteses regradas, mas não por conceitos; e (iii) sínteses conceituais5 — e variam

também quanto àquilo que é sintetizado, i.e. ao material da síntese, sendo possível

distinguir essas leituras em dois grandes grupos: (a) aquelas que defendem que o

material da síntese ainda não é espacial nem temporal, sendo espaço e tempo produtos

de uma síntese da espontaneidade (como Cassirer, Vleeschauwer, Pippin, Waxman

Longuenesse, etc); e (b) aquelas que defendem que esse material já é espaço-temporal

mais ainda desestruturado, sem unidade, de modo que a síntese apenas organiza e

unifica esse material, formando intuições estruturadas, como as imagens empíricas que

fazemos dos objetos presentes aos sentidos. Todavia, no que se segue, focarei minhas

críticas não aos problemas específicos de cada tipo particular leitura intelectualista, mas

a sua tese geral, pretendendo assim rejeitá-las todas de uma vez.

O problema mais evidente que qualquer leitura intelectualista enfrenta é que

ela entra em conflito com várias teses da Estética: por exemplo, que nossa intuição

sensível se deve à receptividade/passividade e “contém somente o modo como somos

afetados por objetos” (A51/B75), e que a Estética constitui a “primeira parte da ciência

dos elementos” (A15/B29 e A50/B74), onde a sensibilidade isolada do entendimento

seria uma fonte própria de representações que contribuiria com elementos (e não apenas

com uma matéria-bruta indiferenciada) para o conhecimento (cf. A271/B327).6 Esse

espaço e tempo dependem de sínteses. Minha estratégia aqui é contestar a tese mais ampla, de quetoda intuição empírica depende de sínteses da espontaneidade, recusando a fortiori suas versões maisfortes e específicas (pois se intuições empíricas não dependem de sínteses da espontaneidade, elasnão podem depender de sínteses categoriais, e tampouco espaço e tempo pode depender de taissínteses).

5 A segunda opção é a adotada por Longuenesse, Allison e Ginsborg, que defendem que a síntese égovernada por um “esquema”, sendo esse interpretado de maneira bastante livre, como um “proto-conceito”, i.e. como uma regra de apreensão que precede os conceitos e que seria condição dosmesmos (o que se afasta bastante do que Kant apresenta no capítulo do Esquematismo, no qual oesquema não serve para constituir uma intuição, e nem precede seu conceito).

6 Fichant, que também faz essa crítica, parece-me contudo equivocado ao afirmar que o intelectualismoimplica uma redução da sensibilidade ao entendimento; nesse ponto específico, penso que

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ponto, entretanto, é reconhecido pela maioria dos intérpretes intelectualistas:

Longuenesse, por exemplo, afirma inequivocamente que “a Dedução-B nos conduz não

apenas a uma releitura da Estética Transcendental, … mas mesmo a uma revisão parcial

da mesma” (1998, p. 240).7 Os proponentes de uma leitura intelectualista não parecem

se importar muito com essa consequência, que para muitos é fatal,8 i.e. a revisão da

Estética Transcendental, uma vez que esta revisão se mostraria necessária para dar conta

da parte mais inovadora e essencial da filosofia de Kant, que seria o idealismo

construtivista avançado na dedução transcendental. Cassirer, por exemplo, defendia que

a Estética Transcendental “coincide quase completamente com escritos pré-Críticos

anteriores”, enquanto que os capítulos como a Dedução Transcendental é que “contêm o

resultado propriamente novo e original da Crítica” (1907, p. 35), de modo que a Crítica

da Razão Pura não se apresentaria como definitiva desde as primeiras páginas, mas

antes que estamos “no meio de um processo vivo e um avanço constante do próprio

pensamento” (1918, p. 143). Kemp Smith acompanha bem de perto Cassirer nesse

ponto, afirmando na mesma direção que:

A chave para a Crítica é dada nas porções centrais daAnalítica, especialmente na Dedução das Categorias. Outraspartes da Crítica revelam doutrinas críticas apenas comoemergindo gradualmente da influência emaranhada deassumpções pré-Críticas. Seus ensinamentos têm de serradicalmente remodelados antes que possam serharmonizados com o que…deve ser considerado como asafirmações mais maduras de Kant. (1918, p. xxxii)

Contudo, mesmo que se aceite essa tese exegética de um desenvolvimento

gradual do texto da Crítica, ainda assim a leitura intelectualista incorre em sérios

Longuenesse (2005, p. 65) tem razão em sua resposta a Fichant, ao dizer que na sua interpretação asensibilidade se mantém como receptividade, como o lugar do dado e que independe daespontaneidade, reafirmando o “caráter irredutível da sensibilidade” e a “distinção radical” entresensibilidade e entendimento. Ou seja, apesar de a leitura intelectualista conceder muito menos àsensibilidade do que parece devido, ela não implica necessariamente uma eliminação da sensibilidade(à la Fichte).

7 Uma revisão da Estética, apesar de ser exigida por qualquer leitura intelectualista, tem de serrealizada de modo ainda mais profundo por interpretações como a de Longuenesse, que afirma quemesmo espaço e tempo são produtos de uma síntese do entendimento, contradizendo também a tesede que espaço e tempo são formas da receptividade (já que nessa interpretação esses dependem daespontaneidade e que a receptividade não pode ser condicionada pela espontaneidade).

8 Como defende Roberto Horácio, que chama de self-rebutting (auto-refutante) qualquer interpretaçãoque implique uma reescrita da Estética (cf. 2016, p.)

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problemas textuais, pois, como veremos agora, noções centrais da própria Analítica

Transcendental entram em conflito com ela.

Dados sensórios

Como, de acordo com a leitura intelectualista, toda intuição requer sínteses da

espontaneidade, então aquilo que se encontra na mera receptividade (independente da

espontaneidade) e que constitui o material da síntese, não pode por sua vez ser intuição,

de modo que os proponentes dessa leitura defendem que tais elementos primários da

síntese são apenas “dados sensórios” (aos quais Kant se referiria como ‘impressões’ ou

‘sensações’). Tais dados são caracterizados de modo diferente pelos intérpretes

intelectualistas: a maioria destes defende que mesmo o espaço e o tempo são resultados

de sínteses do entendimento, concluindo portanto que tais dados sensórios seriam

inextensos — essa é, por exemplo, a posição de Bergson, Kemp Smith, Cassirer,

Vleeschauwer, Pippin, Waxman e Longuenesse.9 Outros intelectualistas não vão tão

longe, não chegando a fazer do espaço e do tempo produtos da espontaneidade, o que

requeriria uma revisão ainda mais profunda da Estética; antes eles defendem que tais

dados sensórios seriam espaço-temporais, mas não teriam ainda unidade ou estrutura,

pois isso caberia à síntese do entendimento fornecer — tal me parece ser a posição de

Robinson, Allison, Höffe, Ginsborg.10

9 Bergson no seu Ensaio sobre os Dados Imediatos da Consciência de 1889, já afirmava que, paraKant, “as sensações pelas quais chegamos a formar a noção de espaço são elas mesmas inextensas esimplesmente qualitativas” (1888, p. 45). Kemp Smith afirma que “o diverso enquanto dado não estáno espaço e no tempo”, e que “sensações não têm nenhum atributo espacial de qualquer tipo” (1918,pp. 85 e 86). Waxman fala da síntese de “dados completamente amorfos” (1991, p. 220).Longuenesse fala da síntese de um “diverso qualitativo” que está “presente de uma maneiraindiferenciada”, e que se trata de um “diverso (de sensações, perceptiones, mas não de intuições…)”(1998, pp. 37 e 221). Vleeschauwer, Sellars e Pippin defendem que tais dados sensórios são nãoapenas inextensos, mas simples ou atômicos, afirmando que toda diversidade requer sínteses doentendimento – cf. Vleeschauwer (1936, II, pp. 242-3), Sellars (1968, pp. 7-8) e Pippin (1982, pp. 29,33, e 40).

10 Allison fala em “dados sensoriais” (2004, p. 79). Ottfried Höffe em “sensações não estruturadas”(2000, p. 82). Ginsborg fala em “material sensório”, “diverso sensório” e “elementos sensórios”(2006, pp. 65-7). Hoke Robinson defende que não se pode falar de “dados” ou qualquer coisa quesugira unidade ou singularidade, pois toda unidade seria devida necessariamente ao entendimento,sustentando então que esse diverso sensório deve ser entendido como “um campo (ainda)indiferenciado e não-individuado, que provê o material para diferenciação e individuação” (1984,p. 406).

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Essas diferenças, todavia, não nos importam aqui, pois ao defenderem que a

intuição não é o nível mais básico da teoria kantiana (da parte da sensibilidade), a

leitura intelectualista atribui à sensibilidade uma instância anterior à das intuições, pré-

representativa, da qual não podemos ter qualquer consciência, e que seria justamente

onde a atividade de síntese atuaria para produzir as intuições. Os problemas que se

seguem dessa tese são inúmeros: primeiramente, que Kant não menciona essa instância

pré-representacional onde haveria dados “proto-intuitivos”, exigindo-se certo

malabarismo exegético para encontrar qualquer menção a mesma; alguns comentadores

dizem que quando Kant fala de ‘impressões sensíveis’ e de ‘sensações’ ele está se

referindo a tais dados sensórios; mas são tantas vezes em que Kant fala em sínteses de

‘intuições’, de ‘percepções’ e de ‘fenômenos’, que em várias ocasiões uma tal leitura é

obrigada a interpretar também estes termos como se referindo a tais dados pré-

intuitivos. Mas, mais do que não encontrar passagens que afirmem tal instância pré-

representativa (pois, afinal, com um pouco de criatividade e liberdade interpretativa,

sempre se pode enxergar uma referência a tal instância), penso que na filosofia kantiana

é impossível uma prova ou justificação de tal instância da sensibilidade da qual não se

pode ter consciência; antes, à exceção da Refutação do Idealismo,11 a análise de Kant

sempre começa e termina em representações,12 sem sair dessas em direção a algo do

qual não podemos nem pensar e que ao mesmo tempo estaria na base de todo

conhecimento empírico — como seria o caso de tais dados sensórios. Em outras

palavras, para além, ou melhor aquém, do nível das representações das quais podemos

ter consciência, só poderia ser estabelecido uma alteridade em geral, i.e. que temos um

sentido externo pelo qual algo não-representacional (i.e. algo transcendentalmente

externo) nos afeta. Já nas leituras intelectualistas, a filosofia kantiana teria que

pressupor um “dado bruto” da sensibilidade, uma “matéria-prima” indiferenciada e sem

qualquer determinação positiva, acerca da qual nada pode ser dito, e que, ao mesmo

tempo, tem de poder existir independentemente da forma recebida — uma vez que a

espontaneidade, que lhe conferiria sua forma, não pode ser condição da receptividade.

11 Subscrevo aqui a leitura da Refutação dos professores Guido Almeida (2012) e Pedro Rego (2013).

12 No máximo, considera separadamente a matéria e a forma das mesmas, mas aí trata-se apenas de umaabstração metodológica, e não de elementos constitutivos que a análise kantiana teria como quedescoberto.

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Tomar os elementos da síntese sensível como sendo tais dados sensórios, os

quais portanto seriam não apenas a matéria das intuições, mas também o material das

mesmas,13 leva os comentadores desde, ao menos, Schopenhauer a criticar essa ideia de

um material da sensibilidade que não esteja submetido ao entendimento, o que tem

como consequência aprofundar ainda mais o intelectualismo. Ou seja, a leitura

intelectualista engendra uma noção problemática de uma matéria-prima que subsiste

sem uma forma, para a qual a solução frequentemente adotada é intelectualizar ainda

mais a filosofia kantiana, culminando numa leitura como a de Cassirer, onde “as

funções do entendimento puro aparecem como condições prévias da ‘sensibilidade’”

(1907, p. 35).14 — Defendo, ao contrário, que a solução para isso é cortar o problema na

raiz, recusando a leitura intelectualista, e não reforçá-la ainda mais, criando insuperáveis

dificuldades exegéticas.

Conflitos com a noção de síntese

Outro problema textual da interpretação intelectualista concerne à noção de

síntese que ela requer e faz uso, a qual contradiz em vários aspectos a caracterização de

Kant de ‘síntese’. No §10, Kant diz: “Por síntese entendo, no sentido mais amplo, o ato

13 Infelizmente, tanto a tradução de Rohden & Moosburger quanto a de Santos & Morujão traduzemStoff e Materie igualmente por ‘matéria’, enquanto a de Costa Mattos não é consistente na traduçãodesses termos. O texto de Kant, contudo, sugere uma distinção conceitual por trás dessa distinçãoterminológica, ainda que não seja seguida à risca (como é frequente em Kant): a matéria (Materie) sóé possível numa forma (no caso, a forma da sensibilidade), sendo impossível sem esta, de modo quefalar da matéria isoladamente é falar de um aspecto, de algo que não é possível enquanto tal sem adeterminação da forma. Já o material (Stoff) é um elemento ou componente (Bestandstücke) que seconstitui independentemente de uma forma que ele possa vir a receber (como defendo é a forma que aespontaneidade confere ao que a sensibilidade oferece). Adianto aqui bastante a interpretação queproponho, mas teríamos que no idealismo transcendental a forma é anterior à matéria, já o material(elementos constitutivos) é anterior à forma. Assim, as sensações são apenas a matéria das intuições(cuja forma é o espaço e o tempo), enquanto as intuições são o material da síntese sensível, o qual oentendimento liga e ordena em fenômenos, cuja forma objetiva é dada pelas categorias (Cf. B145: “Oentendimento…apenas liga e ordena o material [Stoff] do conhecimento, a intuição”. Na Metafísicade Dohna, temos “matéria em sentido transcendental” como o determinável (Materie) , e “matéria emsentido cosmológico” como partes constituintes (Stoff), que seria o sentido de ‘material’ da Crítica).

14 Schopenhauer se queixava que “nunca é suficientemente explanado o que é esse diverso da intuição,antes da ligação no entendimento” (1858, 1:530). R. P. Wolff, quanto a essa mesma questão, diz que a“persistência quase aflitiva com que Kant se agarra à noção de um múltiplo não-sintetizado, apesar desua óbvia incompatibilidade com seu argumento central, sugere um problema filosófico profundo quenão foi resolvido” (1963, p. 157).

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de colocar juntas/acrescentar umas às outras [zueinander hinzuzutun] diferentes

representações e de conceber a sua multiplicidade numa cognição” (A77/B103); em

seguida, que “é a síntese que junta [sammelt] propriamente os elementos em cognições e

os reúne [vereinigt] num certo conteúdo” (ibid.). Em B137, temos que a síntese

promove uma “reunião/unificação das representações” (Vereinigung der Vorstellungen).

Mais à frente, na Analítica do Princípios, é afirmado que “a síntese do múltiplo pela

imaginação é sempre sucessiva; isto é, as representações sempre nela se sucedem umas

às outras” (A201/B246, ênfase minha), sendo esse carácter da sucessividade da síntese

reafirmado em várias outras passagens (cf. A182/B225, A500/B528).15

O problema é que a noção de síntese exigida pelo intelectualismo contradiz em

ao menos três aspectos essa noção apresentada na Crítica. Em primeiro lugar, temos que

textualmente os elementos sintetizados, sempre que identificados por Kant, são

representações mentais, e, especificamente no caso que nos interessa aqui,

invariavelmente representações sensíveis — sejam elas intuições, fenômenos ou

percepções — mas nunca algo pré-representacional, como seriam tais dados sensórios;

em segundo lugar, apesar de Kant caracterizar a atividade de síntese como sendo apenas

um “colocar junto”, “ordenar”, “conectar”, “reunir” representações diferentes, numa

leitura intelectualista, a síntese é um ato de fusionar ou amalgamar os elementos

sintetizados e transformando-os num terceiro: tendo como input dados sensórios não-

representacionais sem unidade, dos quais não podemos afirmar nada, e produzindo

como output, intuições ou percepções, i.e. representações conscientes que possuem as

qualidades sensíveis que estamos familiarizados; ou seja, a síntese nessa interpretação

não apenas “coloca junto” dois elementos que independem da síntese, antes ela cria um

novo elemento a partir da fusão de outros.16 Em terceiro lugar, a interpretação

15 Cf. A182/B225: “nossa apreensão do múltiplo do fenômeno é sempre sucessiva”, repetido em A189/B234: “A apreensão do múltiplo é sempre sucessiva. As representações das partes sucedem umas àsoutras”); A190/B235: “o múltiplo dos fenômenos é sempre sucessivamente gerado na mente”; A500/B528: “a síntese empírica…e a série das condições no fenômeno…, é necessariamente dadasucessivamente, e é dada somente no tempo, um membro após o outro”. Na Dissertação, Kant jádefendia que a síntese “repousa em condições do tempo” sendo uma “adição sucessiva de parte emparte” (§1, 2:387).

16 Bergson, no seu Ensaio sobre os Dados Imediatos da Consciência, explicita de modo preciso esteponto de sua interpretação ao comparar a síntese kantiana a uma reação química, dizendo querepresentações espaço-temporais resultariam da síntese de “sensações inextensas e simplesmentequalitativas” assim como “a água resulta da combinação de dois gases” (1888, p. 45). Richard Aquillaé um dos poucos comentadores mais recentes que também torna explicito que a noção de síntese (que

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intelectualista contradiz as várias afirmações de que a síntese é sempre sucessiva: afinal,

se mesmo a representação de uma diversidade meramente espacial, a qual se apresenta

simultaneamente (como a representação de uma imagem qualquer), resulta de sínteses,

então é preciso que vários elementos sejam apreendidos simultaneamente, de uma só

tacada, em vez de sucessivamente.17 Além disso, fosse a síntese uma ligação simultânea

entre elementos, não se consegue dar conta da tese kantiana de que ela envolve uma

reprodução – posto que, se apreendo de uma vez vários elementos, desaparece a

necessidade de uma reprodução destes para a efetivação da síntese – e

consequentemente, sem envolver uma reprodução, tampouco se consegue explicar sua

atribuição à imaginação).

Problemas filosóficos das leituras intelectualistas

Conceitos empíricos como regras da apreensão

Temos então que os “dados sensórios” pressupostos pelas leituras

intelectualistas não têm em si unidade nem estrutura (as seriam devidas ao

a interpretação dominante faz uso) deve envolver uma “transformação” ou “elevação” de dadossensórios em intuições (cf. 1989, pp. 54-8). Obviamente, tal transformação seria ainda mais radical nainterpretação dos que defendem que espaço e tempo também resultam de síntese, pois então teríamosque a síntese tomaria como elementos dados sensórios inextensos e os transformaria em intuiçõesespaço-temporais estruturadas.

17 A alternativa seria negar que intuímos de fato um diverso simultâneo, como defende Vleeschauwer,ao dizer que “a diversidade é sempre dada sucessivamente”, e que há portanto uma “impossibilidadede dados simultâneos” (1936, p. 243). Isso não significa que seria necessário adotar umainterpretação atomista dos dados sensórios, como faz Vleeschauwer, apenas que tais dados sãoinextensos (como já defende a maioria dos intérpretes intelectualistas). Ainda assim, nessa alternativa,um todo diverso que não requer sínteses só seria possível numa instância pré-intuitiva de dadossensórios, e não numa intuição consciente, contrariando o que Kant afirma (não só na Crítica daRazão Pura como também na Crítica do Juízo). Longuenesse nesse ponto parece querer comer a tortainteira e continuar com ela, ao dizer, contra a interpretação de Jules Vuillemin que “Kant admiteexplicitamente que a percepção de uma multiplicidade sensível é possível em uma única olhada, antesde ser arranjada numa síntese sucessiva da apreensão”, ou ainda, que “a intuição de uma casa e a deuma pirâmide podem ser dadas imediatamente como quanta antes de serem o objeto de uma síntesesucessiva da apreensão” (1998, p. 360 e nota). Concordo integralmente com essas duas afirmações deLonguenesse, contudo elas não me parecem de modo algum compatíveis com o resto de sua leitura,que diz que “o espaço e o tempo…são produtos da síntese figurativa da imaginação” (id, p. 216),assim como de toda intuição — em suma, não se pode dizer que é possível intuir uma casa semsíntese, e dizer que toda representação espacial requer sínteses.

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entendimento), não nos sendo possível determiná-los (e talvez nem mesmo pensá-los)18

positivamente, devendo ser tratados, ao menos do ponto de vista do sujeito cognoscente,

como “uma rapsódia, um caos” (como coloca Hoke Robinson, cf. 1988, p. 172). Isso

significa que as intuições não podem ser produzidas a partir de tais dados por sínteses

“cegas”, arbitrárias; antes, essas sínteses precisam ser governadas por regras

conceituais, que confeririam unidade e organização a esse material sensório,

constituindo então as intuições de que temos consciência. As categorias, por

desempenharem uma função constitutiva relativamente à experiência perceptiva,

legislando sínteses sensíveis, poderiam à primeira vista parecer boas candidatas a

governar essas sínteses e estruturar as intuições; contudo, sendo conceitos de objetos em

geral, elas aplicam-se indistintamente a todo e qualquer objeto da experiência,

independentemente da estrutura ou organização empírica de cada um desses objetos.

Sendo assim, o fato de que um objeto empírico apresenta, por exemplo, um formato

arredondado e outro um formato triangular não pode dever-se às categorias, i.e. não é

possível atribuir às categorias a organização de certos dados no formato de uma casa

enquanto de outros no formato de um cachorro, pois elas só conferem forma à

experiência em geral, nunca às experiências particulares e empíricas.19

É um ponto pacífico entre os intérpretes intelectualistas não somente que as

categorias são insuficientes para dar conta das diferentes estruturas e qualidades que os

vários objetos empíricos apresentam, mas também que para explicar tais diferenças é

necessário apelar para regras de síntese mais específicas, sendo estas usualmente

identificadas como os conceitos empíricos. Otfried Höffe, em seu renomado livro de

introdução à filosofia kantiana, expressa com clareza essa concepção corrente de como,

segundo Kant, os conceitos empíricos atuariam para a constituição da experiência:

A intuição nos oferece uma diversidade de sensações aindanão estruturadas (…). Para que as sensações não estruturadasse transformem num objeto, por exemplo, numa cadeira, …requer-se uma regra. Esta é o conceito de cadeira, conformeao qual as sensações se juntam numa unidade de sensações eem que a unidade se apresenta com determinada forma e

18 Sally Sedgwick afirma explicitamente que” “o dado bruto, não-sintetizado, da sensação não é umobjeto possível de pensamento para nós” (1997, p. 27).

19 Cf. B165: “a pura faculdade do entendimento, entretanto, não basta para prescrever aos fenômenos,mediante simples categorias, leis a priori além daquelas em que se funda a natureza em geral.”

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estrutura. … É através de conceitos que um material daintuição, adquirido receptivamente, é transformado emunidade e estrutura de um objeto; os conceitos operam aomesmo tempo uma síntese (ligação) e uma determinação.(2000, pp. 82-3)

De maneira geral, essa concepção de como se constitui a experiência perceptiva no nível

empírico é compartilhada por todos os intérpretes intelectualistas, os quais se vêem

obrigados a atribuir um papel constitutivo, legislador, também aos conceitos empíricos

(em vez de somente às categorias), os quais governariam as sínteses responsáveis por

produzir intuições. Assim, Dieter Henrich afirma que “as regras de classificação do

múltiplo constituem a estrutura fundamental de todos os objetos” (1976, p. 135);

Longuenesse afirma que “o conceito empírico guia nossa apreensão/reprodução do

múltiplo fenomenal” (1998, p. 49); Allison diz que os “conceitos servem como regras da

síntese sensível, guiando a apreensão imaginativa de particulares”, e continua, “ter o

conceito de casa é, entre outras coisas, ter uma regra, no sentido de um esquema para

organizar os dados sensoriais recebidos na percepção” (2004, p. 79); em seu livro mais

recente, diz que “o esquema de um conceito empírico funciona como uma regra guiando

o processamento de dados sensórios pela imaginação” (2015, p. 310). De modo

parecido, Ginsborg defende que “a síntese perceptual é guiada não apenas pelos

conceitos puros, mas também pelos conceitos empíricos” (2006, p. 67); e Hoke

Robinson que, “A intuição resulta da operação sintética da imaginação produtiva do

múltiplo sensório que surge da afecção dos sentidos; esta síntese ocorre de acordo com

conceitos empíricos do entendimento” (2010, p. 131).20

Essa ideia de que os conceitos empíricos servem como regras da síntese

sensível, engendra, contudo, um conhecido problema de circularidade: pois, por um

lado, a intuição pressuporia tais conceitos para sua formação, e, por outro, tais

conceitos, sendo empíricos, pressuporiam por sua vez essas intuições, já que seriam

extraídos delas.21 Para evitar essa circularidade, alguns comentadores defendem que

20 Fica evidente uma relação entre a leitura intelectualista e o conceitualismo: se o conceitualismoafirma que nossas intuições possuem algum “conteúdo conceitual”, a leitura intelectualista poderiajustificar essa tese, dizendo que conceitos são necessários para sintetizar o diverso de dados sensóriosem intuições, explicando assim como e por que a experiência visual seria, como diz Strawson,“impregnada por conceitos” (1982, p. 93).

21 George Schrader já apontava esse problema num artigo da Kant-Studien de 1958, e, para evitá-lo,

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essas regras que operam a síntese dos dados sensórios não são ainda conceitos em

sentido pleno, mas “proto-conceitos” ou “esquemas”22 desses conceitos, os quais seriam

regras particulares de síntese do entendimento, mas que, diferentemente dos conceitos

empíricos, ainda não seriam representações universais refletidas, como defendem

Allison23 (cf. 2015, p. 314) e Longuenesse (1998, p. 116 e nota 29).

Mas, independente de serem conceitos ou proto-conceitos, ambos parecem

incapazes de funcionar como a leitura intelectualista exige, i.e. unindo dados sensórios

para constituir uma imagem. Consideremos, por exemplo, a intuição de uma mesa;

como o conceito de mesa pode ter servido como regra para a constituição dessa

imagem? Uma mesa afinal, pode ser quadrada, retangular, redonda…; pode ter um pé

no centro, ou pode ter quatro, seis, vinte pés; pode ser marrom, branca, preta,

multicolorida; de madeira, de aço, de plástico… Um conceito, sendo geral e

indeterminado quanto essas e muitas outras características que a intuição apresenta, não

pode ser o responsável por produzir a intuição de uma mesa particular; e se ele não

determina nem o tamanho, nem o formato, nem a cor, nem o material, nem o estado

(novo, velho, seco, molhado, etc.) de um objeto intuído, o que sobra então para o

conceito constituir? A dificuldade é enorme, e este em princípio é o caso paradigmático

de como um conceito (proto-conceito) funciona na leitura intelectualista, no qual já

estou de posse do conceito adequado e aplico-o corretamente ao objeto, de modo que, se

mesmo neste caso essa leitura não parece funcionar a contento, parece haver poucas

esperanças de que funcione em outros casos mais difíceis, para os quais o

intelectualismo não parece ter sido concebido (por exemplo, se ainda sequer disponho

rejeita como “uma doutrina não-Crítica” a tese de que os conceitos empíricos são abstraídos deintuições empíricas, defendendo em vez disso uma posição extrema, um platonismo kantiano,segundo o qual mesmo os conceitos empíricos são a priori – propondo que se distinguem dascategorias apenas na medida em que são contingentes, enquanto estas necessárias (pp. 270-1). Pippinretoma esse problema e o assere de modo sucinto: “o problema é explicar os papéis constitutivos ederivativos dos conceitos empíricos” (1982, p. 121).

22 Longuenesse (no que ela é seguida por Allison e Ginsborg) usa o termo ‘esquema’ numa acepçãonova e inteiramente diferente da apresentada por Kant no capítulo do Esquematismo: segundoLonguenesse o esquema precede o conceito, e constitui o objeto, enquanto no Esquematismo Kantintroduz os esquemas para explicar a subsunção de um objeto já formado sob um conceito também jáformado (Longuenesse toma o caso de objetos matemáticos como paradigmático e o estendeindevidamente para todos os outros casos).

23 Allison se vale dessa distinção – a meu ver, artificial – para defender que sua posição é não-conceitualista, pois a intuição seria formada por ‘proto-conceitos’ em vez de conceitos (cf. 2015,pp. 416-17).

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do conceito). De modo geral, há no intelectualismo uma certa ênfase nos objetos que a

intuição apresenta, mas podemos igualmente nos perguntar quanto ao fundo sobre o

qual tais objetos aparecem; precisaria o fundo também de um conceito que o

produzisse?, parece-me muito complicado mesmo conceber isso; e se, em vez de

objetos, consideramos suas qualidades? O que seria uma regra formal que produz algo

como uma qualidade vermelha (intuída) e como ela se distinguiria de uma regra que

engendra a qualidade laranja? E quanto ao formato bastante irregular da pedra que

avisto neste momento, para o qual não possuo qualquer conceito, que regra seria capaz

de produzi-lo? Se estou, por exemplo, observando um quadro do Pollock, o que nesta

intuição depende de conceitos ou de sínteses, e que tipo de regra poderia organizar essa

intuição precisamente desse modo, de maneira que distingo um quadro do outro? Não

vejo outra alternativa ao intelectualista a não ser conceder que essas qualidades que uma

intuição apresenta não podem ser devidas a conceitos, nem a sínteses, o que significa

que elas resultam da mera receptividade, e não desta combinada com o entendimento,

ou seja, significa renunciar à interpretação intelectualista.24 Enfim, a tese construtivista

radical que atribui a Kant um idealismo extremo, afirmando a necessidade de se

pressupor regras que organizem o que seria uma mera matéria sensória produzindo

intuições estruturadas a partir dela parece mostrar-se demasiadamente fantasiosa quando

consideramos a função que a síntese teria de efetuar.

O argumento intelectualista (ou falta de) para seu construtivismo

Disse anteriormente que uma das principais motivações da leitura

intelectualista, e que me parece ser o seu maior mérito, é que ela procura dar conta do

aspecto construtivista do idealismo de Kant, segundo o qual nosso entendimento

desempenha um papel na constituição dos objetos empíricos e da própria natureza (e

não apenas de nossos juízos acerca dos mesmos, como as interpretações que defendem

24 Ainda que se conceda que a sensibilidade opere uma transformação radical do recebido, mas essaoperação seria puramente mecânica, e não uma síntese da espontaneidade que agiria segundo regrasconceituais ou “proto-conceituais”.

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um idealismo demasiadamente modesto e próximo do empirismo clássico), e que isso se

dá, de acordo com o texto kantiano, mediante a introdução de sínteses sensíveis, que

ligam o que a sensibilidade oferece. A pergunta que surge então naturalmente é: qual

argumento a filosofia de Kant oferece para a introdução dessas sínteses sensíveis como

condições constitutivas da experiência ou dos objetos fenomênicos? Parece-me evidente

que algum argumento tem de ser dado, afinal, a tese de que são exigidas sínteses para a

percepção de objetos é uma tese caracteristicamente kantiana, que marca uma ruptura

com toda a tradição filosófica, e forma um dos pilares do seu idealismo transcendental e

de sua revolução copernicana, de modo que não se pode aceitar isso como uma premissa

da qual Kant simplesmente parte.

É claro que, se a síntese é condição já da intuição, como afirma a leitura

intelectualista, então ela será também condição da percepção de objetos e da

experiência, mas em tal caso a pergunta passa a ser: qual argumento a filosofia kantiana

oferece para afirmar que toda intuição, toda representação sensível, requer sínteses do

entendimento? Novamente, aqui se trata de uma tese bastante forte, que não encontra

precedentes na tradição filosófica, de modo que não faz sentido defender que ela seria

pressuposta por Kant, pois isso enfraqueceria irremediavelmente todo seu sistema.

Não nego que se possa encontrar algumas passagens da Crítica onde essa tese

intelectualista parece sugerida ou afirmada. Mas não me interessa neste momento onde

podemos enxergar a mera asserção de tal tese (mesmo porque tais passagens estão

longe de serem inequívocas25), e sim qual argumento Kant poderia fornecer para a

mesma, qual seu fundamento filosófico. E nesse ponto tão fundamental, as leituras

intelectualistas se mostram todas extremamente insatisfatórias, sendo incapazes de

fornecer uma justificativa para a introdução de sínteses sensíveis.

Poderia ser dito que a sensibilidade nos oferece apenas um material sensório

sem estrutura alguma e que este precisa ser organizado por uma síntese. No entanto,

claramente isso apenas empurra o problema, justificando uma tese implausível apelando

para outra tão implausível quanto; ainda assim, muitos intérpretes parecem tomar essa

postulação da existência de dados sensórios como uma premissa básica da filosofia

25 Por exemplo, ainda que o §26 e sua nota possam, prima facie, ser lidos como afirmando que todasnossas representações sensíveis requerem sínteses, não encontramos aí nenhum argumento razoávelpara tal tese.

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kantiana, a qual ele próprio não teria, nem poderia ter tornado explícita. Dieter Henrich,

por exemplo, afirma:

Se se aceita o ponto de vista dos dados sensórios[Datensensualismus], então a aceitação de uma atividadesintética de consciência se torna também inevitável. (1976,p. 134, ênfase minha)

Sellars também defendia tratar-se de um postulado da filosofia de Kant:

[O múltiplo de impressões] é postulado, em vez de‘encontrado’ … O conceito de um tal múltiplo é, em termoscontemporâneos, um constructo teórico. Chamemos,seguindo Kant, de ‘impressões sensíveis’ os itens queformam tal múltiplo, e exploremos independentemente aideia que é razoável postular a existência de impressõessensíveis. (1968, p. 9).

Historicamente, parece-me que é assim que o construtivismo de Kant tem sido

tratado pelos intérpretes: como sendo ou uma assumpção de dados sensórios (i.e. de

algo pré-intuição e que constitui seu material), ou uma assumpção direta de que sínteses

do entendimento são exigidas pela intuição. Kemp Smith, por exemplo, já afirmava que

a doutrina da síntese é uma “assumpção fundamental que Kant não sonha em questionar

e que em lugar nenhum tenta oferecer uma prova” (1918, p. 284); A. C. Ewing, na

mesma linha, dizia que “[a doutrina da síntese] é asserida como um axioma, em vez de

baseada num argumento” (1938, p. 115). Para um exemplo mais recentemente, Hannah

Ginsborg afirma ser uma “assumpção geral que a experiência perceptiva envolve a

atividade do entendimento”, defendendo que Kant fornece um argumento apenas para a

tese mais específica de que “a experiência tem de estar sujeita aos conceitos puros pelos

quais toda atividade do entendimento é restringida”. (2006, pp. 71-2). Mas nesse caso,

se é uma assumpção a tese de que sínteses sensíveis da espontaneidade são necessárias

para a experiência perceptiva, e não uma tese para a qual Kant fornece um argumento,

então temos que o idealismo construtivista kantiano é assumido, em vez de provado, é o

ponto de partida de sua filosofia, e não sua conclusão, de modo que uma defesa desse

idealismo, assim como da revolução copernicana, é uma grande petição de princípio, se

se pretende ser um argumento. De modo que, que nos restaria admitir que Kant nos

oferece apenas “uma descrição, uma estória”, ainda que entrecortada por argumentos

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aqui e ali, como afirma Strawson, mas que, se quisermos examinar a filosofia kantiana

de um ponto de vista estritamente argumentativo-sistemático, o melhor a fazer seria

“descartar a estória da síntese”, e reconstruirmos uma teoria deflacionada de Kant, sem

essas extravagâncias idealistas (cf. 1966, pp. 86 e 32), como o fazem as leituras

extremamente empiristas mencionadas no ínicio.

Assim, ao mesmo tempo que as leituras intelectualistas têm um forte apelo por

prometerem dar conta do idealismo construtivista kantiano, elas só o fazem

transformando esse idealismo num pressuposto da filosofia kantiana, o que parece

retirar da mesma completamente seu atrativo (sem mencionar os inúmeros problemas

que ela incorre, vistos acima).

Encerro aqui a parte negativa desta tese, onde rejeito qualquer leitura

intelectualista de Kant, tanto pelas incompatibilidades exegéticas que cria quanto pelos

problemas filosóficos que engendra, sendo os mais graves, a meu ver: (i) que ela retira o

fundamento do idealismo kantiano (do lado do entendimento, ainda que não do lado da

sensibilidade), tornando injustificada a introdução de sínteses sensíveis e, assim, a

participação necessária do entendimento na constituição da experiência perceptiva; e (ii)

que nenhuma regra do entendimento parece poder formar intuições a partir de dados

sensórios, pois tais regras parecem necessariamente sub-determinar qualquer intuição

empírica.

* * *

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2. O fundamento da síntese e do idealismo construtivista

A rejeição de uma leitura intelectualista da Crítica tem como contraparte

positiva que uma intuição não pode exigir sínteses do entendimento, sendo antes um

efeito imediato, passivo, da afecção dos sentidos por algo transcendentalmente externo

– “não é nada mais do que receptividade” –, de modo que as qualidades sensíveis que

encontramos nela, apesar de dependerem da nossa constituição subjetiva sensível (i.e.

dos nossos sentidos), não dependem em nada de atividades intelectuais. Isso significa

que, na intuição que tenho de um cachorro, não é meu entendimento que “traça o

formato do cachorro” segundo um conceito (o que como vimos é absurdo, visto que

nenhum conceito é capaz disso: nem o conceito de animal, nem o de cachorro, nem o de

labrador, nem o de labrador-filhote-perneta, etc); na percepção de uma maçã, sua cor e

seu formato independem de uma síntese, e tampouco há uma síntese simultânea, por

inerência (segundo a categoria de substância), dessas qualidades no que seria uma

“substância-maçã”. Essa imagem que frequentemente é feita da filosofia kantiana,

baseada numa leitura extremamente idealista, que intelectualiza toda intuição e que faz

cada qualidade percebida depender de atividades e regras intelectuais, deve ser

recusada.

Mas onde então Kant insere as sínteses sensíveis e, com elas, as categorias

como ingredientes necessários da experiência perceptiva? Ou seja, o que engendra o

idealismo construtivista de Kant e, mais importante, qual argumento ele oferece em prol

desse idealismo no qual é o nosso entendimento que possibilita os objetos da

experiência? É essa questão que trato agora.

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A consciência do tempo e a exigência de uma síntese

No §15, Kant afirma que o conceito de síntese envolve tanto o de diverso

quanto o de unidade, o que me parece uma tese incontroversa apenas se por ‘diverso’

(Mannigfaltig) ele significa um diverso quantitativo, uma pluralidade, de modo que

seria dito que só há síntese se houver uma pluralidade de elementos distintos,26 sendo o

papel da síntese justamente o de ligá-los, produzindo assim uma unidade (sintética) a

partir dessa pluralidade. Em contrapartida, a tese que um diverso meramente qualitativo

(i.e. que apresenta somente uma variedade ou não-homogeneidade) exige por si próprio

uma síntese não pode ser atribuída a Kant, pois ela não apenas é extremamente

implausível (o que exigiria portanto algum argumento da parte de Kant, em vez de ser

apenas afirmada como uma trivialidade, como essa passagem faz)27, mas também é

negada pelo próprio Kant nas várias ocasiões onde fala da representação de um

quantum28 — i.e. de um todo que é anterior às suas partes, no sentido em que não é

formado por partes, ao contrário, o que se toma como “partes” seriam apenas

subdivisões possíveis do todo — os quais, entretanto, nem por isso deixam de conter

uma diversidade.

Assim, é preciso justificar primeiramente em que sentido se pode falar de um

múltiplo quantitativo, de uma pluralidade numérica, de representações. Em certo

momento da Dedução-A, Kant diz que, “porque na mente diferentes percepções são

encontradas em si dispersas [an sich zerstreut] e separadas, é preciso uma ligação das

mesmas que elas não podem ter no próprio sentido” (A120). Ou seja, a necessidade da

síntese passa pela admissão da tese de que há uma pluralidade de percepções em si

dispersas (ainda que sua aceitação não seja suficiente para justificar a necessidade de

sínteses). Essa tese também é encontrada na edição-B, onde Kant diz que “a consciência

empírica que acompanha diferentes representações é em si dispersa [an sich zerstreut]”

26 Cf. A77/B103: “é a síntese quem propriamente recolhe os elementos para as cognições e os reúnenum certo conteúdo” (itálico meu).

27 Afinal essa tese diria que mesmo a representação de um borrão cinza requer sínteses (e isso semapelar para dados sensórios, para uma receptividade, para nada; estaria sendo dito que a noção deuma diversidade já exigiria sínteses). Obviamente, isso é o que o intelectualismo mais deseja, maspara o qual não encontra qualquer argumento.

28 Também chamado totum analyticum ou quantum continuum, e que se opõe às noções de composto,quantitas, quantum discretum e totum syntheticum.

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(B133). Mas em que sentido Kant pode falar de “consciências empíricas ou percepções

em si dispersas” e no que essa tese se baseia? 29 E como essa tese de que há percepções

dispersas se relaciona com a tese de que toda experiência perceptiva requer a síntese de

uma tal pluralidade de percepções?30

Logo no início tanto da Dedução-A quanto da Dedução-B, Kant parece indicar

em que sentido ele fala de uma pluralidade de percepções. Em A99, temos:

[o múltiplo da intuição] não seria representado como tal [i.e.como múltiplo] se a mente não distinguisse o tempo nasucessão das impressões umas às outras.31

Já no §15 da Dedução-B, encontramos:

Na medida em que se fala do múltiplo, a consciência de umarepresentação deve ser distinguida sempre da consciência daoutra. (B131n)

Na passagem da Dedução-A, parece que é na medida em que se sucedem umas às outras

que as representações constituem um múltiplo. Já na Dedução-B é enfatizado, não a

sucessão, mas a distinção entre a consciência de uma representação da consciência de

outra representação como estando na base de um múltiplo de representações (mesmo se,

como esclarece essa mesma nota do §15, o conteúdo dessas representações for idêntico).

Apesar das diferenças que exibem, tais passagens podem ser lidas como apresentado

apenas diferentes enfoques. Tomadas conjuntamente, elas parecem afirmar que a

consciência de uma representação num momento t1 é necessariamente distinta da

29 Para a identificação entre ‘percepção’ e ‘consciência empírica’, cf. por exemplo B207: “A percepçãoé a consciência empírica, ou seja, uma consciência em que há simultaneamente sensação”). Entendopor ‘consciência empírica’ a “consciência do meu estado”, subjetiva, que Kant opõe à ‘consciênciaem geral’ (Prol §20, 4:300). Kant não usa essa expressão sempre nesse sentido, significando por elaàs vezes uma consciência empírica objetiva, e que portanto já envolve sínteses (por exemplo, emB160 e B202).

30 Cf. A114: “Porém, se pensarmos que essa natureza nada é em si senão um conjunto de fenômenos,por conseguinte, não uma coisa em si, mas simplesmente uma multidão de representações do ânimo”.

31 O termo ‘impressões’ (Eindrücke) não é um termo técnico kantiano, e defendo que deve ser entendidoaqui, e em todas as passagens da Crítica onde aparece, no sentido que Hume lhe confere, a saber,como significando representações sensíveis empíricas, i.e. as intuições empíricas kantianas (e nãocomo dados sensórios pré-intuição, como faz a leitura intelectualista). Tal é o mesmo sentido queaparece na Introdução-B, quando é dito que é a atividade do nosso entendimento que “converte omaterial bruto das impressões sensíveis numa cognição de objetos que se chama experiência” (B1), oque também ratifica a interpretação proposta que distingue ‘matéria’ (abstração metodológica) de‘material’ (elemento constitutivo; no caso, intuição).

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consciência de uma outra representação num momento t2 (independente do conteúdo

qualitativo de ambas), ou seja, teríamos que as representações conscientes se distinguem

no tempo, na sucessão, sendo portanto temporalmente que o múltiplo deve ser

entendido.

Essa tese de que as percepções se sucedem umas às outras na nossa mente era

explicitamente defendida por todos os empiristas clássicos, incluindo Locke, Berkeley e

Hume;32 já a tese de que essas percepções (com as consciências empíricas que as

acompanham) são “em si dispersas” (an sich zerstreut),33 é marcadamente humeana, que

afirmava que “cada percepção distinta … é uma existência distinta, e é diferente,

distinguível, e separável de qualquer outra percepção” (Tratado, 1.4.6, §16). Em seu

livro Investigação sobre o Entendimento Humano, publicado originalmente em 1748,34

Hume dizia que:

pela experiência aprendemos apenas a conjunção frequentede objetos, sem sermos jamais capazes de compreender algocomo uma conexão entre eles. (vii §21)

Ou ainda:

Todos os eventos parecem inteiramente soltos e separados.Um evento segue outro, mas jamais nos é dado observarqualquer laço [tie] entre eles. Eles parecem conjugados[conjoined] mas nunca conectados. (vii §26).35

32 Locke afirma no seu Ensaio: “se olhamos imediatamente em nós mesmos [into our selves], erefletimos sobre o que é aí observável, descobriremos, enquanto acordados ou tendo algumpensamento, nossas ideias sempre passando em caravana [in train], uma indo e outra vindo seminterrupção.” (Ensaio, II.7.9). Berkeley, por sua vez, dizia que “percebemos uma sucessão contínuade ideias” (Princípios, §26), e fala que observamos uma “caravana [train] e sucessão de ideias nasnossas mentes”. Igualmente, Hume defendia que “podemos observar que há uma sucessão contínuade percepções na nossa mente” (Tratado, i.2.5). Também Baumgarten: “Assim como os estados domundo seguem-se uns aos outros, e os meus estados seguem-se uns aos outros, do mesmo modotambém as representações de seus estados presentes seguem-se mutuamente umas às outras” (§541)

33 Cf. também B133: “a consciência empírica que acompanha diferentes representações é em si dispersa[an sich zerstreut] e sem referência à identidade do sujeito. Esta referência não ocorre pelo simplesfato de eu acompanhar com a consciência toda representação […].” No §1 da Antropologia,encontramos: “[os primeiros meses da infância] não foram a época das experiências, massimplesmente a época de percepções dispersas ou ainda não reunidas sob o conceito do objeto.”(7:128).

34 Kant muito provavelmente leu essa obra de Hume, cuja primeira edição alemã data de 1755.

35 Cf. também: “apenas aprendemos pela experiência a conjunção frequente de objetos, sem sermosjamais capazes de compreender algo como uma conexão entre eles.” (ibid. §21)

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É essa posição de Hume que penso ser expressa por Kant quando diz que em si

mesmas as percepções ou consciências empíricas são dispersas e separadas, e o que

precisamente constitui a razão pela qual ambos os filósofos põem em questão a validade

objetiva dos conceitos de causalidade e de substância. Ou seja, é porque as percepções

não podem nem por si mesmas ligarem-se uma às outras, nem se pode observar algo

que as conecte, nem uma pode ser deduzida analiticamente da outra (sendo ao contrário,

logicamente possível que qualquer percepção se suceda a uma outra), que, para ambos,

as percepções são em si separadas, distintas e logicamente independentes.36

De sua parte, Kant pretende mostrar que a experiência perceptiva exige como

condição de possibilidade uma ligação bem mais forte entre as percepções do que a que

a ligação humeana por mera associação imaginativa. Penso que agora, após havermos

estabelecido que o diverso/múltiplo sensível do qual Kant trata tem de ser um múltiplo

quantitativo (i.e. uma pluralidade, e não algo apenas qualitativamente diverso ou

variado),37 e que tal múltiplo é temporal (i.e. que concerne percepções ou consciências

empíricas em momentos distintos, e não de um múltiplo de representações sensíveis que

seriam simultâneas, apreendidas num único momento),38 em suma, ao atentarmos que

esse é o material sintetizado pela espontaneidade, i.e. percepções numérica e

temporalmente distintas, o argumento de Kant para a introdução de sínteses sensíveis se

torna evidente (e suficiente para seus propósitos). O raciocínio é que se houvesse

apenas aquela consciência empírica que acompanha cada percepção, aceita por Hume e

pela tradição, não seria possível termos consciência de um múltiplo temporal de

percepções, i.e. não teríamos consciência da sucessão das mesmas, mas sempre somente

consciência de uma única percepção: a percepção presente; como Kant coloca

claramente mais adiante, “na mera sucessão a existência está sempre em vias de

36 Cf. A176/B219: “a apreensão [sucessiva] é apenas a justaposição do múltiplo da intuição empírica,mas nela não se encontra nenhuma representação da necessidade da existência interligada dosfenômenos que ela justapõe”.

37 Assim, apesar de Mannigfaltige poder ter em alemão um sentido tanto qualitativo quantoquantitativo, e de ambos figurarem na Crítica, é o sentido quantitativo que se mostra imprescindívelpara os propósitos de Kant (especialmente na dedução), pois é apenas neste último que se faznecessária a admissão de uma síntese (e ulteriormente das categorias), e não quando há uma meravariedade ou não-homogeneidade. A tradução de Rohden & Moosburger de Mannigfaltige por‘múltiplo’ parece-me, portanto, preferível à de Morujão & Santos e de Mattos, que optam, em vezdisso, por ‘diverso’.

38 A190/B235: “devendo-se portanto dizer: o múltiplo dos fenômenos é sempre produzidosucessivamente na mente”; “a representação do múltiplo na apreensão é sempre sucessiva”

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desaparecer e começar, não possuindo a menor quantidade” (A183/B226) — ou na

quase paráfrase de Bergson: “seria como morrer e nascer de novo continuamente”

(Introdução à Metafísica, p.13). Ou seja, a mera sucessão de percepções em si

dispersas, a mera consciência empírica de cada uma delas não dá conta do fato de que

temos uma consciência da passagem do tempo, de modo que, o fato de que temos

consciência de uma sucessão temporal qualquer prova que temos uma consciência que

abrange um múltiplo de percepções (consciências empíricas) ligando-o numa

consciência una. Esta “consciência una”, diz Kant “que reúne numa única representação

o múltiplo paulatinamente intuído e então também reproduzido” (A103), isto é, esta

consciência de um múltiplo temporal, que só é possível mediante uma síntese de

consciências empíricas, Kant chama de apercepção (seja ela empírica ou transcendental,

subjetiva ou objetiva). Assim, segundo Kant, sempre que se trata da consciência de um

acontecimento ou de uma sucessão de percepções, necessariamente extrapola-se esse

nível mais básico e imediato da consciência (awareness) — que não envolve qualquer

atividade, e que era a noção tradicional de consciência, como mera e passiva

“observação mental”— e exige-se esse nível de uma autoconsciência ou apercepção:

uma consciência una que envolve um múltiplo de consciências distintas e cuja

possibilidade requer atividades de síntese da espontaneidade.39 40

Se o exposto até aqui está correto, Kant parece ter um argumento ao menos

39 Essa mesma ideia aparece no §16: “é somente porque posso ligar um múltiplo de representaçõesdadas em uma consciência, que é possível que eu me represente a identidade da consciência nessasmesmas representações” (B133); aqui aparece de novo a ideia de várias consciências distintas queacompanham cada representação, e que só posso concluir pela identidade dessas diferentesconsciências porque posso ligá-las todas numa consciência una.

40 As consciências empíricas possuem uma forma a qual permite essa unidade da consciência; tal formaé o que Kant entende por “apercepção pura”, que é numericamente idêntica (Cf. A116: “pois estas[sc. as representações] só representam algo em mim na medida em que pertencem, com todas asoutras, a uma [única] consciência, portanto elas têm que ao menos poderem ser conectadas nela”). A‘apercepção pura’ é o princípio que afirma a necessidade das nossas representações poderem estarconectadas a uma única consciência (que Kant também chama de princípio transcendental daunidade): “Todas as representações têm uma relação necessária a uma consciência empírica possível”,e “toda consciência empírica tem, porém, uma relação necessária uma consciência transcendental(que precede toda experiência particular)” (A117n); essa consciência transcendental é a forma daconsciência, é a apercepção pura, a priori, (assim como espaço e tempo são a forma a priori, pura, daintuição empírica, e antecedem-na logicamente). Depois ele diz que “o eu…é a consciênciatranscendental”, a apercepção como faculdade (cf. A94); “o eu estável e permanente (da apercepçãopura) constitui o correlato de todas as nossas representações, na medida em que seja simplesmentepossível tornar-se consciente delas, e tanto toda consciência pertence a uma apercepção pura, quetudo abarca, quanto toda intuição sensível pertence como representação a uma intuição interna pura, asaber, o tempo” (A123)

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razoável para provar, em vez de simplesmente assumir gratuitamente, que nossa

experiência perceptiva requer sínteses sensíveis41 — além de que esta atividade deve ser

atribuída à faculdade da imaginação, já que esta é classicamente entendida como

responsável por representar intuitivamente algo que não está mais presente. Isso

evidentemente não quer dizer que o argumento apresentado é de todo incompatível com

a leitura intelectualista, a qual poderia talvez integrá-lo — alegando presumivelmente

que, além dessa síntese temporal que o intelectualista aceitaria, há também uma outra

síntese que é meramente espacial, que constitui cada intuição, o que, contudo, como

vimos, é muito problemático. Entretanto, esse argumento mostra apenas que é

necessário uma síntese sucessiva (que é àquela textualmente caracterizado por Kant), a

qual toma como seus elementos representações sensíveis conscientes (percepções) – e

não dados sensórios – e cujo resultado é sempre, mediante uma ordenação destas, a

formação de uma série temporal de percepções42 — não servindo tal argumento de

modo algum para provar que uma síntese é requerida para a produção de cada intuição

ou percepção, como afirmam as interpretações intelectualistas. Que esse é o papel que

cabe ao entendimento na constituição da experiência penso ser expresso de modo

preciso por Kant em duas passagens da dedução transcendental: na primeira edição,

quando diz que é “no tempo que todas as nossas cognições têm de ser ordenadas,

conectadas e postas em relações” (A99), e na segunda edição, quando diz que “o

entendimento apenas liga e ordena o material do conhecimento, a intuição” (B145).

Ambas as passagens explicitam de modo exato o ponto que procurei fazer aqui, sobre

como se dá a relação entre sensibilidade e entendimento, mediante a atuação da síntese

sensível: o que a síntese faz é ORDENAR NO TEMPO INTUIÇÕES, as quais já se encontram

formadas na sensibilidade — e não produzir intuições, imagens, atuando de modo não-

sucessivo, nem tendo como base meros dados sensórios. Isso significa que o sentido de

forma que o entendimento impõe à experiência é completamente diferente daquele que a

sensibilidade impõe à intuição: no caso do espaço e do tempo, trata-se da forma de uma

matéria (a intuição é algo como um composto hilemórfico, no qual só por abstração

41 O que constitui apenas um primeiro passo da dedução transcendental, que em seguida mostraria quenossa experiência perceptiva exige sínteses necessárias, i.e. governadas por conceitos.

42 O que me parece encontrar confirmação também no Esquematismo, onde não só “não há mençãoexplícita ao espaço” (como diz Strawson), como é dito que as categorias (como conceitosdiscursivos) só subsumem certas relações temporais entre os fenômenos, pois é apenas aí, onde,enquanto funções de síntese, elas foram colocadas pelo entendimento.

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metodológica podemos separar sua forma e matéria)43; já no caso das categorias, trata-se

da forma imposta a um material que independe da forma intelectual que ele pode vir a

receber, pois tal forma apenas organiza esse material que a sensibilidade oferece já

pronto (as intuições).44

Assim, não havendo síntese “interna” a cada intuição, mas apenas na relação

que o entendimento estabelece entre as intuições (ou seja, na sua “determinação no

tempo”), então as categorias também só operam nessa relação, nessa conexão temporal

das intuições. Isso parece encontrar confirmação no Esquematismo, onde é explicitado

que os esquemas transcendentais, mediante os quais as categorias (enquanto conceitos

discursivos) subsumem a experiência, são todos temporais, não sendo os esquemas mais

do que “determinações a priori do tempo segundo regras, e estas se referem… à série

do tempo [Zeitreihe], ao conteúdo do tempo [Zeitinhalt], à ordem do tempo

[Zeitordnung], enfim ao conjunto do tempo [Zeitinbegriff]” (A145/B184). Essa

interpretação também é corroborada nas Analogias da Experiência, onde é novamente

repetido que a categoria de substância — que é frequentemente considerada como sendo

responsável por ligar por inerência as propriedades a um objeto, uma ligação que

ocorreria portanto internamente a uma intuição e que seria não-sucessiva — na verdade

apenas liga de uma certa maneira no tempo uma sequência, um múltiplo temporal, de

intuições conscientes (percepções).

* * *

43 Cf. B457: “[o que aparece e o espaço] se ligam em uma e mesma intuição empírica como sua forma ematéria.”

44 Assim como a forma do juízo é apenas um modo de relação dos conceitos, que são o material dojuízo, e podem existir independentemente do seu uso num juízo.

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Parte II. Realismo Empírico: características econceitos empíricos

Introdução

Se, por um lado, é verdade que Kant nunca forneceu um tratamento sistemático

dos conceitos empíricos, por outro, é igualmente verdade que encontramos espalhadas

em sua obra dezenas de passagens onde oferece breves elucidações sobre a natureza e

origem dos mesmos, havendo na própria Crítica da Razão Pura material suficiente para

ao menos delinear-se os traços mais básicos do que seria sua teoria dos conceitos

empíricos. Tais passagens são, contudo, persistentemente desprezadas pelos

comentadores que tratam do tema, o que se deve, acredito, por oferecerem pouco ou

nenhum suporte para suas interpretações; pelo contrário, em geral elas apontam para um

tratamento bem mais próximo do encontrado em filosofias empiristas, sendo, portanto,

incompatível com essas interpretações, as quais, partindo em geral de uma leitura

intelectualista, são obrigadas a atribuir um papel bem distinto (e mais fundamental) aos

mesmos: o de guiar ou governar a síntese da apreensão do diverso, a qual constituiria

primariamente as imagens perceptivas dos objetos que correspondem a esses

conceitos.45 Assim, da perspectiva intelectualista, o fato de Kant não dedicar mais

atenção aos conceitos empíricos seria uma falha grave, uma vez que, segundo essa

45 Cf. R. Pippin (1976): “enquanto regras, conceitos empíricos são necessários para que hajaindivíduos” (p. 164); “‘imagens’ apenas resultam da aplicação do conceito-regra” (p. 165),

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leitura, os conceitos empíricos exerceriam uma função imprescindível para a

experiência perceptiva e para a própria percepção, de modo que deveriam ter recebido

um tratamento sistemático na Crítica.

Ofereço no que se segue, primeiramente, um exame de algumas dessas

passagens onde Kant trata dos conceitos empíricos, procurando descortinar sua teoria

dos mesmos. Num segundo momento, procuro investigar quais são os pressupostos e

implicações filosóficas dessa teoria, com a intenção de afastar alguns dos seus

problemas.

Matéria e forma das representações

Vimos que a leitura intelectualista duplica os sentidos de forma e matéria das

intuições empíricas, pois, primeiramente, pode-se falar num material destas intuições

como sendo os dados sensórios ligados por uma síntese segundo regras, para formar a

intuição empírica, de modo que a forma desta última, i.e. sua organização, estrutura e

unidade, são devidas (também) às regras do entendimento; e, num segundo sentido,

pode-se deixar de lado esse processo de formação da intuição empírica, e ater-se apenas

ao resultado final, como um produto pronto, e então temos que se pode distinguir a

forma espaço-temporal de uma intuição empírica das diversas qualidades sensíveis

particulares que ela apresenta, que são tomadas como a matéria desta. Ou seja, segundo

o intelectualismo, a intuição teria tanto uma forma intelectual, fornecida pelo

entendimento, quanto uma forma sensível, fornecida pela sensibilidade. Como espero

ter ficado claro pelo que foi dito anteriormente, rejeito todo esse processo de formação

de uma intuição por meio de sínteses do entendimento, e trato-a como resultado

imediato da afecção dos sentidos por algo externo, envolvendo portanto somente a

faculdade receptiva. A ideia é que a intuição empírica é uma unidade, um todo contínuo,

não produzido por síntese de elementos, no qual podemos distinguir uma matéria de

uma forma, sendo a forma, espaço e tempo; e a matéria, as qualidades sensíveis

particulares que encontramos em cada intuição empírica, i.e. a sensação (da qual só

falamos em separado da forma por abstração metodológica, não sendo possível sem a

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forma espaço-temporal).46

Quanto aos conceitos, da perspectiva da lógica geral, a noção de matéria destes

não se distingue da noção de seu conteúdo (intensão),47 referindo-se portanto apenas à

conjunção de outros conceitos, que são considerados nessa medida como conceitos

parciais. E, sendo um conceito parcial sempre mais geral do que aquele do qual ele é o

conteúdo (i.e. do que o conceito “total”), um conceito parcial contém sob si o conceito

de cujo conteúdo ele faz parte (que lhe é sempre inferior). E, na medida em que um

conceito parcial pode também estar contido no conteúdo, não apenas de um conceito,

mas de muitos outros conceitos, sendo portanto comum a vários, ele é considerado como

uma característica (Merkmal), sendo enquanto característica, i.e. enquanto contido em

vários, que o conceito tem uma esfera (ou extensão). De modo que, ao dizer que a

característica é o “fundamento cognitivo” de algo, no caso, dos conceitos nos quais ela

está contida, Kant está dizendo que, ao menos no que tange o entendimento, conhecer

uma coisa é simplesmente conhecer o que ela tem em comum com outras coisas. Deste

modo, a noção de característica é essencial para se entender a noção de discursividade

do nosso conhecimento, como fica claro na seguinte passagem da introdução da Lógica

de Jäsche:

O conhecimento humano, é da parte do entendimento,discursivo, i.e. se dá mediante representações que tomamcomo fundamento cognitivo aquilo que é comum a váriascoisas, portanto, mediante características enquanto tais(9:58).48

Com isso, vemos que, para Kant, a lógica geral é: i) intensional, pois, tanto a

identidade dos conceitos (o que distingue uns dos outros), quanto suas relações de

46 Em A175/B217, Kant cita as cores e o sabor como exemplos da “qualidade da sensação”.

47 Cf. L. Jäsche: “A origem dos conceitos quanto à sua matéria – segundo a qual um conceito é ouempírico, ou arbitrário, ou intelectual – é examinada na Metafísica.” (Ak 9:94). Ou seja, na lógicageral os conceitos têm uma matéria, mas suas diferenças quanto à origem são deixadas de lado.

48 Ou seja, enquanto conceito parcial, um conceito aponta apenas para o conceito no qual ele estácontido (como uma parte deste); enquanto característica, um conceito aponta para os outrosconceitos nos quais ele também está contido (como uma parte de outros conceitos sendo comum aestes). Por exemplo, admitindo que o conceito de ‘humano’ significa ‘animal racional’, o conceito de‘animal’ é um conceito parcial relativamente ao conceito de ‘humano’ (que é a representação total); jáquando penso o conceito ‘animal’ como contido no conceito de ‘humano’, de ‘baleia, de ‘cachorro’,etc, ele é considerado como característica (comum) destes conceitos.

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subsunção são determinadas pelos conteúdos dos mesmos;49 e ii) apenas formal, já que

trata somente das relações de inclusão ou exclusão, total ou parcial, que os conteúdos

dos conceitos e, consequentemente, suas esferas, possuem entre si, deixando de lado a

materialidade dos mesmos — sua origem e sua relação com objetos particulares.

Mas é precisamente por sua base “material” que, segundo Kant, um conceito

deixa o campo do puro pensamento e se relaciona a algo extra-conceitual, e tem assim

alguma objetividade, pois, “a mera forma do conhecimento, por mais que também

concorde com as leis lógicas está longe de bastar para constituir a verdade material

(objetiva) do conhecimento”; ao contrário, para julgar e afirmar algo sobre objetos é

preciso “ter obtido, fora da lógica, uma bem-fundada informação sobre estes”

(A60/B85). Apesar de isso valer também para as categorias enquanto conceitos

conscientes e refletidos,50 cuja matéria provém das funções de síntese,51 trataremos em

seguida apenas dos conceitos empíricos.

49 Sendo por isso que a relação de subsunção é chamada de “analítica” por Kant, já que uma análise doconteúdo de um conceito estabelece sob quais conceitos ele é subsumido, podendo a subsunção serentendida como uma relação de parte e todo. Cf. A78/B104: “Diferentes representações são reunidassob um conceito, analiticamente.” E sendo por isso também, arrisco-me, que ele chama a consciênciade diferentes representações sob um conceito, de “unidade analítica da consciência” (cf. B133n).Compare também com a caracterização, na Crítica do Julgar (§77), da discursividade do nossoconhecimento e do nosso entendimento, como “dependente de imagens” (Bilder bedürftigen), e comoindo da parte – “do universal-analítico (de conceitos)” – para o todo – “para o particular (para aintuição empiricamente dada)”; em oposição a um “entendimento intuitivo” que “vai do todo para aspartes.”

50 Cf. A196/B241: “só podemos extrair da experiência [os conceitos puros do entendimento] comoconceitos claros, porque os pusemos na mesma, e portanto a constituímos mediante tais conceitos.”

51 Cf. §10, e Postulados, A220/B267. O caso das categorias é mais complicado porque, a matéria dasmesmas, não se encontra nas intuições, mas na síntese (pura) de percepções. “É apenas, pois, porqueesses conceitos [sc. causalidade, substância] exprimem as relações das percepções em qualquerexperiência, de maneira a priori, que se reconhece a realidade objetiva dos mesmos” (A221/B269).Ou seja, num juízo “A causou B” a realidade objetiva do conceito de causa fundamenta-se não nasintuições A e B (pois nestas não intuo nenhum poder causal), nem nos conceitos de A e B (a relaçãode causa e efeito não analítica), nem na sucessão de A a B (pois esta não me dá necessidade alguma),mas na síntese que o entendimento imaginativo (ou imaginação regrada) faz. O que justifica oemprego de um conceito que envolve necessidade à experiência, é que a forma intelectual daexperiência é uma regra ou função de síntese. O que garante a possibilidade real (não meramentelógica) de um objeto ter permanência é a função de síntese (da substância), que constitui a forma(intelectual) da experiência.

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Conceitos empíricos

Logo no primeiro parágrafo da Lógica Transcendental, Kant faz uma afirmação

sobre os conceitos empíricos que parece passar desapercebida pelos comentadores que

tratam do tema:

conceitos são empíricos se uma sensação (que pressupõe apresença real do objeto) está neles contida; puros, pelocontrário, se nenhuma sensação se mistura à representação.Esta última pode ser considerada a matéria da cogniçãosensível. (A50/B74)

É dito aí explicitamente que a sensação está contida (enthalten ist) no conceito

empírico, e, indiretamente, que ela se encontra misturada neste, ou seja, o que parece

dizer que um conceito empírico contém uma representação intuitiva. Essa tese é um

tanto inusitada, levantando de imediato três problemas que comprometem sua aceitação,

e portanto uma leitura literal dessa passagem.52

Primeiramente, essa tese de que o conceito pode conter algo de intuitivo (como

uma sensação), parece contradizer a heterogeneidade das faculdades e das suas

respectivas representações (conceitos sendo produtos do entendimento, e intuições, da

sensibilidade), assim como parece dizer que o entendimento de algum modo intui algo

da sensibilidade, o que é expressamente negado por Kant.53

Em segundo lugar, Kant expressaria em algumas passagens que conceitos são

regras (notadamente em A106), o que parece implicar que seriam puramente formais, o

que também seria corroborado pelo fato que conceitos são produtos do entendimento, e

que este é identificado como a “faculdade das regras” (cf. A126 e A132/B171), e isso

parece contradizer também a ideia de que neles uma pode “uma sensação estar contida”.

Ou seja, a ideia aqui é que Kant frequentemente visto como rompendo com a tradição

filosófica, que tomava o conceito como uma representação, um conteúdo mental, e

inaugurando assim uma noção de conceito que hoje é bastante difundida, de conceito

52 Cf. também L. Dohna: “[o conceito é empírico] quando há sensação na sua representação (para cujaexistência é preciso que a experiência preceda. O material de toda representação empírica ésensação)” (24:752, itálico meu).

53 Cf. A51/B75: “O entendimento nada pode intuir, e os sentidos nada podem pensar”; cf. também B92.

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como uma disposição, uma habilidade para fazer algo. Essa interpretação é expressa

exemplarmente por R. P. Wolff, quando diz: “Conceitos para Kant deixam de ser coisas

(conteúdos mentais, objetos de consciência) e se tornam maneiras de fazer coisas

(regras, formas de atividade mental)” (1963, p. 70).

Em terceiro lugar, encontramos o termo ‘conceito’ sendo definido como uma

representação universal [allgemeine] (L. Jäsche, 9:91), e no Stufenleiter como uma

“representação mediata, que se refere a objetos por meio de uma característica, que

pode ser comum a várias coisas” (A320/B377). Desse modo, sendo caracterizada como

uma representação universal, uma representação de algo “comum” a muitas coisas, não

parece fazer muito sentido dizer que um conceito “contém uma sensação”, posto que

estas são sempre particulares.54

Antes de responder a esses questionamentos, procuro, através de um rápido

exame de outras passagens que apontam na mesma direção de que nos conceitos

empíricos uma sensação encontra-se misturada, entender melhor o que essa tese afirma,

e mostrar que não se trata de uma afirmação isolada (o que, em se tratando de Kant,

parece uma conduta necessária, para se evitar construir (ou rejeitar) uma interpretação

baseada numa única passagem que destoa de todo o resto — em tais casos, acredito ser

mais prudente manter em vista o todo, ainda que isso signifique interpretar com bastante

liberdade uma ou outra passagem.

Características (Merkmale)

Mencionamos acima uma definição de conceito apresentada na Crítica, como

sendo uma “representação mediata, que se refere a objetos por meio de uma

característica que pode ser comum a várias coisas” (A320/B377); na Estética, é dito de

54 Poderia ser dito também que, na maioria das vezes, Kant emprega termos bem menoscomprometedores para designar a relação entre conceitos e intuições, preferindo dizer que umconceito “se relaciona”, “se refere” (beziehen), ou “se aplica” (anwenden) a um particular (intuição,percepção, objeto fenomênico), ou então que estes particulares se encontram sob um conceito, semexplicar contudo no que exatamente consiste ou como ocorre essa referência/aplicação/subsunção.(Mas essa objeção pode ser deixada de lado, uma vez que tal preferência por termos mais genéricospode ser facilmente explicada porque a relação dos diferentes tipos de conceitos aos diferentes tiposde intuições e objetos se dá de modo diverso em cada um desses casos.)

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modo similar que é “por meio de certas características” que todo pensamento (que é

sempre discursivo, conceitual) refere-se a intuições ou objetos, não sendo um

pensamento vazio.55 Sendo uma característica (Merkmal) “algo comum a várias coisas”,

e por meio da qual um conceito se refere a objetos, ela é usualmente interpretada56 como

significando apenas um outro conceito que faz parte do conteúdo (intensão) do conceito

do qual se parte; de modo que essas passagens diriam apenas que é por meio do

conteúdo de um conceito que este se refere a particulares (intuições ou objetos

sensíveis). Mas, se fosse este o caso, então, Kant não estaria dizendo por qual meio

conceitos e pensamentos referem-se a particulares, enquanto que é precisamente isso

que essas e em inúmeras outras passagens similares afirmam, i.e. que é mediante as

características que conceitos de fato referem-se a intuições. Ou seja, se

interpretássemos a noção de característica como algo necessariamente conceitual, então,

o que essa passagem diria ao cabo é que conceitos não se referem a objetos, já que em

tal caso seria afirmado que um conceito se refere a objetos por meio de seu conteúdo,

que é composto por outros conceitos, e estes por sua vez devem se referir por meio de

ainda outros conceitos, e assim por diante, postergando então indefinidamente para o

passo seguinte aquilo que efetivaria a referência. Ou seja, nessa interpretação, em vez de

a característica ser aquilo mediante o que um conceito se refere a intuições, a afirmação

de que ela se interpõe entre um conceito e uma intuição implicaria na verdade que ela

impede a efetivação da referência.57

55 Cf. A19/B33: “todo pensamento…precisa, por meio de certas características, referir-se afinal aintuições,…pois de outro modo nenhum objeto nos pode ser dado”. Que a referência se dáprecisamente “por meio de certas características” é a um acréscimo pontual de Kant feito na segundaedição, o que indica sua relevância.

56 Algumas exceções são: Paton (1936, p.200f ), Aquila (1989, p. 56f), Codato (2006) e Smit (2010).

57 Seria como dizer que a referência de uma palavra é estabelecida mediante sua definição nodicionário; e que as palavras que compõem essa definição estabelecem essa referência mediante suasdefinições, e assim continuar indefinidamente em círculos, sem nunca ser capaz de entender a queuma palavra se refere objetivamente. Em verdade, contudo, de acordo com Kant isso não ocorreriapois no conteúdo de um conceito há somente conceitos superiores, i.e. mais gerais, de modo que nãose andaria em círculos como num dicionário, mas antes terminaria no conceito de ‘algo’ (gênerosupremo), o que tampouco melhora a interpretação. Além disso, nessa interpretação seria impossívelque os conceitos indecomponíveis tivessem uma referência, já que eles não possuem conteúdo algum,sendo antes características de si mesmos (como, segundo Kant, é o caso dos conceitos de tempo,representação, síntese, entre outros).

Sobre conceitos indecomponíveis, cf. L. Jäsche: “a série de características subordinadas termina a parteante…em conceitos indecomponíveis que, por causa de sua simplicidade, não se deixam maisdesmembrar” (9:59).

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Essa noção de uma característica intuitiva, i.e. que está contida na intuição e na

experiência, pela qual ao final os conceitos empíricos se referem a algo de existente, não

é desenvolvida na obra de Kant, mas ainda assim a encontramos explicitamente

afirmada na reflexão R2286:

Uma característica é uma representação parcial. Ela é ouintuitiva: uma parte da intuição; ou discursiva: uma parte doconceito, que é um fundamento cognitivo analítico. (R2286,16:299)58

Na Lógica de Jäsche, encontramos uma definição apenas da noção geral de

característica, que serve tanto para conceitos quanto para intuições, como sendo “aquilo

que, numa coisa, constitui uma parte conhecimento da mesma; ou – o que dá no mesmo

– uma representação parcial na medida em que é considerada um fundamento cognitivo

da representação inteira.”59 Contudo, indiretamente há inúmeras passagens na obra de

Kant onde ele fala de uma característica que encontramos/observamos na intuição ou na

experiência. Na própria Crítica, por exemplo, temos:

embora não inclua, no conceito de um corpo em geral, opredicado peso, esse conceito designa um objeto daexperiência mediante uma parte da mesma, à qual possojuntar ainda outras partes da mesma experiência comopertencentes ao conceito [de corpo]. (B12, ênfase minha)

Ou seja, antes vimos que um conceito empírico refere-se a um objeto mediante

uma característica, e como vimos que uma característica é uma “representação parcial”

da coisa, aqui é simplesmente dito por outras palavras a mesma tese: que o conceito de

corpo “designa um objeto da experiência mediante uma parte da mesma”. Essa relação

íntima entre conceito empírico e intuição empírica é afirmada também na direção

oposta, i.e. não apenas o conceito se refere a algo na sensibilidade mediante uma

característica intuitiva que ele contém, como também é dito que a intuição contém uma

característica do conceito. Vide, por exemplo, os Progressos da Metafísica:

58 Adickes data essa reflexão entre 1780 e 1789. Encontrei-a citada em R. Aquila (1983, p. 37) eH. Smit, (2000, p. 254) e Codato (2006, p. 138).

59 O foco na noção de característica discursiva, i.e. enquanto contida num conceito, deve-se ao fato deque “na lógica o assunto nunca é as características de coisas. Nesse caso a lógica se ocuparia com amatéria” (L. Dohna, 24:727)

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se um conceito é obtido da representação sensível, i.e. umconceito empírico, ele contém como uma característica, i.e.como uma representação parcial, algo que já estava contidona intuição sensível… (20:274, itálico meu)

Ou ainda no seio da Dedução-B, na nota do §16, novamente a encontramos:

quando penso o vermelho em geral, represento-me atravésdisso uma propriedade que (como característica) pode serencontrada em algum lugar qualquer, ou estar ligada a outrasrepresentações. (B133n)60

Todas essas passagens parecem comprovar que aquela afirmação do início da Lógica

Transcendental, onde Kant diz que conceitos empíricos “contém uma sensação”, ou

ainda, que a sensação encontra-se “misturada” neles não é nenhum deslize de pena, e

deve ser tomada a sério pelo intérprete. O principal impedimento a ser superado por

essa interpretação é obviamente mostrar que ela não elimina de modo algum a

heterogeneidade entre conceitos e intuições. É a essa tarefa que passo agora.

Heterogeneidade das representações

De partida, face à caracterização de conceitos e intuições como representações

heterogêneas, não parece ser sequer possível invocar a noção de característica como

algo que seria homogêneo a conceitos empíricos e intuições, que os faria se

relacionarem diretamente. Penso, contudo, que ao menos parte dessa dificuldade é

terminológica: a concepção de heterogeneidade que perpassa toda obra de Kant ao

menos desde a Dissertação de 1770, e que é essencial a sua doutrina, concerne

especialmente à ideia de que esses dois tipos de representação derivam de faculdades

heterogêneas, o que lhes confere formas radicalmente distintas, de modo que

representações sensíveis e inteligíveis não podem ser colocados num continuum. Ou

seja, a acepção de heterogeneidade entre conceitos e intuições que é crucial para a

60 Mesmo na Estética Transcendental encontramos uma passagem afirmando essa tese: “Ora, é precisocertamente pensar cada conceito como uma representação contida num conjunto infinito derepresentações diferentes possíveis (como característica comum destas), e que, portanto, contém sobsi tais representações.” (B40)

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filosofia kantiana concerne à defesa de que essas representações distinguem-se em

gênero, e não somente em grau, o que conversamente, implica que é impossível que

uma se transforme na outra por qualquer processo gradual61 — que é justamente como

defendia a tradição leibniziana, que diferenciava as representações sensitivas das

intelectuais por graus de consciência, chamando de ‘sensíveis’ as representações

indistintas, e de ‘intelectuais’ as distintas;62 na própria Dissertação de 1770, Kant critica

diretamente essa caracterização por graus de distinção da consciência, afirmando que

tanto uma representação sensível pode ser “inteiramente distinta”, quanto uma

intelectual pode ser “confusa ao máximo”, fornecendo como exemplos desses casos,

respectivamente, as intuições da geometria e os conceitos da metafísica (cf. §7, 2:394).

Mas, se essa heterogeneidade concerne apenas às formas dessas representações

– i.e. de um lado a forma espaço-temporal imposta pela sensibilidade às intuições, e de

outro a forma da generalidade fornecida pelo entendimento aos conceitos –, é possível

que haja uma outra acepção de heterogeneidade que se refere à matéria das

representações. Defendo que tal é o caso da acepção de heterogeneidade

(/homogeneidade) empregada por Kant no capítulo do Esquematismo, por exemplo. O

fato de Kant falar aí numa heterogeneidade que admite graus, podendo ser, segundo o

caso, maior ou menor, já é uma indicação suficiente de que não se trata da mesma

acepção de heterogeneidade vista anteriormente. Isso é evidenciado tanto quando Kant

afirma que, em outas ciências, intuições e conceitos “não são tão diferentes e

heterogêneos”, quanto quando afirma que “os conceitos puros do entendimento em

comparação com as intuições empíricas (e mesmo sensíveis em geral) são inteiramente

não-homogêneos” (A137/B176).63 Essa interpretação parece também encontrar apoio na

61 Cf. Progressos (20:278): “para Leibniz…a intuição das coisas difere-se do conceito das mesmas, nãoem gênero, mas apenas de acordo com graus de consciência”; A43/B61: “a diferença entre umarepresentação distinta e uma indistinta é meramente lógica.”

62 Cf. Baumgarten: “a faculdade de conhecer distintamente, i.e. o intelecto (em sentido estrito)” (§402);“Então a faculdade de conhecer algo obscuramente e confusamente, ou indistintamente, é a faculdadecognitiva inferior” (§520); “A representação que não é distinta é chamada representação sensitiva”(§521).

63 Penso que é para resolver a dificuldade de uma subsunção entre categorias e intuições empíricas queKant afirma ser indispensável uma “representação intermediadora”, i.e. um esquema transcendental.Um esquema, contudo, não é sempre necessário, motivo pelo qual Kant diz ser em muitos casos“desnecessário dar uma explicação especial” da subsunção quando o conceito “contém o que érepresentado no objeto a ser subsumido sob ele”, sendo então “a representação do primeirohomogênea à do segundo” (ibid.).

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passagem citada acima, onde Kant considera a sensação como “a matéria da cognição

sensível”, uma vez que cognição (Erkenntnis) é um termo que abarca tanto intuições

quanto conceitos (cf. A320/377), sendo a sensação, portanto, homogênea a conceitos e

intuições empíricos. Também, na continuação da passagem dos Progressos da

Metafísica, citada previamente, Kant afirma que um conceito empírico se distingue de

uma intuição empírica “apenas quanto à forma”, o que pode ser interpretado como

dizendo que a matéria é a mesma nos dois casos:

o conceito empírico contém como uma característica, i.e.como uma representação parcial, algo que já estava contidona intuição sensível, e difere da última apenas quanto àforma lógica, a saber, com respeito a sua generalidade.(20:274)

Mas se uma homogeneidade entre intuições e conceitos empíricos não ameaça

a tese da heterogeneidade radical entre intuições e conceitos — já que esta é garantida

pela forma dessas representações, enquanto a aquela refere-se à matéria das mesmas —

e dado seu amplo apoio textual, somos forçados a tomá-la seriamente, em vez de como

um deslize infeliz da parte de Kant. Paton que, para o bem ou para o mal, interpreta o

texto kantiano sempre à risca, reconhece essa tese em Kant:

não me agrada totalmente a afirmação de que fazemosconceitos (no que concerne à forma destes) a partir deintuições dadas. É suficientemente claro que sua visão não étão simples quanto a de Berkeley — que, ao conceber,usamos apenas uma única intuição para representar outras domesmo tipo; pois Kant claramente sustenta que ao conceberestamos interessados naquilo que é comum a diferentesintuições. Entretanto, tem-se às vezes um sentimentodesconfortável de que Kant considera o que é comum comosendo uma intuição individual que recebe sua universalidadeao ser referida a vários objetos diferentes como sua‘característica’. (1936, p. 203)

O diagnóstico que Paton faz, ainda que a contragosto, parece-me correto, i.e.

segundo o texto kantiano, tanto fazemos conceitos empíricos a partir de intuições dadas

quanto intuições particulares podem conter algo de comum, que é tomado como a

matéria do conceito empírico. Pretendo, no que se segue, mostrar a razoabilidade dessa

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tese, e que não há razão para ‘desconforto’.

O particular, o universal, e a semelhança

Nas passagens citadas, vimos inúmeras vezes Kant falar do “comum” (gemein),

dizendo, por exemplo, que o conceito é uma “representação daquilo que é comum a

vários objetos”, ou que conceito “contém aquilo que é comum a várias representações”;

e vimos também que em tantas outras passagens ele se refere a isso que é comum a

vários objetos ou representações e pelo qual o conceito se refere ao objeto, como uma

“característica” (Merkmal),64 falando, por exemplo, na Crítica do Julgar da “variedade

de maneiras que coisas distintas podem ser apresentadas a nossa percepção, as quais

todavia concordam numa característica comum [gemeinsamen Merkmale]” (§77, 5:406),

de modo que é também por ser uma representação mediante uma característica, que o

conceito é afirmado ser uma representação mediata dos objetos.

Essa ideia, contudo, de que as intuições podem ter uma característica comum, a

qual também está contida num conceito, que é definido como representação

geral/universal (allgemein), pode induzir a pensar que há um universal na intuição, o

que contradiria a definição desta como representação “particular”/“singular” (einzeln).

Para investigar essa questão, temos antes de precisar o que esses termos significam. É

contudo difícil encontrar uma definição unanimemente aceita desses termos, tendo cada

filósofo entendido-os de uma maneira diferente. Procuro apresentar então apenas uma

formulação mínima desses termos e que não me parece muito controversa, para

esclarecer como eles serão usados na sequência.

Por universal entende-se costumeiramente uma propriedade que pode estar

presente ao mesmo tempo em mais de uma coisa, de modo que várias coisas são ditas

instanciarem uma mesma propriedade universal. Um universal contrasta portanto com

um particular, que é entendido como um tipo inteiramente distinto de entidade, o qual

64 Cf. A320/B377: “o conceito se refere mediatamente ao objeto, por meio de uma característica quepode ser comum a várias coisas”; Progresso, 20:266: “um conceito, i.e. uma representação mediata,por uma característica que é comum a vários objetos, pela qual ele é então pensado”

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não é passível de instanciação, nem pode estar em mais de um lugar ao mesmo tempo.

Uma posição realista quanto aos universais é então aquela que afirma a

existência de propriedades universais e que explica uma semelhança entre dois objetos

afirmando que ambos instanciam uma mesma propriedade universal. As posições que

negam a existência de universais, admitindo portanto apenas particulares, são

tradicionalmente chamadas de nominalistas, e podem ser distinguidas em dois grandes

grupos: um nominalismo extremo e um nominalismo moderado (ou nominalismo de

semelhança).65 O nominalismo extremo defende não apenas que tudo é particular, como

também nega que existam propriedades, dizendo que só existem indivíduos ou objetos

individuais, e que propriedades são apenas expressões linguísticas ou conceitos mentais

que possuem uma aplicação geral. Nesse caso, dizer que “algo possui a propriedade F”

seria analisado em termos redutivistas, podendo significar, por exemplo: que algo “cai

sob o conceito F”, sendo F apenas um predicado ou um conteúdo mental; ou então que

“algo pertence a classe dos F”, não sendo uma classe algo acima ou além dos seus

membros — de modo que, ‘predicados’, ‘expressões linguísticas’, ‘conjuntos’, seriam

as únicas coisas que poderiam ser ditas “universais”, as quais contudo não existem na

realidade. Já o nominalismo moderado afirma que propriedades existem, mas defende

que elas também são particulares, de modo que a afirmação de que “algo possui a

propriedade F”, não é analisável em termos em que a eliminam; e, como toda

propriedade seria particular, essa posição procura fundamentar a atribuição de uma

mesma propriedade (ou de um mesmo conceito que a expressa) a objetos

numericamente diferentes apenas na semelhança entre as propriedades particulares.

Em termos muito resumidos, teríamos portanto:

(i) O realismo explica a atribuição de uma propriedade a um objeto pela

instanciação neste de uma propriedade universal, e explica a semelhança entre objetos

pela instanciação de uma mesma (identidade estrita) propriedade universal nos objetos

envolvidos. — Sua dificuldade maior é explicar a natureza desses universais e a relação

de instanciação;

(ii) O nominalismo extremo reduz a ideia de propriedade à de subsunção sob

65 Essas denominações “nominalismo moderado” e “nominalismo de semelhanças”, em oposição a umnominalismo “extremo”, tomo emprestado de D. M. Armstrong (1989) e J. P. Moreland (2001).

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um conceito (ou pertencimento a uma classe), e defende que objetos são semelhantes

por caírem sob os mesmos conceitos (ou pertencerem a uma mesma classe). — Seu

problema é não explicar a relação de subsunção (ou de pertencimento), tomando-a como

primitiva, invertendo assim o que parece ser a explicação mais intuitiva; ou seja,

segundo essa posição, só consideramos que algo tem uma propriedade F porque o

subsumimos sob o conceito F, em vez de, subsumimos algo sob F porque ele tem a

propriedade F; ocorrendo o mesmo com a explicação da semelhança, i.e. segundo essa

posição dois objetos são semelhantes porque aplicamos-lhes o mesmo conceito, em vez

de, aplicamos-lhes o mesmo conceito porque são semelhantes;

(iii) O nominalismo moderado explica a subsunção de um objeto sob um

conceito pelo fato de o objeto possuir a propriedade que o conceito exprime, e explica a

atribuição de uma “mesma” propriedade a vários objetos, ou a subsunção destes sob um

mesmo conceito, na medida em eles possuem propriedades particulares que se

assemelham. — O ponto fraco dessa posição é que ela tem que tomar a relação de

semelhança entre propriedades particulares como primitiva, e explicar como uma

semelhança de propriedades particulares pode fundamentar um conceito, um universal,

i.e. uma identidade sob um aspecto (em vez de pressupô-la, como o realismo).

Consideremos, por exemplo, um objeto1 contendo as propriedades a, b, e c; e

um objeto2 contendo as propriedades c, d, e e. Segundo o realismo, ambos os objetos

são semelhantes na medida em que instanciam a mesma propriedade universal c.

Segundo o nominalismo extremo, esses dois objetos não possuem – rigorosamente

falando – propriedades, e dizemos que eles são semelhantes porque aplicamos-lhes o

mesmo conceito ‘c’. Segundo o nominalismo moderado, apesar de terem propriedades,

esses objetos não têm uma propriedade em comum, em sentido estrito, pois

propriedades seriam particulares que só existem singularmente; portanto, ‘c’ seria

apenas um conceito que aplicamos a duas propriedades particulares numericamente

distintas, mas que são a mesma apenas na aparência, ou seja, são propriedades ou

qualidades apenas “iguais”, ou no vocabulário de Kant e dos empiristas, uma

propriedade comum (gemein, common); e seria essa semelhança entre propriedades

particulares o que fundamenta um conceito como representação geral ou universal, e

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que justificaria a atribuição de uma semelhança entre objetos particulares.66

No que se segue, defendo que, quanto a essa questão dos universais, ao menos

no que concerne aos conceitos empíricos, os textos de Kant apontam claramente na

direção um nominalismo moderado67 — no que ele se aproxima bastante da posição de

Locke e da explicação deste sobre a formação desses conceitos.68 Ou seja, penso que por

‘característica comum’, Kant de modo algum significa um universal, entendido na

acepção acima, mas antes uma semelhança ou igualdade, i.e. uma mesma aparência

entre qualidades particulares e numericamente distintas.

Crítica à teoria empirista dos conceitos (1): semelhanças

A maioria dos comentadores se apressa em descartar uma explicação

abstracionista dos conceitos empíricos, apontando logo para os inúmeros problemas do

exemplo fornecido na Lógica de Jäsche, que serviria para ilustrar o processo pelo qual

formamos o conceito de árvore. Não nego que o exemplo é ruim, no sentido de que não

serve para mostrar como, a partir de representações singulares, seria possível formar

conceitos (ao menos sem pressupor a posse prévia de outros conceitos empíricos). Se

deixamos, contudo, esse exemplo de lado, ainda resta a explicação geral kantiana acerca

dos conceitos empíricos, que a meu ver não recebeu a merecida atenção dos

comentadores, os quais no geral limitam-se a rápidas críticas en passant de qualquer

66 Essa identificação do comum com o geral/universal é frequente entre os comentadores, mas a meuver errônea e injustificada, estando na base de graves equívocos interpretativos. Ginsborg exemplificabem essa posição quando diz: “como Kant enfatiza, intuições sensíveis são, em si mesmas,singulares. Na medida em que tomamos a experiência como consistindo somente de intuiçõessensíveis, a experiência pode nos tornar familiar apenas com coisas individuais, não comcaracterísticas ou propriedades que elas possam ter em comum com outras coisas. A experiência podeser a fonte apenas de representações singulares, não de representações que são gerais ou universais.”(2006, p. 37)

67 O nominalismo extremo estaria então ligado a uma visão extensional dos conceitos, na qual umconceito é definido pela sua extensão, enquanto o nominalismo moderado ao uma visão intensionaldestes, segundo a qual é o conteúdo de um conceito que o define e estabelece sua extensão (pelacaracterística comum, que ele contém).

68 A meu ver, Kant admite explicitamente essa herança lockeana quando diz que “se deve agradecer aocélebre Locke ter sido o primeiro a abrir caminho para isso”, i.e. para mostrar como nossa capacidadecognitiva pode “ascender de percepções singulares a conceitos gerais” (A86/B118), censurando-oapenas no que concerne às categorias.

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explicação de viés empirista ou abstracionista. O motivo acredito estar no ponto de

partida intelectualista de grande parte das interpretações, o qual, ao cabo, tem de atribuir

aos conceitos (ou “proto-conceitos”) empíricos um papel completamente diferente do

permitido por qualquer interpretação mais empirista acerca dos mesmos, i.e. tem de

atribuir, como vimos, uma função constitutiva relativamente às intuições empíricas,

devendo organizar o diverso amorfo que a sensibilidade ofereceria. Assim, por exemplo,

Longuenesse, Allison e Ginsborg explicam a formação dos conceitos empíricos por uma

comparação de proto-conceitos – o que não encontra apoio textual algum além de criar

inúmeros problemas, como vimos – e que, ao final, não resolve o problema central,

antes desloca-o para a questão de como formamos esses proto-conceitos (para o qual

somente Ginsborg procura elaborar mais detalhadamente uma solução).

Assim, pretendo, na sequência, examinar essa teoria abstracionista dos

conceitos, que se encontra dispersa na obra de Kant, e em especial, como ela pode

responder às críticas que se costumam levantar quanto à própria viabilidade de qualquer

explicação de viés abstracionista-empirista dos conceitos empíricos (críticas essas que

não costumam ser dirigidas particularmente a Kant, uma vez que ele não é visto como

sustentando uma teoria dos conceitos desse tipo). As Investigações Lógicas (1900) de

Husserl constituem o locus classicus das críticas a explicações empiristas dos conceitos.

Aí encontramos uma crítica bastante usual ao nominalismo moderado ou de

semelhanças (ainda que Husserl, não o distingua do nominalismo extremo), dizendo:

onde quer que coisas sejam semelhantes, uma identidade emsentido verdadeiro e estrito também está presente. Nãopodemos predicar similitude exata de duas coisas sem asserirem qual aspecto elas são semelhantes. Cada semelhançaexata se relaciona a uma Espécie [Spezies, um universal], soba qual, os objetos comparados são subsumidos: esta Espécienão é, e não pode ser, apenas ‘semelhante’ nos dois casos, afim de evitar o pior dos regressos infinitos. (Investigação II,§3)69

O ponto principal de Husserl é portanto que, para se assemelharem, duas coisas

69 Allison, por exemplo, subscreve a essa crítica quando diz: “a explicação oficial de Kant de comoformamos conceitos empíricos, a saber, notando aspectos comuns compartilhados por váriosparticulares e abstraindo das diferenças, parece pressupor o que se propõe a explicar. Pois, como sepode reconhecer um aspecto comum sem em certo sentido já possuir o conceito?” (2004, p. 80).

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precisariam ter uma qualidade em comum, ou ainda – já que o vocabulário de Husserl

parece concernir ora às coisas ora ao nosso juízo sobre as mesmas – que, para

atribuirmos semelhança a duas coisas, é preciso compará-las segundo um aspecto, ou

seja, é preciso reconhecê-las sob um conceito em comum, o qual está na base dessa

atribuição da similitude.

Antes de tudo, observo, que tanto Kant quanto os empiristas clássicos aceitam

a tese de que objetos se assemelham somente se possuem alguma propriedade em

comum, uma vez que eles não defendem um nominalismo extremo, pelo contrário, não

apenas afirmam que há qualidades, como defendem que, de certo modo, elas são o que

nos é primária e imediatamente dado. O que esses rejeitam, portanto, é somente que

essa tese seja válida não apenas para objetos ou indivíduos, mas também para

propriedades ou qualidades, como afirma Husserl, para quem estas só podem

assemelharem-se sob a assumpção de que possuem algo em comum, os quais por sua

vez não poderiam ser meramente semelhantes, tendo de ter uma identidade estrita, pois

se não de novo a questão se colocaria. Ou seja, o ponto de Husserl poderia ser

generalizado como dizendo: para duas coisas particulares (sejam objetos ou qualidades)

serem semelhantes, elas precisam ter alguma identidade em sentido estrito; ou em

termos epistemológicos: para atribuirmos semelhanças a duas coisas quaisquer

particulares, estas precisam ser reconhecidas segundo um aspecto (conceito) em

comum.70

Essa tese, de que a percepção de semelhanças entre qualidades numericamente

diferentes independe da consideração de um aspecto ou conceito comum, é algo que

está na base da filosofia empirista, que toma a semelhança como sendo o fundamento do

conceito (e portanto, da unidade ou identidade sob um conceito; e não o contrário, como

fazem as posições realistas). No entanto, apesar de vital para o projeto empirista

clássico, seus principais expoentes (vide Locke, Berkeley e Hume) não parecem

70 Hume, no apêndice ao Tratado da Natureza Humana, afirmava que mesmo ideias simples diferentespodem ser semelhantes, e que aquilo no qual elas se assemelham não precisa ser distinto daquilo noque elas diferem (afinal, sob a suposição de que são simples, não seria possível serem semelhantesnum aspecto e diferentes noutro). Assim, Hume afirma, por exemplo, que uma ideia particular de azule uma outra de verde se assemelham mais entre si do que a uma ideia particular de vermelho. Já,segundo Husserl, (o reconhecimento de) essa semelhança supõe (o reconhecimento de) algum aspectocomum às mesmas; contudo, qual seria esse aspecto que faz azul e verde serem semelhantes e quenos permitiria afirmar tal semelhança é algo que me escapa completamente.

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preocupados em oferecer uma justificação para a mesma, limitando-se a pressupor que

somos capazes de perceber semelhanças e diferenças sem a necessidade de admitir um

universal qualquer ou uma “identidade estrita” entre particulares, como defende

Husserl. Locke, por exemplo, afirma simplesmente que a mente possui uma “faculdade

de discernir”, pela qual ela “percebe duas ideias serem a mesma ou diferentes” (Ensaio,

ii.11.1). É bem verdade que Husserl tampouco oferece um argumento para sua posição,

mas esta tem a vantagem de que a justificação ou atribuição de uma semelhança sempre

se faz segundo algum aspecto (conceito), de modo que a tese empirista teria de admitir

que percebemos uma semelhança antes de podermos justificá-la ou enunciá-la

conceitualmente, ou seja, essa tese afirma algo que não se pode justificar, que seria essa

percepção meramente estética da semelhança (ou seja, teríamos aqui algo que só pode

ser mostrado, e não dito).

Se os empiristas não tinham problema em simplesmente assumir essa tese,

fornecer alguma justificativa da mesma é crucial para Kant, uma vez que sua adoção

significava um rompimento radical com a posição racionalista da tradição leibniz-

wolffiana dominante entre seus contemporâneos, e que defendia que toda distinção é

conceitual e feita pelo intelecto — sendo este inclusive definido como “a faculdade de

conhecer distintamente”.71

Identifico a primeira estratégia de Kant para defender a tese empirista, como

sendo a seguinte: animais fazem uma distinção, separando coisas em tipos diferentes;

mas animais não possuem conceitos nem intelecto; logo, temos de admitir que é

possível uma distinção estética (física, sensível) independente de conceitos, i.e. que não

reconhece aquilo no qual as coisas se diferenciam e se assemelham. Ao menos desde a

Falsa Sutileza (1762), Kant enfatiza esse ponto, distinguindo aí um “diferenciar

logicamente” de um “diferenciar fisicamente”, e afirmando que apenas o primeiro

requer conceitos, onde a diferença não apenas é feita, como também reconhecida,

usando como evidência para a diferenciação física, que o “cão distingue a carne do pão”

(2:59). Esse mesmo ponto é feito na publicação do ano seguinte, a Investigação sobre a

evidência, onde afirma:

71 Cf. Baumgarten, Metaphysica: “a faculdade de conhecer distintamente, i.e. o intelecto (em sentidoestrito)” (§402).

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Dizemos que um ser humano diferencia o ouro do cobrequando reconhece, por exemplo, que não há em um metal adensidade que há no outro. Diz-se, além do mais, que a rêsdiferencia um alimento de outro quando ingere um e deixaoutro intacto. Aqui é utilizada, em ambos os casos, a palavra‘diferenciar’, embora não queira dizer, no primeiro caso,senão reconhecer a diferença, o que jamais pode ocorrer semjulgar. (2:285).

Kant novamente defenderia aqui a possibilidade de se diferenciar algo em dois tipos (no

caso, comestível e não-comestível) sem um conceito pelo qual se reconhece o que é

comum a um tipo e não a outro. Também na Lógica de Jäsche encontramos a mesma

tese enunciada quando os “graus de conhecimento” são abordados, onde o terceiro grau,

atribuído também aos animais, é o “representar-se algo em comparação com outras

coisas tanto no que toca à mesmidade [Einerleiheit] quanto no que diz respeito à

diferença [Verschiedenheit]” (9:65), grau esse que é mais básico do que o reconhecer e

o entender, que requerem o entendimento e conceitos.72

Um argumento mais forte e que independe de considerações empíricas

questionáveis pode contudo ser identificado na Dissertação de 1770. Aí tal argumento é

usado na verdade para estabelecer que o espaço é intuição (em vez de conceito), mas

penso que uma consequência desse tese poderia ser apresentada por Kant para provar

que podemos perceber semelhanças sem a suposição de um conceito. Esse é o

argumento de que certas representações sensíveis são incongruentes, i.e. que

representações espaciais podem apresentar as mesmas determinações internas (como

exatamente o mesmo formato, tamanho, cor, etc), mas ainda assim apresentarem

direções opostas, i.e. não podem ser superpostas de maneira que seus contornos

coincidam inteiramente, como é o caso de mãos que seriam em tudo o mais exatamente

semelhantes exceto pelo fato de uma ser esquerda e a outra direita; ou o caso de espirais

que seriam iguais em tudo o mais, porém giram em direções opostas. Kant defende que

mesmo uma determinação conceitual completa de uma mão ou de uma espiral é ainda

assim incapaz de determinar a direção das mesmas — i.e. se se trata de uma mão

72 Até hoje os estudos com animais e crianças são usados para defender essa tese empirista, já quevários animais se mostram capazes de separar objetos em dois grupos de objetos mediante,presumivelmente a mera percepção de qualidades semelhantes, por exemplo, corvos capazes deseparar fichas pretas, de vermelhas, ou crianças capazes de separar objetos em grupos de semelhançaainda que não disponham de conceitos sob os quais esta seria reconhecida.

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esquerda ou de uma direita, ou em que direção gira a espiral — de modo que tais

direções de objetos ou representações espaciais escapam a uma tentativa de

conceitualização. Ou seja, segundo Kant, a incongruência de representações ou objetos

espaciais cujos conceitos são idênticos mostraria que o espaço é algo que “não pode ser

descrito discursivamente ou reduzido a características intelectuais por nenhuma

acuidade da mente” (2:403). Assim, se há nas representações sensíveis algo que escapa

ao entendimento conceitual, e prova a irredutibilidade do estético, do sensível, ao

intelectual, então, o fato de sermos capazes de separar em dois grupos diferentes, por

exemplo, espirais que giram numa direção, de espirais que giram na outra, ou de separar

mãos direitas de esquerdas (ainda que no mais fossem exatamente semelhantes),

provaria que somos capazes de reconhecer semelhanças mesmo sem ter um conceito

que exprima esse aspecto segundo o qual elas se assemelham, já que não seria possível

um conceito intelectual desse aspecto, que é a direção dessas representações, o qual só

pode ser percebido na intuição, esteticamente.73 Assim, o argumento das partes

incongruentes provariam a tese empirista de que a percepção de semelhanças não exige

necessariamente um conceito, e que somos capazes de fazer distinções meramente

estéticas.

A meu ver, a apreciação dessa questão permitiu a Kant opor-se mais

enfaticamente à definição de entendimento da tradição leibniz-wollfiana, assim como

lhe possibilitou defender de modo direto (i.e. sem precisar apelar para considerações

sobre os animais) a tese de que fazemos distinções estéticas — como encontramos, por

73 Isso significa que fenômenos não são redutíveis a conceitos, portanto, não são “intelligibilia, i.e.objetos do entendimento puro” (A264/B320), entendidos estes últimos como objetos que poderiamser integralmente compreendidos mediante o entendimento isolado, puro, i.e. em seu uso meramentelógico, sem portanto qualquer recurso à sensibilidade. Apenas nestes casos, i.e. quando se trata deobjetos redutíveis a uma compreensão intelectual dos mesmos (que portanto não se distinguem deseus conceitos), Kant concede que duas coisas só podem ser semelhantes sob a suposição de algumaidentidade conceitual, e também que duas coisas só podem ser numericamente distintas caso sediferenciem em ao menos uma determinação interna, i.e. quanto ao menos um conceito. Deste modo,Kant limita o escopo do princípio de identidade dos indiscerníveis, cuja aceitação irrestrita pelaescola leibniziana também poderia constituir-se como um obstáculo à aceitação da explicaçãoempirista dos conceitos empíricos, já que segundo esse princípio, é impossível duas coisas tenhamexatamente as mesmas determinações e portanto sejam exatamente semelhantes, o que poderia sertambém aplicado às qualidades particulares. Kant utiliza-se aqui do mesmo raciocínio, defendendoque fenômenos não são intelligibilia, de modo que a mera diferença de lugar já garante a distinçãonumérica dos mesmos: “os lugares físicos são totalmente indiferentes com respeito às determinaçõesinternas das coisas: um lugar = b pode abrigar uma coisa inteiramente semelhante ou igual à outra nolugar = a, … A diversidade dos lugares, por si só, já torna não somente possível, mas tambémnecessária…a pluralidade e a diferença dos objetos como fenômenos.” (A272/B328, ênfase minha)

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exemplo, no Sobre uma Descoberta (1790):

Pois há também uma distinção na intuição, portanto, tambémna representação do singular – e não somente na das coisasem geral – a qual pode ser chamada de distinção estética,que é completamente diferente da distinção lógica, medianteconceitos (…), e que certamente não pode estar contida nummanual de lógica; por essa razão, não é de modo algumadmissível, como ele [sc. Eberhard] pede, adotar a definiçãode entendimento como a faculdade da cognição distinta, nolugar daquela da Crítica, onde é explicado como a faculdadeda cognição mediante conceitos. (8:217n)74

A forma da generalidade

Se todas as qualidades sensíveis são particulares, incluindo as características

comuns a várias representações, que seriam então, no máximo, exatamente semelhantes

(i.e. iguais em aparência), como é que surge então um conceito empírico enquanto

representação geral, universal (allgemein)? A resposta de Kant é, ao mesmo tempo,

clara e lacônica, limitando-se em geral a dizer que isso se deve à forma do conceito, que

lhe é conferida pelo entendimento — em contraste com a característica sensível, que

constitui a matéria do conceito empírico. De acordo com a Lógica de Jäsche, por

exemplo, temos que “a forma de um conceito, enquanto representação discursiva, é

sempre feita”75 (9:93), e que “o conceito empírico…recebe do entendimento apenas a

74 Cf. também Antropologia, §7: “O grande erro da escola leibniz-wolffiana foi colocar a sensibilidademeramente na indistinção das representações e, em comparação, o intelecto na distinção dasrepresentações” (7:140n).

75 Penso que com a restrição “enquanto representação discursiva”, i.e. enquanto representaçãoconsciente e que se refere a vários objetos mediante características comuns, deve-se ao fato de queoutros tipos de conceitos podem ser tomados de um modo que é mais básico e independente deleenquanto representação discursiva: as categorias enquanto funções de síntese não são representaçõesdiscursivas; os conceitos geométricos enquanto regras de construção de objetos sensíveis purostambém não são representações discursivas. Já no caso dos conceitos empíricos não há uma taldistinção dos mesmos enquanto representações discursivas e enquanto funções de síntese, devendoesta última ser entendida de um modo completamente diferente, não como constituindo um objeto (daexperiência ou geométrico), mas antes apenas como subsumindo sob si várias representações ouobjetos, o que ele faz enquanto representação discursiva, i.e. enquanto uma representação porcaracterísticas comuns.

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forma da sua generalidade” (9:92).76

Em algumas passagens, Kant sugere que é pelos atos de comparação, reflexão e

abstração que os conceitos são formados; na Lógica de Vienna, por exemplo,

encontramos:

Conceitos surgem por comparação, reflexão e abstração. Emuma consciência capto várias representações, e comparo oque em uma é apenas repetição da outra. Pela reflexão,então, conhece-se aquilo que várias coisas têm em comum;depois, deixa-se de lado através da abstração aquilo no qualelas não concordam, e então permanece uma representatiocommunis. Nenhum conceito vem a ser, então, semcomparação, sem percepção de um acordo, ou sem abstração.(24:909)

Na Lógica de Jäsche (cf. 9:94-5), encontrarmos, além de uma explicação similar,

envolvendo os três atos mencionados, também a ideia de que a forma do conceito deve-

se apenas à reflexão:

Esta origem lógica dos conceitos – a origem quanto à suamera forma – consiste na reflexão, pela qual surge umarepresentação comum a vários objetos (conceptuscommunis). (9:94)

No entanto, a ideia insinuada nessas duas passagens, de que basta chegar numa

representação comum para ter-se um conceito, é claramente insuficiente, já que esse

comum, essa característica, ainda é uma representação intuitiva, particular. Isso que

falta para transformar a característica comum num conceito é expresso de uma maneira

mais clara na nota do §16 da segunda edição, onde Kant diz:

quando penso o vermelho em geral, represento-me atravésdisso uma propriedade que (como característica) pode serencontrada em algum lugar qualquer, ou estar ligada a outrasrepresentações;…Uma representação que deve ser pensadacomo comum a várias, às quais ela é considerada comopertencente, e as quais possuem, além dela, ainda algodiferente em si mesmas; consequentemente, uma

76 Essa tese de que a generalidade da representação conceitual é feita pelo entendimento, é tambémencontrada nos empiristas clássicos; Locke, por exemplo, afirmava que “todas as ideias gerais damente são feitas” por “atos da mente”, em oposição às ideias simples particulares, as quais a menterecebe passivamente e que constituem “os materiais e fundações das demais ideias” (Ensaio, ii.12.1).

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representação que precisa ser previamente pensada emunidade sintética com outras representações (ainda queapenas possíveis), antes que eu possa pensar nela a unidadeanalítica da consciência, que a torna um conceptuscommunis. (B133n)

Temos aqui que não é o mero fato de encontrarmos uma característica comum em

vários objetos que faz dela um conceito, antes, formar um conceito empírico (do qual

ela é matéria) é representar para si uma característica como podendo ser encontrada

em outras representações, sendo esse ato do entendimento que torna uma característica

intuitiva numa representação geral, universal.77 Uma passagem da Estética, introduzida

também somente na segunda edição, e que citamos no início deste capítulo, parece

enfatizar esse mesmo ponto:

é preciso pensar cada conceito como uma representaçãocontida numa infinidade de representações diferentespossíveis (como característica comum destas), e que portantocontém sob si tais representações. (B40, ênfase minha)

Aqui novamente encontramos essa ideia de que o essencial para que uma representação

se torne geral – i.e. para que se torne um conceito como representação discursiva – é

pensá-la como contida em outras representações possíveis. O fato de ambas as

passagens serem inserções à edição de 1787 da Crítica parece sinalizar que Kant passa a

ter uma maior clareza sobre a questão da forma da generalidade conferida pelo

entendimento às representações discursivas. Sua posição final seria então a de que a

comparação com outras representações de fato dadas na sensibilidade não é

rigorosamente necessária para a formação de um conceito empírico, bastando na

verdade que se considere uma característica como sendo comum, para dela se fazer um

conceito.78 E a insistência, nas duas passagens, de que não só uma característica tem que

ser “pensada como” contida em várias representações, mas que deve se tratar de uma

77 Se a interpretação que proponho está correta, a tradução que me parece mais adequada de allgemein– no contexto de uma allgemeine Vorstellung, que é como Kant se refere aos conceitos – seria ‘geral’em vez de ‘universal’, já que Kant estaria aqui aproximando sua teoria à dos empiristas clássicos, quepara se referirem a conceitos, utilizam a expressão “ideias gerais” (general ideas), a qual éusualmente traduzida em alemão como allgemeine Ideen (no caso de Locke e Berkeley) ouallgemeine Vorstellungen (no caso de Hume).

78 Como consta numa Reflexão da década de 1790: “Uma representação, que se torna geral mediantesua consciência como característica, chama-se conceito” (Refl. 3057, 179?, 24:634)

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infinidade de representações possíveis, parece-me ser correta se a representação deve

ser geral, universal, em vez de apenas plural — o qual, penso, seria o caso se a

característica fosse considerada como comum apenas àquelas representações nas quais

foi encontrada numa comparação empírica.79

Ao cabo, a tese kantiana de que a “forma da generalidade” fornecida pelo

entendimento a algo particular (uma qualidade, uma característica) se dá pelo

pensamento de que este algo como podendo ser encontrado em outras representações,

não é muito diferente das posições de Locke e Berkeley. O primeiro dizia no seu Ensaio

sobre o Entendimento Humano que “a natureza geral delas [sc. das ideias gerais] não é

nada mais do que a capacidade que lhes é investida pelo entendimento de significar ou

representar vários particulares”, ou mais adiante, que “ideias são gerais quando são

estabelecidas como representativas de várias coisas particulares” (III.iii.11), o que para

ele também não se dá artificialmente, mas pela semelhança encontrada. Berkeley, na

mesma direção, sustentava que “uma ideia que em si mesmo é particular torna-se geral

ao ser feita representar ou ficar no lugar de todas as outras ideias do mesmo tipo”

(Princípios, §12).80

Mas, se é assim, então os atos de comparação, reflexão e abstração não são,

estritamente, nem necessários (já que não é preciso encontrar um comum entre

representações dadas, e deixar de lado as diferenças81), nem suficientes (já que a mera

representação de um conteúdo comum não implica na generalidade deste) para a

79 A afirmação que a unidade analítica – a unidade do mesmo/idêntico/comum, que é a unidade doconceito – só pode ser pensada mediante a unidade sintética – a unidade dos diferentes – não é umamudança de posição, mas que essa unidade sintética numa consciência não precisa mais ser pensadacomo constituindo-se de representações diferentes atuais, bastando ser considerada a partir derepresentações diferentes possíveis, permite que esta unidade sintética da consciência seja entãoalçada ao “ponto mais alto”, sem o qual não haveria conceitos e nem mesmo entendimento. — Estaideia de que sem conceitos não haveria também entendimento “já que este lida apenas comconceitos”, encontra-se também em A653/B681.

80 Assim, penso ser errônea a atribuição aos empiristas de uma continuidade entre intuições e conceitos(segundos os termos próprios a cada um). Ainda que Hume, por exemplo, afirme que a relação entreideia e impressão é uma relação de mera “cópia esmaecida”, nem toda ideia para ele nem para osdemais é geral (fazendo o papel de conceito). Para eles as ideias gerais exigem uma atividade damente (seja imaginativa, segundo Hume, seja numa relação de significado, como para Locke eBerkeley). De modo que a heterogeneidade entre os dois tipos de representação não seria umainvenção de Kant, mas antes algo que ele toma dos empiristas e usa para criticar os racionalistasgermânicos por não atentarem a esse ponto. Assim, a crítica de Kant aos empiristas é que elessensibilizaram “todos os conceitos do entendimento” (A271/B327), sem atentar que havia tambémconceitos puros).

81 Cf. L. Dohna: “Abstrair é no sentido filosófico um conceito negativo: não prestar atenção” (24:753).

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formação de conceitos empíricos. Contudo, no Apêndice à Dialética Transcendental, é

afirmado que:

a mesmidade de tipo [Gleichartigkeit] é necessariamentepressuposta no diverso de uma experiência possível (apesarde não podermos determinar a priori o seu grau), pois semela não seriam possíveis conceitos empíricos, nem portanto aexperiência. (A653/B681)

Ou seja, teríamos aqui que não seria possível formarmos conceitos empíricos

sem encontrarmos semelhanças (características comuns), o que pressupõe os atos

lógicos de comparação. No entanto, essa passagem tem como pano de fundo uma

discussão acerca da ideia racional de uma unidade sistemática da natureza, ficando

evidente pelo que precede e pelo que se segue dela, que Kant trata aí dos conceitos

empíricos da natureza, fazendo referência explícita aos “seres existentes” – sejam eles

plantas, minérios, animais, etc. – e sua classificação em espécies e gêneros. A questão

aqui seria então que, sem encontrarmos semelhanças nas comparações que fazemos dos

objetos naturais, não formaríamos conceitos naturais de espécies e de gêneros, pelos

quais esses objetos são agrupados e distinguidos em tipos, e não seria possível organizar

a natureza segundo essa ideia de uma unidade sistemática. Isso, contudo, não significa

que esses atos sejam requeridos para a formação de todo e qualquer conceito empírico,

não sendo indispensáveis, por exemplo, para formar um conceito de uma qualidade ou

característica comum, como o caso do conceito de vermelho, abordado na dedução.82

E essa diferença entre formar conceitos de objetos naturais e de qualidades

empíricas, aponta para um outro problema filosófico que teorias empiristas dos

conceitos enfrentam, que é como explicar a formação de conceitos de objetos

particulares, uma vez que os sentidos não nos fornecem unidades em sentido forte.

82 Penso que se deve ter em conta essa mesma distinção no que concerne ao princípio da finalidade danatureza, que consta na Crítica do Julgar. Desconsiderar que Kant está aí também tratando de umainvestigação da natureza e de objetos naturais faz Allison atribuir a Kant a tese forte e implausível deque esse princípio é condição da formação de qualquer conceito, ou “da própria possibilidade deconceitos como representações gerais” (2001, p. 34).

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Crítica à teoria empirista dos conceitos (2): recortes empíricos

Na leitura intelectualista, vimos que haveria na sensibilidade um diverso

amorfo que seria unificado segundo uma regra (conceitual ou proto-conceitual) de

síntese produzindo intuições empíricas, as quais teriam uma unidade e uma estrutura

determinada. Assim, por exemplo, é porque um diverso teria sido unido segundo a regra

‘cachorro’, que a intuição resultante de um cachorro seria individualizada e distinta das

intuições de outros objetos empíricos (e também do fundo sobre o qual o cachorro é

intuído), como ilustra Hoke Robinson:

Na percepção de uma maçã, por exemplo, a imaginaçãopercorre o campo sensório, separa a maçã do seu pano defundo e liga (por inerência) a vermelhidão, a redondeza, asuavidade, etc. numa única substância. (1986, p. 50)83 84

Ao rejeitarmos a leitura intelectualista e defendermos que não há síntese “no

interior” de cada intuição, mas apenas na conexão de intuições no tempo, tem-se que a

intuição é como um “bloco”, não nos apresentando assim objetos em si mesmos

individualizados, os quais possuiriam uma unidade em sentido forte. Antes, cada

intuição é um quantum, i.e. “um todo que não é já dividido em si mesmo” (A526/B554),

que não possui partes, sendo estas apenas subdivisões possíveis deste. Isso por exemplo

83 A meu ver, essa concepção ainda se prende à noção tradicional de substância, e toma a categoria desubstância como responsável por fazer a ligação de propriedades coexistentes num suporte individual,num objeto/substância maçã. Contra essa interpretação, a Crítica diz que “não temos nadapermanente, que pudéssemos colocar como intuição sob o conceito de uma substância, a não ser amatéria; e mesmo esta permanência não é extraída da experiência externa, mas pressuposta a prioricomo condição necessária de toda determinação do tempo” (B278), e a Crítica do Julgar afirma quea expressão ‘substância’ quando entendida como “o portador dos acidentes” tem um significadoapenas “simbólico” (§59, 5:352). Como vimos, defendo que para Kant a função de síntese dasubstância concerne à permanência, operando apenas uma ligação necessária de intuições empíricassucessivas, e que possibilita a percepção da mudança.

84 Vimos também tal corolário da leitura intelectualista ser expresso claramente por Allison, quandoafirma que “ter o conceito de casa é, entre outras coisas, ter uma regra, no sentido de um esquemapara organizar os dados sensoriais recebidos na percepção” (2004, p. 79), e por Ottfried Höffe: “Paraque as sensações não estruturadas se transformem num objeto, por exemplo, numa cadeira,…requer-se uma regra. Esta é o conceito de cadeira, conforme ao qual as sensações se juntam numa unidade desensações e em que a unidade se apresenta com determinada forma e estrutura. … É através deconceitos que um material da intuição, adquirido receptivamente, é transformado na unidade eestrutura de um objeto; os conceitos operam ao mesmo tempo uma síntese (ligação) e umadeterminação.” (2000, pp. 82-3)

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é corroborado na Crítica do Juízo, segundo a qual:

o que quer que…possamos apresentar na intuição (porconseguinte, representar esteticamente) é em sumafenômeno, por conseguinte também um quantum. (CJ, §25)

Portanto, se, por um lado, uma intuição empírica já apresenta, sem qualquer

interferência do entendimento, qualidades numa configuração determinada, por outro,

essa intuição organizada não nos fornece elementos individuais, apresentando-nos,

antes, um todo não-dividido (quantum), que contém apenas relações externas. Mas

então surge a questão de como se dá a individualização de objetos na percepção, i.e.

como um objeto se distingue tanto do pano de fundo no qual se encontra quanto dos

outros objetos?

A resposta de Kant para essa e outras questões desse tipo é que somos nós que

fazemos essas individuações, que distinguimos “partes” na experiência — como

afirmado nos Fundamentos Metafísicos da Ciência da Natureza: “as partes [Theile],

enquanto pertencentes à existência de um fenômeno, existem somente no pensamento, a

saber, na própria partição [Theilung]” (4:507). Isso não significa, contudo, que essas

divisões ou recortes espaciais desse todo do fenômeno sejam feitos de modo totalmente

arbitrário — como talvez se poderia acreditar se tais recortes fossem feitos com base

numa única intuição (como numa imagem estática). Antes, Kant sugere que estes

recortes são feitos no decorrer da experiência perceptiva, de modo que, ainda que não

sejam “substâncias individuais” diferentes, os corpos são individuados segundo critérios

empíricos: nos Fundamentos Metafísicos e também na Crítica do Juízo, temos, por

exemplo, o conceito empírico de corpo como sendo “o de uma coisa móvel no espaço”

(CJ, 5:181).85 Isso significa que distinguo o gato da mesa onde se encontra e, esta, do

chão onde está apoiada, por relações de movimento e repouso entre “porções”

(qualidades) da experiência que esta me proporciona. É claro que isso não impede de

modo algum que se faça um recorte que identificasse o corpo como sendo gato-mesa ou

mesa-chão, mas sendo tais recortes empíricos, eles não apenas estão sempre sendo

revistos e melhorados por experiências ulteriores, como também certos recortes acabam

85 Algo não muito diferente de Spinoza nesse ponto: “Os corpos se distinguem entre si pelo movimentoe pelo repouso, pela velocidade e pela lentidão, e não pela substância” (Ética, ii.p.13.lema1).

Merckx
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mostrando-se mais úteis do que outros86 — e de fato frequentemente achamos útil

subdividir o que tomamos como um objeto individual em vários outros objetos

individuais menores, sem nem precisar abandonar um recorte em prol de outro, ao

contrário, mantendo-os simultaneamente — uma árvore, por exemplo, pode ser pensada

em termos de seu tronco, folhas e flores; estas em termos de pétalas, caule, etc., ainda

que no caso de seres vivos Kant parece ter bons motivos para chamar de objeto o

organismo como um todo).

E, do mesmo modo que há uma contingência em como individuamos objetos

empíricos, há também uma contingência quanto aos conceitos que fazemos desses

objetos. Apesar de o material destes conceitos nos ser dado pela experiência,87 o

conteúdo dos mesmos, i.e. qual característica é acrescentada ou não à sua intensão, isso

é algo que nós fazemos:

Todos os conceitos empíricos têm, pois, que ser consideradoscomo conceitos feitos, cuja síntese porém, não é arbitrária,mas empírica. (L. Jäsche, 9:141)

todas as definições aqui são sintéticas, pois na base sempreresidem dados que são postos juntos. … Toda asaproximações, observações, para conceitos de experiênciasão sintéticas. Mas a síntese não é arbitrária, o conceitoportanto não é arbitrarie factitius [arbitrariamente feito]. (L.Dohna, 24:757).

A ideia de Kant aqui é que um conceito de um objeto empírico não exprime

uma “essência real” desse objeto, antes seu conteúdo é feito a partir “de características

que coletei da experiência por síntese” (L. Vienna, 24:915), de modo que a feitura de

tipos naturais envolve certa escolha de quais características considerar e quais

desconsiderar, não havendo uma rigidez quanto a isso, podendo o conceito ser mudado

se uma nova característica é descoberta ou se uma previamente adquirida não é

considerada mais importante. Assim, por exemplo, conceito empírico de ouro pode em

certo momento conter as características amarelo e brilhante, e, posteriormente, à

86 Este é o caso, por exemplo, do cajueiro de Pirangi, que já foi tratado como várias árvores distintasmuito próximas, mas hoje é considerado um só organismo.

87 Cf. A225/B273: “a percepção fornece o material ao conceito”, e também L. Jäsche, 9:93, e L. Dohna,24:753.

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medida que experimentações revelarem que o ouro derrete ou que transmite corrente

elétrica, estas características podem ser acrescentadas ao conceito. Na primeira seção da

Disciplina da Razão Pura, encontramos uma passagem que corrobora a leitura aqui

proposta dos conceitos empíricos, onde Kant expõe uma perspectiva dos mesmos

inegavelmente empirista e incompatível com a interpretação intelectualista e o papel

que ela atribui aos conceitos:

só temos no conceito empírico algumas características de umcerto tipo de objeto dos sentidos, jamais se tem certeza secom a palavra que designa o mesmo objeto não pensamosumas vezes mais e outras vezes menos características domesmo. Deste modo, no conceito de ouro alguém ainda podepensar, além do peso, da cor e da ductilidade, a propriedadede que não enferruja, ao passo que um outro talvez nadasaiba disso. Utilizam-se certas notas características somenteenquanto suficientes para fazer distinções; novasobservações entretanto removem algumas características eacrescentam outras, de forma que o conceito jamais se situaentre limites seguros. E para que também deveria servir umadefinição de um tal conceito? – já que, quando se fala porexemplo da água e de suas propriedades, não nos detemosnaquilo que é pensado com a palavra água, antes iniciamosexperimentos, e a palavra, com as poucas notascaracterísticas que lhe são ligadas, deve constituir apenasuma designação e não um conceito da coisa; e portanto apretensa definição nada mais é do que uma determinaçãoverbal. (A7278/B755)88

* * *

O exame das passagens onde Kant aborda os conceitos empíricos mostra que a

relação entre conceitos e intuições ocorre de modo diverso daquele defendido pela

leitura intelectualista: enquanto essa conceitualiza as intuições, os textos de Kant

apontam na direção oposta, na de uma sensibilização dos conceitos empíricos, os quais

contêm sensações (intuições, características intuitivas) como sua matéria, sendo

88 É gritante a similaridade dessa passagem com a iii.9.13, do Ensaio de Locke, fazendo uso inclusivedo mesmo exemplo.

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representações conceituais “impuras”, o que torna possível que tenhamos cognições

empíricas. Ou seja, defendo que é no conceito empírico que pensamentos e intuições

empíricas se encontram. Que estes não podem correr em paralelo, necessitando algum

contato entre as duas instâncias, é algo evidente, mas como exatamente um subsume o

outro, como intuições podem servir de fundamento e justificativa para pensamentos e

juízos, e como evitar que pensamentos sejam meramente lógicos, é algo que a meu ver a

leitura intelectualista-conceitualista tem interpretado erroneamente. Tal leitura, que

propõe que as intuições possuem uma estrutura conceitual (ou “proto-conceitual”, ou

“minimamente conceitual”), o que não encontra apoio textual, além de engendrar os

inúmeros problemas vistos na primeira parte desta tese.89 Na verdade, o texto de Kant

aponta claramente que a conexão se dá na instância do pensamento, do conceito, quando

este se torna impuro, i.e. empírico, no qual a sensação está mesclada, onde a matéria do

conceito empírico é intuitiva (e não, tornando a intuição conceitual, como quer o

conceitualismo). Assim, por exemplo, o conceito de ‘elasticidade’ do ar se fundamenta

na resistência que intuímos quando tentamos comprimi-lo; o conceito de vermelho

envolve, ou mais precisamente, tem como matéria, uma intuição particular vermelha

(uma característica intuitiva). E ainda que uma pessoa cega consiga usar o conceito

‘vermelho’ em juízos (afirmando, por exemplo, que é uma cor e que é mais próxima do

laranja do que do verde), o uso deste conceito é vazio (sem matéria) para tal pessoa.90

(Penso que é nessa direção que devemos entender a afirmação dos Prolegômenos, de

que juízos de percepção estão na base dos juízos de experiência, a qual os comentadores

tendem a considerar como uma afirmação infeliz de Kant).

89 Allison, por exemplo, se coloca ao lado de Sellars e McDowell quando diz que “o que ésimplesmente não-conceitual, como uma imagem, uma sensação … não pode ser levado a, oureconhecido em, um conceito” (2015, p. 263). A crença nessa tese e sua atribuição a Kant é uma dasmotivações da leitura conceitualista. Penso, ao contrário, pois está presente de modo enfático econsistente em toda a obra de Kant, a ideia de que formamos conceitos a partir de intuições não-conceituais e que ampliamos nossos conceitos e conhecimentos empíricos mediante um exame damatéria da experiência perceptiva, i.e. da sensação (e não de um exame das formas intelectuaisparticulares que estas possuiriam e que seriam impostas, inconscientemente, por nós mesmos).

90 Penso que é isso o que a Lógica de Jäsche diz quando afirma que os conceitos empíricos nãodeveriam ser chamados de abstratos, sendo antes representações “nas quais ocorreram váriasabstrações”, dizendo por exemplo, que “o conceito de corpo não é a rigor um conceito abstrato; poisdo corpo ele próprio não posso abstrair, senão não teria o conceito dele. Mas tenho certamente queabstrair do tamanho, da cor, da dureza ou fluidez, em suma, de todas as determinações especiais doscorpos particulares” (9:95). Ou seja, aquilo que não posso abstrair do conceito de corpo é acaracterística intuitiva que encontro nos corpos, e que dá a matéria ao conceito de corpo.

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Sem uma intuição sensível como matéria, o uso dos conceitos seria meramente

lógico, de modo que ainda seria possível fazer juízos e inferências com base em seus

conteúdos e nas relações de inclusão e exclusão destes, mas um tal conceito não teria

realidade objetiva.91 O “pensamento empírico” e o “uso empírico do entendimento” não

devem ser pensados como um mero pensamento (puramente intelectual) que se refere ao

empírico por meio de alguma relação externa entre esses meros pensamentos e as

intuições empíricas que lhe corresponderiam (e que chamamos de ‘subsunção’, sem

contudo explicar como ela se dá). Antes o pensamento empírico é, para Kant, um

pensamento que se dá mediante conceitos empíricos nos quais a sensação encontra-se

“misturada”, contendo ele próprio uma matéria intuitiva.

No intelectualismo, um conceito é empregado inconscientemente para unificar

dados sensórios, o que parece flertar com um essencialismo: isso é um cachorro, aquilo

é uma mesa, etc.92 Ou seja, ainda que seja eu quem construa a realidade, sem tal leitura

explicar de onde provém meu estoque de regras (proto-)conceituais que uso para

unificar os dados, não está afastado um essencialismo, no qual a realidade já se

apresenta para a consciência como formada por objetos que possuiriam uma

individualidade necessária. Já na leitura que proponho, Kant se aproxima bem mais do

empirismo de Locke e de suas essências nominais, de modo que a leitura empirista que

proponho dos conceitos empíricos significa um anti-essencialismo, ainda que isso não

signifique de modo algum que o entendimento constrói a realidade ou as intuições que

me são dadas; antes, defendi que, para Kant, o real é o que aparece na mera

receptividade, ou em suas próprias palavras, “a sensação é o real”, sendo este o

empirismo da filosofia kantiana: a receptividade de um real o qual não é feito, fabricado

pelo intelecto (ainda que a sensibilidade imponha sua forma espaço-temporal a esse

dado). Mas esse é um real ainda “mudo”, ainda não tem um “sentido”, pois, ainda que

91 Na filosofia kantiana, é possível imaginar uma linguagem sem intuição alguma, só com regrassintáticas, que não se baseie em qualidades percebidas (ainda que um observador externo possarelacionar certos conceitos a certas qualidades sensíveis que ele percebe), mas para Kant essalinguagem não seria empírica, e não poderia nunca engendrar conhecimentos (os quais exigemintuição, exigem que se considere a matéria de certos conceitos), sendo antes apenas uma“engrenagem rodando no vazio”, pensamentos “meramente lógicos”.

92 Como, por exemplo, na leitura de Hannah Ginsborg, segundo a qual eu não apenas sintetizo os dadossensórios de uma certa maneira, como eu também teria a “consciência de uma normatividade”, i.e. aconsciência de que sintetizei tais dados “corretamente” ou “como deveria”.

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as sínteses dos fenômenos sejam regidas pelas categorias, estas, enquanto funções de

síntese, não dão ainda um sentido aos fenômenos, antes, apenas lhes conferem leis

(gerais) meramente mecânicas. O sentido é produzido pelo entendimento em seu uso

lógico – pela comparação, pelas semelhanças encontradas e transformadas em

conceitos, pelos quais passamos a classificar essas intuições – e pelas ideias da razão

pelas quais tomo a natureza como organizada não apenas segundo leis mecânicas, mas

também segundo propósitos.

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Conclusão

‘Idealismo’ é um termo bastante polissêmico na tradição filosófica e na

literatura kantiana. Nesta tese, empreguei tal termo como significando a tese de que o

entendimento desempenha um papel constitutivo/construtivo da experiência perceptiva,

e por isso referi-me a esse idealismo como idealismo construtivista, numa tentativa de

distingui-lo dos demais tipos de idealismo — como, por exemplo, aquele recusado por

Kant e que ele chama de “verdadeiro idealismo” ou “idealismo material” (o qual nega

que haja algo externo que afete nossos sentidos),93 mas também para distingui-lo da

noção de idealismo transcendental defendida por Kant, o qual afirma que espaço e

tempo não são dados em si mesmos, mas dependem da nossa sensibilidade.94 (Entendido

desse modo, o idealismo transcendental é uma condição do idealismo construtivista, ou

seja, a tese de que espaço e tempo são formas da sensibilidade, de modo que estamos às

voltas apenas com aparecimentos (um tipo específico de representação), faz parte e é

necessária para o idealismo construtivista, mas não o implica diretamente).95

93 Cf. Prolegômenos: “a existência da coisa que aparece não é desse modo suprimida, como acontece noverdadeiro idealismo [wirklichen Idealism], antes apenas se mostra que, o que ela é em si mesma, nãose pode de modo algum conhecer mediante os sentidos”(Prol. 4:289).

94 Cf. A369: “Por idealismo transcendental de todos os fenômenos, contudo, entendo a doutrinasegundo a qual nós os consideramos … como meras representações, não como coisas em si mesmas,e o tempo e o espaço, de acordo com isso, são apenas formas sensíveis de nossa intuição… A esseidealismo se opõe um realismo transcendental que considera o tempo e o espaço como algo dado emsi (independente de nossa sensibilidade).”

95 O idealismo transcendental, entendido como a tese da “idealidade de todos os fenômenos”, foi,segundo o próprio Kant, estabelecido na Estética Transcendental (cf. A378-9).

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Esse idealismo construtivista é usualmente tido como uma das grandes

inovações do kantismo, sendo algo que salta aos olhos numa leitura da Crítica da Razão

Pura. Na recensão de Feder-Garve (que aparece em janeiro de 1782, poucos meses após

a primeira publicação da Crítica), essa tese kantiana já era colocada em destaque: “O

entendimento faz objetos a partir de fenômenos sensíveis. (…) Ele os faz.”96 (ênfase

no original) — Penso que essa seja uma das teses que, no apêndice dos Prolegômenos,

Kant afirma que, “retiradas do contexto dos seus argumentos e explicações…devem

parecer necessariamente absurdas”, dado seu completo ineditismo, mas de modo algum

uma tese que Kant pensa ser-lhe incorretamente atribuída (cf. Prol 4:376).97

Como vimos, a leitura dominante do kantismo compreende essa tese como

sendo propriamente kantiana, e até fundamental ao projeto da Crítica — com o que

concordo integralmente. O problema dessa leitura – como também visto – está em como

ela interpreta esse idealismo construtivista, a saber, intelectualizando toda intuição (ou

ao menos toda intuição consciente, i.e. percepção). Para colocar de modo sucinto, penso

que há três maneiras gerais de compreendermos a relação entre entendimento e

sensibilidade na constituição da experiência kantiana:

1) o entendimento intervém na constituição de cada intuição empírica;2) o entendimento intervém na ligação entre as intuições empíricas temporalmente

distintas;3) o entendimento intervém apenas no conhecimento sobre a experiência.

Nos três casos, pode-se dizer que se faz jus à tese central kantiana de que “as

categorias são necessárias para experiência”, ainda que essa tese seja interpretada de

modos completamente diferentes e resulte em sistemas que pouco tem em comum. A

posição (3) recusa o idealismo construtivista, i.e. recusa a tese de que o entendimento

faz ou constrói os objetos empíricos, e chamei-a de uma leitura naturalista ou empirista

96 No original alemão: “Aus den sinnlichen Erscheinungen … macht der Verstand Objecte. Er machtsie” (p. 41, ênfase no original). Na recensão de Garve temos: “O entendimento forma/constitui entãoobjetos a partir de fenômenos. Ele mesmo os forma/constitui” [“Aus diesen Erscheinungen nun bildetder Verstand Objekte. Er selbst bildet sie”(p. 841)].

97 De modo geral, a reação negativa de Kant a essa recensão direciona-se mais: (i) ao fato de que elanão examina nenhum dos argumentos que a Crítica fornece, limitando-se a “recitar de um só fôlegoas proposições umas após as outras”; e (ii) à breve menção que é feita ao idealismo de Berkeley, como qual Kant não quer ser confundido, pois para ele, Berkeley defende o “verdadeiro idealismo” o qualnega uma afecção dos sentidos e nega que exista outra coisa além de seres pensantes, sendo estasduas teses radicalmente contrárias às defendidas por Kant.

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extrema; segundo esta posição, sempre que Kant afirma que as categorias são condições

da experiência, esta deve ser entendida em sentido técnico kantiano, a saber, apenas

como “conhecimento empírico”, e não como experiência perceptiva, como o fazem as

duas outras leituras. Esta leitura engendra um kantismo bem mais modesto e também

bem menos problemático, do ponto de vista filosófico, do que a leitura intelectualista, à

qual se contrapõe, mas ao recusar o idealismo construtivista, essa leitura naturalista não

parece conseguir dar conta do projeto kantiano, nem em particular, do texto da Analítica

Transcendental, no qual Kant confere um papel proeminente às sínteses da imaginação

(tanto na primeira quanto na segunda edição da Dedução Transcendental); e como nessa

leitura o entendimento não “põe a mão na massa” da sensibilidade, i.e. ele não estrutura

o que material que a sensibilidade oferece, não faz ou constrói a experiência perceptiva,

apenas reflete sobre, e classifica essa experiência, o entendimento apenas paira sobre a

experiência perceptiva ou corre em paralelo a esta, o que parece retirar o fundamento de

toda proposição que envolve noções como as de causalidade e permanência (uma vez

que (i) o entendimento só conhece a priori da experiência o que ele coloca nela,98 e (ii)

que, nesta interpretação, o entendimento não coloca nada nela, sendo a experiência

perceptiva independente do entendimento).

Já segundo (1) e (2), a filosofia de Kant defende esse idealismo construtivista

segundo o qual o entendimento faz os objetos por meio de sínteses. O primeiro tipo de

leitura é o dominante, e leva o idealismo construtivista de Kant a um extremo,

colocando o entendimento como condição de todas as nossas representações sensíveis,

intelectualizando-as. Tal leitura restringe o empirismo da filosofia kantiana basicamente

à admissão de uma receptividade, não sendo as intuições empíricas com as quais

estamos familiarizados algo que se deve à mera receptividade, antes nesta última

haveria apenas uma matéria-bruta sensível da qual não temos consciência, de modo que

esse dado não parece capaz de determinar nossos conhecimentos empíricos, o que vai

contra a insistência de Kant sobre o papel decisivo que receptividade desempenha na

sua epistemologia,99 onde, no conhecimento empírico, o intelecto humano seria guiado

por esse material recebido, de modo que este deve, de alguma maneira, direcionar

decisivamente nosso conhecimento empírico, o que parece difícil de compatibilizar com

98 Cf. Bxviii: “só conhecemos a priori das coisas o que nós mesmos nelas pomos” (cf. também Bxxiii).99 Vide sua “Apologia à Sensibilidade” na Antropologia, §§8-11.

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a leitura intelectualista, segundo a qual as qualidades sensíveis com as quais estamos

familiarizados dependeriam todas de regras do intelecto para serem formadas a partir

desse material bruto.100

Assim, pretendi defender uma leitura de Kant que faça jus tanto ao idealismo

construtivista quanto ao seu empirismo — tanto à Dedução quanto à Estética

Transcendental, defendendo, de acordo com a primeira, que o entendimento faz objetos

(ou melhor, produz na experiência perceptiva uma objetividade em geral, mediante as

funções, por exemplo, da causalidade e da permanência), sendo esse fazer, contudo,

sempre transtemporal, i.e. mediante sínteses sucessivas, e nunca meramente espacial (o

qual se daria mediante sínteses simultâneas); e de acordo com a segunda, que

“encerradas num momento”, “captadas numa olhadela”, as intuições são “meramente

sensíveis”, não devendo-se a outra que coisa que não a afecção da receptividade, sendo

estas intuições, que apresentam uma diversidade de características já com uma certa

estrutura interna, os elementos sintetizados numa ordenação temporal pelo

entendimento.101

Na primeira parte, pretendo ter oferecido o que me parece ser o argumento de

Kant para fundamentar seu idealismo construtivista, em vez de simplesmente assumi-lo,

como o fazem as leituras intelectualistas — ainda que em geral essa assumpção seja

feita não tão às claras, ao pressupor que na sensibilidade há apenas dados sensórios sem

unidade, nem estrutura, e disso concluir que são necessárias atividades do entendimento

para se produzir intuições determinadas; o que, sem um argumento suplementar, seria

100 Cf. Robert Pippin (1982, pp. 29-30) sobre o problema do “guia empírico” (empirical guidedness, ouAngewiesenheit). Esse problema da leitura intelectualista foi captado de modo claro por R. P. Wolff,ainda que ele o atribua à filosofia de Kant, e não à leitura que faz desta: “O problema que Kantenfrenta é um problema perene em filosofia. Se se distingue um elemento formal e um material nacognição, e se se identifica o formal com o conceitual, então parecerá sempre paradoxal dizerqualquer coisa sobre o elemento material. O que quer que se diga será expresso por meio deconceitos, e então cai no lado do formal. Em pouco tempo, o material se torna inefável eindeterminado. O próximo passo, que é frequentemente tomado pelos discípulos de uma tal filosofia,é se livrar completamente do elemento material, já que ele não desempenha nenhum papel. Assim, ateoria de Kant tende a degenerar num idealismo à la Hegel ou Fichte” (1963, p. 152n).

101 Paton já identificava a “visão prevalecente”, a “doutrina comumente aceita” na literatura secundáriadaquela época, como sendo aquela que afirma que as diferenças, por exemplo, de formato dasintuições empíricas devem-se “a imposições de nossas mentes”, ao passo que ele atribuía essasdiferenças empíricas qualitativas à “influência das coisas em si mesmas”, defendendo que “apenas oque é estritamente universal é imposto pela mente aos objetos”, interpretação à qual subscrevo (1936,p. 139). A. D. Lindsay também defendia essa interpretação, cf. 1934, pp. 65 e 68.

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apenas inventar um problema para então oferecer uma solução.

Na segunda parte, a partir disso que é dado (intuições empíricas conscientes,

i.e. percepções) e que as categorias concatenam numa série temporal, formando a

experiência perceptiva, pretendo ter oferecido uma teoria dos conceitos empíricos de

Kant que me parece mais próxima aquela que seus textos apontam, segundo a qual os

conceitos empíricos são representações gerais por características comuns (semelhantes),

e que resultam (frequentemente, mas não necessariamente) de atos de comparação,

reflexão e abstração, dessas percepções, em vez de resultarem da comparação de proto-

conceitos (“esquemas”) que funcionariam como regras de síntese sensíveis os quais

seriam responsáveis pela própria formação das intuições empíricas, como exige a leitura

intelectualista, a qual se se afasta completamente dos textos kantianos.

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